LEI DA SAÚDE MENTAL
TRATAMENTO INVOLUNTÁRIO EM AMBULATÓRIO
Sumário

I - O tratamento involuntário (nos termos do disposto no artigo 15º da Lei nº 35/2023, de 21/07 - “Lei da Saúde Mental” -) deve ser orientado para a recuperação integral da pessoa, mediante intervenção terapêutica e reabilitação psicossocial.
II - Dos autos resulta que o internando padece de doença de foro psiquiátrico, tendo sido diagnosticado com perturbação delirante (a qual provoca ideias delirantes de cariz persecutório, com implicações diretas a nível do comportamento, tornando-o mais hostil e agressivo), sendo que com a terapêutica instituída durante o internamento apresentou uma melhoria gradual, em termos de comportamento e postura (tanto assim é que que as ideias delirantes de cariz persecutório envolvendo familiares passaram a apresentar menor dinamismo - o que demonstra a sua eficácia -).
III - Contudo, o paciente não aceita sofrer da doença em causa e, consequentemente, recusa o plano terapêutico proposto.
IV - Nessa medida, estão inteiramente preenchidos os pressupostos do artigo 15º da referida “Lei da Saúde Mental”, na medida em que o tratamento involuntário em regime de ambulatório desenha-se como a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito para a doença mental de que o internando padece, configurando-se como adequado para prevenir ou eliminar o perigo que daí resulta para a integridade física de terceiros, e apresentando-se como proporcional à gravidade da doença mental em causa e aos perigos que dela possam resultar para terceiros do comportamento do internando.

Texto Integral



ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÂO DE ÉVORA


1. RELATÓRIO

A – Decisão Recorrida

No processo comum de tratamento involuntário, nº 1139/25.5T8PTM, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Competência Genérica de Silves, Juiz 2, foi proferida a seguinte decisão (transcrição):

I – Relatório
H foi submetido a internamento involuntário de urgência a 10.04.2025, no Departamento de Saúde Mental, do Centro Hospitalar Universitário do Algarve – Portimão.
*
Confirmado judicialmente o internamento, realizou-se avaliação clínico-psiquiátrica do internando, concluindo-se pela transição de tratamento involuntário em internamento para ambulatório.
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Designada data para sessão conjunta, procedeu-se à audição do internando, da pessoa de sua confiança, da sua mãe e da sua filha, de dois médicos subscritores dos relatórios periciais juntos aos autos.

II – Saneamento
O Tribunal é competente.
Mantém-se a validade e regularidade da instância, não sobrevindo quaisquer nulidades, exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito da causa.

III - Factos Provados
1. H nasceu em 16.06.1965.
2. Há cerca de um ano foi diagnosticado com perturbação delirante crónica, tendo iniciado a toma de medicação psicótica, a qual deixou posteriormente por iniciativa própria.
3. Durante a observação clínica realizada a 10.04.2025 pelo Serviço de Psiquiatria do Hospital de Portimão, apresentava discurso organizado, coerente e fluente, tendo-se apurado ideias delirantes de cariz persecutório.
4. Na sequência dessa observação, H foi sujeito a internamento.
5. Tais ideias delirantes de cariz persecutório têm implicações diretas a nível do comportamento, tornando-o hostil e heteroagressivo para com os envolvidos, tendo chegado, nesse contexto, a dar uma bofetada e a puxar os cabelos da filha mais nova, T, em março de 2025.
6. Com a terapêutica instituída durante o internamento, verificou-se uma melhoria gradual em termos de comportamento e postura, apresentando-se progressivamente mais cordial e colaborante na prestação de cuidados.
7. Aquando a observação clínica realizada a 30.04.2025 mantinha ideias delirantes de cariz persecutório envolvendo familiares, mas com menor dinamismo e sem verbalização espontânea.
8. … não apresentava ideação auto ou heteroagressiva.
9. Aquando a observação clínica realizada a 05.06.2025, relatou “as minhas filhas arranjaram 2 crianças para me tirarem do caminho delas… elas mentem aos meus netos sobre o avô”, “isto foi articulado meticulosamente com um objetivo, porque eu sou uma pedra no sapato deles… a minha mãe quis que eu assinasse uma procuração, como eu não passei…tentaram arranjar isto do internamento”.
10. A falta de tratamento da sua condição clínica está associada à perda de tecido cerebral ao longo do tempo.
11. Nega padecer da doença mencionada no ponto 2.
12. Recusa o plano terapêutico proposto.

III. Factos não provados.
Não existem.

IV. Motivação da matéria de facto
A convicção do tribunal relativamente aos factos dados como provados foi o resultado de uma apreciação crítica da prova produzida, considerando-se, desde logo, o teor dos relatórios de avaliação clínica psiquiátrica de 10.04.2025, 30.04.2025, 05.06.2025 e 01.07.2025 juntos aos autos (referência eletrónica n.ºs 13591842, 13641204, 13787207 e 13862227) – ficando o juízo técnico-científico inerente à avaliação clínico-psiquiátrica subtraído da livre apreciação do juiz (cfr. artigo 20.º, n.º 6 da Lei n.º 35/2023, de 21 de Julho).
Designada data para sessão conjunta, procedeu-se à audição do internando, que na 1.ª sessão afirmou desconhecer se lhe foi diagnosticada alguma doença, referiu mal-estar com a medicação que lhe foi administrada no âmbito do tratamento involuntário e contou que a queixa que deu origem à sua primeira condução ao serviço de psiquiatria era falsa, referindo a montante nas suas declarações que é alvo de ameaças (v.g. tirarem-lhe a renda do seu terreno) e perseguição, bem como que querem vê-lo separado da sua companheira a quem “fazem uma proibição, não querem que ela pise em cima das propriedades”.
L, companheira do internando, procurou corroborar o afirmado por este, no sentido de a queixa apresentada pelas filhas ser infundada, justificando que as mesmas querem afastar o companheiro do negócio próspero, para o assumirem.
J, médico-psiquiatra (há mais de 30 anos) particular do internando, explicou que acompanha H desde o outono de 2024, contextualizando o motivo que levou o paciente a procura-lo (realização de avaliação clínico-psiquiátrica) e afirmando que à data da consulta não colheu dados que indicassem a existência de antecedentes de patologia psiquiátrica. Negou ter denotado qualquer atividade delirante, bem como comportamentos heteroagressivos, descrevendo H como tendo apenas uma personalidade impulsiva. Mais alegou que terá diagnosticado no seu paciente uma depressão crónica, a qual não pode ser tratada com medicação do tipo neuroplético (como sucede neste momento no âmbito do tratamento involuntário).
C, médica psiquiatra desde 2014 (acompanhou o internando durante o internamento involuntário que deu origem aos presentes autos, tendo-lhe dado alta do internamento, com transição para regime ambulatório), confirmou que durante o internamento foi possível constatar a presença de um delírio bastante enraizado (delírios persecutórios em relação à família, aos pais), o qual confirmava o diagnóstico de perturbação delirante crónica (doença que classificou como rara e que geralmente tem início na faixa etária de H, isto é, 60 anos).
De forma fluída e congruente, esclareceu como no caso concreto conseguiram destrinçar que estariam perante delírios não bizarros (e não acontecimentos reais), nomeadamente por se verificar um desenvolvimento progressivo em relação a quem estava envolvido no “complô” contra o internando – “se inicialmente era em relação às filhas, depois aos pais, no entretanto já começam a ser amigos que se reuniam para raptar a esposa do H, as filhas da esposa do H já estavam em conluio com as filhas do H para prejudicar o casal, a delegada de saúde e a Dr.ª J já estariam feitas com mãe do H” – e nessa sequência, deixou claro que as ideias delirantes de cariz persecutório têm implicações diretas a nível do comportamento, tornando-o mais hostil e agressivo, por acreditar que terceiros estão contra si.
Elucidou ainda que a medicação administrada durante o internamento trouxe benefícios notórios ao internando (medicação antipsicótica), contudo, este não aceita o diagnóstico, motivo pelo qual a única forma de garantir que continua o tratamento é através do regime involuntário em ambulatório.
No fundo, as declarações prestadas pelo internando acabaram por corroborar o teor dos relatórios periciais juntos aos autos, nomeadamente quanto à verbalização de perseguição e ameaças por parte de familiares.
E se estamos perante comportamentos que poderiam ter correspondência com a realidade, as declarações prestadas pela Dr.ª C foram totalmente esclarecedoras sobre a matéria, nomeadamente no sentido de tais verbalizações terem origem na doença psiquiátrica de que padece.
Não obstante o depoimento prestado pelo Dr.º J, o diagnóstico de perturbação delirante crónica foi confirmado por quatro médicos psiquiatras (Dr.ª I, Dr.ª C, Dr. P e Dr.ª J), que subscreveram os relatórios juntos aos autos, e esclareceram que tal diagnóstico não pode ser confundido com depressão crónica (a Dr.ª C mencionou-o aquando a sua inquirição, e os Dr.º P e J, no relatório datado de 01.07.2025).
Na data designada para a continuação da sessão conjunta, ouvido o Dr.º P (médico psiquiatra há um ano), este confirmou o diagnóstico de perturbação delirante, bem como a resistência do paciente em aderir à terapêutica instituída e em aceitar o diagnóstico. Explicou também que no contexto de tal perturbação, a ideia delirante começa a surgir, aos poucos vai crescendo e acaba por ter um dinamismo psicótico, acabando por influenciar e levar a comportamentos que a pessoa não teria sem essa sintomatologia.
Referiu igualmente que apesar de não ter detetado em H qualquer sintomatologia que indicasse o quadro diagnóstico de uma depressão crónica, o diagnóstico não é exclusivo, pelo que ambas as doenças (depressão crónica e perturbação delirante) podem coexistir. Justificou a inexistência de heteroagressividade dirigida aos médicos, por parte de H, aquando o seu internamento, por a ideação delirante ser essencialmente contra familiares, sendo os comportamentos agressivos dirigidos à temática delirante, motivo pelo qual, fora dessa temática, o comportamento assumido pelo doente se revelar normal.
Relatou ainda os efeitos positivos que o tratamento teve em H (redução da sintomatologia psicótica), bem como as consequências que poderão advir caso o mesmo seja abandonado (perda de tecido cerebral que está associada à psicose não tratada; evolução da gravidade dos comportamentos assumidos).
O tratando solicitou a sua audição na data designada para a continuação da sessão conjunta, reiterando que não tem qualquer ideação delirante, uma vez que tudo aquilo que retrata corresponde à realidade. Instado a explicar o significado da frase proferida na avaliação clínica realizada a 05.06.2025 (as minhas filhas arranjaram duas crianças para me tirarem do caminho delas), referiu “o que quis dizer, quero dizer que a minha filha mais velha, que teve as crianças, não está a viver uma história de amor, ela tinha uma história de amor que não deu certo, depois arranjou um companheiro, ficou grávida dele, nasceu o meu neto e rapidamente fez outra criança logo. Mas aí começou os problemas, são tantas histórias (…) Porque dessa forma consegue amolecer o coração da avó, porque a minha filha tem uma relação boa com a avó, assim consegue induzir subtilmente a avó”.
Ouvida novamente L, esta negou que o seu companheiro represente perigo para terceiros, negou a existência de ideação delirante e contou como a medicação administrada afeta o dia-a-dia do casal (uma vez que H não pode, por exemplo, operar máquinas, a companheira fica sobrecarregada com trabalho).
M, mãe de H, relatou um único episódio de agressão física por parte do filho (em que este a terá agarrado pelos colarinhos e abanado), contudo, apenas logrou situá-lo em momento posterior à pandemia covid-19.
T, filha de H (que deixou bem evidente que não tem uma boa relação com o pai), esclareceu o que a motivou a apresentar uma queixa contra aquele (um episódio de agressão perpetrado contra o avô, do qual terá tido conhecimento através da avó) e narrou o único episódio de agressão física de que foi vítima, ocorrido em março deste ano, no qual o pai lhe terá dado uma bofetada e lhe puxado os cabelos (tendo deixado claro que foi a primeira vez que o pai a agrediu). De acordo com a testemunha, tal agressão surgiu no contexto de uma discussão, iniciada por H, no âmbito da qual este acusou a filha e os pais de estarem a “fazer mal aos netos”, tendo T explicado que ninguém sabe a origem de tais alegações.
Ora, não se duvidando da existência de conflitos familiares e do antagonismo de alguns membros da família para com L (como resultou do depoimento de M e de T), como referido supra, o diagnóstico de perturbação delirante crónica foi confirmado por quatro médicos psiquiatras (estando tal juízo subtraído à apreciação do julgador). E as próprias declarações prestadas em Tribunal por H apresentaram um conteúdo invulgar, como acusar a filha mais velha de engravidar duas vezes, para desse modo ter alguma influência sobre a avó e poder prejudicá-lo.
Ambos os peritos ouvidos foram claros quanto à forma como a doença em questão afeta o comportamento dos doentes, motivo pelo qual o Tribunal também não tem qualquer razão para duvidar do depoimento prestado por T. É certo que não tem boa relação com o pai, mas o seu depoimento mostrou-se fluído e espontâneo, não tentando exacerbar os factos, nomeadamente aqueles praticados contra si.

V. De Direito
Nos termos do artigo 14.º, da Lei n.º 35/2023, de 21 de julho, o tratamento involuntário é orientado para a recuperação integral da pessoa, mediante intervenção terapêutica e reabilitação psicossocial.
Resulta do artigo 15.º, n.º 1 da Lei n.º 35/2023, de 21 de julho:“São pressupostos cumulativos do tratamento involuntário:a) A existência de doença mental;b) A recusa do tratamento medicamente prescrito, necessário para prevenir ou eliminar o perigo previsto na alínea seguinte;c) A existência de perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais:i) De terceiros, em razão da doença mental e da recusa de tratamento; ouii) Do próprio, em razão da doença mental e da recusa de tratamento, quando a pessoa não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento;d) A finalidade do tratamento, conforme previsto no artigo anterior.”.
Verificados estes pressupostos, o tratamento involuntário só pode ter lugar desde que seja: (i) a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito; (ii) adequado para prevenir ou eliminar uma das situações de perigo previstas na alínea c) do número anterior; e (iii) proporcional à gravidade da doença mental, ao grau do perigo e à relevância do bem jurídico (cfr. n.º 2 do artigo 15.º da Lei n.º 35/2023, de 21 de julho).
O tratamento involuntário pode ter lugar em regime ambulatório ou de internamento, assumindo este último regime um caráter subsidiário em relação ao primeiro, apenas podendo ser aplicado quando o internamento for a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito (cfr. artigo 15.º, n.º 3 da Lei n.º 35/2023, de 21 de julho).
In casu, é clarividente que o internando padece de doença de foro psiquiátrico, tendo sido diagnosticado com perturbação delirante (a qual provoca ideias delirantes de cariz persecutório, com implicações diretas a nível do comportamento, tornando-o mais hostil e agressivo). Com a terapêutica instituída durante o internamento, verificou-se uma melhoria gradual em termos de comportamento e postura (tanto que as ideias delirantes de cariz persecutório envolvendo familiares passaram a apresentar menor dinamismo), demonstrando a sua eficácia, contudo, o paciente não tem crítica para a sua condição clínica e recusa o plano terapêutico proposto.
Deste modo, mostram-se preenchidos todos os pressupostos do tratamento involuntário, que deverá ser realizado em ambulatório, uma vez que nada nos autos indica que o internamento é a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito.

VI. Dispositivo
Pelo exposto, decide-se:
a) sujeitar o internando H a medida de tratamento involuntário em regime ambulatório ao abrigo do artigo 15.º, n.º 1, 2 e 3, da Lei n.º 35/2023, de 21 de julho;
b) determinar o tratamento ambulatório do requerido no serviço local ou regional de saúde mental responsável pela área de residência (cfr. artigo 23.º, n.º 3, alínea a) da Lei n.º 35/2023, de 21 de julho).

Notifique (cfr. artigo 23.º, n.º 4 da Lei n.º 35/2023, de 21 de julho).
Atenta a data da próxima revisão em 10.07.2025, solicite ao Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar Universitário do Algarve que remeta aos autos relatório de avaliação clínico-psiquiátrica elaborado por dois psiquiatras, até 10 dias antes da data da revisão, nos termos do artigo 25.º, n.º 4, da Lei n.º 35/2023, de 21 de julho.
Mais comunique ao Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar Universitário do Algarve:
- que caso o tratamento involuntário em internamento seja retomado, tal alteração deverá ser comunicada ao Tribunal (cfr. artigo 27.º, n.º 3 e 4 da Lei n.º 35/2023, de 21 de julho).
- o dever de comunicar aos presentes autos uma eventual alta, nos termos do artigo 26.º, n.º 3 da Lei n.º 35/2023, de 21 de julho.
Ative os alarmes no Citius com antecedência de 10 dias em relação à data de revisão para efeitos de análise do relatório apresentado e designação de data para a sessão conjunta.

B – Recurso

Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido, alegando, em síntese, a nulidade da sentença por falta de fundamentação, tendo sido cometido um erro de julgamento e violado o contraditório por não valoração da sua defesa e do depoimento do seu médico assistente, existindo erro de diagnóstico, na medida em que apenas sofre de uma depressão crónica e não de uma psicose, pelo que deveria haver lugar a uma perícia a realizar pelo IML, sendo certo que não estão preenchidos os pressupostos do Artº 15 da Lei de Saúde Mental, não havendo gravidade bastante nem perigo concreto, actual ou eminente, que justifique a aplicação da medida decretada pelo tribunal recorrido.

C – Resposta ao Recurso

Inexiste resposta ao recurso.

D – Tramitação subsequente

Aqui recebidos, foram os autos com vista à Exmª Procuradora-Geral Adjunta, que se pronunciou pela improcedência do recurso.
Observado o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, foi apresentada resposta pelo arguido reafirmando os seus argumentos.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.


2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal
de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Na verdade e apesar de o recorrente delimitar, com as conclusões que retira das suas motivações de recurso, o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, este contudo, como se afirma no citado aresto de fixação de jurisprudência, deve apreciar oficiosamente da eventual existência dos vícios previstos no nº2 do Artº 410 do CPP, mesmo que o recurso se atenha a questões de direito.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem, assim, da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no nº 2 do Artº 410 do CPP, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no nº1 do Artº 379 do mesmo diploma legal.
In casu, não se verifica a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada (Artº 410 nº3 do CPP).
O objecto do recurso cinge-se às conclusões do recorrente, nas quais, como atrás se disse e agora se repete, alega, em síntese, a nulidade da sentença por falta de fundamentação, tendo sido cometido um erro de julgamento e violado o contraditório por não valoração da sua defesa e do depoimento do seu médico assistente, existindo erro de diagnóstico, na medida em que apenas sofre de uma depressão crónica e não de uma psicose, pelo que deveria haver lugar a uma perícia a realizar pelo IML, sendo certo que não estão preenchidos os pressupostos do Artº 15 da Lei de Saúde Mental, não havendo gravidade bastante nem perigo concreto, actual ou eminente, que justifique a aplicação da medida decretada pelo tribunal recorrido.

B – Apreciação

Definidas as questões a tratar, apreciemos da bondade do recurso.
Como se sabe, a decisão proferida em processo penal integra três partes distintas: o relatório, a fundamentação e o dispositivo.
A fundamentação abrange a enumeração dos factos provados e não provados relevantes para a decisão e que o tribunal podia e devia investigar, expõe os motivos de facto e de direito que a fundamentam e indica, procedendo ao seu exame crítico e explanando o processo de formação da sua convicção, as provas que serviram para basear a decisão do tribunal.
Ensina Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, 294:
«A fundamentação dos actos é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias. Permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina. (…) No actual sistema processual português, os tribunais de recurso não podem substituir-se ao tribunal de julgamento em 1ª instância na apreciação directa da prova, mas pode e deve apreciar, nos termos do artº 410º, nº 2, se o tribunal de 1ª instância fez correcta aplicação dos princípios jurídicos em matéria de prova; deve poder julgar em recurso se houve ou não erro notório na apreciação da prova ou contradição insanável na fundamentação. Para tanto, necessário se torna que a sentença indique a motivação dos juízos em matéria de facto, para que o tribunal de recurso possa apreciar da legalidade da decisão».
Também Marques Ferreira, “Meios de Prova” (in Jornadas de Direito Processual Penal, 228 e segs), diz que “exige-se (…) a exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão. Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência.
A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente, permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via de recurso (…). E extraprocessualmente, a fundamentação deve assegurar pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade”,
Sobre o significado do termo ''exame crítico das provas'' pode ler-se no Acórdão do STJ, de 21/03/07, disponível em www.dgsi.pt: ''a fundamentação da sentença em matéria de facto consiste na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, que constitui a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.
A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e do seu exame crítico, destina-se a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência.
A integração das noções de “exame crítico” e de “fundamentação” facto envolve a implicação, ponderação e aplicação de critérios de natureza prudencial que permitam avaliar e decidir se as razões de uma decisão sobre os factos e o processo cognitivo de que se socorreu são compatíveis com as regras da experiência da vida e das coisas, e com a razoabilidade das congruências dos factos e dos comportamentos.''
Vigorando na nossa lei adjectiva penal um sistema de persuasão racional e não de íntimo convencimento, instituiu o legislador mecanismos de motivação e controle da fundamentação da decisão de facto, dando corpo ao princípio da publicidade, em termos tais que o processo - e, portanto, a actividade probatória e demonstrativa -, deva ser conduzido de modo a permitir que qualquer pessoa siga o juízo, e, presumivelmente, se convença como o julgador.
A obrigação de fundamentação respeita à possibilidade de controlo da decisão, de forma a impedir a avaliação probatória caprichosa ou arbitrária e deve ser conjugada com o sistema de livre apreciação da prova.
É, pois, na fundamentação da sentença, sua explicitação e exame crítico, que se poderá avaliar a consistência, objectividade, rigor e legitimidade do processo lógico e subjectivo da formação da convicção do julgador.
A razão de ser da exigência de fundamentação em geral está ligada ao próprio conceito do Estado de direito democrático, sendo um instrumento de legitimação da decisão que serve a garantia do direito ao recurso e a possibilidade de conhecimento mais autêntico pelo tribunal de recurso.
Deste modo, a fundamentação da decisão deve obedecer a uma lógica de convencimento que permita a sua compreensão pelos destinatários, mas também ao tribunal de recurso.
Sublinhe-se que a necessidade de motivar as decisões judiciais é uma das exigências do processo equitativo, consagrado no Artº 6 nº1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, na medida em que a motivação é um elemento de transparência da justiça inerente a qualquer acto processual.
Na sequência disso, é entendimento pacífico da jurisprudência de que o dever de fundamentação, o aludido exame crítico, não exigindo a descrição pormenorizada dos testemunhos prestados, também não se basta com o mero elencar das testemunhas ouvidas e dos documentos examinados, sendo necessário que a decisão descreva, com clareza, o raciocínio efectuado pela 1ª instância, que a conduziu a dar determinados factos como provados ou não provados, sob pena de violação do Artº 205 da Constituição da República Portuguesa e do direito ao recurso.
Só motivando nos moldes descritos a decisão sobre matéria de facto, é possível aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso o exame do processo lógico ou racional que subjaz à formação da referida convicção, para que seja permitido sindicar se a prova não se apresenta ilógica, arbitrária, contraditória ou violadora das regras da experiência comum.
A análise crítica impõe-se sobretudo relativamente a meios de prova oral porque é em relação a estes que, pela sua natureza e especificidade, se torna necessário explicitar a convicção (desde logo a imediação é essencial para a sua avaliação).
Já no que se refere a documentos ou prova pericial reveste-se o seu teor de um carácter objectivo e certo que na maioria dos casos dispensa considerações sobre o seu conteúdo, porque este se impõe sem que existam questões delicadas de credibilidade ou razão de ciência a equacionar.
Não dizendo assim a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo.
Analisada, sob estes vectores, a sentença proferida, cremos que a mesma, ainda que de modo sintético, explana de forma suficientemente convincente quais as provas que foram produzidas em julgamento, apresentando uma súmula dessa prova, nomeadamente, no que respeita às declarações prestadas pelo recorrente e pelas testemunhas, bem como, no que toca às conclusões que se podem extrair dos vários relatórios médicos constantes dos autos, explicando assim as provas que sustentam os factos dados como provados e que fundaram a convicção do julgador.
Alega o recorrente a nulidade da decisão por falta de fundamentação, na medida em que, em seu entender, o tribunal recorrido não justificou, quer factualmente, quer em termos de direito, a razão da sua decisão.
Todavia, do que atrás se transcreveu, desenha-se como segura a conclusão inversa, na medida em que da sentença recorrida, resultam, com iniludível clareza, quer o esqueleto factual dos autos, quer as razões pelos quais este foi firmado, quer ainda, os pressupostos jurídicos em que se baseia a sua decisão final.
O tribunal recorrido justificou, com suficiência bastante, a sua convicção factual, tendo procedido a um correcto enquadramento jurídico, pelo que, carece de acolhimento a tese da deficiente fundamentação da matéria de facto, pois de uma leitura atenta do conjunto da fundamentação acima transcrita facilmente se alcançará o raciocínio do tribunal recorrido que está na base da decisão aplicada ao recorrente.
É legítimo dela discordar, mas a simples discordância não se pode ancorar numa alegada deficiente fundamentação, que, manifestamente, não se verifica.
Em suma, é inequívoco que a fundamentação factual da decisão recorrida se configura como lógica, racional, perfeitamente compreensível e inteligível, não merecendo, por isso, a censura de que padece do vício de omissão de fundamentação, quer no que toca à apresentação dos elementos probatórios em que o tribunal a quo se fundou para dar por assente a factualidade assumida como provada, quer em relação à descrita exigência legal do exame crítico dessas provas, quer por fim, quanto às razões que levaram a instância sindicada a decidir do modo como o fez.
A razão da apreciação crítica levada a cabo pelo tribunal recorrido foi suficientemente expressa, razão pela qual, inexiste a nulidade apontada pelo recorrente.
Invoca ainda o recorrente o erro de julgamento, na medida em que deu como provado que o arguido sofre de perturbação delirante crónica, quando isso não resultou da prova produzida, tendo o tribunal a quo violado o princípio do contraditório, por não ter valorado a defesa do recorrente, designadamente, no que toca às suas próprias declarações e aos depoimentos da sua companheira e do seu médico assistente.
Daí resultou um erro de diagnóstico decisivo para a sorte dos autos, na medida em que o ora recorrente apenas sofre de uma depressão crónica e não de uma psicose, o que implica uma alteração da factualidade provada, sendo que se o tribunal tivesse dúvidas sempre poderia determinar nova perícia a realizar pelo IML
O que há, da parte da recorrente, nesta sede, é a invocação de um erro de julgamento, apontando uma deficiente valoração probatória no que toca à matéria que foi dada por assente, entendendo que uma apreciação crítica do conjunto da prova produzida teria de levar, necessariamente, a conclusão contrária da assumida pelo tribunal recorrido, no sentido de não dar por provado que o recorrente sofre de uma doença mental, que tem ideias delirantes de cariz persecutório, os quais levaram a episódios de violência em relação à sua filha mais nova.
O recorrente discorda da forma como o tribunal deu como provados os factos que levaram à sua decisão final, e em abono de tal invocação aponta uma errada valoração da prova produzida, testemunhal e documental, sem ter atentado, devidamente, nas suas próprias declarações, no depoimento de L, sua companheira e que confirmou o seu testemunho e ainda, no do Drº J, seu médico psiquiatra, que sempre negou que o recorrente padeça de qualquer doença mental, assegurando, ao invés, que sofre, pelo menos desde 2024, de uma depressão crónica, aliada a uma personalidade impulsiva.
Ora, é sabido que constitui princípio geral que as Relações conhecem de facto e de direito, nos termos do estatuído no Artº 428 do CPP, sendo que, no tocante à matéria de facto, é também sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem: primeiro, da impugnação alargada, se tiver sido suscitada, incumbindo a quem recorre o ónus de impugnação especificada, previsto no Artº 412 nsº3 e 4 do citado diploma, condição para que a mesma seja apreciada e, depois e se for o caso, dos vícios a que alude o artigo 410 nº2 do aludido Código.
O erro de julgamento, ínsito no Artº 412 nº3, do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nsº3 e 4 do Artº 412 do CPP.
É que nestes casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
E é exactamente porque o recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes, um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando (violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (violação de normas de direito processual), que se impõe, ao recorrente, o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do nº3 do Artº 412 do CPP.
Assim, impõe-se-lhe a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, o que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considera indevidamente julgado.
Mais se lhe atribui, a explicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, o que se traduz na anotação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que acarreta decisão diversa da recorrida, acrescendo a necessidade de explicitação da razão pela qual essa prova implica essa diferente decisão, devendo, por isso, reportar o conteúdo específico do meio de prova por si invocado ao facto individualizado que considera mal julgado.
Por fim, é-lhe ainda assacada a pormenorização das provas que devem ser renovadas, o que só se compraz com a informação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em sede de 1ª instância, dos vícios referidos nas alíneas do nº2 do artº 410 do CPP e das razões para crer que aquela renovação da prova permitirá evitar o reenvio do processo (Cfr. Artº 430 nº1 do citado diploma).
No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla da matéria de facto, é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão revidenda, justificando, em relação a cada facto alternativo que propõe, porque deveria o Tribunal ter decidido de forma diferente.
Ou, por outras palavras, como se afirma no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 08/03/12, publicado no D.R., I Série, nº 77, de 18/04/12 :
Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório.
A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas.
O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão (iam) uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto.
Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo”.
Postos estes considerandos e sem os olvidarmos, importa dizer, desde já, que o recorrente não deu cumprimento, minimamente que seja, à referida tripla exigência do nº3 do Artº 412 do CPP, o que, desde logo, acarreta o naufrágio do recurso.
Como já atrás se referiu, o recorrente, no seu recurso, limita-se a apresentar a sua discordância em relação à apreciação e valoração da prova feita pelo tribunal a quo, pondo em causa, no fundo e de forma genérica, para concluir que apenas a sua versão dos factos é que deveria ter sido aceite pela instância sindicada.
Ora, a motivação da decisão recorrida é exemplar e mostra-se em absoluto conforme com as regras da experiência, a normalidade da vida e o sentido das coisas.
Na verdade, o tribunal a quo não descurou – ao contrário do que parece ser enunciado no recurso – a versão dos factos apresentada pelo recorrente, apenas explicou as razões pelas quais não a acolheu.
Na verdade e não obstante o depoimento do Drº J apontar no sentido de o recorrente padecer de uma mera depressão crónica, o diagnóstico de perturbação delirante foi confirmado por outros quatro médicos (Drsº I, C, P e J), que subscreveram os relatórios juntos aos autos e que esclareceram que tal diagnóstico não pode ser confundido com depressão crónica.
Estes quatro clínicos configuram-se nos autos como totalmente independentes em relação, quer ao recorrente, quer à situação em aferição, não se vislumbrando como é que o tribunal a quo poderia desprezar as suas opiniões científicas e o seu juízo pericial, privilegiando a opinião de um médico, que, ao arrepio dos demais, é portador de um outro juízo clínico, sendo ainda do comum conhecimento que, por vezes – não se estando a afirmar que é o caso – o médico particular do doente tende a facilitar na análise de uma hipotética doença mental quando se desenha a aplicação de uma medida ano âmbito da Lei de Saúde Mental.
Por outro lado, o Dr.º P, para além, como se disse, de ter confirmado o diagnóstico de perturbação delirante, bem como a resistência do paciente em o aceitar e em aderir à terapêutica instituída, referiu também, que apesar de não ter nele detectado qualquer sintomatologia que indicasse um quadro de depressão crónica, o diagnóstico não é exclusivo, pelo que ambas as doenças (depressão crónica e perturbação delirante) podem coexistir.
A verdade é que que perante os elementos clínicos constantes do processo e as declarações prestadas pelos quatro clínicos referenciados, o tribunal recorrido não poderia deixar de dar por assente aquilo que consignou na factualidade provada, ou seja, que há cerca de um ano foi diagnosticado ao recorrente perturbação delirante crónica, tendo iniciado a toma de medicação psicótica, a qual deixou posteriormente por iniciativa própria, tendo-se apurado ideias delirantes de cariz persecutório, as quais têm implicações directas a nível do comportamento, tornando-o hostil e heteroagressivo para com os envolvidos, tendo chegado, nesse contexto, a dar uma bofetada e a puxar os cabelos da filha mais nova, T, em Março de 2025.
Inexiste, deste modo, qualquer violação do princípio do contraditório por não valoração da sua defesa e do depoimento do seu médico assistente, mas apenas, a sua não consideração pelas razões expostas na motivação.
Recorde-se o que ali se plasmou:
“Designada data para sessão conjunta, procedeu-se à audição do internando, que na 1.ª sessão afirmou desconhecer se lhe foi diagnosticada alguma doença, referiu mal-estar com a medicação que lhe foi administrada no âmbito do tratamento involuntário e contou que a queixa que deu origem à sua primeira condução ao serviço de psiquiatria era falsa, referindo a montante nas suas declarações que é alvo de ameaças (v.g. tirarem-lhe a renda do seu terreno) e perseguição, bem como que querem vê-lo separado da sua companheira a quem “fazem uma proibição, não querem que ela pise em cima das propriedades
L, companheira do internando, procurou corroborar o afirmado por este, no sentido de a queixa apresentada pelas filhas ser infundada, justificando que as mesmas querem afastar o companheiro do negócio próspero, para o assumirem.
(…)
O tratando solicitou a sua audição na data designada para a continuação da sessão conjunta, reiterando que não tem qualquer ideação delirante, uma vez que tudo aquilo que retrata corresponde à realidade. Instado a explicar o significado da frase proferida na avaliação clínica realizada a 05.06.2025 (as minhas filhas arranjaram duas crianças para me tirarem do caminho delas), referiu “o que quis dizer, quero dizer que a minha filha mais velha, que teve as crianças, não está a viver uma história de amor, ela tinha uma história de amor que não deu certo, depois arranjou um companheiro, ficou grávida dele, nasceu o meu neto e rapidamente fez outra criança logo. Mas aí começou os problemas, são tantas histórias (…) Porque dessa forma consegue amolecer o coração da avó, porque a minha filha tem uma relação boa com a avó, assim consegue induzir subtilmente a avó”.
Ouvida novamente L, esta negou que o seu companheiro represente perigo para terceiros, negou a existência de ideação delirante e contou como a medicação administrada afeta o dia-a-dia do casal (uma vez que H não pode, por exemplo, operar máquinas, a companheira fica sobrecarregada com trabalho).”.
O que se passou é que o tribunal recorrido valorou em conjunto a prova produzida, testemunhal e documental e concluiu no sentido contrário ao pretendido pelo recorrente.
É importante notar que as provas não têm forçosamente que criar no espírito do julgador uma absoluta certeza dos factos a provar, certeza, essa, que, muitas vezes, seria impossível, ou quase impossível de alcançar.
O que é necessário, é que as mesmas provoquem um grau de probabilidade tão elevado, que se baste, como certeza possível, para as necessidades de vida, de forma a se poder concluir, sem dúvida razoável, que um indivíduo praticou determinados factos.
Bem andou assim o tribunal recorrido na apreciação probatória dos autos, a qual, esquece-se a recorrente, foi realizada ao abrigo do princípio da sua livre apreciação, ínsito no Artº 127do CPP e onde se estipula que: Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Tal princípio assenta, fundamentalmente, em duas premissas:
A de que o juiz decide de forma livre e de acordo com a sua íntima convicção, formada a partir do confronto das provas produzidas em audiência.
E que tal convicção há-de ser formada com base em regras de experiência comum.
Nestes termos, o juiz não está sujeito a critérios de valoração de cada um dos meios probatórios, legalmente pré-determinados, sistema da prova legal, sendo o tribunal livre na apreciação que faz da prova e na forma como atinge a sua convicção.
Contudo, sendo esta uma apreciação discricionária, não é a mesma arbitrária, tendo a referida apreciação os seus limites.
Não verdade, livre convicção não pode ser sinónimo de arbitrariedade.
Ou seja, a livre apreciação da prova tem sempre de se traduzir numa valoração "racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência (…), que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão” de modo a que seja possível, por qualquer pessoa, entender porque é que o tribunal se convenceu de determinado facto, ou, dito de outro modo, porque é que o juiz conferiu credibilidade a uma testemunha e descredibilizou outra, por exemplo.
A sentença, para além dos factos provados e não provados e da indicação dos meios de prova, deve conter os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituam o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados na audiência.- Ac. do STJ de 13/02/92, CJ Tomo I, pág. 36.
O que o juiz não pode fazer nunca é decidir de forma imotivada ou seja, decidir sem indicar o iter formativo da sua convicção, “é o aspecto valorativo cuja análise há-de permitir (…) comprovar se o raciocínio foi lógico ou se foi racional ou absurdo” (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, II, pág. 126 e sgs.).
Como diz o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 1º Vol., Coimbra Editora, 1974, págs. 202/203, “a liberdade de apreciação da prova é uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a verdade material -, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo”.
Por outro lado, e segundo o mesmo, “a livre ou íntima convicção do juiz não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável. (...) Se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal, mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros.
Uma tal convicção existirá quando e só quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável”.
Também o Prof. Cavaleiro Ferreira, in Curso de Processo Penal, 1986, 1° Vol., pág. 211, diz que o julgador, sem ser arbitrário, é livre na apreciação que faz das provas, contudo, aquela é sempre “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório”.
Directamente ligada a esta apreciação livre das provas, e determinante na formação da convicção do julgador, está o princípio da imediação, que Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 232, define como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão”.
“(...) Só estes princípios (também o da oralidade) permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. E só eles permitem, por último, uma plena audiência destes mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso”.
Nessa avaliação probatória e na aferição global de toda a prova produzida, designadamente, como a da situação sub judice, o juiz deve fazer essa exegese segundo as regras da experiência comum, com bom senso e de acordo a normalidade da vida e o sentido das coisas.
Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, não assiste qualquer razão ao recorrente, atenta a forma clara e isenta de dúvidas, pelas quais foi definido o cenário factual dos autos, num processo explicativo que se mostra suficientemente objectivado e motivado, capaz, portanto, de se impor aos outros.
Com efeito, o que se impunha ao tribunal recorrido é que explicasse e fundamentasse a sua decisão, pois só assim seria possível saber se fez a apreciação da prova segundo as regras do entendimento correcto e normal, isto é, de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
E isso foi feito, poder-se-á dizer, de modo perfeitamente inteligível para qualquer leitor, que logo compreenderá o modo de valoração das provas e o juízo resultante dessa mesma aferição efectuado pelo tribunal a quo, sendo manifesto que as razões que presidiram à motivação da prova provada se apresentam como lógicas, racionais e coerentes, com o conjunto da prova produzida.
O raciocínio consequente pelo qual o tribunal recorrido deu por assente os factos configura-se, por isso, como adequado às regras de experiência, à normalidade da vida e à razoabilidade das coisas, razão pela qual, não merecendo censura, não é sindicável por este tribunal, inexistindo por isso motivos para ser alterado.
O modo de valoração das provas e o juízo resultante dessa mesma aferição, efectuado pelo tribunal a quo, ao não coincidir com a perspectiva da recorrente nos termos em que este as analisa e nas consequências que daí derivam, não traduz, face ao que se expôs, qualquer erro ou vício.
Importa trazer à colação o já afirmado em Acórdão deste Tribunal da Relação, em 03/05/07, proferido no processo n.º 80/07-3 disponível no sítio da internet www.dgsi.pt,
O erro na apreciação das provas relevante para a alteração da decisão de facto pressupõe, pois, que estas (as provas) deveriam conduzir a uma decisão necessária e forçosamente diversa e não uma decisão possivelmente diferente; se a interpretação, apreciação e valoração das provas permitir uma decisão, diversa da proferida, mas sem excluir logicamente a razoabilidade desta, neste caso pode haver erro na apreciação das provas, mas não será juridicamente relevante para efeitos de modificação da matéria de facto pelo Tribunal Superior; a decisão proferida com base numa interpretação e valoração (ainda que discutíveis) fundamentadas nas provas produzidas contida no espaço definido pela livre apreciação das provas e pela convicção por elas criada no espírito do juiz, não pode ser alterada, a menos que contra ela se apresentem provas irrefutáveis, já existentes nos autos e desconsideradas ou supervenientes.
Por outras palavras: a sindicância da decisão de facto deve limitar-se à aferição da sua razoabilidade em face das provas produzidas …
… A segunda instância em matéria de facto não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas tão só apreciar se a convicção expressa pelo tribunal a quo na decisão da matéria de facto tem suporte razoável …
A decisão, nesta matéria, do tribunal recorrido, foi proferida com base numa interpretação e valoração que se mostra suficientemente fundamentada, quer nas provas produzidas, quer pela livre convicção por elas criada no espírito do julgador, só podendo ser alterada, se contra si se configurassem meios de prova irrefutáveis, existentes nos autos e que tivessem sido desconsiderados, ou se a mesma se desenhasse como totalmente irrazoável, contrária às mais elementares regras de experiência ou ao sentido das coisas.
Mas nenhuma destas condições é o caso sub judice, em que o decidido pelo tribunal recorrido, se desenha com lógica e razoabilidade necessárias, de modo que se deve concluir como no aresto citado: “… se a interpretação, apreciação e valoração das provas permitir uma decisão, diversa da proferida, mas sem excluir logicamente a razoabilidade desta, neste caso pode haver erro na apreciação das provas, mas não será juridicamente relevante para efeitos de modificação da matéria de facto pelo Tribunal Superior.”
Discordar, sem qualquer fundamento legal, leva simplesmente à sua improcedência, como já por este Tribunal foi afirmado em Acórdão de 23/03/01: “A divergência quanto à decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto será relevante na Relação apenas quando resultar demonstrada pelos meios de prova indicados pelo recorrente a ocorrência de um erro na apreciação do seu valor probatório, sendo necessário para que ele se verifique, que os mencionados meios de prova se mostrem inequívocos no sentido pretendido pelo recorrente”.
O presente tribunal só poderia assim alterar o decidido factualmente pela 1ª instância se existissem provas nos autos que impusessem decisão diferente e in casu, embora a prova produzida, eventualmente e no entender do recorrente, permitisse uma decisão de facto em sentido diverso, ela não impunha decisão distinta, pelo que o pretendido por aquele está destinado ao fracasso.
Trata-se de uma evidente limitação do recurso em matéria de facto, o qual não serve para possibilitar uma intervenção reparadora deste tribunal face a toda e qualquer discordância relativamente à apreciação factual levada a cabo pelo tribunal recorrido, mas apenas e tão só, para os casos em que esta foi proferida através de uma clara, flagrante e patente violação das regras que regem a apreciação da prova, seja porque assente em prova proibida, seja porque existe evidente desconformidade entre a prova produzida e a decisão recorrida.
Só nestes casos é que se poderá dizer que as provas impõem uma decisão diversa.
Não é, manifestamente, a situação dos autos.
Inexiste qualquer erro na avaliação da prova por banda do tribunal a quo nem a violação de algum preceito legal, pelo que, ter-se-á que também aqui, inexiste fundamento para a procedência do recurso.
Não há, nestes termos, qualquer erro de diagnóstico, na medida em que o que foi consignado pelo tribunal recorrido, no que toca à doença de que padece o recorrente, mais não traduz do que o que foi consignado e afirmado nos autos por quatro médicos, cuja imparcialidade não parece ser susceptível de ser posta em causa, inexistindo assim gota de motivo para afastar o respectivo juízo pericial.
O mesmo sucede com os depoimentos produzidos em audiência e a credibilidade que deles se extraiu, mesmo no caso em que se desenham conflitos familiares como é a situação sub judice.
Recorde-se, uma vez mais, o teor da decisão recorrida:
“T, filha de H (que deixou bem evidente que não tem uma boa relação com o pai), esclareceu o que a motivou a apresentar uma queixa contra aquele (um episódio de agressão perpetrado contra o avô, do qual terá tido conhecimento através da avó) e narrou o único episódio de agressão física de que foi vítima, ocorrido em março deste ano, no qual o pai lhe terá dado uma bofetada e lhe puxado os cabelos (tendo deixado claro que foi a primeira vez que o pai a agrediu). De acordo com a testemunha, tal agressão surgiu no contexto de uma discussão, iniciada por H, no âmbito da qual este acusou a filha e os pais de estarem a “fazer mal aos netos”, tendo T explicado que ninguém sabe a origem de tais alegações.
Ora, não se duvidando da existência de conflitos familiares e do antagonismo de alguns membros da família para com L (como resultou do depoimento de M e de T), como referido supra, o diagnóstico de perturbação delirante crónica foi confirmado por quatro médicos psiquiatras (estando tal juízo subtraído à apreciação do julgador). E as próprias declarações prestadas em Tribunal por H apresentaram um conteúdo invulgar, como acusar a filha mais velha de engravidar duas vezes, para desse modo ter alguma influência sobre a avó e poder prejudica-lo.
Ambos os peritos ouvidos foram claros quanto à forma como a doença em questão afeta o comportamento dos doentes, motivo pelo qual o Tribunal também não tem qualquer razão para duvidar do depoimento prestado por T. É certo que não tem boa relação com o pai, mas o seu depoimento mostrou-se fluído e espontâneo, não tentando exacerbar os factos, nomeadamente aqueles praticados contra si.”.
Daí que se perceba que o tribunal recorrido não tenha tido necessidade de realizar uma outra perícia médica para além das que constam nos autos – não se compreendendo, nesta parte, a enunciação que o recorrente faz, ainda que sem qualquer base de sustentação, aos metadados resultantes dos registos médicos – porquanto os elementos do processo permitiam, com segurança, a prolacção de uma decisão fundamentação.
Na qual, ao contrário do que afirma o recorrente, estão, por inteiro, preenchidos os pressupostos do Artº 15 da Lei de Saúde Mental, seja pela gravidade da situação, seja pelo perigo, actual e eminente, em relação a terceiros da actuação do recorrente, o qual nega padecer da doença que lhe foi diagnostica, recusa o plano terapêutico que lhe foi proposto – apesar de em consequência do mesmo apresentar uma melhoria gradual do seu comportamento e postura, ficando mais cordial e colaborante – e já ter tido episódios de violência para com a sua filha.
Como relatou a Drª C, o ora recorrente desenvolveu um delírio progressivo de complô contra si: “se inicialmente era em relação às filhas, depois aos pais, no entretanto já começam a ter amigos que se reuniam para raptar a esposa do H, as filhas da esposa do H já estavam em conluio com as filhas do H para prejudicar o casal, a delegada de saúde e a Dr.ª J já estariam feitas com mãe do H”, tendo, nessa sequência, deixado claro que as ideias delirantes de cariz persecutório têm implicações directas a nível do comportamento, tornando-o mais hostil e agressivo, por acreditar que terceiros estão contra si.
É também seguro que a medicação administrada durante o internamento trouxe benefícios notórios ao internando (medicação antipsicótica), pelo que, não aceitando este o diagnóstico e consequente tratamento, a única forma de o garantir é através do regime involuntário em ambulatório.
Por fim, é igualmente seguro que para além dos evidentes benefícios que o tratamento teve no ora recorrente (redução da sintomatologia psicótica), as consequências que poderão advir caso seja abandonado - perda de tecido cerebral que está associada à psicose não tratada - provocarão uma evolução da gravidade dos comportamentos de violência potenciados pela doença em causa.
Nos termos do Artº 15 da Lei 35/2023, de 21/07:
São pressupostos cumulativos do tratamento involuntário:a) A existência de doença mental;b) A recusa do tratamento medicamente prescrito, necessário para prevenir ou eliminar o perigo previsto na alínea seguinte;c) A existência de perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais:i) De terceiros, em razão da doença mental e da recusa de tratamento; ouii) Do próprio, em razão da doença mental e da recusa de tratamento, quando a pessoa não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento;d) A finalidade do tratamento, conforme previsto no artigo anterior.”.
Como sabe no espírito da lei, o tratamento involuntário é orientado para a recuperação integral da pessoa, mediante intervenção terapêutica e reabilitação psicossocial.
Ora, dos autos, resulta, com evidência, que o internando padece de doença de foro psiquiátrico, tendo sido diagnosticado com perturbação delirante (a qual provoca ideias delirantes de cariz persecutório, com implicações directas a nível do comportamento, tornando-o mais hostil e agressivo), sendo que com a terapêutica instituída durante o internamento, apresentou uma melhoria gradual em termos de comportamento e postura - tanto assim é que que as ideias delirantes de cariz persecutório envolvendo familiares passaram a apresentar menor dinamismo – o que demonstrando a sua eficácia.
Contudo, o paciente não aceita sofrer da doença em causa e, consequentemente, recusa o plano terapêutico proposto.
Nesta medida, estão inteiramente preenchidos os pressupostos do Artº 15 da Lei de Saúde Mental, na medida em que o tratamento involuntário em regime de ambulatório desenha-se como a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito para a doença mental de que o internando padece, configura-se como adequado para prevenir ou eliminar o perigo que daí resulta para a integridade física de terceiros, e apresenta-se como proporcional à gravidade da doença mental em causa e aos perigos que dela possam resultar para terceiros do comportamento do arguido (nº 2 do citado comando legal).
Tudo isto decorre, com suficiência bastante, da decisão recorrida, que, nessa medida, não merece a censura que lhe é assacada pelo recorrente.
E assim se conclui pela total improcedência do recurso.


3 - DECISÃO
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e em consequência, manter, na íntegra, a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente.
xxx
Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 28 de outubro de 2025
Renato Barroso
Henrique Pavão
Maria José Cortes