Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
AÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
Sumário
I - Na motivação de um recurso, para além da alegação da discordância, é outrossim fundamental a alegação do porquê dessa discordância, isto é, torna-se mister evidenciar a razão pelo qual o recorrente entende existir divergência entre o decidido e o que consta dos meios de prova invocados. Nesse sentido tem sido interpretado o segmento normativo “impunham decisão diversa da recorrida” constante da 2ª parte da al. b) do nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, acentuando-se que o cabal exercício do princípio do contraditório pela parte contrária impõe que sejam conhecidos de forma clara os concretos argumentos do impugnante. II - Com o controlo efetuado pelo Tribunal da Relação sobre o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal de 1ª instância não se visa o julgamento ex novo dessa matéria, mas antes reponderar ou reapreciar o julgamento que dela foi feito na 1ª instância e, portanto, aferir se aquela instância não cometeu, nessa decisão, um error in judicando. O recurso ordinário de apelação em caso algum perde a sua feição de recurso de reponderação para passar a ser um recurso de reexame. III - A escritura de justificação notarial – porque baseada nas declarações dos próprios interessados – não oferece cabais garantias de segurança e de correspondência com a realidade, potenciando mesmo a sua utilização fraudulenta e permitindo que o justificante dela se sirva para titular direitos que não possui, com lesão de direitos de terceiros. Daí que o facto justificado possa ser impugnado em juízo, conforme prescreve o artigo 101º do Código do Notariado. IV- Tal ação de impugnação de escritura de justificação é uma ação de simples apreciação negativa, em que, por inversão do regime regra do ónus da prova, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (artigo 343º, nº 1, do Código Civil), isto é, recai sobre o réu o ónus da prova da existência do direito ou do facto que o autor veio legitimamente questionar.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:
I. RELATÓRIO
Na presente ação declarativa sob a forma comum em que são AutoresAA e mulher BB, CC, DD e marido EE, FF e marido GG, HH, II e Réus JJ, KK, LL, MM e NN, peticionam os demandantes que:
1 - seja declarado que os prédios melhor identificados nas alíneas a) a g) do artigo 1º da petição inicial pertencem à herança aberta por óbito de OO e mulher PP e, consequentemente, aos seus herdeiros, designadamente, aos aqui Autores;
2 – se considere impugnado o facto justificado na escritura identificada nos artigos 50º e seguintes da petição inicial;
3 – seja declarada nula e de nenhum efeito a escritura de justificação, mesmo em relação a terceiros, bem como a doação efetuada ao Réu KK;
4 – seja declarada nula e de nenhum efeito a escritura de compra e venda outorgada em 18 de novembro de 2016, em virtude de se tratar de um negócio simulado.
5 – sejam declarados nulos e de nenhum efeito todos os registos, entretanto, efetuados.
Mais peticionam que os Réus sejam condenados:
1 - A aceitarem e reconhecerem o acima peticionado.
2 - A pagarem solidariamente aos AA. a título de danos não patrimoniais quantia nunca inferior a € 2.900,00 (dois mil e novecentos euros).
Para substanciarem as suas pretensões os Autores alegaram, em suma, que entendem que os Réus não são titulares do direito que invocam na escritura de justificação notarial mencionada na petição inicial, cujos factos impugnam. Sustentam, antes, que OO e PP é que adquiriram a propriedade, por usucapião, dos prédios identificados na escritura e que esses mesmos prédios não foram ainda partilhados entre todos herdeiros.
Argumentam também que a compra e venda celebrada entre os primeiros quatro Réus com o quinto Réu foi simulada, posto que com a mesma apenas quiseram todos aparentar uma transação que, na realidade, inexistiu, visando, tão-somente, dificultar o regresso do prédio à herança de OO e PP.
Citados os Réus apresentaram contestação, defendendo-se quer por exceção (invocando a falta de personalidade judiciária da Herança aberta por óbito de OO, a ilegitimidade da Herança de PP, a exceção da ilegitimidade ativa, a falta de personalidade da ré Herança aberta por óbito de QQ e a falta de mandato), quer por impugnação,sustentando que o vertido no instrumento notarial corresponde à verdade e que, nos exatos termos aí referidos, o falecido QQ e a ré JJ adquiriram por usucapião os prédios aí identificados e que, por essa via, integram tais prédios a herança deixada por óbito de QQ.
Defende ainda o réu NN que adquiriu o prédio urbano de boa-fé, convencido de que a titularidade do prédio urbano era, de facto, dos demais réus por integrar legitimamente a herança de que eram únicos titulares.
O réu NN deduziu ainda reconvenção peticionando que sejam:
a) os Reconvindos condenados a reconhecer o Reconvinte como único e legítimo proprietário do prédio melhor identificado nos artigos 47, 48 e 49 da Reconvenção;
b) os Reconvindos condenados a se absterem de quaisquer atos que perturbem o exercício do pleno direito de propriedade do Reconvinte relativamente ao mesmo prédio;
c) os Reconvindos condenados como litigantes de má-fé; e bem assim,
d) os Reconvindos condenados solidariamente no pagamento de uma indemnização, nos termos e para os devidos efeitos dos artigos 542º e 543º do CPC.
Os Autores apresentaram réplica, pugnando pela improcedência do pedido reconvencional.
Foi proferido despacho saneador onde se julgou procedente a exceção dilatória da falta de personalidade jurídica da Herança aberta por óbito de QQ, com a sua consequente absolvição da instância, julgando-se improcedente a exceção da ilegitimidade plural ativa. Em tal ato processual foi também admitida a coligação de Autores e de Réus, bem como a cumulação dos pedidos; considerou-se processualmente admissível a réplica apresentada pelos Autores; foi ainda delimitado o objeto do litígio e fixados os temas da prova.
Realizou-se a audiência final, com observância de todas as formalidades legais, vindo a ser proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, tendo assumido o respetivo dispositivo o seguinte teor: «Por tudo o exposto, julga-se a ação parcialmente procedente e, consequentemente, decide-se: A) Declarar impugnados os factos levados à escritura de justificação e doação exarada a fls. 39 a fls. 41 verso, do livro de notas para escrituras diversas nº ...4-J, do extinto Cartório Notarial do Dr. RR, em ... por não terem QQ e JJ adquirido tais prédios por usucapião; B) Declarar ineficaz, em relação aos autores, essa escritura de justificação notarial; C) Declarar nula a doação do prédio identificado em A, f) dos factos provados celebrada por escritura de justificação e doação exarada a fls. 39 a fls. 41 verso, do livro de notas para escrituras diversas nº ...4-J, do extinto Cartório Notarial do Dr. RR, em ... entre QQ e JJ, como doadores, e KK, como donatário; D) Declarar nula a compra e venda celebrada por escritura pública de 18.11.2016 entre os primeiros quatro réus como vendedores e o quinto réu como comprador; E) Ordenar o cancelamento dos registos efetuados com base na escritura pública de justificação referida em A), na escritura pública de doação referida em C) e na escritura pública de compra e venda referida em D) deste dispositivo; F) Absolver os réus do demais peticionado. G) Absolver os autores do pedido reconvencional formulado pelo 5.º réu».
*
Não se conformando com o assim decidido vieram os Réus JJ, KK, LL e MM, por um lado, e NN, por outro, separadamente, interpor recurso, os quais foram admitidos como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso, os Réus JJ, KK, LL e MM, apresentaram alegações, formulando, a final, as seguintes CONCLUSÕES:
1.ª O presente recurso versa sobre matéria de facto e matéria de direito.
A – Quanto à matéria de facto
2.ª O facto “J” deve ser considerado não provado.
3.ª Nenhuma das testemunhas nem o autor AA, que motivaram a resposta, referiram que OO e PP detinham os prédios, “o que tudo faziam por conta de OO”.
4.ª Nos artigos 32º a 40º da petição inicial, os autores afirmam que os seus pais, OO e mulher PP adquiriram os prédios em causa por usucapião.
5.ª Isto está em contradição com o constante do facto “J”.
6.ª O facto “K” deve ser considerado não provado.
7.ª A motivação para se considerar este facto provado, foi a mesma do facto “J”.
8.ª Os réus reproduzem aqui o que acima alegaram sobre o facto “J”.
9.ª Os factos não provados 16 a 23 têm de ser considerados provados.
10.ª Inicialmente os trabalhos eram feitos por OO, pai do KK, devido à tenra idade deste.
11.ª Está provado documentalmente nos autos, através de “Certidão de Batismo”, que no dia 5 de outubro de 1952, na Igreja Paroquial de ..., foi batizado um indivíduo do sexo masculino, a quem foi posto o nome de QQ, filho de OO e de PP [vide documento n.º 2 junto com a contestação].
12.ª “Foi padrinho OO e madrinha SS”.
13.ª Na época, ser padrinho era como ser um 2.º pai.
14.ª Quando OO emigrou para a ..., tinha o justificante marido, QQ, tenra idade [facto Q].
15.ª Por isso, foi o pai OO que passou a cuidar dos prédios do irmão OO, mas por conta do seu filho menor QQ.
16.ª OO faleceu em ../../2006.
17.ª Nenhum dos seus filhos, com exceção de TT, passou a trabalhar os prédios em questão, após o seu falecimento.
18.ª Nunca nenhum deles foi visto a trabalhar esses prédios.
19.ª Nos artigos 32.º a 40.º da petição, os autores afirmam que os seus pais, OO e mulher PP adquiriram os prédios em causa por usucapião.
20.ª No inventário obrigatório a que se procedeu por óbito de PP, nenhum dos prédios em causa foi relacionado [vide documento n.º 2, junto com a petição inicial].
21.ª E também nenhum desses prédios foi objeto das doações, de todos os seus prédios, que OO fez aos seus filhos, por escritura pública de 9 de março de 2001, lavrada no Cartório Notarial ... [vide documento n.º 3 junto com a contestação].
22.ª OO e mulher PP nunca foram donos dos prédios que foram de OO.
23.ª Para além de OO, as únicas pessoas que trabalhavam os prédios de OO eram QQ, a mulher e os filhos.
24.ª E nunca ninguém, designadamente os autores, interferiu nesses trabalhos.
25.ª Nem sequer após o falecimento de OO.
26.ª Isto porque OO tinha dado verbalmente os prédios ao afilhado.
B – Quanto à matéria de direito
27.ª Os réus lograram provar os factos constantes da escritura de justificação sub judice.
28.ª Os réus adquiriram os prédios em causa por usucapião.
29.ª A douta sentença recorrida violou, nomeadamente, o disposto nos artigos 1287.º e seguintes do Código Civil.
*
Por sua vez, o réu NN remata a sua peça recursiva com as seguintes CONCLUSÕES:
I- O douto tribunal “a quo” ao decidir da forma como decidiu violou de forma frontal a verdade material e a correspondente justiça.
II- Deveria ter sido dado como provado, pois, que tal facto resulta da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, que OO doou verbalmente ao afilhado QQ os bens imóveis constantes do ponto A. a. a g. dos factos provados.
III- Tal facto resulta dos testemunhos prestados pelas testemunhas UU, senhora com 84 anos, conhecida de AA. e RR. conterrânea destes e que atestou de forma clara, precisa e assertiva que sabia, pois, que assim se falava e ouviu de OO dizer que, aqueles prédios que pertenciam ao filho porque lhe tinham sido doados pelo padrinho que estava na ..., OO - (Vide depoimentos da testemunha prestado a 03/07/2023 entre as 14:00 e as 15:22).
IV- Resulta tal facto provado igualmente pelas declarações das testemunhas VV e WW, pessoas da terra que, não só conheciam OO como QQ e família, trabalharam com estes naqueles prédios, viam estes a cultivar, usar e fruir dos mesmos como se proprietários fossem e sem oposição de ninguém quer antes quer após a morte de KK e de seu pai OO. (Vide depoimentos com início às 14:56 – 15:24 e das 15:25 - 15:58 do mesmo dia 03/07/2023).
V- Pelo que resultou dos autos que há mais de 20 anos QQ detinha como zelador e detentor dos prédios de OO com exclusão de quaisquer outras pessoas e como se seus fossem.
VI- Há mais de 20 anos que os 1º a 4º Réus trabalharam nos campos e bouças deixadas por OO.
VII- Os 1º a 4º Réus utilizaram, cultivaram, tiraram frutos dos prédios melhor identificados em A. dos factos provados à vista de todos e sem oposição de ninguém.
VIII- Utilizaram e possuíram durante mais de 20 anos o prédio urbano identificado em A. a. para arrecadação de alfaias agrícolas e loja de animais, cultivando os terrenos agrícolas, designadamente com vinha, milho e erva/mato para o gado.
IX- Nunca ninguém se opôs a utilização do prédio urbano por parte de QQ e família.
X- O 5º Ré é um terceiro de boa-fé, tendo agido como bonus pater familiae aquando da realização da escritura de compra e venda do prédio urbano melhor descrito em A. a. dos factos provados.
XI- Resultava da caderneta predial e da descrição predial existente à data do negócio celebrado em ../../2016 entre os 1º a 4º Réus e o Apelante (5º Réu) como sendo aqueles os legítimos proprietários daquele imóvel (conforme prova documental junta).
XII- O 5º Réu/Apelante, adquiriu a título oneroso o prédio urbano constante na alínea A. a. dos factos provados.
XIII- O 5º Réu registou a sua aquisição nos termos dos factos provados em Y., anos antes do registo da presente ação.
XIV- Isto posto importaria ao tribunal a quo não só averiguar se aqueles prédios foram adquiridos por usucapião, mas também e face a prova produzida se os mesmos foram efetivamente doados verbalmente ao marido e pai dos 1º a 4º Réus.
XV- Sucede que, apesar da prova testemunhal produzida em audiência o tribunal a quo apenas desconsiderou por completo a doação verbal efetuada ao QQ pelo padrinho OO e todos os elementos que a ela estavam adstritos.
XVI- Tendo ido pelo caminho mais fácil, mas não mais correto, que foi continuar a considerar que os bens pertenciam ainda a OO e por esse motivo a escritura de justificação teria de ser anulada e nessa medida declarados nulos os negócios jurídicos celebrados posteriormente àquele ato de justificação.
XVII- Ainda assim, uma doação nula por vício de falta de forma escrita não impossibilita a aquisição por usucapião.
XVIII- A doação verbal, mesmo inválida, potencia o sentido de transferir para o adquirente uma posse em nome próprio.
XIX- Além de que decorrido o prazo para a usucapião, e verificado o animus e o corpus, como in casu entende o Apelante se verificou, a propriedade adquire-se, retroagindo ao momento do início da posse.
XX- No caso em apreço a posse iniciou-se quando o pai e marido dos 1º a 4º Réus respetivamente, e eles próprios começaram a cuidar e a tirar os devidos frutos e a usar como se legítimos proprietários fossem, os prédios que pertenceram ao padrinho - OO – que os deu ao afilhado QQ.
XXI- Impunha-se, que concretamente fosse levado aos factos provados pelo tribunal a quo, que o Apelante agiu em toda a fase negocial com a diligência normal tendo por base o padrão de homem médio colocado diante da mesma oportunidade de negócio em igualdade de circunstâncias.
XXII- Ora, cremos que mal andou o tribunal a quo ao fundamentar a sua decisão em relação ao 5º Réu, aqui apelante, da forma como o fez pois que a este respeito desconsiderou por completo o que preceituam os artigos 17º do Código de Registo Predial e o art. 291º do C. Civil.
XXIII- Como é sabido, o legislador no normativo suprarreferido consagra uma solução de equilíbrio entre, por um lado o interesse que alguém tem na declaração de nulidade ou anulação de um negócio jurídico relativo a direitos sobre bens imóveis ou móveis sujeitos a registo e o interesse que um terceiro, relativamente a esse negócio possa ter em não ser prejudicado pelos efeitos dessa declaração de nulidade ou anulação.
XXIV- Daí que, se consagre naquele preceito legal, em relação a certos negócios jurídicos, um regime de proteção em relação a terceiros de boa-fé, impondo-se para isso que se verifiquem 3 requisitos: estejamos perante terceiros de boa-fé que adquiriram direitos sobre coisas imóveis ou móveis sujeitos a registo; que essa aquisição tenha sido feita a título oneroso e por fim que o direito adquirido seja registado nos 3 anos posteriores à conclusão do negócio inválido.
XXV- Ora parece-nos que o Apelante na qualidade de terceiro de boa-fé que é, tendo, aliás, o tribunal a quo decidido que “Não ficou demonstrada qualquer simulação que importe nulidade”, cumpriu todos aqueles requisitos.
XXVI- O Apelante comprou a quem se apresentava como legítimo proprietário (Facto provado Z.), um bem imóvel, por contrato de compra e venda e como tal a título oneroso e registou a sua aquisição (Facto provado Y).
XXVII- Pelo que mister teria de se concluir que a eventual nulidade ou anulação da escritura de justificação não poderia ser oponível ao Apelante na qualidade de terceiro de boa-fé que é e nos termos do art. 291º do CC.
XXVIII- No que concerne ao artigo 291º, a própria norma estabelece no seu n.º 4, que é considerado de boa-fé o terceiro adquirente que, no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável.
XXIX- O Apelante, antes de fazer qualquer negócio, acautelou-se em saber se efetivamente estava a comprar um imóvel aos seus legítimos proprietários e se o imóvel se encontrava devidamente declarados na Autoridade Tributária e na Conservatória do Registo Predial. O que efetivamente verificou, confirmou e resulta como provado.
XXX- Não obstante, o nº 2 do artigo 17º do CRP, não define boa-fé para os efeitos da sua aplicação, levando-nos de considerar que: «Há boa-fé quando o terceiro desconhecia, sem culpa, a desconformidade entre a situação registral e a situação substantiva. A concepção é ética…».
XXXI- Face aos factos provados, transcritos supra, não podem restar dúvidas de que o Apelante se apresenta como um terceiro de boa-fé e nessa medida estava convencido de que o prédio pertencia aos primeiros quatro RR. (…) que o adquiriam por herança de seu pai QQ.
XXXII- Deveria o tribunal a quo ter decidido, quanto ao 5º Réu/Apelante de modo diferente, tendo reconhecido o mesmo como único e legítimo proprietário do prédio urbano melhor descrito em A. a. dos factos provados, pois que o mesmo figura como terceiro de boa fé, adquiriu o prédio por contrato de compra e venda, ou seja, a título oneroso, e registou o imóvel em seu nome antes mesmo da ação de impugnação ser intentada, além de que adquiriu o prédio mais de 3 anos depois da escritura de justificação celebrada, publicada e registada.
XXXIII- Entende o Apelante que deveriam ser sido dados como não provados, face a prova produzida nos autos, os pontos J e K dos factos dados como provados.
XXXIV- Pois que, quer das declarações prestadas por AA, quer pelos depoimentos das testemunhas UU, WW e VV, ficou claro que não era OO e PP (falecida em 1978) que detinham e fruíam os prédios relacionados em A. à vista de todos, sem oposição de ninguém, continuamente utilizando o prédio urbano como arrecadação, cultivando os demais o que tudo faziam por conta de OO.
XXXV- E que quem assim fazia era QQ, esposa e filhos que sempre usaram, fruíram e cuidavam como seus legítimos proprietários à vista de todos e sem qualquer oposição de quem quer que seja, e menos ainda dos aqui AA. seus irmãos.
XXXVI- Deveriam ter sido dados por provados os pontos 16., 17, 18, 19, 20., 21., 22., 23., 26., 28., 30., 32. dos factos dados por não provados, pois que OO doou verbalmente ao afilhado QQ os bens imóveis constantes do ponto A. a. a g. dos factos provados.
XXXVII- QQ e a família trabalharam quer em vida de OO quer após a sua morte, nos prédios que pertenceram a OO emigrado para a ....
XXXVIII- Há mais de 20 anos QQ detinha como zelador e detentor dos prédios de OO com exclusão de quaisquer outras pessoas e como se seus fossem.
XXXIX- Há mais de 20 anos que os 1º a 4º Réus trabalharam nos campos e bouças deixadas por OO.
XL- Os 1º a 4º Réus utilizaram, cultivaram, tiraram frutos dos prédios melhor identificados em A. dos factos provados à vista de todos e sem oposição de ninguém.
XLI- Utilizando há mais de 20 anos o prédio urbano para arrecadação de alfaias agrícolas e loja de animais e cultivando os terrenos, designadamente com vinha, milho e erva/mato para o gado.
XLII- Nunca ninguém se opôs, até a data da entrada da presente ação, à utilização dos prédios urbanos por parte de QQ e família.
XLIII- O 5º Ré é um terceiro de boa-fé, tendo agido como bonus pater familiae aquando da realização da escritura de compra e venda do prédio urbano melhor descrito em A. a. dos factos provados.
XLIV- Resultava da caderneta predial e da descrição predial existente à data do negócio celebrado em ../../2016 entre os 1º a 4º Réus e o Apelante (5º Reu) como sendo aqueles os legítimos proprietários daquele imóvel.
XLV- O 5º Réu, adquiriu a título oneroso o prédio urbano constante na alínea A. a. dos factos provados.
XLVI- O 5º Réu registou a sua aquisição nos termos dos factos provados em Y. anos antes do registo da presente ação.
XLVII- Pelo que, dando por provados tais factos, deverá ser declarada a escritura de justificação como válida e eficaz pois que, os prédios identificados em A. dos factos provados foram adquiridos por QQ e JJ por usucapião.
XLVIII- Deverá ainda ser declarada válida a escritura de compra e venda celebrada a ../../2016 entre os primeiros 4 Réus como vendedores e o ora apelante como comprador.
XLIX- Assim sendo deverão ser mantidos os registos efetuados quanto a todos os atos registados respeitantes aos prédios constantes de A. al. a. a g. dos factos provados.
*
Os autores apresentaram contra-alegações em ambos os recursos, pugnando pela improcedência dos mesmos.
*
Remetidos os autos a este Tribunal foi proferida decisão singular na qual se decidiu confirmar a decisão recorrida.
*
Inconformados com esse ato decisório, vieram agora os réus/recorrentes apresentar reclamação para a conferência, requerendo que seja proferido acórdão sobre a matéria da decisão.
*
Cumpridos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. DO MÉRITO DO RECURSO
1. Definição do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelos apelantes, são as seguintes as questões solvendas:
Quanto ao recurso interposto pelos Réus JJ, KK, LL e MM
. determinar se o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por deficiente avaliação ou apreciação das provas nos moldes indicados nas respetivas alegações e, assim, na decisão da matéria de facto;
. decidir em conformidade face à alteração, ou não, do substrato factual dado como provado e não provado na sentença recorrida, mormente apurar se ingressou na esfera jurídica patrimonial de QQ (entretanto falecido) e da ré JJ o direito de propriedade sobre os prédios justificados e se os mesmos poderiam validamente dispor do direito de propriedade sobre o imóvel identificado em f) do art. 1º da p.i. em favor de KK, seu filho, através de contrato de doação que o teve por objeto mediato.
*
Quanto ao recurso interposto pelo Réu NN
. determinar se o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por deficiente avaliação ou apreciação das provas melhor discriminadas nas respetivas alegações e, consequentemente, na decisão da matéria de facto;
. decidir em conformidade face à alteração, ou não, do substrato factual dado como provado e não provado na sentença recorrida, mormente apurar se ingressou na esfera jurídica patrimonial de QQ (entretanto falecido) e da ré JJ o direito de propriedade sobre o imóvel identificado em a) do art. 1º da p.i. e se os mesmos poderiam validamente dispor de tal prédio em favor de NN, através de contrato de compra e venda que o teve por objeto mediato.
.aferir se a eventual nulidade ou anulação da escritura de justificação não poderia ser oponível ao apelante NN na qualidade de terceiro de boa-fé à luz do art. 291º do CC e art. 17º do CRP.
***
2. FUNDAMENTOS DE FACTO
2.1. Factualidade considerada provada na sentença
O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte factualidade:
A. Na freguesia ..., Concelho ..., existem os seguintes prédios inscritos na matriz predial:
a. Prédio urbano, composto de casa de habitação, de ... e ... andar, com a superfície coberta de noventa metros quadrados, sito no lugar ..., a confrontar a Norte e poente com caminho, do Sul com XX e a Nascente com proprietário, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...0º, com o valor patrimonial de €388,40.
b. Prédio rústico, denominado “...”, de mato e pinheiros, sito no lugar ..., com a área de 2544 m2, a confrontar do Norte com YY, do Sul e Poente com caminho da ... e do Nascente com ZZ, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...2º, com valor patrimonial atribuído de €20,62.
c. Prédio rústico, denominado “dos Meios”, de mato e pinheiros, sito no lugar ..., com área de 650m2, a confrontar do Norte com AAA, do Sul com estrada municipal, de Nascente com caminho do ... e do Poente com BBB, inscrito na matriz predial sob o artigo ...16º, com valor patrimonial de €50,53.
d. Prédio rústico, denominado “... do olival”, de cultivo, ramada e oliveiras, sito no lugar ..., com área de 890 m2, a confrontar de Norte com CCC, do Sul com OO, do Nascente com Caminho ... e DDD e do Poente com ribeiro do raposal, inscrito na matriz sob o art. ...72º com valor patrimonial de €56,19.
e. Prédio rústico, denominado “Leira do ...”, de cultivo, ramada e oliveiras, sito no lugar ..., com área de 2000m2, a confrontar de Norte com ribeiro ..., de Sul com EEE, de Nascente com FFF e do Poente com rego de ranhados a nogueira, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...13, com valor patrimonial de €87,99.
f. Prédio rústico, denominado “Campo ...”, de cultivo, ramada e oliveiras, sito no lugar ..., com área de 1680 m2, a confrontar de Norte com GGG, do Nascente com YY e do Poente com estrada municipal, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...24, com valor patrimonial de €48,61.
g. Prédio rústico, denominado “...” de mato e pinheiros, sito no lugar das Lages, com área de 820 m2, a confrontar de Norte com caminho das lages, do Sul com HHH, de Nascente com III e do Poente com JJJ, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...87, com valor patrimonial de €40,03.
B. Estes prédios achavam-se, à data de 7 de outubro de 2009, inscritos na matriz predial em nome de OO, solteiro, maior, emigrado desde há muito, mas desde data não apurada, na ..., com última residência conhecida em Portugal no lugar ..., freguesia ..., deste concelho.
C. O OO é filho de KKK e DDD; nasceu a ../../1934.
D. OO é pai dos autores e do falecido QQ e era também filho de KKK e DDD.
E. O OO casou catolicamente com PP, em primeiras e únicas núpcias de ambos e sob o regime da comunhão geral de bens.
F. PP faleceu a ../../1976.
G. Por óbito de PP procedeu-se a inventário obrigatório, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Ponte de Lima, tendo-lhe sucedido o viúvo e cabeça de casal OO, e os filhos: QQ, os autores e ainda LLL e DDD.
H. OO e mulher PP escolheram OO para padrinho do seu filho QQ, pai dos 4.º primeiros réus.
I. OO era dono dos prédios identificados em A.
J. OO e PP detinham e fruíram os prédios referidos em A à vista de todos, sem oposição de ninguém, continuadamente, utilizando o prédio urbano como arrecadação, cultivando os demais, o que tudo faziam por conta de OO.
K. OO sempre cuidou dos prédios do irmão OO esperançado no seu regresso.
L. OO faleceu a ../../2006.
M. OO faleceu em ../../2008.
N. QQ e JJ outorgaram no dia 7 de outubro de 2009 uma escritura de justificação e doação, exarada a fls 39 a fls 41 verso, do livro de notas para escrituras diversas nº ...4-J, do extinto Cartório Notarial do Dr. RR, em ....
O. Na qual declararam serem donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, dos prédios identificados em A, e declaram doar ao réu KK, que aceitou, o prédio referido em A f).
P. Para o efeito, alegaram que os mesmos vieram à sua posse por doação meramente verbal de OO.
Q. Quando OO emigrou para a República ..., tinha o justificante marido tenra idade, não concretamente apurada.
R. Após o falecimento de OO, QQ passou a cuidar dos prédios referidos em A, designadamente dos prédios aptos ao cultivo.
S. QQ faleceu em ../../2010, tendo-lhe sucedido como herdeiros os 1.ºs 4 réus.
T. HH intentou a 19.10.2016 uma ação com vista à anulação da justificação.
U. Que correu termos sob o processo nº 731/16.3 T8PTL, no extinto ... juízo deste Tribunal.
V. Da qual viria a desistir da instância.
W. O 5.º réu foi citado no âmbito do Processo 731/16.3T8PTL, e para neles intervir, por carta registada com A/R assinado por MMM a 12.2.2018.
X. O 5.º réu, por escritura pública de 18.11.2016 que o Dr. NNN outorgou em sua representação, declarou comprar aos demais réus pelo preço de €3.750,00, o prédio urbano identificado em A, a), tendo os réus declarado que “o imóvel vendido faz parte da herança de QQ, NIF ...78”.
Y. Tendo registado a aquisição a seu favor na Conservatória do Registo Predial ... – prédio agora descrito na CRP sob o n.º ...92 da freguesia ..., Concelho ....
Z. Sobre o prédio incidia o registo de aquisição a favor dos 1ºs 4 réus em comum e sem determinação de parte ou direito.
AA. O 5.º réu já tinha:
a. A 27/08/2012, adquirido por escritura pública de compra e venda, o prédio urbano inscrito na matriz predial sob o nº ...12 da freguesia ... da CRP ...;
b. A 13/02/2013, adquirido por escritura pública de compra e venda, o prédio urbano inscrito na Matriz predial sob o nº ...95 da freguesia ... da CRP ....
*
2.2. Factualidade considerada não provada na sentença
O tribunal de 1ª instância considerou não provados os seguintes factos:
1. KKK e DDD tiveram cinco filhos, para além de OO e OO, a saber: OOO; DDD; e OO.
2. Era OO quem cuidava e cultivava os prédios identificados em A mesmo antes do seu irmão OO ter emigrado.
3. Quando decidiu emigrar para a ... e, porque já admitia a possibilidade de por lá ficar, disse verbalmente a OO que todos os seus bens ficariam para si e para a mulher PP, prédios identificados em A incluídos.
4. Após OO ter emigrado, era OO quem pagava os impostos relativos aos prédios referidos em A, tendo deles passado a cuidar com a convicção de que eram seus.
5. Quando OO emigrou para a República ..., tinha o justificante marido QQ uma idade compreendida entre os 6/10 anos de idade.
6. Depois de emigrar o referido - OO, não mais deu notícias nem contactou com os familiares.
7. Após a morte de OO, todos os seus herdeiros continuaram a respeitar a vontade dos pais e, enquanto não tivessem conhecimento do paradeiro de seu tio, do seu óbito, ou a certeza de que este regressaria a Portugal, não procederiam à partilha dos prédios referidos em A.
8. Após a morte do OO foi HH que passou a zelar e administrar o prédio referido em A, a).
9. O que era do conhecimento de todos.
10. A escritura referida em X foi outorgada logo que todos os réus tiveram conhecimento da existência, em Tribunal, do processo º nº 731/16.3 T8PTL.
11. Com as declarações levadas à escritura referida em X pretenderam apenas os réus transferir formalmente a propriedade do prédio para o 5.º réu, visando dificultar um eventual pedido do seu regresso do à esfera patrimonial da herança deixada por OO.
12. Toda esta atuação dos réus tem causado grande desgosto, transtorno, angústia e revolta aos autores, que sempre pretenderam cumprir com a vontade dos pais.
13. Devolvendo os bens ao tio caso este regressasse a Portugal – emitindo as declarações negociais que para tanto fossem necessárias – ou partilhando-os entre todos caso este não voltasse ou já estivesse falecido.
14. Esta atuação dos réus é muito comentada em toda a freguesia, o que aumenta a ansiedade e instabilidade emocional.
15. No ano de 1978, decidido a não voltar a Portugal, o OO comunicou ao seu sobrinho e afilhado, QQ, que lhe dava os prédios.
16. Estes prédios já vinham a ser trabalhados pelo QQ desde que o OO emigrou para a ....
17. Antes de 1978, já QQ detinha como zelador os prédios de OO.
18. Desde 1978 os prédios identificados em A foram detidos por QQ e esposa e, depois do falecimento daquele, pelos réus.
19. Utilizando, desde 1978, o prédio urbano para arrecadação de alfaias agrícolas e loja de animais, e cultivando os terrenos, designadamente, com milho, vinha, batata e erva para o gado.
20. Deles colhendo, desde 1978, todos os frutos e rendimentos que são suscetíveis de produzir,
21. Com o conhecimento e aceitação de toda a gente,
22. Sem oposição dos autores,
23. Sem interrupções no tempo, e na fé de exercerem direito próprio, como donos.
24. O 5.º réu desde há pelo menos 15 anos que sempre conheceu o prédio que declarou comprar em posse e fruição do falecido QQ, sua esposa e seus filhos, os co-réus.
25. Após o óbito de QQ, sempre que se encontrava em Portugal de férias ou em visita, o 5.º réu sempre via no local do edificado os demais réus, que sempre se anunciaram como os donos legítimos do prédio identificado em A, a).
26. O negócio para a concretização da compra do prédio iniciou-se antes da entrada em juízo do Processo 731/16.3T8PTL.
27. Num dia do mês de agosto de 2016, o 5.º réu foi contactado pelo co-réu LL, que lhe perguntou se estaria interessado na compra do prédio urbano, pois os demais réus estariam interessados em vendê-lo.
28. O 5.º réu tem investido na compra de imoveis para reconstrução e valorização patrimonial.
29. Nessa altura em agosto de 2016, o réu propôs aos co-réus adquirir o prédio urbano pelo preço de €5.000,00 sendo que para esse efeito entregaria um cheque de €5.000,00 (cinco mil euros).
30. Ainda nesse dia de agosto, foram facultados ao réu, que os solicitou, os seguintes documentos:
A) Cópia da Caderneta Predial do prédio emitida via Internet em 22/03/2016 na qual consta como titular “QQ”;
B) Cópia da Escritura Pública de Justificação;
C) Cópia do Modelo 1 do IMI datado de 17/02/2010 onde consta como titular do Prédio “QQ”; e
D) 2 cópias dos comprovativos do pagamento do IMI referente a 2014 e 2015.
31. Tendo ainda acordado que a escritura seria marcada para a última semana de outubro de 2016, semana em que o 5.º réu previa deslocar-se a Portugal.
32. A 4.11.2016, o réu constituiu seu procurador o Solicitador Dr. NNN, tendo-lhe entregue o cheque nº ...64 com o valor de €5.000,00 para pagamento do preço do prédio.
33. O 5º réu compra propriedades como forma de investimento.
34. O 5º réu sabia que o prédio urbano identificado em A, a) não era propriedade dos demais réus.
***
3. Da apreciação das reclamações
Os ora reclamantes insurgem-se contra a decisão singular que julgou improcedentes as apelações que interpuseram, limitando-se, na essência, a recuperar a argumentação que haviam expendido na motivação das respetivas peças recursórias.
Não se nos afigura, contudo, que a decisão sumária da relatora mereça censura, posto que as questões que nela foram decididas obtiveram solução jurídica que reputamos acertada.
Como assim, renovamos e fazemos nossos os argumentos em que se ancorou a aludida decisão singular e que se passam a transcrever:
«Nas conclusões recursivas vieram os Apelantes nos respetivos recursos requerer a reapreciação da decisão de facto, em relação a um conjunto de factos julgados como provados e não provados, com fundamento em erro na apreciação da prova. Como é consabido, o art. 640º estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos: “1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”. O presente regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expressa a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova. Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso -, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto - fundamentação - e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação. Tal como dispõe o nº 1 do art. 662º a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “ […] se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que, na economia do preceito, significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente (em termos de convicção autónoma) uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância. No presente processo a audiência final processou-se com gravação da prova pessoal prestada nesse ato processual. A respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração, como sublinha ABRANTES GERALDES[2], que, funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova. Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados. Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais[3]. Atenta a posição que adrede vem sendo expressa na doutrina e na jurisprudência, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos, deve considerar os meios de prova indicados pelas partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido[4]. Tendo presentes estes princípios orientadores, cumpre agora dilucidar se assiste razão aos Apelantes, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto. Impugnação apresentada pelos Réus Apelantes JJ, KK, LL e MM Começando pela impugnação apresentada pelos identificados Réus verifica-se que os mesmos filiam a sua pretensão recursiva discordando da forma como na decisão recorrida se fixou a materialidade provada, mormente no que tange aos pontos J) e K), advogando que as afirmações de facto aí vertidas devem ser dadas como não provadas, sustentando ainda que as proposições plasmadas nos nºs 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22 e 23 dos factos não provados deverão transitar para o elenco dos factos provados. No que tange à matéria de facto dada como assente ora impugnada, têm as referidas proposições factuais a seguinte redação: . OO e PP detinham e fruíram os prédios referidos em A à vista de todos, sem oposição de ninguém, continuadamente, utilizando o prédio urbano como arrecadação, cultivando os demais, o que tudo faziam por conta de OO (facto dado como assente sob a al. J); . OO sempre cuidou dos prédios do irmão OO esperançado no seu regresso (facto dado como assente sob a al. K). Em sustentação do juízo probatório positivo referente à transcrita materialidade, na respetiva motivação de facto, o decisor de 1ª instância discorreu nos seguintes termos: «[o] que todas as testemunhas deram expressamente como certa (ou depuseram no pressuposto de que era por todos tomado por indiscutível) foi: 1) a pertença dos tais prédios levados ao instrumento de justificação notarial, e referidos em A dos factos provados, a OO, que emigrou em muito jovem para a .... Emigrou tão jovem que as testemunhas ouvidas, mesmo as mais velhas, disseram não o ter conhecido ou não se lembrar dele. Aliás, OO terá primeiro ido para ... e para a ... e só depois para a ..., de acordo com a testemunha PPP, que conhecia muito bem OO e PP [importa aqui referir que esta testemunha PPP, tal aliás como a testemunha QQQ, prestou um depoimento absolutamente conciso, muito detalhado e muito seguro, nomeadamente nas datas, que revelou saber de cor, em que esteve emigrado, nas datas de regresso, e no relato do que cá viu quanto ao cuidado de parte das terras referidas em A, e quanto a quem o prestava. Aliás, é esta testemunha (e a testemunha QQQ) que dá conta da “ocupação” das terras de cultivo (já não das bouças – pelo menos uma era tratada pelo autor AA), após o óbito de OO, pelo seu filho QQ]. 2) coube a OO, seguramente por pedido ou acordo com o seu irmão KK (cujos termos em absoluto se desconhecem) cuidar do que KK cá deixara (nesse sentido, o depoimento de PPP, que deixou claro que coube a OO, à sua esposa e aos seus filhos – viu-os a todos, sem distinção, a cuidarem dos terrenos do OO; o depoimento de QQQ; e ainda o depoimento de RRR, que levantou dúvidas quanto aos reais motivos da justificação notarial outorgada por QQ e a ré JJ); 3) OO, enquanto vivo foi, e sempre que em Portugal (a sua presença em Portugal foi uma constante após a morte da esposa PP, logo em 1976, de acordo com o relato da testemunha QQQ) cuidou dos prédios do seu irmão na esperança do seu regresso. E sintomático disso mesmo é o conhecimento generalizado das testemunhas ouvidas da existência dos prédios como pertencendo a alguém que, ou nunca conheceram, ou de quem não têm memória [PPP conhecia muito bem OO e PP mas nunca chegou a conhecer o OO; QQQ também referiu ter conhecido SSS (para quem, até 2003 – data em que os filhos o levaram, doente, para ... – prestou serviços com trator em alguns dos prédios referidos em A), e de ter falado muitas vezes com QQ, mas nunca conheceu SSS). 4) QQ, muito provavelmente por circunstâncias atinentes a uma condição física sua, impeditiva de uma locomoção fácil, nunca esteve emigrado, e sempre se manteve na freguesia (neste sentido, em especial, o depoimento de QQQ). No que toca aos demais relatos (e demais factualidade), impõe-se dizer que a testemunha UU prestou relato demasiado vago: fala em prédios de forma genérica e repetida, atribui-lhes a propriedade a OO e, depois, sem se perceber bem porquê, entende ter a propriedade sido transmitida a QQ; a testemunha WW (uma das outorgantes da escritura de justificação de que a testemunha RRR recusou fazer parte) conta que SSS sempre afirmou que os terrenos eram para o filho OO, em contracorrente (que não conseguiu explicar ou justificar) com a convicção generalizada de que sempre aguardou o regresso do irmão para devolver as terras. Em igual conta-corrente foi o depoimento de VV, incapaz de conciliar a expectativa de regresso do irmão, com as palavras que atribuiu a SSS quanto ao destino dos prédios e, ainda, com o desabafo que disse ter ouvido a OO (de que “à minha falta vão andar todos engalfinhados”). Por fim, o depoimento de AA, prestado de forma muito concisa, também explicou com detalhe, nos termos dados provados, a matéria relativa à propriedade dos prédios (incapaz, no entanto, de esclarecer como chega a propriedade ao seu pai…). Daqui se retira a prova da matéria levada a (…) J e K». Colocados perante a transcrita motivação da decisão de facto, os Apelantes JJ, KK, LL e MM argumentam fundamentalmente que os enunciados pontos factuais foram alvo de errónea apreciação pelo Mmº Juiz a quo dado que não ponderou devidamente a prova testemunhal produzida no processo, uma vez que na sua opinião “nenhuma das testemunhas nem o autor AA, que motivaram a resposta, referiram que OO e PP detinham os prédios, “o que tudo faziam por conta de OO”” (cfr. cls. 3), defendendo que da leitura que faz dessa prova, a mesma é de molde a permitir a emissão de um juízo negativo sobre a materialidade em crise. Não assistem, contudo, razão aos identificados recorrentes. Com efeito, ouvida a prova produzida nos autos constatamos que a mesma tem a virtualidade de legitimar a conclusão firmada pelo decisor de 1ª instância no sentido de que dar como provada a aludida facticidade, tendo essencialmente por base os depoimentos prestados pelas testemunhas PPP, QQQ e RRR que, no confronto com os demais depoimentos adrede produzidos na audiência final, depuseram com maior e efetivo conhecimento da materialidade em discussão. Assim, o primeiro relatou o que viu quanto ao cuidado de parte das terras referidas em A, e quanto a quem o prestava, afiançando que coube a OO, à sua esposa e aos seus filhos, pois viu-os a todos, sem distinção, a cuidarem dos terrenos do OO. Por sua vez, QQQ assegurou queOO, enquanto vivo foi, e sempre que em Portugal se encontrava (sendo que a sua presença em Portugal foi uma constante após a morte da esposa PP, logo em 1976) cuidou dos prédios do seu irmão na esperança do seu regresso. Por último, o depoimento de RRR, que levantou dúvidas quanto aos reais motivos da justificação notarial outorgada por QQ e a ré JJ. Como assim, não se nos revela desajustada a convicção firmada sobre tal facticidade pelo juiz a quo, sendo certo que os apelantes nem sequer convocaram qualquer subsídio probatório que legitime a emissão de um juízo probatório diverso, devendo, nessa medida, as proposições factuais alvo de impugnação permanecer no elenco dos factos provados.
*
Cumpre, agora, apreciar a impugnação dos referidos Réus no concernente ao segundo conjunto de factos dados como não provados e que, como se deu nota, pretendem transitem para o elenco de factos provados. Estão em causa, pois, as proposições fácticas constantes dos pontos 16 a 23. Vejamos, então, se lhes assiste razão. Nos referidos pontos deu-se como não provado que: . Estes prédios já vinham a ser trabalhados pelo QQ desde que o OO emigrou para a ... (facto dado como não provado sob o nº16); . Antes de 1978, já QQ detinha como zelador os prédios de OO (facto dado como não provado sob o nº17); . Desde 1978 os prédios identificados em A foram detidos por QQ e esposa e, depois do falecimento daquele, pelos réus (facto dado como não provado sob o nº18); . Utilizando, desde 1978, o prédio urbano para arrecadação de alfaias agrícolas e loja de animais, e cultivando os terrenos, designadamente, com milho, vinha, batata e erva para o gado (facto dado como não provado sob o nº19); . Deles colhendo, desde 1978, todos os frutos e rendimentos que são suscetíveis de produzir (facto dado como não provado sob o nº20); . Com o conhecimento e aceitação de toda a gente (facto dado como não provado sob o nº21); . Sem oposição dos autores (facto dado como não provado sob o nº22); . Sem interrupções no tempo, e na fé de exercerem direito próprio, como donos (facto dado como não provado sob o nº23). Na decisão recorrida motivou-se o juízo probatório negativo emitido quanto às transcritas proposições factuais nos seguintes moldes: «Daqui se retira a prova da matéria levada a B (parte final), I, J, K, Q e R e a falta de demonstração do que se verteu em 2 (ninguém o referiu), 3 (não há a mínima prova quanto a tal), 4 (nenhum documento demonstrativo desse pagamento foi junto e, mesmo que fosse, não se sabe se não seria pago com proveitos dos prédios do OO), 5 (provou-se apenas o levado aos factos provados), 6 (o que se tem por certo é que OO nunca mais regressou ao país – todos o referiram), 7 (esse comportamento generalizado não ficou demonstrado), 8 e 9 (o que se soube foi apenas que a autora HH mora ao pé e que teve discussão quanto ao uso do prédio, não que o administrasse), 10 e 11 (rigorosamente nada ficou demonstrado), 12, 13 e 14 (nem se percebeu bem qual era a vontade dos pais nem se demonstrou nenhum dos sentimentos alegados), 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23 (de 15 a 23 por manifesta oposição ao demonstrado), 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33 e 34 (ninguém referiu minimamente o que aqui é vertido nem a compra de 2 prédios presume alguém como investidor imobiliário)». Registe-se, desde logo, que relativamente à impugnação dos mencionados enunciados fácticos os apelantes não cumpriram o ónus que resulta da lei adjetiva quanto à indicação dos concretos meios de prova a reapreciar, limitando-se a afirmar que: .“Inicialmente os trabalhos eram feitos por OO, pai do KK, devido à tenra idade deste”. (cfr. cls. nº10); . “Está provado documentalmente nos autos, através de “Certidão de Baptismo”, que no dia 5 de outubro de 1952, na Igreja Paroquial de ..., foi batizado um indivíduo do sexo masculino, a quem foi posto o nome de QQ, filho de OO e de PP [vide documento n.º 2 junto com a contestação]. (cfr. cls. nº11); . “Foi padrinho OO e madrinha SS”. (cfr. cls. nº12); . “Na época, ser padrinho era como ser um 2.º pai”. (cfr. cls. nº13); .“Quando OO emigrou para a ..., tinha o justificante marido, QQ, tenra idade [facto Q]” (cfr. cls. nº 14); . “ Por isso, foi o pai OO que passou a cuidar dos prédios do irmão OO, mas por conta do seu filho menor QQ.”(cfr. cls. nº15); . “OO faleceu em ../../2006”. (cfr. cls. nº16); . “Nenhum dos seus filhos, com exceção de TT, passou a trabalhar os prédios em questão, após o seu falecimento”. (cfr. cls. nº17); . “Nunca nenhum deles foi visto a trabalhar esses prédios”. (cfr. cls. nº18); . “Nos artigos 32.º a 40.º da petição, os autores afirmam que os seus pais, OO e mulher PP adquiriram os prédios em causa por usucapião”.(cfr. cls. nº19); .“No inventário obrigatório a que se procedeu por óbito de PP, nenhum dos prédios em causa foi relacionado [vide documento n.º 2, junto com a petição inicial]”(cfr. cls. nº20); . “E também nenhum desses prédios foi objeto das doações, de todos os seus prédios, que OO fez aos seus filhos, por escritura pública de 9 de março de 2001, lavrada no Cartório Notarial ... [vide documento n.º 3 junto com a contestação]”. (cfr. cls. nº21); .“OO e mulher PP nunca foram donos dos prédios que foram de OO”. (cfr. cls. nº22); .“Para além de OO, as únicas pessoas que trabalhavam os prédios de OO eram QQ, a mulher e os filhos”. (cfr. cls. nº23); .“E nunca ninguém, designadamente os autores, interferiu nesses trabalhos”. (cfr. cls. nº24); . “ Nem sequer após o falecimento de OO.” (cfr. cls. nº25); “Isto porque OO tinha dado verbalmente os prédios ao afilhado”. (cfr. cls. nº26). Certo é que, como se referiu, para a alteração do sentido probatório referente à indicada materialidade alvo de impugnação nesta sede recursiva os Réus JJ, KK, LL e MM não indicaram qualquer subsídio probatório tendente a, de forma efetiva, permitir a formulação de um juízo positivo sobre as afirmações de facto em crise, razão pela qual, nessas circunstâncias, este tribunal ad quem fica impossibilitado de ajuizar da crítica que direcionam relativamente ao juízo probatório firmado pelo decisor de 1ª instância, por se desconhecer, em concreto, qual, ou quais, a final, os meios de prova que “impunham” (como é suposto pelo art. 662º) decisão diversa da que foi trilhada por esse julgador. Na verdade, como anteriormente se deu nota, nos termos da al. b) do nº 1 do art. 640º, recai sobre o apelante o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, ónus esse que atua numa dupla vertente: cabe-lhe rebater, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo e tentar demonstrar que tal prova inculca outra versão dos factos que atinge o patamar da probabilidade prevalecente. Deve, pois, o recorrente especificar os meios de prova constantes do processo que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos objeto de impugnação, aduzindo, outrossim, argumentos no sentido de infirmar diretamente os termos do raciocínio probatório adotado pelo tribunal a quo, designadamente evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorreto da hierarquização dos parâmetros de credibilização dos meios de prova produzidos, ou seja, que é inconsistente. Certo é que, como se deu nota, não satisfizeram tal determinação legal, motivo pelo qual, nos termos do disposto no nº 1 do citado art. 640º, não há que apreciar o segmento impugnatório referente aos mencionados enunciados fácticos, sendo que, dada a expressão perentória da lei (através do emprego do adjetivo imediata), não cabe convite ao aperfeiçoamento no sentido de lograr suprir a inobservância desse ónus[5].
*
Impugnação apresentada pelo Réu Apelante NN Tendo presentes os princípios orientadores que regem esta temática - já acima enunciados -, cumpre, nesta oportunidade, dilucidar se assiste razão ao Apelante NN, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto. Como emerge das respetivas conclusões recursivas, este recorrente defende que o Mmº Juiz a quo não valorou devidamente a prova produzida, argumentando que: (i) os factos dados como provados nas alíneas J) e K) devem ser dados como não provados; (ii) as afirmações de facto vertidas nos pontos 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 26, 28, 30 e 32 dos factos não provadosdevem antes transitar para o elenco dos factos provados. Começando pelo primeiro segmento da impugnação, verifica-se que se trata da mesma facticidade posta em crise pelos Réus JJ, KK, LL e MM, já reproduzida supra, o que, por razões de economia processual - e visando evitar duplicações - nos dispensamos de transcrever de novo. Por sua vez, quanto ao sentido positivo dado pelo Mmº Juiz a quo à facticidade vertida nas alíneas J) e K), o qual foi coerentemente sustentado na motivação da decisão da matéria de facto (sendo que, como o julgador de 1ª instância enfatizou, a prova ali mencionada foi determinante para a sua convicção na resposta dada a esta concreta facticidade) impõe-se, por isso, recuperar aqui as considerações já tecidas supra, reafirmando-se, consequentemente, a conclusão a que chegamos no sentido de que “não se nos revela desajustada a convicção firmada sobre tal facticidade pelo juiz a quo”. É certo que colocado perante a transcrita motivação da decisão de facto, o Apelante argumenta fundamentalmente que os enunciados pontos factuais foram alvo de errónea apreciação pelo Mmª Juiz a quo pugnando que deveria ter sido dado como provado que OO doou verbalmente ao afilhado QQ os bens imóveis constantes do ponto A. a. a g. dos factos provados, porque tal facto resulta da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, convocando em arrimo da sua posição os depoimentos prestados pelas testemunhas UU, VV e WW. Sucede, porém, que tal entendimento não tem respaldo na prova adrede produzida – e já anteriormente analisada -, da qual claramente resulta que OO e PP detinham e fruíram os prédios referidos em A à vista de todos, sem oposição de ninguém, continuadamente, utilizando o prédio urbano como arrecadação, cultivando os demais, o que tudo faziam por conta de OO e que OO sempre cuidou dos prédios do irmão OO esperançado no seu regresso, inexistindo subsídios probatórios consistentes que, de acordo com standard da probabilidade prevalecente que rege neste domínio[6], apontem no sentido de que OO tenha doado verbalmente ao afilhado QQ os bens imóveis em causa. Porque assim, não merece provimento esta parte do recurso.
*
Passando ao segundo segmento da impugnação formulada pelo Réu NN, constata-se que este pretende que sejam considerados provados os enunciados fácticos plasmados nos pontos 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 26, 28, 30 e 32 dos factos não provados, os quais têm a seguinte redação: . Estes prédios já vinham a ser trabalhados pelo QQ desde que o OO emigrou para a .... (facto dado como não provado sob o nº16); . Antes de 1978, já QQ detinha como zelador os prédios de OO. (facto dado como não provado sob o nº17); . Desde 1978 os prédios identificados em A foram detidos por QQ e esposa e, depois do falecimento daquele, pelos réus. (facto dado como não provado sob o nº18); . Utilizando, desde 1978, o prédio urbano para arrecadação de alfaias agrícolas e loja de animais, e cultivando os terrenos, designadamente, com milho, vinha, batata e erva para o gado. (facto dado como não provado sob o nº19); . Deles colhendo, desde 1978, todos os frutos e rendimentos que são suscetíveis de produzir. (facto dado como não provado sob o nº20); . Com o conhecimento e aceitação de toda a gente. (facto dado como não provado sob o nº21); . Sem oposição dos autores. (facto dado como não provado sob o nº22); . Sem interrupções no tempo, e na fé de exercerem direito próprio, como donos. (facto dado como não provado sob o nº23); . O negócio para a concretização da compra do prédio iniciou-se antes da entrada em juízo do Processo 731/16.3T8PTL. (facto dado como não provado nº 26); . O 5º réu tem investido na compra de imóveis para reconstrução e valorização patrimonial. (facto dado como não provado nº 28); . Ainda nesse dia de agosto, foram facultados ao réu, que os solicitou, os seguintes documentos: A) Cópia da Caderneta Predial do prédio emitida via Internet em 22/03/2016 na qual consta como titular “QQ”; B) Cópia da Escritura Pública de Justificação; C) Cópia do Modelo 1 do IMI datado de 17/02/2010 onde consta como titular do Prédio “QQ”; e D) 2 cópias dos comprovativos do pagamento do IMI referente a 2014 e 2015. (facto dado como não provado nº 30); . A 4.11.2016, o réu constituiu seu procurador o Solicitador Dr. NNN, tendo-lhe entregue o cheque nº ...64 com o valor de €5.000,00 para pagamento do preço do prédio. (facto dado como não provado nº 32). Na respetiva motivação de facto, no sentido de justificar o juízo probatório emitido, o decisor de 1ª instância discorreu nos seguintes moldes: «[D]aqui se retira a prova da matéria levada a B (parte final), I, J, K, Q e R e a falta de demonstração do que se verteu em 2 (ninguém o referiu), 3 (não há a mínima prova quanto a tal), 4 (nenhum documento demonstrativo desse pagamento foi junto e, mesmo que fosse, não se sabe se não seria pago com proveitos dos prédios do OO), 5 (provou-se apenas o levado aos factos provados), 6 (o que se tem por certo é que OO nunca mais regressou ao país – todos o referiram), 7 (esse comportamento generalizado não ficou demonstrado), 8 e 9 (o que se soube foi apenas que a autora HH mora ao pé e que teve discussão quanto ao uso do prédio, não que o administrasse), 10 e 11 (rigorosamente nada ficou demonstrado), 12, 13 e 14 (nem se percebeu bem qual era a vontade dos pais nem se demonstrou nenhum dos sentimentos alegados), 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23 (de 15 a 23 por manifesta oposição ao demonstrado), 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33 e 34 (ninguém referiu minimamente o que aqui é vertido nem a compra de 2 prédios presume alguém como investidor imobiliário)». Insiste o recorrente que “deveriam ter sido dados por provados os pontos 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 26, 28, 30 e 32 dos factos dados por não provados, argumentando que OO doou verbalmente ao afilhado QQ os bens imóveis constantes do ponto A. a. a g. dos factos provados”. (cfr. cls. XXXVI); Sustenta que o aludido QQ e a família trabalharam, quer em vida de OO quer após a sua morte, nos prédios que pertenceram a OO emigrado para a .... (cfr. cls. XXXVI); Reafirma que há mais de 20 anos QQ detinha como zelador e detentor dos prédios de OO, com exclusão de quaisquer outras pessoas, e como se seus fossem, sem a oposição de quem quer que seja. ( cfr. cls. XXXVIII a XLII). Para esse efeito convoca os depoimentos das testemunhas UU, VV e WW, os quais, na sua perspetiva, devidamente conjugados impunham decisão diversa daquela que foi proferida pelo Tribunal recorrido. Acontece, porém, que analisadas as alegações recursivas, verifica-se que o Apelante se limita, praticamente, a aludir aos depoimentos produzidos pelas indicadas testemunhas, não os cotejando, no entanto, com os concretos elementos probatórios que o Tribunal a quo adrede relevou na fixação do sentido decisório que acolheu quanto a esta concreta materialidade alvo de impugnação. Como é sabido, para este efeito impugnatório, não basta a mera indicação, sem mais, de um determinado meio de prova, e também se revela insuficiente no que respeita à prova pessoal, o extrato de uma simples declaração de testemunha ou das próprias partes, sem correspondência com o sentido global dos depoimentos produzidos de tal modo que não permita consolidar uma determinada convicção acerca da matéria controvertida. Com efeito, na motivação de um recurso, para além da alegação da discordância, é outrossim fundamental a alegação do porquê dessa discordância, isto é, torna-se mister evidenciar a razão pelo qual o recorrente entende existir divergência entre o decidido e o que consta dos meios de prova invocados. Nesse sentido tem sido interpretado o segmento normativo “impunham decisão diversa da recorrida” constante da 2ª parte da al. b) do nº 1 do art. 640º, acentuando-se que o cabal exercício do princípio do contraditório pela parte contrária impõe que sejam conhecidos de forma clara os concretos argumentos do impugnante[7]. Daí que, da mesma maneira que ao tribunal de 1ª instância é atribuído o dever de fundamentação e de motivação crítica da prova que o conduziu a declarar quais os factos que julga provados e não provados (art. 607º, nº 4), devendo especificar, por razões de sindicabilidade e de transparência, os fundamentos que concretamente se tenham revelado decisivos para formar a sua convicção, facilmente se compreende que, em contraponto, o legislador tenha imposto à parte que pretenda impugnar a decisão de facto o respetivo ónus de impugnação, devendo expor os argumentos que, extraídos de uma apreciação crítica dos meios de prova, determinem, em seu entender, um resultado diverso do decidido pelo tribunal a quo. Isso mesmo é sublinhado por ANA LUÍSA GERALDES[8], quando refere que o recorrente ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, “deve fundar tal pretensão numa análise (crítica) dos meios de prova, não bastando reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos”. Exige-se, pois, o confronto desses elementos com os restantes que serviram de suporte para a formulação da convicção do Tribunal de 1ª instância (e que ficaram expressos na decisão), com recurso, se necessário, aos restantes meios probatórios, v.g., documentos, relatórios periciais, etc., apontando as eventuais disparidades e contradições que infirmem a decisão impugnada e é com esses elementos que a parte contrária deverá ser confrontada, a fim de exercer o contraditório, no âmbito do qual poderá proceder à indicação dos meios de prova que, em seu entender, refutem as conclusões do recorrente. Facto é que o apelante não realizou esse exercício de confronto entre (todos) os meios de prova produzidos sobre a materialidade impugnada, limitando-se, como se referiu, a aludir os depoimentos prestados pelas testemunhas mencionadas, não evidenciando em que medida os mesmos possam abalar o sentido decisório que quanto à factualidade em crise foi acolhido pelo decisor de 1ª instância. Resulta do exposto que o Apelante não deu integral cumprimento ao mencionado ónus, o que, per se, motivaria a improcedência do recurso neste concreto segmento de impugnação da matéria de facto. Como quer que seja, após a audição do registo fonográfico da audiência final, mormente dos depoimentos prestados pelas identificadas testemunhas, afigura-se-nos, tal como afirmado pelo decisor de 1ª instância, que esta prova pessoal não se revela suficiente para convencer da ocorrência da aludida facticidade. Efetivamente, como emerge da audição do registo fonográfico dos depoimentos prestados pelas indicadas testemunhas, resulta claro – como, aliás, o julgador de 1ª instância deixara evidenciado em moldes que igualmente sufragamos – terem produzido a respeito dessa facticidade depoimentos marcadamente vagos e inconsistentes, não confirmando de forma segura, como se impunha, a ocorrência da matéria fáctica ora objeto de impugnação. Isto posto, a questão que naturalmente se coloca é a de saber se na presença dos mencionados subsídios probatórios se justifica a impetrada alteração do sentido decisório referente à facticidade ora objeto de impugnação, sendo que, como deflui do respetivo corpo alegatório, o que o apelante pretende com essa impugnação é que este tribunal ad quem valore de forma diversa do decisor de 1ª instância os depoimentos que adrede foram prestados na audiência final. Ora, com o controlo efetuado pelo Tribunal da Relação sobre o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal de 1ª instância não se visa o julgamento ex novo dessa matéria, mas antes reponderar ou reapreciar o julgamento que dela foi feito na 1ª instância e, portanto, aferir se aquela instância não cometeu, nessa decisão, um error in judicando. O recurso ordinário de apelação em caso algum perde a sua feição de recurso de reponderação para passar a ser um recurso de reexame. Como assim, ponderando os aludidos subsídios probatórios, não se mostra evidenciado que no juízo alcançado pelo decisor de 1ª instância ocorra algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, assumindo uma opção que justificou de forma que reputamos consonante com a prova produzida no âmbito do presente processo, razão pela qual inexiste fundamento válido para que os mencionados enunciados fácticos constantes dos pontos 16) a 23), 26), 28), 30) e 32) dos factos não provados transitem para o elenco dos factos provados. Improcede também, nesta parte, o recurso.
*
Deste modo, perante o supra exposto, nenhuma alteração se poderá introduzir na matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada e não provada.
***
Como se deu nota, os Autores intentaram a presente ação declarativa com o desiderato, entre outros, de impugnar a escritura de justificação notarial e doação, outorgada em 7 de outubro de 2009 (com base na qual se fundamentou a inscrição registral dos prédios identificados no art. 1º, als. A a E) e G) da petição inicial, a favor de QQ e de JJ e do prédio identificado no art. 1º al. F) do referido articulado a favor de KK) e bem assim a subsequente escritura de compra e venda outorgada em 18.11.2016, onde os representantes da herança indivisa por óbito de QQ declaram vender a NN o prédio identificado no art. 1º al. A) da petição inicial que, de igual modo, registou a seu favor a aquisição desse imóvel. Na referida escritura de justificação notarial e doação, outorgada em 7 de outubro de 2009, QQ e de JJ declararam serem donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, dos prédios identificados no art. 1º da petição inicial (e em A da matéria de facto dada como assente) e declaram doar ao Réu KK, que aceitou, o prédio referido em A f), o direito de propriedade sobre o prédio. Em tal ato QQ e JJ declararam que os identificados prédios vieram à sua posse por doação meramente verbal de OO - o titular inscrito, OO - tio do justificante, e que há mais de 20 anos, eles justificantes, se encontram na posse e fruição daqueles imóveis, exercendo sobre eles todos os poderes de facto inerentes ao direito de propriedade, na qualidade de seus donos, como coisa sua e nessa convicção, usufruindo de todas as utilidades possíveis em nome próprio e sem a oposição de ninguém, pelo que exerceram uma posse de boa fé, pacífica, contínua e pública, sem interrupção e ostensivamente, com conhecimento de toda a gente, adquirindo o seu direito por usucapião. Por seu turno, terceiros declararam na mesma escritura que confirmavam as declarações prestadas pelos réus, por corresponderem a verdade Quid iuris? Conforme tem sido recorrentemente sublinhado, a escritura de justificação notarial – porque baseada nas declarações dos próprios interessados – não oferece cabais garantias de segurança e de correspondência com a realidade, potenciando mesmo a sua utilização fraudulenta e permitindo que o justificante dela se sirva para titular direitos que não possui, com lesão de direitos de terceiros. Daí que o facto justificado possa ser impugnado em juízo, conforme prescreve o art. 101º do Código do Notariado. Tal ação de impugnação de escritura de justificação é, conforme entendimento pacífico[9], uma ação de simples apreciação negativa, em que por inversão do regime regra do ónus da prova, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (art. 343º, nº 1, do Cód. Civil), isto é, recai sobre o réu o ónus da prova da existência do direito ou do facto que o autor veio legitimamente questionar. Consequentemente, no caso vertente, competia aos réus o ónus da prova da dominialidade dos ajuizados prédios, sendo que em resultado do substrato factual dado como provado e não provado (e que, como se viu, não sofreu alteração nesta sede recursiva) o juiz a quo julgou a ação parcialmente procedente, declarando a ineficácia da dita escritura de justificação notarial, bem como decretou a nulidade do contrato de doação, celebrado nessa data, entre QQ e de JJ e KK e que teve por objeto mediato o identificado prédio. Os Réus Apelantes JJ, KK, LL e MM rebelam-se contra esse segmento decisório argumentando fundamentalmente que “Os réus lograram provar os factos constantes da escritura de justificação sub judice (cfr. cls. 27); “Os réus adquiriram os prédios em causa por usucapião” (cfr. cls. 28) e que “A douta sentença recorrida violou, nomeadamente, o disposto nos artigos 1287.º e seguintes do Código Civil” (cfr. cls. 29). Na economia do recurso que interpuseram, a alteração do sentido decisório plasmado no dispositivo da sentença recorrida pressupunha a modificação do juízo probatório emitido pelo tribunal de 1ª instância quanto aos factos que considerou provados e não provados, isto é, o pedido de alteração desse ato decisório no que respeita à interpretação e aplicação do Direito dependia do prévio sucesso da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não se revestindo de autonomia, já que, neste conspecto, os apelantes não sindicaram ter existido erro «na determinação da norma aplicável», ou na forma como deveria «ter sido interpretada e aplicada». Consequentemente não tendo tido êxito na pretensão de alteração da matéria de facto considerada para o efeito na sentença, ficou necessariamente prejudicado o conhecimento do recurso sobre a matéria de direito que dele dependesse, nos termos do art. 608.º, n.º 2, aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, in fine, não sendo, de qualquer modo, despiciendo sublinhar que essa decisão, perante o substrato factual apurado, não é merecedora de censura, já que, como nela se evidencia – em moldes que merecem a nossa concordância –, os apelantes não logrou demonstrar – como lhe era imposto em sede de ónus de prova – materialidade bastante que permitisse considerar que os ajuizados imóveis ingressaram na sua esfera jurídica patrimonial pela indicada via de aquisição originária por ususcapião. Como assim, carecem os apelantes de título (entendida a expressão no seu sentido civilístico, isto é, enquanto fundamento ou causa da titularidade de determinado direito) que legitime o direito a que se arrogam e que foi declarado na escritura de justificação notarial alvo de impugnação através da presente demanda.
*
Resta, assim, apreciar a questão de direito que subjaz ao recurso apresentado pelo Réu NN, qual seja a de saber se a “nulidade ou anulação da escritura de justificação” não lhe poderia ser oponível nos termos previstos no art. 291º do Cód. Civil e no art. 17º do Cód. de Registo Predial dada a sua qualidade de terceiro de boa-fé. Como se viu, os Autores nesta ação também peticionaram a nulidade do negócio de compra e venda celebrado entre os réus e que teve por objeto mediato o imóvel descrito em A, a) dos factos provados, em virtude de se tratar de um negócio simulado. Discutida a causa o Mmº Juiz a quo considerou que não ficou demonstrada qualquer simulação que importe nulidade. Decidiu antes o julgador de 1ª instância que “o que ficou demonstrado, sim, é que os 1.ºs 4 réus venderam ao 5.º réu um prédio de que não eram proprietários. Venderam, portanto, coisa alheia. E a venda de coisa alheia, sendo oposto pelos autores (que não foram vendedores), é nula, nos termos do disposto no artigo 892.º do Código Civil, sendo essa nulidade de conhecimento oficioso (artigo 286.º do Código Civil), pode e deve ser declarada. Note-se, como se afirmou já acima, que o 5.º réu não é terceiro subadquirente. A justificação notarial não é um negócio jurídico translativo. A venda pelos réus é no âmbito da sucessão (artigo 2024.º do Código Civil); é o primeiro negócio que realizam quanto ao prédio referido em A, a) após a afirmação, apenas para efeitos registrais, da sua aquisição originária. A nulidade da compra e venda impõe o cancelamento do registo de aquisição que nela se suporte, sendo certo que nenhuma outra forma de aquisição a favor do 5.º réu foi alegada.” O Réu Apelante NN rebela-se contra esse segmento decisório argumentando fundamentalmente que “mal andou o tribunal a quo ao fundamentar a sua decisão em relação ao 5º Réu, aqui apelante, da forma como o fez pois que a este respeito desconsiderou por completo o que preceituam os artigos 17º do Código de Registo predial e o art. 291º do C. Civil” (cfr. cls. XXII); Objeta, entre outros, que face aos factos provados, o Apelante se apresenta como um terceiro de boa-fé porque estava convencido de que o prédio pertencia aos primeiros quatro RR. (…) que o adquiriam por herança de seu pai QQ. (cfr. cls. XXXI); Sustenta que o tribunal a quo deveria ter decidido, quanto a si de modo diferente, reconhecendo-o como único e legitimo proprietário do prédio urbano melhor descrito em A. a. dos factos provados, pois que o mesmo figura como terceiro de boa fé, adquiriu o prédio por contrato de compra e venda, ou seja, a título oneroso, e registou o imóvel em seu nome antes mesmo da ação de impugnação ser intentada, além de que adquiriu o prédio mais de 3 anos depois da escritura de justificação celebrada, publicada e registada (cfr. cls. XXXIX); Enfatiza que é um terceiro de boa-fé, tendo agido como bónus pater familiae aquando da realização da escritura de compra e venda do prédio urbano melhor descrito em A. a. dos factos provados (cfr. cls. XLIII); Advoga que, dando-se por provados os factos por si impugnados, deverá ser declarada a escritura de justificação como válida e eficaz pois que, os prédios identificados em A. dos factos provados foram adquiridos por QQ e JJ por usucapião (cls. XLVII); Defende que deverá ser declarada válida a escritura de compra e venda celebrada a ../../2016 entre os primeiros 4 Réus como vendedores e o ora apelante como comprador, devendo ser mantidos os registos efetuados quanto a todos os atos registados respeitantes aos prédios constantes de A. al. a. a g. dos factos provados (cfr. cls. XLVIII e XLIX). Não lhe assiste, contudo, razão. Como já decidido supra, improcedeu na totalidade a impugnação da matéria de facto apresentada por todos os Réus Apelantes, incluindo o Réu NN. Por esse motivo, e como também já antes definido, a reapreciação de direito suscitada no seu recurso - à exceção da questão de saber se apesar da ineficácia da escritura de justificação deverá ser declarada válida a escritura de compra e venda celebrada a ../../2016 entre os Réus JJ, KK, LL e MM, como vendedores e o ora Réu Apelante como comprador, com a consequente manutenção do registo efetuado quanto ao prédio objeto da aludida venda ( o constante de A. al. a) dos factos provados) -, fica também prejudicada, porque defendida com base na procedência da impugnação da matéria de facto, o que não sucedeu. Impõe-se, assim, apreciar tão somente se apesar da ineficácia da escritura de justificação deverá ser declarada válida a escritura de compra e venda celebrada entre os Réus JJ, KK, LL e MM como vendedores e o apelante NN como comprador, com a consequente manutenção do registo efetuado quanto ao prédio objeto da aludida venda (o identificado em A. al. a) dos factos provados). Convoca em arrimo da sua posição o regime legal contemplado nos normativos legais estabelecidos no art. 17º do CRP e art. 291º do CC.
Sob a epígrafe “Declaração da nulidade” preceitua o primeiro normativo citado que. «1 - A nulidade do registo só pode ser invocada depois de declarada por decisão judicial com trânsito em julgado. 2 - A declaração de nulidade do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da ação de nulidade. 3 - A ação judicial de declaração de nulidade do registo pode ser interposta por qualquer interessado e pelo Ministério Público, logo que tome conhecimento do vício».
Portanto, como deflui do inciso normativo transcrito, nele se estabelece que a nulidade do registo só pode ser invocada após decisão judicial com trânsito em julgado. Este artigo também protege os direitos adquiridos de boa fé por terceiros de forma onerosa, se o registo desses direitos for anterior ao registo da ação de nulidade. Por sua vez, no art. 291º do Cód. Civil, com a epigrafe “Inoponibilidade da nulidade e da anulação”), estabelece-se que: «1. A declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da ação de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio. 2. Os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos, se a ação for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio. 3. É considerado de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável. Esta regulação legal - consagrando um desvio ao princípio geral sobre os efeitos da nulidade ou anulabilidade do negócio (art. 289.º do Cód. Civil) quando estão em causa bens imóveis, ou móveis sujeitos a registo - visa, pois, proteger o terceiro de boa fé que adquire um bem imóvel ou móvel sujeito a registo a título oneroso, mesmo que o negócio do qual decorre a aquisição seja nulo ou anulável, sendo que essa boa-fé implica que o terceiro desconhecesse, sem culpa, o vício genético do negócio, realidade factual esta cujo onus probandi - de acordo com a teoria das normas que predominantemente se considera consagrada na lei substantiva – impende naturalmente sobre o terceiro que pretende a manutenção do negócio jurídico inválido. Sucede, porém, que perante o tecido factual que logrou demonstração mostra-se desajustada a alusão aos mencionados regimes normativos – que o Réu Apelante NN convoca em sustentação do seu (alegado) direito de propriedade sobre o ajuizado imóvel – posto que, como se enfatizou, o seu âmbito de previsão encontra-se limitado, para além do mais, aos direitos adquiridos por terceiro de boa-fé, implicando esta “boa-fé” que o terceiro desconhecia, sem culpa, o vício do negócio, afirmação de facto esta que o apelante não provou, inexistindo consequentemente fundamento para modificação do julgado que culminou com a declaração de ineficácia da mencionada escritura de justificação notarial e da nulidade da escritura de compra e venda celebrada entre JJ, KK, LL e MM, como vendedores e NN, como comprador, por não existir na esfera jurídica dos vendedores o direito de dispor do imóvel que constituiu objeto mediato desse contrato. Impõe-se, por isso, a improcedência da respetiva pretensão recursória».
Destarte, atentas as razões alinhadas na decisão singular e ora acabadas de transcrever, não se vislumbra motivo válido para divergir do sentido decisório nela acolhido relativamente às concretas questões que nela foram objeto de análise.
***
III. DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam as Juízas deste Tribunal da Relação em não atender as reclamações, mantendo, pois, a decisão singular que julgou improcedentes as apelações interpostas.
Custas a cargo dos reclamantes.
Guimarães, 04.11.2025
Relatora: Maria Gorete Morais 1ª Adjunta: Maria João Marques Pinto Matos 2ª Adjunta: Rosália Cunha
[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem. [2]In Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225; no mesmo sentido milita REMÉDIO MARQUES (in A ação declarativa, à luz do Código Revisto, 3ª edição, págs. 638 e seguinte), onde critica a conceção minimalista sobre os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto que vem sendo seguida por alguma jurisprudência. [3] Isso mesmo é ressaltado por ABRANTES GERALDES, in Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, 3ª ed. revista e ampliada, pág. 272. [4] Assim ABRANTES GERALDES Recursos, pág. 299 e acórdãos do STJ de 03.11.2009 (processo nº 3931/03.2TVPRT.S1) e de 01.07.2010 (processo nº 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1),ambos acessíveis em www.dgsi.pt. [5] A este propósito, a doutrina, praticamente una voce, tem considerado que o incumprimento dos mencionados ónus implica a rejeição do recurso, na parte respeitante, sem possibilidade sequer de introdução de despacho de aperfeiçoamento – cfr., por todos, ABRANTES GERALDES, ob. citada, pág. 134, AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, pág. 170; LOPES DO REGO, ob. citada, vol. I, pág. 585 e LEBRE DE FREITAS et alli, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, pág. 62. Idêntico entendimento tem sido seguido na jurisprudência, de que constituem exemplo, inter alia, os acórdãos do STJ de 9.02.2012 (processo nº 1858/06.5TBMFR. L1.S1), de 22.09.2011 (processo nº 1368/04.5TBBNV.S1), de 15.09.2011 (processo nº 455/07.2TBCCH.E1.S1), de 21.06.2011 (processo nº 7352/05.4TCLRS.L1.S1), acórdãos da Relação de Lisboa de 13.03.2014 (processo nº 569/12.7TVLSB.L1) e de 12.02.2014 (processo nº 26/10.6TTBRR.L1) e acórdão da Relação de Guimarães de 12.06.2014 (processo nº 1218/10.3TBBCL.G1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Registe-se que sobre esta temática, ainda que no domínio da jurisdição penal, o Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se (v.g. acórdão nº 259/2002, publicado no Diário da República, II série, de 13.12.2002), decidindo pela compatibilidade constitucional de uma solução legislativa segundo a qual a falta de cumprimento dos ónus que impendem sobre o recorrente que pretenda impugnar a matéria de facto tem como efeito o não conhecimento dessa matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir esses vícios. [6] Cfr., sobre a questão e por todos, acórdão do STJ de 6.12.2011 (processo nº 1675/06.2TBPRD.P1.S1), acessível em www.dgsi.pt. [7] Cfr., neste sentido, acórdão do STJ de 15.09.2011 (processo nº 1079/07.0TVPRT.P1.S1), de 2.12.2013 (processo nº 34/11.0TBPNI.L1.S1) e de 22.10.2015 (processo nº 212/06), acórdãos da Relação do Porto de 5.11.2012 (processo nº 434/09.5TTVFR.P1) e de 17.03.2014 (processo nº 3785/11.5TBVFR.P1) e acórdãos desta Relação de Guimarães de 15.09.2014 (processo nº 2183/12.TBGMR.G1) e de 15.10.2015 (processo nº 132/14.8T8BCL.G1), todos disponíveis em www.dgsi.pt. [8]Impugnação e reapreciação da decisão da matéria de facto, pág. 4 e seguinte, trabalho disponível emwww.cjlp.org/materias/Ana_Luisa_Geraldes_Impugnacao_e_Reapreciacao_da_Decisao_da_Materia_de_Facto.pdf. Idêntico entendimento vem sendo acolhido na jurisprudência, de que constituem exemplo, inter alia, os acórdãos do STJ 15.09.2011 (processo nº 1079/07.0TVPRT.P1.S1), de 2.12.2013 (processo nº 34/11.0TBPNI.L1.S1) e de 22.10.2015 (processo nº 212/06), acórdãos da Relação do Porto de 5.11.2012 (processo nº 434/09.5TTVFR.P1) e de 17.03.2014 (processo nº 3785/11.5TBVFR.P1) e acórdãos desta Relação de Guimarães de 15.09.2014 (processo nº 2183/12.TBGMR.G1) e de 15.10.2015 (processo nº 132/14.8T8BCL.G1), acessíveis em www.dgsi.pt. [9] Cfr., por todos, acórdão do STJ de 10.01.2023 (processo nº 583/19.1T8FAR.E1.S1), acessível em www.dgsi.pt.