I - A inserção na narração da matéria de facto de um crime negligente da frase “a arguida agiu deliberada, livre e conscientemente” (elemento volitivo do dolo), com o sentido que a lei e a jurisprudência lhe dá, não se mostra adequada, uma vez que, pelo menos com algumas das expressões utilizadas, parece querer dizer-se que a arguida agiu dolosamente apesar de não ter a consciência da ilicitude do seu ato (elemento intelectual este que resultou não provado e que estava inserto na acusação), o que é contraditório com a pretensão simultânea de negação da existência de dolo, e ao invés da existência de negligência.
II - A ausência de confissão nunca poderá ser um facto a tratar como tal na sentença, como não o é a ausência de arrependimento. Do privilégio da não autoincriminação resulta que o arguido não é obrigado a assumir os factos, ou seja, a confessar. E não existe razão para que o silêncio do arguido e a negação do crime mereçam tratamento diferenciado, na forma como devem, ou não, ser tratados factualmente na sentença. Assim, a confissão, a provar-se, deve constar dos factos provados, mas não deve incluir-se na matéria de facto a ausência de confissão. E a omissão nos factos do acórdão de que o arguido confessou os factos, ou de que “se mostrou arrependido”, revela necessariamente um juízo negativo, por parte do tribunal, relativamente a uma eventual prova da confissão e do arrependimento, sendo que a ausência de confissão e arrependimento não pode constituir de per si circunstância agravante.
III - Quando da leitura do texto de uma sentença, em especial da matéria de facto provada e não provada que é descrita, bem como da parte relativa à respetiva fundamentação, se constata claramente que a análise crítica da prova e a decisão de facto constante da mesma, bem como a sua motivação e justificação, não está assente em qualquer plataforma jurídica admissível e cognoscível, levantando dúvidas relevantes, com base no disposto no artigo 127º do C. P. Penal, deve ter-se a prova produzida como insuficiente para uma condenação, pois flui do princípio de que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis aos arguidos, que face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador, não podem dar-se como provados, sendo que o Tribunal a quo, se não teve dúvidas, deveria tê-las tido.
IV - Nestes termos, a decisão recorrida será de alterar quando as provas vertidas na sentença não conduzam àquela factualidade em que previamente assentou, e o Tribunal a quo violou as regras legais, mormente o disposto no artigo 127º do C. P. Penal e o princípio in dubio pro reo. Ocorrendo tal, terá de ser declarado o erro notório na apreciação da prova (artigo 410º, nº 2, al. c), do C. P. Penal), e, não sendo caso de se proceder ao reenvio do processo para novo julgamento nos termos do disposto no artigo 426º, nº 1, do C. P. Penal, terá que se proceder à modificação da matéria de facto provada, considerando-a não provada, de acordo com o disposto no artigo 431º, al. a), do C. P. Penal, com a consequente absolvição do acusado.
I. RELATÓRIO
No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal Juízo Local Criminal de Setúbal - Juiz 1, a arguida M (…..) no processo nº 3022/19.4T9STB foi julgada e condenada através de sentença refª Citius 101712973, nos seguintes termos ( tendo antes sido feita uma comunicação nos termos do artigo 358º nº1 do C.P.P. vide referência 101712980):
“a) Condenar a arguida M pela prática de 1 (um) crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 1 do Código Penal na pena de na pena de 8 (oito) meses de prisão;
b) Suspender a execução da pena de prisão aplicada em a) pelo período de 2 (três) anos, sujeita a regime de prova, com elaboração de competente plano de reinserção social, com imposição à Arguida dos seguintes deveres (nos termos dos artigos 50.º, n.º 1, 2, 3, 4 e 5, 51, n.º 1, al. a), 53.º, n.º 2 e 3, 54.º, n.ºs 1, 2 e 3):
i) Proceder ao pagamento parcial do montante indemnizatório infra atribuído pelo menos à razão mensal de 100,00 € (cem euros), mensalmente, a P, até perfazer o aludido montante, devendo proceder à junção aos autos dos devidos comprovativos até ao dia 08 do mês seguinte;
ii) Responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social;
iii) Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência;
iv) Informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso.
c) Condenar a arguida M no pagamento das custas do processo (513.º e 514.º do Código de Processo Penal), fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) Unidade de Conta, nos termos do artigo 8.º, n.º 9 e Tabela III, do Decreto-Lei n.º 34/2008 de 26 de Fevereiro [Regulamento das Custas Processuais] e 334.º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal, e demais encargos.
3.2. DA PARTE CÍVEL
Julgo parcialmente procedente o pedido de indemnização cível e, em consequência, decido:
a) Condenar M no pagamento a P do valor de 13.333,33 € (treze mil trezentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos) pelo dano morte do seu progenitor, € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais da vítima e € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais próprios, todos acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal supletiva, desde a data de prolação desta sentença até efectivo e integral pagamento – artigos 805.º, n.º 3 e 806.º, n.ºs 1 e 2, 559.º, todos do Código Civil, sendo a taxa a considerar a definida por sucessivas portarias, no caso, de 4.% (Portaria n.º 292/2003, de 8 de Abril);
b) Condenar Demandante e Demandada no pagamento das custas cíveis, na proporção do decaimento, que se fixa em 2/3 para os primeiros e 1/3 para a segunda, sendo ainda a Demandada condenada a suportar as custas pagas pela Demandante nesta qualidade e na qualidade de Assistente, nos termos do artigo 377.º, n.º 3 do Código de Processo Penal
Notifique, desde já, P para indicar, no prazo de 10 dias, o seu IBAN para efeitos de pagamento do montante indemnizatório. (…)”
Não se conformando com aquela decisão a arguida M interpôs recurso apresentando as seguintes conclusões:
I – ERRO/AMBIGUIDADE DA SENTENÇA
A – Do dispositivo da sentença consta: “Suspender a execução da pena de prisão aplicada em a) pelo período de 2 (três) anos”, ou seja, é fixada a suspensão da pena de prisão simultaneamente em dois e três anos, criando, criando uma ambiguidade que compromete a certeza e a segurança jurídicas quanto à pena aplicada.
B – Estamos perante um erro material, cuja eliminação, no entanto, implicaria uma modificação substancial do conteúdo da decisão, já que a diferença entre uma pena de prisão suspensa por 2 ou 3 anos é juridicamente relevante e tem reflexos na execução da pena, pelo que não pode o Tribunal ad quo proceder à simples correção, nos termos do art. 380º, nº 1, alb b) do CPP, pelo que a presente sentença é inválida, devendo ser revogada e substituída por decisão legalmente clara e coerente.
II – FALTA DOS ELEMENTOS DO TIPO SUBJETIVO DO CRIME DE HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
C – Nos termos do art. 137º, nº 1 do CP, o crime de homicídio por negligência exige que a conduta do agente preencha os requisitos do tipo subjetivo, nomeadamente, a consciência da ilicitude da sua conduta. No caso concreto, resulta da sentença recorrida que não ficou provado que a Arguida tivesse atuado ciente da proibição e punição legal da sua conduta (facto d) dos factos não provados).
D – O Tribunal ad quo erradamente considera que a consciência de ilicitude é um requisito exclusivo dos crimes dolosos, o que é manifestamente contrário ao disposto no art. 17º do CP, que se aplica a todos os crimes, dizendo que a consciência da ilicitude é um elemento da culpa, e a culpa é requisito essencial da responsabilidade penal, independentemente da forma de imputação subjetiva. (cfr. Ac. TRP, de 3/7/2024, proc. nº 424/23.5T9VFR.P1)
E – O Tribunal ad quo ao considerar preenchido o tipo legal do crime de homicídio por negligência sem que tivesse ficado provada a consciência da ilicitude — e ao entender, erradamente, que tal só se exigiria nos crimes dolosos — violou frontalmente os artigos 17.º e 137.º do CP, bem como o artigo 32.º, n.º 1 da CRP. Não se encontrando preenchido o tipo subjetivo, a conduta provada é atípica, e a Arguida deve ser absolvida.
III – MATÉRIA DE FACTO – FACTOS DADOS COMO PROVADOS
F - O Tribunal ad quo desconsiderou, por completo, a versão apresentada pela arguida, quando a mesma acaba por ser corroborada por vários depoimentos de testemunhas e dos próprios esclarecimentos prestados pelo Perito e basou-se em meras suposições e hipóteses.
G – Nas declarações da arguida (min 8.50; 9.47; 12.15; 12.44; 18.44) esta refere, de forma inequívoca que enquanto trabalhou no lar, nunca viu o ofendido consumir alimentos passados e que, pelo contrário, sempre observou que este ingeria comida não triturada, e que isso era prática comum entre todas as funcionárias, para além de que não havia qualquer recomendação para que o ofendido fosse alimentado exclusivamente com refeições passadas.
H – As declarações da arguida foram corroboradas pela testemunha R – genro do ofendido e marido da demandante (min. 11.44), que disse claramente que o ofendido consumia regularmente alimentos sólidos, como pão de ló e bolo de laranja — os quais lhe eram fornecidos por familiares. O que impõe a questão: se, de facto, o ofendido estivesse impedido de ingerir alimentos sólidos, por que razão lhe seriam oferecidos bolos por um familiar próximo, numa ocasião em que estava sob supervisão?
I – O Tribunal desconsiderou este depoimento, porquanto, em primeiro lugar refere que “não está absolutamente estabelecido que o doente não pudesse comer alimentos sólidos”, o que é manifestamente contraditória face pontos 2 e 3 dos factos dados como provados na sentença, onde se afirma de forma categórica que o ofendido apresentava restrições alimentares severas, apenas podendo ingerir alimentos líquidos ou passados, necessitando inclusive da presença de uma funcionária para o alimentar.
J - Tal contradição fere de forma grave o dever de coerência e racionalidade na apreciação da prova, conduzindo a uma fundamentação viciada e violadora do princípio da livre apreciação da prova.
K – O Tribunal também desvaloriza o depoimento da testemunha, porquanto supõe que o pão de ló poderia ter sido ministrado “previamente fragmentado e sob supervisão”, o que não encontra qualquer suporte probatória no depoimento, já que a testemunha em nenhum momento referiu que os bolos fossem triturados ou fragmentados previamente, nem que a sua administração fosse objeto de cuidados especiais.
L – Acresce que, a testemunha não se limitou a mencionar pão de ló, de textura mais suave, mas referiu expressamente também bolo de laranja, cuja consistência é notoriamente mais firme e incompatível com a dieta descrita nos factos provados, supostamente limitada a alimentos líquidos ou passados.
M – A apreciação do Tribunal revela-se incoerente, tendo ignorado prova relevante que impunha, no mínimo, a dúvida razoável quanto à efetiva existência e conhecimento das referidas restrições alimentares, razão pela qual se impõe a reponderação da matéria de facto provada.
N – Também a testemunha L –funcionária do Lar, disse (min 18.47; 37.54; 41.47; 43.01) acabou por confirmar a versão sempre sustentada pela arguida: que o ofendido se alimentava com comida sólida, nomeadamente pão, tendo afirmado, por diversas vezes, que lhe era dado pão e que este ainda o conseguia segurar e consumir. O – O Tribunal desconsiderou o depoimento desta testemunha por ser confuso e contraditório, todavia, não obstante a confusão inicial, a coerência, o detalhe e a espontaneidade revelada na fase de confronto permitem ao Tribunal considerar credível o depoimento da testemunha nesta parte, sobretudo porque vai ao encontro daquilo que a arguida sempre alegou.
P – Finalmente o PERITO MÉDICO, que realizou o relatório de autópsia, prestou esclarecimentos dizendo que (min. 8.33) o ofendido estava em condições de comer pão, apesar de já não mastigar adequadamente — uma realidade clínica compatível com a alimentação assistida por cuidadores, como acontecia no lar.
Q - Nos termos do art. 163.º do CPP, o tribunal deve valorar adequadamente os relatórios periciais, tendo em conta a competência técnica dos peritos e o fundamento das suas conclusões e só pode afastar tais conclusões se existirem razões objetivas e devidamente justificadas para o faze, contudo, nada nada nos autos justifica o afastamento ou desvalorização da opinião técnica do perito médico, tanto mais quando esta é coerente com os depoimentos das testemunhas presenciais e com o que sempre foi sustentado pela arguida, pelo que houve uma violação do disposto no referido artigo.
R – Assim, da conjugação das declarações da ARGUIDA, dos esclarecimentos prestados pelo PERITO MÉDICO e do depoimento das testemunhas R e L, nas concretas passagens acima transcritas, impunha-se considerar os seguintes pontos da matéria de facto provada como não provados, porque houve erro notório de apreciação de prova e estes foram incorretamente julgados, bem como houve violação das regras de valoração da prova pericial: Facto 2 na parte em que refere que “precisando, ainda, de ajuda para as atividades básicas da vida diária, tais como a sua alimentação, necessitando que os alimentos a ingerir estivessem previamente fragmentados”; Facto 3; Facto 9; Facto 13; Facto 14; Facto 15; Facto 16 e Facto 17.
S - Quanto à eventual transmissão de informação à arguida sobre alguma restrição alimentar do ofendido, a arguida esclareceu (min 8.50; 10.27; 18.44; 24.58) que nunca foi informada de qualquer restrição alimentar do ofendido, não existia qualquer sistema formal de comunicação de restrições alimentares às auxiliares, nem foram referidas instruções específicas sobre o utente em causa, além de que a informação clínica não era disponibilizada nem transmitida de forma institucionalizada.
T - Estas declarações foram corroboradas por todas as funcionárias do lar ouvidas em audiência de julgamento: a testemunha MJ (min 13.22; 14.10), a testemunha AF (min 5.45; 23.47) e a funcionária L (min 31.49; 43.58; 50.17; 54.02), bem como pela própria proprietária do Lar (H) que reconheceu em audiência (min 11.45) que não existia qualquer informação clínica ou alimentar afixada ou acessível para consulta das funcionárias, o que apenas reforça a posição da arguida quanto à inexistência de qualquer indicação ou conhecimento sobre eventuais restrições alimentares do ofendido.
U - Esta ausência de comunicação formal demonstra uma clara falha organizacional imputável à direção técnica da instituição - e não à auxiliar que limitadamente cumpria as orientações e rotinas que lhe eram transmitidas no contexto do trabalho diário, o que foi também corroborado pelo genro do ofendido, R, que disse (min 10.40) nunca ter visto qualquer nota visível ou indicação nos quartos sobre qualquer restrição.
V - Acresce que, próprio Tribunal a quo reconheceu expressamente que: “não é possível estabelecer em que momento tal foi transmitido à arguida, nem por quem, nomeadamente se na entrevista, se numa qualquer reunião, se pela gerente, pela diretora técnica ou por uma colega.”. se nem o Tribunal conseguiu identificar o momento, o autor ou a forma dessa alegada comunicação, não se pode considerar provado que ela tenha ocorrido.
X - Ademais, que é prática comum e generalizada nos lares de idosos a afixação de avisos nos pratos, tabuleiros ou junto da cama dos utentes com restrições alimentares, precisamente para assegurar a correta observância das mesmas por parte de todos os trabalhadores - o que não sucedia neste caso.
Z - Não se pode presumir o conhecimento da arguida de uma restrição alimentar tão específica sem que tenha sido demonstrado, de forma positiva e concreta, que a mesma lhe foi efetivamente transmitida, pelo que não está demonstrado que a arguida soubesse – ou devesse saber – da restrição alimentar do ofendido.
AA - Desta forma, da conjugação das declarações da ARGUIDA e das testemunhas MJ, AF, L e H, nas concretas passagens acima transcritas, impunha-se considerar os pontos 6, 13 e 18 da matéria de facto provada como não provados, porque houve erro notório de apreciação de prova e estes foram incorretamente julgados.
BB - Quanto ao alegado nexo de causalidade entre a ingestão de pão por parte do ofendido e a sua morte, do relatório da autópsia, e dos esclarecimentos prestados em sede de audiência pelo Perito Médico, não resulta de forma clara a existência de uma relação de causalidade linear, direta e exclusiva entre a alegada ingestão de pão e o resultado morte.
CC - Do relatório da autópsia resulta que a causa da morte do ofendido foi devida a asfixia por oclusão acidental da glote, em paciente com quadro clínico crónico plurifacetado e importante envolvendo os sistemas cérebro e cardiovascular com repercussões sistémicas acessórias, sem esquecer a patologia neoplásica intercorrente com repercussões endocrinológicas e hepatorrenais intercorrentes igualmente importantes, ou seja, o próprio perito médico sublinha que não se pode desconsiderar o peso causal das comorbilidades preexistentes, o que denota uma contribuição relevante e autónoma dessas patologias para o resultado morte.
DD – Também nos esclarecimentos prestados pelo Perito (min 3.00; 5.38), demonstra-se claramente que que a morte poderia ter ocorrido com outro qualquer alimento ou mesmo com um líquido, não sendo o pão — nem a sua alegada ingestão nesse dia — a única nem decisiva causa do resultado e que a fragilidade clínica generalizada do ofendido tornava-o vulnerável a um resultado morte em diversas circunstâncias alimentares, mesmo sob cuidados adequados.
EE - Não se demonstra que tal conduta tenha sido condição necessária e suficiente para a produção do resultado, nem que este não se tivesse verificado na ausência daquela ação, conforme impõe o princípio in dubio pro reo, além de que, o Tribunal violou o art. 163º do CP, pois que ignorou injustificadamente as conclusões expressas do perito médico.
FF - Assim, da conjugação do relatório da autópsia, bem como dos esclarecimentos prestados pelo PERITO, nas concretas passagens acima transcritas, impunha-se considerar os pontos 10, 15, 16 e 17 da matéria de facto provada como não provados, porque houve erro notório de apreciação de prova e estes foram incorretamente julgados, bem como houve violação da valoração de prova pericial.
IV – MATÉRIA DE FACTO – FACTOS NÃO PROVADOS
GG - Relativamente ao ponto i) e j) da matéria de facto não provada, como já fundamentado nas conclusões F a R, ficou demonstrado que o ofendido consumia alimentos sólidos regularmente, incluindo pão de ló e bolo de laranja, como afirmou a testemunha R – genro do ofendido – ao relatar que, em diversas visitas, levava e o via consumir esses alimentos, sem qualquer contraindicação comunicada pelo lar, pelo que tais factos devem ser considerados provados porque houve erro notório de apreciação de prova e estes foram incorretamente julgados, bem como houve violação das regras de valoração da prova pericial.
HH – Relativamente aos pontos e) e g) da matéria de facto não provada, nas declarações da arguida (min 13.13; 26.00; 27.10) esta claramente refere que quem preparou o lanche foi a funcionária L, que deu o pão à arguida para que ministrasse ao ofendido o pão, pelo que, a arguida não preparou o lanche nem tomou qualquer decisão autónoma sobre o que deveria ser servido, limitando-se a distribuir os alimentos que lhe foram entregues por uma colega mais experiente, sem qualquer advertência sobre a existência de restrições alimentares.
II – O depoimento foi corroborado pelo depoimento das outras funcionários, como a testemunha AF que confirmou (min 10.47; 21.30) a prática habitual de a L preparar os lanches e reconheceu também a hierarquia funcional implícita e a testemunha L, que confirmou (min 30.31; 30.43)a sua responsabilidade na preparação da comida, bem como pela proprietária do lar que corroborou a divisão funcional (min 4.00; 15.29; 17.40; 32.37).
JJ – O Tribunal ad quo não indicou qualquer fundamento objetivo para desconsiderar as declarações da arguida, sendo certo que, a arguida na colega L era legítima e compreensível, inserida num contexto de delegação informal habitual nas instituições sociais, onde as funcionárias mais antigas transmitem orientações às recém-chegadas.
KK - Desta forma, e face a todo o exposto, da conjugação das declarações da ARGUIDA e das testemunhas AF e H, nas concretas passagens acima transcritas, impunha-se considerar os pontos e) e g) da matéria de facto não provada como provados, porque houve erro notório de apreciação de prova e estes foram incorretamente julgados.
LL - Por fim, importa salientar que não se demonstrando, com o grau de certeza exigido, os factos objetivos que sustentariam a imputação penal à arguida, designadamente o nexo de causalidade entre a sua conduta e o resultado morte, também não podem, logicamente, considerar-se verificados os elementos subjetivos do tipo, ou seja, os requisitos da negligência – constantes dos artigos 13º a 18º da matéria de facto provada.
V – VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
MM - No caso em apreço, a prova produzida em audiência, designadamente as declarações da arguida e o depoimento de todas as testemunhas e da prova pericial, suscita fundadas dúvidas quanto à existência de restrições alimentares objetivas e efetivamente conhecidas da arguida, pelo que deveria ter sido aplicado o princípio do in dubio pro reo, nos termos do art. 32º, nº 2 da CRP, o que não se verifica, e que viola gravemente as garantias de defesa da arguida.
VI – DO NÃO PREENCHIMENTO DO TIPO LEGAL DE CRIME
NN – Um dos elementos do crime de homicídio por negligência (p. e p. pelo art. 137º, nº 1 do CP) é a imputação objetiva do resultado à conduta do agente, sendo que, conforme já ficou demonstrado não resulta claro, do próprio relatório pericial e dos esclarecimentos prestados pelo Perito Médico, que a morte do ofendido tenha resultado claramente da conduta do agente.
OO - O perito indica expressamente que, para além da asfixia, não se pode esquecer a patologia neoplásica intercorrente e as restantes condições clínicas graves, que claramente provocaram também a morte da vítima, pelo que, não resulta provado, com o grau de certeza necessário ao processo penal, que a conduta da arguida tenha sido condição necessária e suficiente para a produção do resultado morte, nem que a morte não se tivesse verificado se tal conduta não ocorresse.
PP – É também elemento do crime de homicídio por negligência, a violação consciente e previsível dos deveres de cuidado exigíveis, também não resultou provada e mesmo que que a factualidade dada como provada se mantenha, a conduta da arguida não se reconduz a um comportamento objetivamente censurável e previsível de causar a morte, mas sim a uma situação ocorrida em contexto de rotina, sem qualquer orientação clara ou específica que indicasse a proibição de servir determinado alimento ao ofendido.
QQ - Não resulta provado que a arguida tenha tido conhecimento de que o ofendido não poderia comer pão, pois que não resultou que a arguida tenha sido informada, por qualquer meio, de que o ofendido tinha uma restrição alimentar específica quanto ao consumo de pão mas sim, e pelo contrário, resulta que a arguida sabia que o ofendido consumia alimentos sólidos.
RR - É fundamental destacar que, no que se refere ao dever de cuidado, não se trata de um dever geral ou amplamente reconhecido de não servir alimentos sólidos a pessoas da idade do ofendido, uma vez que, por regra, muitos idosos têm plena capacidade para consumir alimentos como pão, conforme é amplamente sabido pela experiência quotidiana, pelo que se trata de uma restrição muito específica, que apenas poderia ser do conhecimento da arguida se lhe fosse expressamente comunicada.
SS - Ademais, um dos critérios fundamentais na delimitação do ilícito negligente é o princípio da confiança, sendo que, no caso dos autos, resulta evidente que a arguida atuava sob supervisão direta de colegas mais antigas e experientes, uma das quais foi, aliás, quem lhe entregou o pão para servir ao ofendido, indicando com tal gesto a ausência de qualquer contraindicação.
TT - A atuação da arguida, por isso, insere-se dentro do campo de proteção conferido pelo princípio da confiança, que exclui a violação do dever objetivo de cuidado quando se age confiando legitimamente na atuação diligente dos outros membros da equipa, particularmente dos mais experiente, pelo que, não pode imputar-se à arguida qualquer violação do dever de cuidado, uma vez que agiu com base numa confiança legítima nas instruções e no comportamento dos seus superiores e colegas diretas, o que determina a exclusão da sua responsabilidade por negligência.
UU – Quanto aos elementos subjetivos do crime de homicídio por negligência, não se verifica a possibilidade de previsão do perigo de realização do tipo por parte da arguida, uma vez que a mesma agiu dentro dos limites da experiência comum, sem qualquer orientação expressa que lhe indicasse a necessidade de restringir a alimentação do ofendido, pelo que, a arguida não tinha razão para prever que a ação de servir pão ao ofendido fosse colocar em risco a sua vida, uma vez que não havia qualquer indicação nesse sentido.
VV – Não é razoável exigir da arguida uma capacidade de previsão que vai além do que seria normalmente esperado, tendo em vista a falta de informações claras e diretas sobre eventuais restrições alimentares do ofendido
VI – ESPÉCIE E MEDIDA DA PENA
XX – Por mera cautela processual, sempre se dirá que a pena aplicada à arguida é manifestamente desajustada e excessiva, pois que, o Tribunal não ponderou de forma adequada a aplicação de penas não privativas de liberdade, que seria mais adequada, tendo em conta a falta de antecedentes criminais, a boa inserção social, os parcos rendimentos e a colaboração da arguida durante todo o processo, bem como o facto de estarmos perante um crime praticado de forma negligente.
ZZ - A arguida não representa um risco elevado para a sociedade, não há elementos concretos que apontem para a necessidade de monitoramento severo ou para a existência de risco significativo de reincidência, pelo que, a substituição da pena de prisão suspensa por uma pena mais adequada, como uma pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, seria suficiente para alcançar as finalidades da punição, sem a necessidade de privação de liberdade, nem de medidas tão gravosas
AAA - Caso assim não se entenda, sempre se dirá que a pena de prisão suspensa deve ser revista para ser fixada no seu mínimo legal, dada a inexistência de antecedentes criminais, o caráter negligente do crime cometido, e o comportamento colaborativo da arguida ao longo de todo o processo.
BBB – Caso assim não se entenda, e se mantenha a pena de prisão suspensa, a arguida considera que a mesma não deve ser acompanhada de qualquer dever e regra de conduta, nomeadamente, o dever de pagar 100€ mensais à demandante, como foi decidido, pois que tal dever não é razoável nem proporcional, dada a sua situação económica e as circunstâncias concretas do caso.
CCC - A imposição desse valor mensal é excessiva, considerando a realidade financeira da arguida, que não possui condições suficientes para suportar tal encargo sem comprometer gravemente a sua capacidade de reintegração social e profissional, bem como o facto de não ter antecedentes criminais e estarmos perante um crime negligente.
DDD - O Tribunal argumentou que a imposição da indemnização mensal contribuiria para "cuidar do delinquente e da vítima", promovendo a sua reintegração social, quando poderá ter um efeito contrário, dificultando a recuperação financeira da arguida e prejudicando o seu processo de reintegração, e representando um risco significativo de reincidência.
EEE - A argumentação do Tribunal de que a imposição da indemnização mensal é necessária para garantir que a pena tenha um conteúdo educativo e pedagógico não se sustenta, dado que a imposição de um valor desproporcional pode, em vez de educar a arguida, resultar num obstáculo para a sua reintegração e, consequentemente, para a prevenção de futuros crimes, pelo que , caso seja aplicada pena suspensa à arguida, a mesma não deverá ter subjacente qualquer regra ou dever de conduta, nomeadamente, o pagamento de qualquer valor à demandante.
VII – DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
FFF - Não se demonstrando que a Arguida praticou o crime pelo qual vem acusada, deve a mesma ser absolvida do pedido de indemnização civil, mas caso não se entenda sempre se dirá, que o facto 25 da matéria de facto provada carece de fundamentação probatória adequada, pois que, não resulta de qualquer prova direta ou indireta produzida em audiência de julgamento, nem decorre logicamente de qualquer elemento pericial ou testemunhal constante dos autos.
GGG – O Perito Médico foi taxativo quanto à natureza e evolução do processo de morte, esclarecendo que a vítima perdeu a consciência em poucos minutos após a obstrução respiratória (min 13.22; 15.06), pelo que contraria de forma inequívoca a ilação retirada pelo Tribunal de que a vítima tenha vivido momentos de sofrimento consciente ou prolongado, e mais uma vez o Tribunal não respeitou o disposto no art. 163º, nº 1 do CPP.
HHH - Assim, da conjugação do relatório da autópsia, bem como dos esclarecimentos prestados pelo PERITO, nas concretas passagens acima transcritas, impunha-se considerar os pontos 25 da matéria de facto provada como não provados, porque houve erro notório de apreciação de prova e estes foram incorretamente julgados, bem como houve violação da valoração de prova pericial, pelo que não pode este sofrimento ser dado como provado, o seu valor indemnizatório não deve ser computado.
III - A quantia arbitrada a título de indemnização pelo dano morte é manifestamente excessiva e desproporcional face às circunstâncias do caso concreto, devendo ser revista em baixa, já que não teve em consideração os seguintes factores essenciais: A idade avançada da vítima (92 anos); seu estado de saúde global, já bastante degradado; A ausência de dependência económica da demandante em relação à vítima, visto que a vítima já não exercia atividades remuneradas.
JJJ - No caso dos autos, a indemnização arbitrada ultrapassa largamente a média dos valores atribuídos pela jurisprudência em situações semelhantes, não se encontrando minimamente fundamentada em critérios objetivos nem sustentada na prova produzida.
KKK - Relativamente ao valor de 1.500,00€ atribuídos a título de danos não patrimoniais próprios da demandante, a sentença limita-se a afirmar de forma genérica a existência de sofrimento, sem que tenha sido demonstrado em audiência o impacto emocional concreto da morte da vítima na sua vida quotidiana, nem a intensidade desse abalo
LLL - Quanto aos 1.500,00€ atribuídos a título de danos não patrimoniais da vítima, importa referir que não se logrou provar que o ofendido tivesse tido consciência da situação que conduziu à sua morte ou que tivesse sofrido dor física ou emocional que justificasse esse valor.
MMM - Por tudo o exposto, deve a sentença ser revogada nesta parte e substituída por outra que: Reduza significativamente o montante atribuído por dano morte, em função das reais circunstâncias do caso; elimine ou reduza drasticamente o valor arbitrado por danos não patrimoniais da vítima e da demandante, por falta de prova objetiva e concreta.
NNN – Em suma, a douta sentença recorrida violou as seguintes normas constantes dos arts. 32º, nº 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, arts. 17º, 40º, 70º, 71º e 137º, nº 1 do Código Penal, arts. 127º e 163º do Código de Processo Penal e arts. 483º e 496º do Código Civil.
Assim, e revogando-se a mui douta decisão em recurso far-se-á ACOSTUMADA JUSTIÇA!
O recurso foi admitido através de despacho judicial com a referência 102244602.
O Ministério Público na 1ª instância apresentou resposta, concluindo dever ser julgado improcedente o recurso.
Junto deste Tribunal o Digno Procurador Geral Adjunto elaborou douto parecer, pugnando que o recurso não deverá obter provimento.
Foi cumprido o art.º 417º nº 2 do CPP.
A arguida respondeu através de requerimento apresentado em 9/10/2025.
O processo seguiu os termos legais.
Foram colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumprindo assim decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
Delimitação do objecto do recurso.
De acordo com o disposto no artigo 412° do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro de 1995, o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379° do mesmo diploma legal, ou mesmo de alguma questão prévia juridicamente relevante que obste ao conhecimento do recurso.
Por outro lado, e como é sobejamente conhecido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação (art. 412.º, n.º 1 do CPP).
O objecto do recurso interposto pela arguida, o qual é delimitado pelo teor das suas conclusões, suscita o conhecimento das seguintes questões:
- Erro de ambiguidade no dispositivo da sentença que configura um erro material que modifica substancialmente o conteúdo da decisão (e fora do âmbito da aplicação do art.º 380º do C.P.P.), pelo que a sentença é invalida (não indica, porém, qual a norma jurídica violada na patologia invocada);
- Falta de elemento do tipo subjectivo de crime de homicídio por negligência /137 nº 1 CP, pois não resultou provado que a arguida tenha actuado ciente da proibição e punição legal da sua conduta / facto d) dos factos não provados/ violação e falta do 17º, 137º CP e 32º nº 2 da C.R.P. que é o elemento de culpa e que se aplica a todos os crimes;
- Factos erradamente dados como provados, 2,3,6 e 13 a 18 que deveriam ser dados como provados e o inverso quanto às alíneas i), j), e) e j) dos factos não provados, constituindo tais incorreções um erro notório de apreciação da prova (não indica qualquer disposição legal violada na invocação na invocação da patologia invocada);
- Violação do princípio in dúbio pro reo, nos termos do artº 32º nº 2 da CRP;
- Não preenchimento dos elementos do tipo de crime p.p. no artº 137º nº1 do CP/ imputação objectiva do resultado à conduta do agente/ a arguida não sabia que a vítima não podia comer o pão;
- Pena desajustada e excessiva (não indicou qualquer norma violada na invocação da patologia);
- PIC, sendo excessivos os montantes arbitrados (não indicou qualquer norma violada);
Conclui então nos seguintes termos nas conclusões do recurso que apresentou: – Em suma, a douta sentença recorrida violou as seguintes normas constantes dos arts. 32º, nº 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, arts. 17º, 40º, 70º, 71º e 137º, nº 1 do Código Penal, arts. 127º e 163º do Código de Processo Penal e arts. 483º e 496º do Código Civil. Assim, e revogando-se a mui douta decisão em recurso far-se-á ACOSTUMADA JUSTIÇA!
Vejamos então.
A sentença sob censura tem o seguinte teor nos segmentos relevantes / matéria de facto e sua fundamentação.
(sublinhados e negritos nossos)
(…)”II. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
2.1.1. Factos provados
Efectuado o julgamento, provaram-se os seguintes factos:
1. A vítima AJ nasceu em 17 de Maio de 1927, padecendo de múltiplas doenças, nomeadamente, Alzheimer, com componente vascular associada, hipertensão arterial, diabetes, fibrilação auricular, neoplasia maligna da próstata sob hormonoterapia, anemia normocitica, normocromica, insuficiência renal crónica moderada, ao que se acrescenta sequelas de um acidente vascular cerebral isquémico do hemisférico esquerdo, em 2011, sendo, ademais, portador de pace-maker e apresentava demência com episódios confusionais frequentes e, por vezes, períodos de agitação psico-motora.
2. Como consequência, a vítima AJ apresentava desorientação espacial, apraxia com necessidade de ajuda para o vestido, falhas mnésicas, com repetições frequentes de conversas prévias e alterações comportamentais, com alteração do ritmo sono-vigília e hiperactividade com períodos de agitação psicomotora nocturna, precisando, ainda, de ajuda para as actividades básicas da vida diária, tais como a sua alimentação, necessitando que os alimentos a ingerir estivessem previamente fragmentados.
3. Com efeito, as refeições diárias da vítima AJ eram efectuadas exclusivamente de alimentos passados ou líquidos, sendo que o mesmo necessitava sempre de uma funcionária que lhe administrasse as mesmas.
4. A vítima AJ, desde Setembro de 2018, encontrava-se acolhida no Lar «………», sito em (…..).
5. Por sua vez, a arguida M exerceu, desde 04 de Fevereiro de 2019 até 17 de Abril de 2020, funções de auxiliar de geriatria no supramencionado Lar.
6. Todas as funcionárias do Lar «…..», incluindo a arguida M, tiveram conhecimento das restrições alimentares da vítima AJ, nomeadamente, de que não lhe poderiam administrar alimentos sólidos.
7. No dia 13 de Agosto de 2019, pelas 16H00, no interior de uma sala da «………», a arguida M encontrava-se a distribuir os alimentos para o lanche dos utentes do Lar, onde se incluía a vítima AJ.
8. Neste conspecto, a arguida M pegou num pão com queijo, abeirou-se da vítima AJ e colocou-lhe esse objecto na mão, continuando, seguidamente, a distribuir o lanche pelos restantes utentes do Lar.
9. A vítima AJ, incapaz de discernir que tipo de comida lhe havia sido distribuída pela arguida para a sua alimentação, assim como o perigo que a sua ingestão acarretava, acabou por levar o pão com queijo à boca, trincando, mastigando e engolindo parte do mesmo.
10. Acontece que, a vítima AJ, ao engolir o bolo alimentar, acabou por se engasgar, o que lhe causou asfixia e, ulteriormente, a morte.
11. Com efeito, como consequência directa e necessária do evento acima descrito, sobrevieram à vítima AJ diversas lesões – melhor descritas no relatório de autópsia médico-legal de folhas 22 e seguintes, cujo teor se dá por integralmente reproduzido –, das quais se destacam:
• Internas
a) «Pescoço:
Músculos: Musculatura vermelha-acinzentada, sem infiltrações sanguíneas;
Laringe e traqueia: Apresenta preenchendo a laringe e a traqueia fragmentos do que parece pão, a que se associa edema pronunciado da glote com grande infiltração hemorrágica vizinha;
Faringe e esófago: Faringe muito hiperemiada. Esófago possuindo bastantes ectasias venosas de trajecto vermiforme de ligeira procidência endofítica, com predominância longitudinal salientes na mucosa esofágica».
b) Tórax:
o Traqueia e brônquios: Traqueia, ao longo do seu trajecto, apresenta fragmentos do que parece pão ao longo do seu continente, situação que se prolonga até às mais finas ramificações brônquicas, possuindo, cumulativamente, alguma espuma arejada e rosada, ao longo da árvore traqueobrônquica;
o Pulmão direito e pleura visceral: Pleura azulada e lisa onde se observam algumas hemorragias punctiformes do tamanho de bicos e cabeças de alfinetes espraiadas pelo seu lúmen. Parênquima com consistência de almofada de ar, crepitando ao corte. Brônquios contendo inúmeros fragmentos de alimentos (pão?) ao longo do seu trajecto, situação potenciada quando se espreme o parênquima pulmonar após observação;
Pulmão esquerdo e pleura visceral: como o direito».
12. Ora, a morte da vítima AJ foi devida a asfixia por oclusão acidental da glote (engasgamento por bolo alimentar), em paciente com quadro clínico crónico plurifacetado e importante envolvendo os sistemas cérebro e cardiovascular com repercussões sistémicas acessórias, sem esquecer a patologia neoplásica intercorrente com repercussões endocrinológicas e hepatorrenais intercorrentes igualmente importantes.
13. A arguida M, porque estava distraída, entregou à vítima AJ um alimento sólido, nomeadamente, um pão, apesar das restrições alimentares deste utente – que impediam a arguida de encetar tal prática –, restrições essas que, inclusivamente, haviam sido transmitidas à arguida, que, por conseguinte, delas tinha conhecimento, até porque já exercia funções no Lar desde Fevereiro de 2019 e já havia cuidado da vítima anteriormente.
14. A arguida M, enquanto auxiliar de geriatria, tinha responsabilidade acrescida em, diariamente, tratar com zelo da higiene pessoal, alimentação, medicação, ajudar a vestir, ajudar na mobilidade física e na comunicação com os idosos que se encontravam ao seu cuidado, entre os quais estava o ofendido AJ. Apesar de ser um trabalho que exige especial cautela e preocupações, a arguida M, no momento em que efectuou a entrega da alimentação à vítima AJ, olvidou que a mesma não poderia receber tal alimento.
15. Se a arguida M atendesse ao facto de a vítima AJ não poder comer alimentos sólidos, administrando-lhe, ao invés, alimentos passados ou líquidos, a morte de AJ não teria ocorrido nas circunstâncias descritas. Contudo, a arguida M não fez tal adequação, pois os comandos legais impostos pela sua profissão e deveres normais de cuidado foram-lhe indiferentes no momento em apreço.
16. Não o tendo feito, a arguida M violou os deveres objectivos de cuidado e de diligência e as necessárias cautelas que lhe eram exigíveis, de que era capaz e que devia ter adoptado para evitar um resultado que podia e devia prever – nomeadamente, de não facultar à vítima AJ um alimento sólido, por o mesmo padecer de vários problemas que lhe toldavam o discernimento, sendo normal e previsível que o mesmo, mecanicamente, fosse comer qualquer alimento que lhe dessem, até porque já não tinha capacidade de avaliar situações de perigo –, podendo ter tido outro comportamento que não provocasse o resultado verificado, designadamente, o de administrar alimentos passados ou líquidos, assim agindo apesar de bem saber que a situação exigia atenção e cuidado da sua parte.
17. Dessarte, a arguida M, ao agir da forma descrita, actuou de forma descuidada, esquecendo-se das restrições alimentares da vítima AJ, não observando as precauções exigidas pela prudência e cuidado que era capaz de adoptar e que devia ter adoptado para impedir a verificação de um resultado que, de igual forma, podia e devia prever, mas que não previu, causando a morte de AJ, ainda que sem que se tivesse conformado com esse resultado.
18. A arguida M actuou de forma livre, deliberada e consciente.
19. Entre a demandante e AJ, seu pai, existiu, ao longo dos anos, um relacionamento amigo e de grande proximidade.
20. A demandante, enquanto lhe foi possível, tratou e prestou a necessária assistência ao seu pai, zelando pela sua saúde e bem-estar, com carinho, desvelo e amor.
21. Chegada ao hospital, a demandante encontrou H e uma auxiliar do Lar, que lhe disse que o seu pai havia falecido, mas que tivera uma "morte santa".
22. A demandante, não obstante a amargura e tristeza do momento, ficou mais conformada por saber que o seu pai morrera sem sofrimento e em paz.
23. Dias mais tarde, a demandante deslocou-se à Casa de Repouso para ir buscar os objectos pessoais de seu pai e, em tal momento, uma auxiliar contou-lhe que vira o seu pai a comer pão e, posteriormente, a babar-se e sem reacção, pelo que tentou reanimá-lo fazendo-lhe massagem cardíaca.
24. O que deixou a demandante ansiosa, inquieta e preocupada sobre o que, afinal, teria provocado a morte de seu pai.
25. A vítima morreu em sofrimento, ao sentir que não conseguia respirar, com consciência de que iria morrer.
26. Ter sabido que o seu pai morrera engasgado, em sofrimento, incapaz de reagir aos estímulos efectuados para o tentar salvar, sem sucesso, causou à demandante dor, desânimo e revolta.
27. AJ faleceu no estado de viúvo e deixou mais duas filhas, para além da Demandante.
28. A Arguida nasceu em (…..), na (…..).
29. Exerce a profissão de auxiliar de geriatria, auferindo uma remuneração mensal média de € 980,00 (novecentos e oitenta euros), líquidos.
30. Tem três filhos, todos de idade adulta e com vidas autónomas.
31. Reside, actualmente, com a sua filha (técnica de BackOffice), neta e genro, o qual desempenha a função de técnico de telecomunicações.
32. A casa em que residem é arrendada, sendo o respectivo custo mensal suportado pela filha da Arguida, a qual aufere, sensivelmente, a retribuição mínima mensal garantida.
33. A Arguida não tem dívidas ou créditos bancários.
34. A Arguida não suporta renda, mas contribui para as despesas domésticas.
35. Estudou até ao 9.º ano, grau que obteve mediante a realização de um curso de auxiliar de geriatria que lhe atribuiu equivalência a tal nível de escolaridade.
36. A Arguida é tida pelos seus amigos e familiares como uma pessoa responsável e boa trabalhadora.
37. Arguida não assume os factos que praticou, não demonstrou em Tribunal qualquer arrependimento, emoção ou empatia pela vítima e pelos danos físicos e psicológicos causados ao ofendido e à sua família, atribuindo o resultado à organização da instituição onde trabalhava.
38. A Arguida não tem antecedentes criminais.
2.1.2. Factos não provados
Não se provaram quaisquer outros factos relevantes para a decisão da causa, nomeadamente que:
a) A vítima deu entrada no aludido estabelecimento em Setembro de 2008;
b) A Arguida já exercia funções há mais de um ano, por reporte à data do acidente;
c) Era recorrente a vítima AJ engasgar-se mesmo com alimentos não sólidos;
d) A Arguida actuou ciente da proibição e punição legal das suas condutas;
e) O lanche foi fornecido à vítima por outra funcionária;
f) Foi sua colega L quem entregou o lanche à Arguida, com indicação expressa para o dar à vítima;
g) A Arguida confiou na indicação da sua colega mais velha L;
h) Os familiares do ofendido levaram, por várias vezes, alimentos sólidos para o ofendido, tais como bolachas e chocolates;
i) O ofendido sempre se alimentou com alimentos sólidos, conforme ordens e instruções dadas por parte do Lar «…..»;
j) O lanche servido e aludido em 8. era habitualmente consumido pelo ofendido, desde que este deu entrada no lar;
k) A vítima sentiu dor.
2.1.3. Motivação
O Tribunal formou a sua convicção do conjunto da prova produzida, nomeadamente:
a) A maior parte da factualidade não é controvertida, em face da prova produzida em audiência.
Assim, a permanência no ofendido no lar é referido por todos aqueles que tiveram contacto presencial com o mesmo durante o período em que o mesmo residiu no lar, destacando-se as declarações de P (assistente e filha do ofendido) e H (gerente do estabelecimento), mas não olvidando as declarações/depoimento de todas as auxiliares de geriatria que trabalhavam no aludido espaço, onde se inclui a arguida (para além da Arguida foram ouvidas AF, MT e L).
As condições de saúde do utente resultam dos elementos clínicos constantes dos autos, nomeadamente do relatório médico do serviço de neurologia de fls. 4 e do relatório clínico da USF de Massamá de fls. 4/v.
P prestou ainda declarações sobre a evolução do quadro clínico do seu pai ao longo dos tempos, bem como sobre a degradação do seu estado de saúde, o que motivou a inscrição no lar, confirmada por H, bem como pela documentação constante de fls. 206 e ss., onde se inclui a ficha de inscrição.
Neste ponto, da análise da aludida documentação e das declarações/depoimentos dos intervenientes, constata-se que a acusação padece de manifesto lapso, quando refere que AJ se encontrava acolhido no Lar «….», desde Setembro de 2008, quando na verdade se pretenderia referir-se Setembro de 2018 (data aliás da primeira guia terapêutica junta aos autos a fls. 217).
A idade do ofendido consta, para além de ser referida repetidamente nos aludidos documentos, resulta da análise do seu Bilhete de Identidade, cuja cópia consta de fls. 9. e 10.
A data de admissão da Arguida no aludido estabelecimento resulta da ficha da mesma, apresentada pela instituição, constante de fls. 76/v, inexistindo razões para a colocar em causa (a data que a Arguida refere, de forma dubitativa, não se encontra longe da real, referindo a Arguida que terá sido por volta de Abril de 2019, quando se constata que foi em 04 de Fevereiro de 2019), assumindo a Arguida o exercício de funções de auxiliar de geriatria, como consta do aludido documento e como assumido pela mesma.
O relatório de autópsia de fls. 22 e ss. esclarece, circunstanciadamente, a causa da morte de AJ, tendo sido ouvidos ainda em audiência os esclarecimentos do Sr. Perito Médico J, sobre tal matéria, constando também o certificado de óbito de fls. 2/v, tudo de forma coincidente com o descrito na acusação.
Assim, os factos 1., 2., 4., 5, 9. (2.ª parte), 10., 11. e 12. resultam da análise dos aludidos meios de prova.
A Arguida também não nega que, no dia do falecimento do ofendido, no 13 de Agosto de 2019, pelas 16H00, no interior de uma sala da «…..», distribuiu os alimentos para o lanche dos utentes do Lar, onde se incluía a vítima AJ e que pegou num pão com queijo que entregou à vítima, continuando, seguidamente, a distribuir o lanche pelos restantes utentes do Lar (L, que no aludido dia trabalhava com a Arguida, confirma que foi esta quem deu o pão a AJ, deixando-o desacompanhado, prosseguindo a dar a refeição aos outros utentes), de onde resulta a prova dos factos 7. e 8.
As questões essenciais controvertidas da acusação restringem-se, assim, a saber se, para além de AJ se engasgar mesmo com alimentos não sólidos, as suas refeições diárias eram efectuadas exclusivamente de alimentos passados ou líquidos, se o mesmo necessitava sempre de uma funcionária que lhe administrasse as mesmas e se todas as funcionárias do Lar «…..», incluindo a arguida M, tinham conhecimento das restrições alimentares da vítima AJ, nomeadamente, de que não lhe poderiam administrar alimentos sólidos.
No que respeita à matéria da contestação, surge como facto controvertido essencial saber se existir uma divisão do trabalho em equipa, em que uma auxiliar preparava a refeição e dava ordens/indicações à outra sobre a comida que devia ministrar aos utentes ou se a comida vinha previamente atribuída da cozinha.
No que respeita ao primeiro ponto, embora tenham sido feitas referências por todos os intervenientes (que tiveram contacto com o ofendido, com excepção da Arguida) às dificuldades de deglutição do ofendido, não se afigura que tenha sido produzida prova segura e suficiente que o mesmo se engasgava até com alimentos não sólidos. L (auxiliar de geriatria, como já referido), a testemunha que mais referência fez ao engasgamento, prestou um depoimento confuso, titubeante, inseguro, eivado de contradições, a que não será alheio o decurso do tempo – mais de seis anos – mas que não permite atribuir-lhe qualquer credibilidade. Assim, tal facto deve ser dado como não provado.
Sobre o facto de as refeições serem exclusivamente compostas por alimentos passados ou líquidos, bem como sobre o facto de a vítima necessitar sempre de uma funcionária que lhe administrasse as mesmas, prestaram declarações a Arguida e H, bem como as auxiliares de geriatria MT e AF.
A Arguida negou que o ofendido comesse comida pastosa ou que não pudesse comer sólidos, negando que tivessem algum cuidado especial com a alimentação do mesmo (embora admita que em relação a determinados utentes tal sucedesse, nomeadamente duas utentes que não consegue identificar).
As suas declarações são, todavia, negadas pelos restantes intervenientes. Assim, H refere que o ofendido apenas comia alimentos pastosos, devido à sua dificuldade em ingerir (o que sucedia também com outro utente), o que é confirmado por MT (referindo também que apenas havia outro utente na mesma situação), chegando esta testemunha a afirmar que nunca viu ninguém dar-lhe alimentos sólidos (comida não pastosa), sendo sempre alimentado à boca, com ajuda das auxiliares, bem como por AF (também afirmando que havia outros utentes na mesma situação), referindo que o ofendido tinha de comer tudo passado, líquido praticamente, e que o mesmo tinha de comer sempre com ajuda. L apresentou um depoimento mais hesitante e contraditório, como já referido em cima, embora não deixasse de afirmar que o ofendido comia os alimentos passados, como “os acamados”, referindo que no início ainda comia sólidos, mas como se engasgava muito, os mesmos foram retirados, passando a comer comida pastosa e sempre dada à boca, por uma funcionária que o acompanhava na refeição, entrando, todavia, em contradição com outras partes do seu depoimento, quer prestado em audiência, quer prestado perante a GNR (validamente lido em audiência, nos termos do artigo 356.º do Código de Processo Penal).
MT e AF não têm dúvidas em afirmar que a vítima comia os alimentos passados, isto é, apenas se alimentava de comida pastosa e sempre acompanhados por uma auxiliar. Tais testemunhas apresentam-se como especialmente fidedignas, uma vez que, no essencial, ao contrário de L, prestam um depoimento seguro, dizendo aquilo que sabem, o que não sabem e o que não se recordam, de forma coerente, independentemente do interlocutor. Para além disso, não têm qualquer interesse na causa, não estavam presentes no momento do acidente e já nem sequer trabalham no lar, o que faz das mesmas testemunhas especialmente imparciais, em que o Tribunal pode estribar a sua convicção.
Note-se que as testemunhas afirmam inclusivamente ser amigas da Arguida, pelo que se excluem quaisquer razões de inimizade ou outras que inquinem o seu depoimento. Não se entende, assim, que exista um qualquer conluio para prejudicar a Arguida.
Assim, com base em especial no depoimento das aludidas testemunhas, deve concluir-se que as refeições diárias eram efectuadas exclusivamente de alimentos passados ou líquidos e que a vítima necessitava sempre de uma funcionária que o auxiliasse.
É também com base nos mesmos depoimentos e uma vez estabelecidos os factos anteriores, que deve ser concluído que todas as funcionárias, incluindo a Arguida, tinham conhecimento das restrições alimentares da vítima AJ, nomeadamente, de que não lhe poderiam administrar alimentos sólidos.
Se não é possível estabelecer em que momento tal foi transmitido à Arguida, nem por quem, nomeadamente se na entrevista, se numa qualquer reunião, se pela gerente, pela directora técnica ou por uma colega, a verdade é que tal não obsta a que se estabeleça tal afirmação.
Devemos ter em conta que estamos perante uma unidade pequena, com menos de duas dezenas de utentes, em que os funcionários trabalham com grande proximidade (em equipas de duas pessoas, normalmente, dando as refeições em conjunto), estando em muitos dias da semana a gerente presente, deslocando-se a directora técnica dois a três dias por semana ao espaço.
Assim, existindo apenas uma ou duas pessoas que comiam alimentos pastosos (este ponto é praticamente comum a todos os intervenientes, incluindo a Arguida, embora esta indique outras pessoas que não a vítima), não é possível que, sendo ministradas quatro refeições por dia aos utentes, a Arguida, que já trabalhava há seis meses no lar, continuasse a ignorar as restrições alimentares da vítima, nomeadamente que o mesmo apenas comia alimentos pastosos, de acordo com as indicações do lar.
AF, para além da gerente do lar, refere que era conhecimento comum que a vítima apenas comia alimentos pastosos, sendo que MT afirma, de modo semelhante, que julga que todas as auxiliares sabiam.
Também AA (directora técnica), apesar de não ter prestado um depoimento especialmente pormenorizado ou concretizado, não deixou de referir, em termos gerais, que as informações eram transmitidas, oralmente, até pela gerente do lar que se encontrava mais presente (uma vez que AA trabalhava a tempo parcial).
MT refere mesmo que se alguma vez tivesse visto alguém a dar alimentos sólidos à vítima teria agido e chamado a atenção. Assim, a versão da Arguida, não é minimente credível, não sendo verosímil, como a mesma presente fazer crer, que todos os dias a vítima comia um pão, sem ser fragmentado e sem auxílio, ou que nas restantes refeições não comesse comida passada.
Com efeito, como explicitou o perito médico em audiência, face às patologias intercorrentes de que o mesmo padecia, aquele teria dificuldades engolir e em perceber o que estava a fazer quando ingeria alimentos, podendo inclusivamente, em face do seu estado de saúde, perder o reflexo da tosse, pelo que, existindo já relatório médico datado de 21 de Abril de 2018, que refere que os alimentos deveriam estar “previamente fragmentados”, afigura-se que, se lhe tivessem sido administrados alimentos sólidos, sem prévia fragmentação e sem supervisão, como pretende a Arguida fazer crer, durante todo o período da sua estadia no estabelecimento, não seria expectável que, tomando quatro refeições por dia, a sua morte só viesse a ocorrer, por engasgamento, praticamente um ano depois.
Assim, embora não se saiba em que momento concreto a Arguida tomou conhecimento, trabalhando já há seis meses no lar, onde eram ministradas quatro refeições por dia, tinha necessariamente de saber as restrições alimentares impostas pelo estabelecimento, em função da doença da vítima.
A tal não obsta o facto de R (marido da filha da vítima) referir que se recorda de uma vez, ao lanche, ter dado pão de ló ao seu sogro.
Em primeiro lugar porquanto não está absolutamente estabelecido que o doente não pudesse comer alimentos sólidos. Com efeito, do relatório médico constante dos autos apenas se retira que o doente deve comer com ajuda e que os alimentos devem ser previamente fragmentados. Não ignoramos que o mesmo é datado de 21 de Abril de 2018 e que o estado de saúde da vítima se terá, com toda a certeza, agravado (o próprio relatório afirma que “por se tratar de doença neurodegenerativa, progressiva, crónica, resulta expectável o agravamento e a perda de autonomia progressivas, que exigirão o cuidado por parte duma terceira pessoa”). Todavia, não há qualquer relatório médico mais actualizado que imponha uma dieta líquida ou quase líquida.
Tal não impede que o lar tivesse imposto essa dieta, que já seria inclusivamente ministrada a outros utentes, até para minorar substancialmente o risco de acidente e asfixia. São pontos diferentes, que não se confundem. As dificuldades de deglutição conhecidas por todos podem ter feito com que a instituição impusesse uma dieta praticamente líquida, por cautela, mesmo que tal não fosse absolutamente necessário. Todavia, mesmo que inexistisse parecer médico definitivo, a Arguida deveria ter cumprido as regras da instituição, que, como afirmado supra tinha conhecimento.
Assim, tendo em conta a textura do pão de ló e o relatório médico de fls. 4, não surpreende, minimamente, nem é contrário ao afirmado supra, que numa ou noutra ocasião, tenha sido dado pão de ló à vítima, previamente fragmentado e sob supervisão.
Deste modo, deve ser concluído que a Arguida tinha conhecimento das restrições alimentares da vítima AJ, nomeadamente, de que não lhe poderiam administrar alimentos sólidos.
No que respeita à alegada divisão de trabalho em equipa, em que uma auxiliar preparava a refeição e dava ordens/indicações à outra sobre a comida que devia ministrar aos utentes ou em que a comida vinha previamente atribuída da cozinha, tal versão nem tem a mínima correspondência com a realidade.
Do depoimento das auxiliares de geriatria ouvidas, uma vez mais, em especial AF e MT, resulta que as refeições eram preparadas e transportadas em tabuleiros, de modo indiferenciado (nem sequer estando etiquetadas), cabendo a cada auxiliar dar a cada utente a refeição adequada, de acordo com os seus conhecimentos das restrições ou preferências de cada um.
Ninguém era obrigado a comer, poderiam ser feitas trocas se o utente preferisse outro alimento, pelo que não existiam atribuições prévias. No que respeita aos utentes com dieta líquida, cabia também às auxiliares recolhê-las e ministrá-las, sem que viessem atribuídas.
Assim, não resultou provada a referida divisão de tarefas, nem que à Arguida tenha sido dada qualquer ordem ou indicação para dar um pão de queijo inteiro à vítima.
Face aos relatórios médicos, às patologias e em especial ao esclarecimentos do Sr. Perito Médico, afigura-se poder-se concluir que a vítima AJ estava incapaz de discernir que tipo de comida lhe havia sido distribuída pela Arguida para a sua alimentação, assim como o perigo que a sua ingestão acarretava, acabando por levar o pão com queijo à boca, trincando, mastigando e engolindo parte do mesmo.
Uma vez estabelecido que a Arguida tinha conhecimento da dieta pastosa da vítima, temos de concluir, inexistindo qualquer elemento que permita concluir por uma conduta intencional dirigida a atentar contra a vida da vítima, que aquela actuou, porque estava distraída, entregando à vítima AJ um alimento sólido, nomeadamente, um pão, apesar das restrições alimentares deste utente, sendo que enquanto auxiliar de geriatria, tinha responsabilidade acrescida em, diariamente, tratar com zelo da higiene pessoal, alimentação, medicação, ajudar a vestir, ajudar na mobilidade física e na comunicação com os idosos que se encontravam ao seu cuidado, entre os quais estava o ofendido AJ.
Apesar de ser um trabalho que exige especial cautela e preocupações, a arguida M, no momento em que efectuou a entrega da alimentação à vítima AJ, olvidou, nos aludidos termos, que a mesma não poderia receber tal alimento.
Se a arguida M atendesse ao facto de a vítima AJ não poder comer alimentos sólidos, administrando-lhe, ao invés, alimentos passados ou líquidos, a morte de AJ não teria ocorrido nas circunstâncias descrita, contudo, a arguida M não fez tal adequação, sendo que os comandos legais impostos pela sua profissão e deveres normais de cuidado lhe foram indiferentes.
Não o tendo feito, a arguida M violou os deveres que lhe eram exigíveis, de que era capaz e que devia ter adoptado para evitar um resultado que podia e devia prever – nomeadamente, de não facultar à vítima AJ um alimento sólido, por o mesmo padecer de vários problemas que lhe toldavam o discernimento, sendo normal e previsível que o mesmo, mecanicamente, fosse comer qualquer alimento que lhe dessem, até porque já não tinha capacidade de avaliar situações de perigo –, podendo ter tido outro comportamento que não provocasse o resultado verificado, designadamente, o de administrar alimentos passados ou líquidos, assim agindo apesar de bem saber que a situação exigia atenção e cuidado da sua parte.
A arguida M, ao agir da forma descrita, actuou de forma descuidada, esquecendo-se das restrições alimentares da vítima AJ, não observando as precauções exigidas pela prudência e cuidado que era capaz de adoptar e que devia ter adoptado para impedir a verificação de um resultado que, de igual forma, podia e devia prever, mas que não previu, causando a morte de AJ, ainda que não se tivesse conformado com esse resultado.
Com efeito, as instruções eram simples, sendo poucos os utentes com restrições alimentares, pelo que trabalhando a Arguida há aproximadamente seis meses, tendo frequentado curso de auxiliar de geriatria, não se tendo apurado que padecesse de qualquer incapacidade, era naturalmente capaz de adoptar comportamento diverso, uma vez que o resultado danoso seria altamente previsível, devendo tê-lo previsto.
Todavia, nada permite concluir que previu o desfecho ou que se conformou com esse resultado.
Devemos concluir que a arguida M actuou de forma livre, deliberada e consciente, quando pretendeu administrar o pão, ainda que distraidamente, em relação às suas obrigações e deveres, bem como aos cuidados que deveria ter com a vítima.
Já não será possível concluir, como constava da acusação, que a Arguida actuou ciente da proibição e punição legal das suas condutas.
Tal expressão é utilizada para a caracterização de condutas dolosas, em que existe conhecimento da proibição e o agente decida actuar apesar dessa proibição. No caso, a Arguida não previu o resultado desvalioso da sua conduta, nem sequer se conformou com esse resultado, pelo que não podia ter actuado com conhecimento da proibição e punibilidade da mesma.
b) A materialidade atinente ao pedido de indemnização cível resulta, em grande parte, dos fundamentos já referidos aquando da análise da matéria criminal, renovando-se aqui as considerações já tecidas, na parte comum, levando-se especialmente em conta as declarações da P, complementado com o depoimento de R (marido da Assistente). Afigura-se que as consequências relatadas são as consequências normais para os factos verificados, atribuindo-se inteira credibilidade ao seu relato, mesmo quando esclarece toda a forma como lhe foi comunicada a notícia da morte do seu pai e desenvolvimentos seguintes.
Não foi percepcionado, em qualquer ponto das suas declarações, qualquer tentativa de exacerbação dos factos ou de prejudicar a Arguida, apesar da factualidade que àquela é imputada.
O seu relato foi consistente, emocionado e pormenorizado, sendo notório que a ofendida relatou factos que efectivamente vivenciou e que a afectaram.
Para demonstrar a sinceridade e a forma desinteressada como prestou declarações, note-se por exemplo que foi a própria Assistente quem referiu que o seu progenitor, apesar de falecido no estado de viúvo, deixou mais duas filhas, matéria que influi negativamente na sua pretensão, mas que a Assistente não demonstrou qualquer incómodo em admitir e que consequentemente se julgou provada.
Deve dizer-se expressamente que não existe qualquer razão para colocar em causa os sentimentos alegados pela Assistente, nem o relacionamento que a mesma refere ter mantido com o seu progenitor, nem o cuidado, amor, carinho e zelo que lhe prestou. A tentativa da Arguida, ao referir que a Assistente não visitava o seu pai, para além de contrariada pela própria Assistente e pelo seu marido, é negada pela gerente do estabelecimento, que era quem estaria em melhores condições de ter conhecimento da informação, uma vez que a Arguida trabalhava por turnos. Não se entende que exista qualquer elemento de prova com força suficiente para contrariar o cotejo dos elementos probatórios referidos no ponto anterior.
Se em face do relatório de autópsia e dos esclarecimentos do Sr. Perito se pode dizer que a vítima morreu em sofrimento, com consciência de que iria morrer, ao sentir que não conseguia respirar durante um ou dois minutos (não se afigura que as doenças de que padece lhe retirassem tal consciência em face da agonia de não conseguir respirar durante um período tão longo de tempo, até finalmente desfalecer), não se pode dizer, em face dos elementos de prova e esclarecimentos, que tenha sentido propriamente dor, julgando-se tal facto como não provado.
c) As condições pessoais e de vida da Arguida consideraram-se provadas com base nas suas declarações, as quais inexiste razões para censurar, nesta matéria, na falta de elementos dissonantes. Levou-se ainda em conta o depoimento dos seus amigos (AC) e familiares (LC, sua filha), que a consideram uma pessoa responsável e boa trabalhadora.
Não deixa contudo de se consignar que a Arguida assumiu ao longo de todo o julgamento uma postura fria e distante, não assumindo os factos que praticou, não demonstrando em Tribunal qualquer arrependimento, emoção ou empatia pela vítima e pelos danos físicos e psicológicos causados ao ofendido e à sua família, atribuindo o resultado à organização da instituição onde trabalhava. Nestes termos, a postura algo arrependida e chorosa que a sua filha referiu em relação à sua mãe, não foi de modo nenhum sentida ou corroborada em Tribunal, não se levando em conta tal depoimento, nesta parte.
d) Em relação aos antecedentes criminais, teve-se em consideração o certificado de registo criminal constante electronicamente dos autos.
e) A matéria de facto não provada resulta da análise supra exposta e da falta de qualquer elemento de prova que se lhe referisse de forma suficientemente segura. Não se respondeu a matéria redundante, conclusiva, anódina ou de direito. (…)” Fim de transcrição.
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Decidindo diremos:
A) A arguida apresentou contestação em 29.10.2024, na qual alega factos com alguma relevância para a discussão da causa os quais foram ignorados, melhor dizendo não foram considerados pelo Tribunal “a quo”, não constando, quer do elenco dos factos provados, quer dos não provados.
Assim podemos e a título de exemplo referir os factos alegados e contidos nos números 3º,4º,6º, 8º,9º,16º e 18º da contestação apresentada.
(senão atente-se: 3º É totalmente falso que as refeições diárias do ofendido fossem efetuadas com alimentos passados ou líquidos.4º Nunca a proprietária do lar ou qualquer diretora técnica informou a arguida sobre qualquer restrição alimentar do ofendido. 6º Os almoços dos utentres eram entregues ao Lar por uma empresa/restaurante, sendo que nesta entrega não vinham alimentos passados ou líquidos. 8º Na cozinha do Lar (ou qualquer outro espaço) não estava afixado qualquer documento indicativo das restrições alimentares dos utentes, nomeadamente do ofendido. 9º Não estava afixada qualquer tabela das refeições. 16º A arguida é uma pessoa íntegra, calma, avesso a confusões e a litígios, educada e de bons princípios morais. 18º A arguida sempre foi uma profissional zelosa, cumpridora de todas as regras.)
A este respeito diremos, por ser de manifesto interesse na feitura de uma sentença ou acórdão na 1ª instância o seguinte e transcrevendo-se segmentos do Ac do TRL , in www.dgsi.pt datado de 25.05.2017 que:
(…)”A estrutura acusatória do nosso processo penal, consagrada no n.º 5 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, significa, desde logo, que é pela acusação que se define o objeto do processo (thema decidendum).
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, «O princípio acusatório (…) é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório).»
Esta vinculação temática do Juiz do julgamento – à matéria constante da acusação – constitui para o arguido uma garantia de defesa, na qual se inclui claramente o princípio do contraditório, que traduz «o dever e o direito de o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão; o direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo; em particular, direito do arguido de intervir no processo e de pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, o que impõe designadamente que ele seja o último a intervir no processo; a proibição por crime diferente do da acusação, sem o arguido ter podido contraditar os respectivos fundamentos.»
Todavia, as preocupações de justiça subjacentes ao processo penal fazem com que tal estrutura acusatória não tenha sido consagrada de forma absoluta.
Realizado o julgamento, é proferida a sentença, que há-de conter relatório, fundamentação e dispositivo – artigo 374.º do Código de Processo Penal.
Interessa-nos a fundamentação, que se segue ao relatório, e «que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.» – n.º 2 do artigo 374.º referido.
Esta norma corporiza exigência consagrada no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa – dever de fundamentação das decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente.
Dever de fundamentação que, reportado à sentença, abrange a matéria de facto e a matéria de direito, para que tal peça processual contenha os elementos que, por via das regras da experiência ou de critérios lógicos, conduziram o Tribunal a proferir aquela decisão e não outra.
A finalidade da fundamentação dos actos decisórios (consagrada no artigo 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal) e da sentença encontra-se, nas palavras de Germano Marques da Silva, em «lograr obter uma maior confiança do cidadão na Justiça, no autocontrolo das autoridades judiciárias e no direito de defesa a exercer através dos recursos.»
Relativamente à sentença penal, ou seja, ao acto decisório que a final conhece do objeto do processo – alínea a), do n.º 1, do artigo 97.º do Código de Processo Penal –, o mencionado dever [de fundamentação] «concretiza-se através de uma fundamentação reforçada, que visa, por um lado, a total transparência da decisão, para que os seus destinatários (aqui se incluindo a própria comunidade) possam apreender e compreender claramente os juízos de valoração e de apreciação da prova, bem como a actividade interpretativa da lei e sua aplicação e, por outro lado, possibilitar ao tribunal superior a fiscalização e o controlo da actividade decisória, fiscalização e controlo que se concretizam através do recurso, o que consubstancia, desde a Revisão de 1997, um direito do arguido constitucionalmente consagrado, expressamente incluído nas garantias de defesa - artigo 32º, n.º1, da Constituição da República.
Assim, de acordo com o artigo 374º, a sentença, para além dos requisitos formais ali expressamente previstos, deve incluir a fundamentação, que consiste claramente na enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
A lei impõe, pois, que o tribunal não só dê a conhecer os factos provados e os não provados, devendo assim sem qualquer dúvida enumerá-los com toda a transparência e visibilidade, mas também que explicite expressamente o porquê da opção (decisão) tomada, o que se alcança através da indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção, impondo, ainda, obviamente, o tratamento jurídico dos factos apurados, com subsunção dos mesmos ao direito aplicável, sendo que em caso de condenação está o tribunal obrigado, como não podia deixar de ser, à determinação motivada da pena ou sanção a cominar, posto o que deve proceder à indicação expressa da decisão final, com indicação das normas que lhe subjazem.»
A enumeração dos factos provados e dos factos não provados, como resulta do disposto no n.º 2 do artigo 368.º do Código de Processo Penal, enfatiza-se, traduz-se na tomada de posição, por parte do Tribunal, sobre todos os factos submetidos à sua apreciação e sobre os quais a decisão tem que incidir – sobre os factos constantes da acusação ou da pronúncia, do pedido de indemnização, da contestação e daqueles que [não constando de qualquer uma das referidas peças processuais] resultem da discussão da causa e tenham interesse para a decisão.
(vide “enumeração” do latim “enumeratiōne”, que signigica/ vide dicionário Porto editora: ato ou efeito de enumerar, apresentação sucessiva de vários elementos de um conjunto, sucessão baseada na série natural dos números, relação metódica; exposição; listagem, figura de retórica que consiste na apresentação sucessiva das partes de um todo (…))
Enumeração que se reveste de extrema importância, pois só através dela se pode determinar quais os factos que foram efetivamente considerados e valorados pelo Tribunal quer na positiva quer pela negativa e o porquê de tal, pois não nos esqueçamos que também se deve fundamentar a convicção negativa do Tribunal, naturalmente concatenado com os concretos factos que resultaram não provados.
Igualmente e agora seguindo de perto, «Narrativas Processuais», de Michele Taruffo, in R E V «Julgar» n.º 13 -2011, pág.131, diremos,” que o juiz que decide a matéria de facto é o último e mais importante narrador no âmbito do processo.
A sua função principal é a de estabelecer qual, dentre as narrativas diversas dos factos é relativamente melhor, quer optando por uma versão das partes, escolhendo a melhor, quer construindo a sua própria”.
Essa narrativa há-de ser constituída de uma forma assertiva, neutral, não emergente de uma das partes e independente, pois que o juiz não tem qualquer objectivo pessoal a prosseguir, a sua narrativa há-de ser distanciada da competição das partes sobre o objecto do processo, por último, porém não menos relevante, a narrativa há-de ser verdadeira, porque resulta do contacto e apreciação das provas, verdadeira porque os factos que a preenchem resultam, sendo consequência, das provas, apontando para aquela veracidade.
O exercício da apreciação da prova, como já se deixou dito, tem que ser revelado em todas as suas fases.
O que na fundamentação tem que resultar claro, de modo a permitir a sua reconstituição, é a razão da decisão tomada relativamente a cada facto que se considera provado ou não provado.
A fundamentação da decisão terá de permitir ao Tribunal de recurso uma avaliação cabal e segura da razão da decisão adotada e do processo lógico-mental que lhe serviu de suporte.
Dispõe-se na alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal, que é nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º
( vide neste sentido, os AC.TRE de 19.03.2013, AC TRG de 5.06.2006, AC. TRC de 4 1.4.2007, estes in www.dgsi.pt, como muitos outros e ainda o AC do TRL de 5.12.2013 no proc. 179/07.OPAAMD.L1)
Ou seja, de acordo com as disposições combinadas da alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º e do n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal, a falta de enumeração dos factos provados e dos factos não provados gera a nulidade da sentença.
- “(…)A estrutura acusatória do nosso processo penal, consagrada no n.º 5 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, significa, desde logo, que é pela acusação que se define o objeto do processo (thema decidendum).
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, «O princípio acusatório (…) é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório).»
Esta vinculação temática do Juiz do julgamento – à matéria constante da acusação – constitui para o arguido uma garantia de defesa, na qual se inclui claramente o princípio do contraditório, que traduz «o dever e o direito de o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão; o direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo; em particular, direito do arguido de intervir no processo e de pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, o que impõe designadamente que ele seja o último a intervir no processo; a proibição por crime diferente do da acusação, sem o arguido ter podido contraditar os respectivos fundamentos.»
Todavia, as preocupações de justiça subjacentes ao processo penal fazem com que tal estrutura acusatória não tenha sido consagrada de forma absoluta.
Efetivamente, como decorre do disposto no artigo 124.º e do n.º 4 do artigo 339.º do CPP, em julgamento devem ser apresentados todos os factos invocados pela acusação, pela defesa, e pelo demandante civil, quando o haja, produzidas e examinadas todas as provas e explanados todos os argumentos, para que o Tribunal possa alcançar a verdade histórica e decidir justamente a causa.
A exigência legal de enumeração destina-se a substituir a necessidade de formulação de quesitos sobre a matéria de facto consignada no Código pré-vigente e a permitir que a decisão, em processo penal, demonstre que o tribunal considerou especificadamente toda a matéria de prova que foi trazida à apreciação e que tem relevo para a decisão, por ter sido incluída na acusação ou na pronuncia e na contestação , vide A. A. Tolda Pinto, A Tramitação Processual Penal, 2ª ed., pg. 953. (vide os Acs. STJ, de 5-6-91, CJ, S, XVI, 3, pg. 29; e de 18-12-97, BMJ, 477, pg. 185)
O legislador foi muito preciso e claro quando, em analepse exige uma concreta enumeração de todos os factos que resultaram provados/ e não provados, quer estejam eles na acusação, na pronúncia, contestação e pedidos cíveis/ contestações, para perfectibilizar uma decisão judicial, não se bastando também por exemplo, sequer com as referências feitas por remissão, pois enumerar significa uma descrição especificada dos factos que como tal se consideram sendo necessário indicá-los um a um.
São aqueles, e porventura outros, que estão exuberantemente omissos do acórdão, como bem se constata da sua leitura, e que dele terão, em prolepse de constar.
Tal omissão no acórdão, para além de ser fulminada com a nulidade, e com razão diga-se, pois para além do comando legal ser muito claro, torna-o “opaco” por ficar imperceptivel, em virtude da adopção desta, digamos, deficiente técnica jurídica, a qual por nada valer, pois não os concretiza, não os enumera, tornando-os invisíveis logo insidicáveis. (fim de transcrição)”
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- Não fosse outras idiossincrasias verificadas na sentença recorrida (que infra iremos clarificar) , o veredicto seria indubitavelmente e nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º e 374 nº 2, ambos do Código de Processo Penal, a nulidade da decisão proferida pelo Tribunal “ a quo”, a qual, frise-se, não seria passível de ser suprida pelo Tribunal Superior nos termos do artº 379 nº 2 do CPP.
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B. Contradição entre factos que foram considerados provados e também entre factos provados e a fundamentação de facto nos termos do disposto no artigo 410º nº 2 al. b) do C.P.P.
Antes de mais diremos que a arguida foi condenada nos seguintes termos na 1ª instância:
- Pelo exposto, julgo a acusação totalmente procedente, e, consequentemente, decido:
a) Condenar a arguida M pela prática de 1 (um) crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 1 do Código Penal na pena de na pena de 8 (oito) meses de prisão;
b) Suspender a execução da pena de prisão aplicada em a) pelo período de 2 (três) anos, sujeita a regime de prova, com elaboração de competente plano de reinserção social, com imposição à Arguida dos seguintes deveres (nos termos dos artigos 50.º, n.º 1, 2, 3, 4 e 5, 51, n.º 1, al. a), 53.º, n.º 2 e 3, 54.º, n.ºs 1, 2 e 3):
i) Proceder ao pagamento parcial do montante indemnizatório infra atribuído pelo menos à razão mensal de 100,00 € (cem euros), mensalmente, a P, até perfazer o aludido montante, devendo proceder à junção aos autos dos devidos comprovativos até ao dia 08 do mês seguinte;
ii) Responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social;
iii) Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência;
iv) Informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso.
c) Condenar a arguida M no pagamento das custas do processo (513.º e 514.º do Código de Processo Penal), fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) Unidade de Conta, nos termos do artigo 8.º, n.º 9 e Tabela III, do Decreto-Lei n.º 34/2008 de 26 de Fevereiro [Regulamento das Custas Processuais] e 334.º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal, e demais encargos.
3.2. DA PARTE CÍVEL
Julgo parcialmente procedente o pedido de indemnização cível e, em consequência, decido:
a) Condenar M no pagamento a P do valor de 13.333,33 € (treze mil trezentos e trinta e três euros e trinta e três cêntimos) pelo dano morte do seu progenitor, € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais da vítima e € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais próprios, todos acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal supletiva, desde a data de prolação desta sentença até efectivo e integral pagamento – artigos 805.º, n.º 3 e 806.º, n.ºs 1 e 2, 559.º, todos do Código Civil, sendo a taxa a considerar a definida por sucessivas portarias, no caso, de 4.% (Portaria n.º 292/2003, de 8 de Abril);
Posto isto diremos:
Nos termos do Acórdão do TRE de 3-07-2012, com o qual concordamos na integra, in www.dgsi.pt , ali se escreveu que: “1. Os vícios do artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal respeitam à sentença.
2. Mais do que uma proibição de aplicação à decisão instrutória, do que se trata é de uma ausência de sentido útil e de coerência na convocação dos mecanismos processuais nele previstos.
3. A ratio do nº 2 do art. 410.º reside na garantia do escrutínio (limitado) da decisão de facto fora da possibilidade (ampla) do recurso da matéria de facto, dicotomia sem nenhum sentido na impugnação da decisão de não pronúncia, em que está precisamente em causa a reavaliação total e ampla das provas (indiciárias).”
A contradição do art.º 410.º n.º 2 b), do CPP releva da insanável oposição facto a facto, entre a fundamentação e a decisão ou na fundamentação, do facto de se afirmar uma realidade e na sentença outra de sentido contrário, posto que insuperável e de relevo para o «thema decidendum», entre juízos aí expressos, a lógica de raciocínios estruturantes e não com a acusação, já examinada e esgotada em termos de conhecimento, relegada para montante.
O Ac. TRL de 21-05-2015, in www.dgsi.pt refere que: O vício em apreço [contradição insanável de fundamentação], como resulta da letra do art. 410, n.º 2 al. b) do CPP, só se deve e pode ter por verificado quando ocorre uma contradição insanável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, isto é, um conflito inultrapassável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, o que significa que nem toda a contradição é susceptível de o integrar, mas apenas a que se mostre insanável, ou seja, aquela que não possa ser ultrapassada ou esclarecida de forma suficiente com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.
Qualquer um dos vícios previstos nas alíneas a) a c) do nº 2 do art. 410 do C.P.P., como decorre da letra da lei, só se poderá ter por verificado se resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, isto é, com exclusão de exame e consulta de quaisquer outros elementos do processo (cf. entre outros os ac. do STJ de 90-01-10 e de 94-07-13, o primeiro publicado na AJ, 5, 3 e o segundo na CJ/STJ, ano II, tomo III, 197), pelo que a actividade de fiscalização e de controlo do tribunal superior neste particular, conquanto incida sobre toda a decisão, com destaque para a proferida sobre a matéria de facto, não constitui actividade de apreciação e julgamento da prova, sendo que ao exercê-la se limita a verificar se a mesma contém algum ou alguns dos mencionados vícios, sendo que no caso de aquela deles enfermar e, em face disso, se tornar impossível decidir a causa, deverá o processo ser reenviado para novo julgamento, tendo em vista a sua sanação (art. 426, n.º1 do CPP).
Este vício ocorre quando se afirma e nega ao mesmo tempo uma coisa ou uma emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas. A contradição pode suceder entre segmentos da própria fundamentação - dão-se como provados factos contraditórios, dá-se como provado e não provado o mesmo facto, afirma-se e nega-se a mesma coisa, enfim, as premissas contradizem-se - , como entre a fundamentação e a decisão - esta não se encontra em sintonia com os factos apurados (cf., neste sentido, Germano Marques da Silva, «Curso de Processo Penal», III, 2ª Ed., Editorial Verbo, págs. 340 e 341).
A contradição a que se reporta a al. b) do nº 2 do art. 410º do CPP é só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo e com recurso às regras da experiência e que incida sobre elementos relevantes do caso submetido a julgamento.”(…)
- A este respeito diremos e designadamente no que respeita aos vícios previstos no n.º 2 do art.º 410.º do CPP, os quais como se sabe, são todos vícios de conhecimento oficioso, e vícios dizemos nós de maior intensidade, se assim se pode dizer, do que as nulidades contidas no art.º 379º do C.P.P., pois aqueles vingam no próprio âmago da decisão tornando-a completamente inoperante e não sanáveis na maior parte dos casos, não se colmatando com a feitura de nova decisão pelo mesmo tribunal e juiz(es) atento o disposto nos artigos 426º, 426-A e 40º al c) do C.P.P.
Os mencionados vícios decisórios têm de resultar do texto da decisão recorrida, encarado por si só ou conjugado com as regras gerais da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo, visto tratar-se de vícios inerentes à decisão, à sua estrutura interna, e não de erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida.
Quanto ao vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (al. b) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP), dir-se-á que «para se verificar contradição insanável da fundamentação, têm de constar do texto da decisão recorrida, sobre a mesma questão, posições antagónicas e inconciliáveis, como por exemplo dar o mesmo facto como provado e como não provado, em situações que não possam ser ultrapassadas pelo tribunal de recurso» (Ac. do STJ de 22-05-1996, Proc. n.º 306/96, in www.dgsi.pt).
Ou seja, ela existe quando a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, consiste tanto na contradição entre a matéria de facto dada como provada e não provada, como também entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou até mesmo entre a fundamentação e a decisão.
Ou seja, uma situação em que, seguindo o fio condutor do raciocínio lógico do julgador, os factos julgados como provados ou como não provados colidem inconciliavelmente entre si, ou uns com os outros ou, ainda, com a fundamentação da decisão.
Verificando-se vício de contradição insanável, o mesmo afecta não só a sentença/ acórdão, fica-se sem perceber o verdadeiro sentido da decisão recorrida, não podendo por isso sindicar-se, não podendo por isso ser corrigido pelo tribunal de recurso obrigando em principio tal ao reenvio total ou parcial do processo para novo julgamento restrito ao suprimento do vício e actos subsequentes por ele afectados - cfr. art.º 426º do CPP, sem possibilidade de se recorrer também ao disposto no art.º 380 do CPP, por exorbitar o legalmente consentido neste dispositivo legal.
Como já se enfatizou a contradição insanável da fundamentação respeita não só à contradição na própria matéria de facto (entre os factos provados ou entre estes e os não provados), mas também à contradição na fundamentação probatória da matéria factual. Assim, há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou entre a fundamentação probatória da matéria de facto.
Assim, a contradição da fundamentação pode consistir basicamente numa incompatibilidade entre matéria de facto provada (dão-se, por exemplo, como provados dois ou mais factos que estão, entre si, em oposição, sendo, por isso, logicamente incompatíveis, excluindo-se mutuamente), entre a matéria de facto provada e a matéria de facto não provada (dá-se, por exemplo, como provado e como não provado o mesmo facto) ou numa incoerência da fundamentação probatória da matéria de facto (por exemplo, dá-se como provado um determinado facto e da motivação da convicção resulta, face à valoração probatória e ao raciocínio dedutivo exposto, que seria outra a decisão de facto correta). Tal pode acontecer quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que a fundamentação justifica precisamente decisão oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se considere que a decisão não fica suficientemente esclarecida dada a colisão entre os fundamentos invocados.
Como refere Pereira Madeira, «a contradição (...) pode emergir entre (...) a fundamentação (em sentido amplo, abrangendo a fundamentação de facto e também a de direito) e a decisão.
Como resulta da letra da al. b) do citado preceito legal, o vício aí previsto só se deve e pode ter por verificado quando ocorre uma contradição insanável, isto é, um conflito inultrapassável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, o que significa que nem toda a contradição é suscetível de o integrar, mas apenas a que incida sobre elementos relevantes do caso e se mostre insanável ou irredutível, ou seja, que não possa ser ultrapassada ou esclarecida de forma suficiente com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência ( vide AC TRL de 23.03.2023 in www.dgsi.pt ).
Tal contradição supra referida é insanável e não é passível de colmatação pelo Tribunal de recurso, pelo que se verifica indubitavelmente tal vício, o de contradição insanável da fundamentação / no segmento dos factos provados, como também entre estes e a motivação de facto feita no acórdão recorrido neste segmento Este vício acarreteria o reenvio do processo relativamente ao objecto do processo, nos termos do disposto nos artigos 426º, 426º-A e 40º al c), todos do C.P.P., se outros não existissem.
Então:
A contradição da fundamentação ou entre esta e a decisão só importa a verificação do vício quando não seja sanável pelo tribunal ad quem. Isto é, quando seja insanável, coisa que se verificou em primeira linha quanto aos factos provados contidos nos números 17º e 18º da sentença recorrida quanto aos elementos subjetivos do tipo de crime pelo qual a arguida foi condenada.
A contradição tanto pode emergir entre factos contraditoriamente provados entre si, como entre estes e os não provados (p. ex. «provado que matou», «não provado que matou»), como finalmente entre a fundamentação (em sentido amplo, abrangendo a fundamentação de facto e também a de direito) e a decisão. É exemplo deste último tipo de contradição, a circunstância de a sentença se espraiar em considerações tendentes à irresponsabilidade penal do arguido e a decisão final concluir, sem mais explicações, por uma condenação penal.» Cf. o comentário do Senhor Conselheiro Pereira Madeira no Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, págs. 1358-1359. E, no mesmo sentido, Germano Marques da Silva..., Curso de Processo Penal, vol. III, 2.ª edição, 2000, págs. 340-341.
Em suma, o vício a que alude a al. b) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP verifica-se «quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do tribunal» . Cf. Acs. do STJ de 06-10-1999 e de 13-10-1999, in Tolda Pinto, A Tramitação Processual Penal, 2.ª Ed., pág. 1058.
Na verdade, tratando-se, por exemplo, de um erro no assentamento da matéria de facto, ou mesmo da respectiva fundamentação de facto, um erro perceptível pela simples leitura do texto da decisão, não poderá falar-se em vício de contradição, o qual só existirá se eliminado o erro pelo expediente previsto no artigo 380º do CPP, correcção a que o próprio tribunal de recurso pode e deve proceder (nº 2 do mesmo artigo), a contradição persistir, então, sim, sendo insanável, não sendo este o caso dos autos, pois não é possível lançar mão de tal expediente legal(art.º 380 do CP.P.).
Para avaliar se a decisão padece de qualquer dos vícios enunciados nas diversas alíneas do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, há que apreciar, por um lado, a matéria de facto e, por outro, a respectiva fundamentação (os fundamentos da convicção), designadamente a natureza das provas produzidas e os processos intelectuais que conduziram o Tribunal a determinadas conclusões.
Assim, nos termos expostos e sem necessidade de mais considerandos, por desnecessários, considera-se a decisão padecer do vicio da contradição insanável da fundamentação, (para além da nulidade prevista nos art.º 374º nº 2 e 379 nº 1 al a) do C.P.P. já supra mencionada e verificada) nos termos do artigo 410, nº 2, al. b) do CPP.
(sendo recorrente a jurisprudência no sentido desta decisão, e vide entre outros o AC do TRG de 22.11.2010 in www.dgsi.pt).
Ora tal vicio ocorre na sentença recorrida e para tal basta atentar num primeiro momento para os factos contidos nos números 17 º e 18º dos factos provados.
Senão vejamos:
- 17. Dessarte, a arguida M, ao agir da forma descrita, actuou de forma descuidada, esquecendo-se das restrições alimentares da vítima AJ, não observando as precauções exigidas pela prudência e cuidado que era capaz de adoptar e que devia ter adoptado para impedir a verificação de um resultado que, de igual forma, podia e devia prever, mas que não previu, causando a morte de AJ, ainda que sem que se tivesse conformado com esse resultado.
18. A arguida M actuou de forma livre, deliberada e consciente.
Então estes factos chocam entre si, pois contendo o nº 17º os elementos subjectivos do crime negligente pelo qual a arguida veio a ser condenada, e por outro lado no facto contido no nº 18º, este encerra os elementos subjectivos do dolo na vertente dos seus elementos volitivos, como se pode constatar nesta última parte no que claramente, exarado foi, no acórdão do Ac. TRC de 22-01-2014 : “1. Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência;2. A estrutura do dolo comporta um elemento intelectual e um elemento volitivo. O elemento intelectual consiste na representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito - o tipo objetivo de ilícito - e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável. O elemento volitivo consiste na especial direção da vontade do agente na realização do facto ilícito, sendo em função da diversidade de atitude que nascem as diversas espécies de dolo a saber: o dolo direto - a intenção de realizar o facto - o dolo necessário - a previsão do facto como consequência necessária da conduta - e o dolo eventual - a conformação da realização do facto como consequência possível da conduta;3. A afirmação da existência do elemento intelectual do dolo exige que o agente tenha conhecimento da ilicitude ou ilegitimidade da prática do facto;”
Estes factos do modo que foram gizados são incompatíveis entre si fazendo nascer uma contradição claríssima e insuperável.
Reportando-nos agora às normas jurídicas aplicáveis neste conspecto temos destarte que destacar as seguintes normas:
Artigo 13º do Código Penal : “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”.
Artigo 14º: “1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.
2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.
3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.
Artigo 15º: “Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.
- A inserção na narração da matéria de facto de um crime negligente da frase “a arguida agiu deliberada, livre e conscientemente “( elemento volitivo do dolo), com o sentido que a lei e a jurisprudência lhe dá, não se mostra adequada, uma vez que, pelo menos com algumas das expressões utilizadas, parece querer dizer-se que a arguida agiu dolosamente apesar de não ter a consciência da ilicitude do seu acto ( elemento intelectual/ este que resultou não provado e que estava inserto na acusação), o que é contraditório com a pretensão simultânea de negação da existência de dolo, e ao invés da existência de negligência.
Efetivamente haverá que acrescentar que: I- A negligência é um tipo especial de punibilidade que oferece uma estrutura própria quer ao nível do ilícito quer ao nível da culpa. II- O tipo objetivo de ilícito dos crimes materiais negligentes é constituído por três elementos: a violação de um dever objetivo de cuidado; a possibilidade objetiva de prever o preenchimento do tipo; e a produção do resultado típico quando este surja como consequência da criação ou potenciação pelo agente, de um risco proibido de ocorrência do resultado. III- A violação pelo agente do cuidado objetivamente devido é concretizada com apelo às capacidades da sua observância pelo “homem médio”. IV- A não observância do cuidado objetivamente devido não torna perfeito, por si própria, o tipo de ilícito negligente, antes importa que ela conduza a uma representação imperfeita ou a uma não representação da realização do tipo. V- Para que exista culpa negligente, com preenchimento do tipo-de-culpa, necessário é ainda que o agente possa, de acordo com as suas capacidades pessoais, cumprir o dever de cuidado a que se encontra obrigado. VI- Enquanto na negligência consciente o agente representou como possível o resultado ocorrido, mas confiou, não devendo confiar, que ele não se verificaria, na negligência inconsciente o agente infringe o dever de cuidado imposto pelas circunstâncias, não pensando sequer na possibilidade do preenchimento do tipo pela sua conduta (vide aqui o Ac. do TRC de 17-09-2014, in www.dgsi.pt).
Em jeito conclusivo é manifesto aqui (e pese embora as explicações dadas na fundamentação da sentença recorrida) que não colhem, sob qualquer perspectiva, que existe também uma manifesta contradição entre os factos provados na vertente subjectiva que vieram já da acusação pública, tendo o tribunal “ a quo” retirado, ou melhor, tendo dado como não provado de todos os elementos subjectivos, o seguinte:
d) A Arguida actuou ciente da proibição e punição legal das suas condutas;
Face ao supra exposto verifica-se assim o vicio contido na alínea b) do nº 2 do artº 410º do C.P.P.
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3 - A tal acresce:
Antes do mais não conseguimos compreender como é que num Tribunal de 1ª instância, se dá como provado as treze primeiras palavras do número 37 dos factos provados, bem como as demais que ali constam.
Ou seja: -37. “Arguida não assume os factos que praticou, não demonstrou em Tribunal qualquer arrependimento (…)”
Como é exemplarmente referido no Ac. do STJ de 15.02.2023, in www.dgsi.pt (…)
- Assim, no que respeita à confissão, a ausência de confissão nunca é um facto a tratar como tal na sentença, como não o é a ausência de arrependimento ; Do privilégio da não auto-incriminação resulta ainda que o arguido não é obrigado a assumir os factos, ou seja, a confessar. E não existe razão para que “o silêncio do arguido” e “a negação do crime” mereçam tratamento diferenciado, na forma como devem (ou não) ser tratados factualmente na sentença.
Em suma, a confissão, a provar-se, deve constar dos factos provados, mas não deve incluir-se na matéria de facto a “ausência de confissão”. E a omissão nos factos do acórdão de que “o arguido confessou os factos” ou de que “se mostrou arrependido” revela necessariamente um juízo negativo, por parte do tribunal, relativamente a uma eventual prova da confissão e do arrependimento. (…)a ausência de confissão e arrependimento não constitui de per si circunstância agravante(…)”.
“Tal como prestando declarações não impende sobre ele qualquer dever de verdade, o que não o pode prejudicar, sendo apenas de valorar, mas positivamente o facto de falar a verdade ou confessar, não podendo ser valoradas expressa e autonomamente contra o arguido as circunstâncias relativas às declarações não confessórias e à ausência de arrependimento..( vide AC do STJ de 11.06.2025 in www.dgsi.pt )
Que consequências jurídicas a retirar desta situação, ou melhor deste “quid pro quo”?
Inquestionável é que na fundamentação da medida concreta da pena feita na sentença recorrida, de oito meses de prisão aplicada à arguida e ora recorrente, a qual depois foi suspensa na sua execução, o Tribunal “ a quo” expressamente ali referiu :
- “Ainda assim, não assumiu os factos que praticou, não demonstrou em Tribunal qualquer arrependimento, emoção ou empatia pela vítima e pelos danos físicos e psicológicos causados ao ofendido e à sua família, o que é demonstrativo de limitações ao nível da sua consciência crítica e, aliado a uma atribuição causal externa, se assume como factor de risco e agrava as exigências preventivas especiais.”
Ora face ao que atrás se expendeu, as palavras usadas na fundamentação que já vinham do facto provado sob o número 37º na sua totalidade, foram usadas indevidamente para determinar o “quantum” concreto da pena aplicada à arguida e foi considerada como agravante.
Assim sendo e neste particular desiderato, tal, constitui um vicio e de conhecimento oficioso, vertido no artº 410º nº2 al. c) do C.P.P. ou seja de erro notório na apreciação da prova, ( o erro notório na apreciação do prova, previstos no nº 2, do art. 410º do CPP, são vícios intrínsecos da sentença penal, pois respeitam á sua estrutura interna e, por tal motivo, a lei exige que a sua demonstração resulte do respectivo texto por si só, ou em conjugação com as regras da experiência comum, não sendo admissível a sua demonstração através de elementos alheios á decisão, ainda que constem do processo) explicando :- Existe erro notório na apreciação da prova quando o tribunal a valoriza contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª, Edição, pág. 341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., pág. 74/ AC TRC de 17.12.2014 in www.dgsi.pt ), que é exactamente o que acontece no caso dos autos, neste particular segmento, o que se declara.
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4. Mas os vícios não se quedam por aqui:
- Anota-se que existe também uma dissidência não despicienda entre os factos contidos no nº 2, nº 3 e nº 5, 6, 21 e 23 dos factos provados, e destes com o núcleo da fundamentação de facto feita na sentença relativamente a este.
Na realidade ali se refere:
2. Como consequência, a vítima AJ apresentava desorientação espacial, apraxia com necessidade de ajuda para o vestido, falhas mnésicas, com repetições frequentes de conversas prévias e alterações comportamentais, com alteração do ritmo sono-vigília e hiperactividade com períodos de agitação psicomotora nocturna, precisando, ainda, de ajuda para as actividades básicas da vida diária, tais como a sua alimentação, necessitando que os alimentos a ingerir estivessem previamente fragmentados.
3. Com efeito, as refeições diárias da vítima AJ eram efectuadas exclusivamente de alimentos passados ou líquidos, sendo que o mesmo necessitava sempre de uma funcionária que lhe administrasse as mesmas.
5. Por sua vez, a arguida M exerceu, desde 04 de Fevereiro de 2019 até 17 de Abril de 2020, funções de auxiliar de geriatria no supramencionado Lar.
6. Todas as funcionárias do Lar «…..», incluindo a arguida M, tiveram conhecimento das restrições alimentares da vítima AJ, nomeadamente, de que não lhe poderiam administrar alimentos sólidos.
21. Chegada ao hospital, a demandante encontrou H e uma auxiliar do Lar, que lhe disse que o seu pai havia falecido, mas que tivera uma "morte santa".
23. Dias mais tarde, a demandante deslocou-se à Casa de Repouso para ir buscar os objectos pessoais de seu pai e, em tal momento, uma auxiliar contou-lhe que vira o seu pai a comer pão e, posteriormente, a babar-se e sem reacção, pelo que tentou reanimá-lo fazendo-lhe massagem cardíaca.
Estes factos estão também em rota de colisão com a fundamentação que sobre eles recaiu, sobressaindo na globalidade que o Tribunal “a quo”, incorreu novamente em contradições erros e dúvidas que nos assaltam.
Senão vejamos a fundamentação da sentença recorrida( sublinhados e negritos nossos):
2.1.3. Motivação
O Tribunal formou a sua convicção do conjunto da prova produzida, nomeadamente:
a) A maior parte da factualidade não é controvertida, em face da prova produzida em audiência.
Assim, a permanência no ofendido no lar é referido por todos aqueles que tiveram contacto presencial com o mesmo durante o período em que o mesmo residiu no lar, destacando-se as declarações de P (assistente e filha do ofendido) e H (gerente do estabelecimento), mas não olvidando as declarações/depoimento de todas as auxiliares de geriatria que trabalhavam no aludido espaço, onde se inclui a arguida (para além da Arguida foram ouvidas AF, MT e L).
As condições de saúde do utente resultam dos elementos clínicos constantes dos autos, nomeadamente do relatório médico do serviço de neurologia de fls. 4 e do relatório clínico da USF de Massamá de fls. 4/v.
P prestou ainda declarações sobre a evolução do quadro clínico do seu pai ao longo dos tempos, bem como sobre a degradação do seu estado de saúde, o que motivou a inscrição no lar, confirmada por H, bem como pela documentação constante de fls. 206 e ss., onde se inclui a ficha de inscrição.
Neste ponto, da análise da aludida documentação e das declarações/depoimentos dos intervenientes, constata-se que a acusação padece de manifesto lapso, quando refere que AJ se encontrava acolhido no Lar «…….», desde Setembro de 2008, quando na verdade se pretenderia referir-se Setembro de 2018 (data aliás da primeira guia terapêutica junta aos autos a fls. 217).
A idade do ofendido consta, para além de ser referida repetidamente nos aludidos documentos, resulta da análise do seu Bilhete de Identidade, cuja cópia consta de fls. 9. e 10..
A data de admissão da Arguida no aludido estabelecimento resulta da ficha da mesma, apresentada pela instituição, constante de fls. 76/v, inexistindo razões para a colocar em causa (a data que a Arguida refere, de forma dubitativa, não se encontra longe da real, referindo a Arguida que terá sido por volta de Abril de 2019, quando se constata que foi em 04 de Fevereiro de 2019), assumindo a Arguida o exercício de funções de auxiliar de geriatria, como consta do aludido documento e como assumido pela mesma.
O relatório de autópsia de fls. 22 e ss. esclarece, circunstanciadamente, a causa da morte de AJ, tendo sido ouvidos ainda em audiência os esclarecimentos do Sr. Perito Médico J, sobre tal matéria, constando também o certificado de óbito de fls. 2/v, tudo de forma coincidente com o descrito na acusação.
Assim, os factos 1., 2., 4., 5, 9. (2.ª parte), 10., 11. e 12. resultam da análise dos aludidos meios de prova.
A Arguida também não nega que, no dia do falecimento do ofendido, no 13 de Agosto de 2019, pelas 16H00, no interior de uma sala da «…..», distribuiu os alimentos para o lanche dos utentes do Lar, onde se incluía a vítima AJ e que pegou num pão com queijo que entregou à vítima, continuando, seguidamente, a distribuir o lanche pelos restantes utentes do Lar (L, que no aludido dia trabalhava com a Arguida, confirma que foi esta quem deu o pão a AJ, deixando-o desacompanhado, prosseguindo a dar a refeição aos outros utentes), de onde resulta a prova dos factos 7. e 8.
As questões essenciais controvertidas da acusação restringem-se, assim, a saber se, para além de AJ se engasgar mesmo com alimentos não sólidos, as suas refeições diárias eram efectuadas exclusivamente de alimentos passados ou líquidos, se o mesmo necessitava sempre de uma funcionária que lhe administrasse as mesmas e se todas as funcionárias do Lar «…..», incluindo a arguida M, tinham conhecimento das restrições alimentares da vítima AJ, nomeadamente, de que não lhe poderiam administrar alimentos sólidos.
No que respeita à matéria da contestação, surge como facto controvertido essencial saber se existir uma divisão do trabalho em equipa, em que uma auxiliar preparava a refeição e dava ordens/indicações à outra sobre a comida que devia ministrar aos utentes ou se a comida vinha previamente atribuída da cozinha.
No que respeita ao primeiro ponto, embora tenham sido feitas referências por todos os intervenientes (que tiveram contacto com o ofendido, com excepção da Arguida) às dificuldades de deglutição do ofendido, não se afigura que tenha sido produzida prova segura e suficiente que o mesmo se engasgava até com alimentos não sólidos. L (auxiliar de geriatria, como já referido), a testemunha que mais referência fez ao engasgamento, prestou um depoimento confuso, titubeante, inseguro, eivado de contradições, a que não será alheio o decurso do tempo – mais de seis anos – mas que não permite atribuir-lhe qualquer credibilidade. Assim, tal facto deve ser dado como não provado.
Sobre o facto de as refeições serem exclusivamente compostas por alimentos passados ou líquidos, bem como sobre o facto de a vítima necessitar sempre de uma funcionária que lhe administrasse as mesmas, prestaram declarações a Arguida e H, bem como as auxiliares de geriatria MT e AF.
A Arguida negou que o ofendido comesse comida pastosa ou que não pudesse comer sólidos, negando que tivessem algum cuidado especial com a alimentação do mesmo (embora admita que em relação a determinados utentes tal sucedesse, nomeadamente duas utentes que não consegue identificar). As suas declarações são, todavia, negadas pelos restantes intervenientes. Assim, H refere que o ofendido apenas comia alimentos pastosos, devido à sua dificuldade em ingerir (o que sucedia também com outro utente), o que é confirmado por MT (referindo também que apenas havia outro utente na mesma situação), chegando esta testemunha a afirmar que nunca viu ninguém dar-lhe alimentos sólidos (comida não pastosa), sendo sempre alimentado à boca, com ajuda das auxiliares, bem como por AF (também afirmando que havia outros utentes na mesma situação), referindo que o ofendido tinha de comer tudo passado, líquido praticamente, e que o mesmo tinha de comer sempre com ajuda. L apresentou um depoimento mais hesitante e contraditório, como já referido em cima, embora não deixasse de afirmar que o ofendido comia os alimentos passados, como “os acamados”, referindo que no início ainda comia sólidos, mas como se engasgava muito, os mesmos foram retirados, passando a comer comida pastosa e sempre dada à boca, por uma funcionária que o acompanhava na refeição, entrando, todavia, em contradição com outras partes do seu depoimento, quer prestado em audiência, quer prestado perante a GNR (validamente lido em audiência, nos termos do artigo 356.º do Código de Processo Penal).
MT e AF não têm dúvidas em afirmar que a vítima comia os alimentos passados, isto é, apenas se alimentava de comida pastosa e sempre acompanhados por uma auxiliar. Tais testemunhas apresentam-se como especialmente fidedignas, uma vez que, no essencial, ao contrário de L, prestam um depoimento seguro, dizendo aquilo que sabem, o que não sabem e o que não se recordam, de forma coerente, independentemente do interlocutor. Para além disso, não têm qualquer interesse na causa, não estavam presentes no momento do acidente e já nem sequer trabalham no lar, o que faz das mesmas testemunhas especialmente imparciais, em que o Tribunal pode estribar a sua convicção.
Note-se que as testemunhas afirmam inclusivamente ser amigas da Arguida, pelo que se excluem quaisquer razões de inimizade ou outras que inquinem o seu depoimento. Não se entende, assim, que exista um qualquer conluio para prejudicar a Arguida.
“(…)Assim, com base em especial no depoimento das aludidas testemunhas, deve concluir-se que as refeições diárias eram efectuadas exclusivamente de alimentos passados ou líquidos e que a vítima necessitava sempre de uma funcionária que o auxiliasse.
É também com base nos mesmos depoimentos e uma vez estabelecidos os factos anteriores, que deve ser concluído que todas as funcionárias, incluindo a Arguida, tinham conhecimento das restrições alimentares da vítima AJ, nomeadamente, de que não lhe poderiam administrar alimentos sólidos.
Se não é possível estabelecer em que momento tal foi transmitido à Arguida, nem por quem, nomeadamente se na entrevista, se numa qualquer reunião, se pela gerente, pela directora técnica ou por uma colega, a verdade é que tal não obsta a que se estabeleça tal afirmação.
Devemos ter em conta que estamos perante uma unidade pequena, com menos de duas dezenas de utentes, em que os funcionários trabalham com grande proximidade (em equipas de duas pessoas, normalmente, dando as refeições em conjunto), estando em muitos dias da semana a gerente presente, deslocando-se a directora técnica dois a três dias por semana ao espaço.
Assim, existindo apenas uma ou duas pessoas que comiam alimentos pastosos (este ponto é praticamente comum a todos os intervenientes, incluindo a Arguida, embora esta indique outras pessoas que não a vítima), não é possível que, sendo ministradas quatro refeições por dia aos utentes, a Arguida, que já trabalhava há seis meses no lar, continuasse a ignorar as restrições alimentares da vítima, nomeadamente que o mesmo apenas comia alimentos pastosos, de acordo com as indicações do lar.
AF, para além da gerente do lar, refere que era conhecimento comum que a vítima apenas comia alimentos pastosos, sendo que MT afirma, de modo semelhante, que julga que todas as auxiliares sabiam.
Também AA (directora técnica), apesar de não ter prestado um depoimento especialmente pormenorizado ou concretizado, não deixou de referir, em termos gerais, que as informações eram transmitidas, oralmente, até pela gerente do lar que se encontrava mais presente (uma vez que AA trabalhava a tempo parcial).
MT refere mesmo que se alguma vez tivesse visto alguém a dar alimentos sólidos à vítima teria agido e chamado a atenção. Assim, a versão da Arguida, não é minimente credível, não sendo verosímil, como a mesma presente fazer crer, que todos os dias a vítima comia um pão, sem ser fragmentado e sem auxílio, ou que nas restantes refeições não comesse comida passada.
Assim, embora não se saiba em que momento concreto a Arguida tomou conhecimento, trabalhando já há seis meses no lar, onde eram ministradas quatro refeições por dia, tinha necessariamente de saber as restrições alimentares impostas pelo estabelecimento, em função da doença da vítima.
A tal não obsta o facto de R (marido da filha da vítima) referir que se recorda de uma vez, ao lanche, ter dado pão de ló ao seu sogro.
Em primeiro lugar porquanto não está absolutamente estabelecido que o doente não pudesse comer alimentos sólidos. Com efeito, do relatório médico constante dos autos apenas se retira que o doente deve comer com ajuda e que os alimentos devem ser previamente fragmentados. Não ignoramos que o mesmo é datado de 21 de Abril de 2018 e que o estado de saúde da vítima se terá, com toda a certeza, agravado (o próprio relatório afirma que “por se tratar de doença neurodegenerativa, progressiva, crónica, resulta expectável o agravamento e a perda de autonomia progressivas, que exigirão o cuidado por parte duma terceira pessoa”). Todavia, não há qualquer relatório médico mais actualizado que imponha uma dieta líquida ou quase líquida.
Tal não impede que o lar tivesse imposto essa dieta, que já seria inclusivamente ministrada a outros utentes, até para minorar substancialmente o risco de acidente e asfixia. São pontos diferentes, que não se confundem. As dificuldades de deglutição conhecidas por todos podem ter feito com que a instituição impusesse uma dieta praticamente líquida, por cautela, mesmo que tal não fosse absolutamente necessário. Todavia, mesmo que inexistisse parecer médico definitivo, a Arguida deveria ter cumprido as regras da instituição, que, como afirmado supra tinha conhecimento.
Assim, tendo em conta a textura do pão de ló e o relatório médico de fls. 4, não surpreende, minimamente, nem é contrário ao afirmado supra, que numa ou noutra ocasião, tenha sido dado pão de ló à vítima, previamente fragmentado e sob supervisão.
Deste modo, deve ser concluído que a Arguida tinha conhecimento das restrições alimentares da vítima AJ, nomeadamente, de que não lhe poderiam administrar alimentos sólidos (fim de transcrição)
Assim diz-se:
A melhor interpretação do artigo 127º do Código de Processo Penal assenta no seguinte ensinamento de Figueiredo Dias:
"Se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica e se uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bem fundado da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal - até porque nela desempenha uma função de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais - mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros.
Uma tal convicção existirá quando e só quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável" (v. Direito Processual Penal, I, 205).
Por outro lado, também o Tribunal Constitucional (ac tc 1166/96 de 19-11-1996, in D.R., II, 06-02-97, debruçando-se sobre o artigo 127 do Código de Processo Penal, concluíu que "a regra da livre apreciação de prova em processo penal não se confunde com apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova, de todo em todo imotivável. O julgador, ao apreciar livremente a prova, ao procurar através dela atingir a verdade material, deve observância às regras da experiência comum utilizando como método de avaliação e aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e controle".
Também o Acórdão do Tribunal Constitucional no processo 102/96,inhttps://www.pgdlisboa.pt/jurel/cst_busca_palavras.php?buscajur=constitucionalidade&ficha=9210&pagina=368&exacta=&nid=3020, refere que:
(…)“No Código de Processo Penal, Livro III, 'Das provas', Título I,
'Disposições gerais', o artigo 127º consagra a regra da livre apreciação da prova, ao determinar que 'salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente'.
Este princípio da prova livre ou da livre convicção do julgador não é contrário às garantias de defesa constitucionalmente consagradas. Em oposição a um sistema segundo o qual o valor da prova é dado por critérios legais-abstractos que o predeterminam, dotados de um carácter de generalidade[que é o sistema da prova legal], o princípio da prova livre evidencia a dimensão concreta da justiça e reconhece que a procura da verdade material não pode prescindir da consideração das circunstâncias concretas do caso em que essa verdade se recorta.
A valoração da prova segundo a livre convicção do juiz não significa uma valoração contra a prova ou uma valoração que já se desprendeu dos quadros da legalidade processual [a legalidade dos meios de prova, as regras gerais de produção da prova]. Esta livre convicção é objectivável e motivável (Figueiredo Dias): existe conjugada com o dever de fundamentar os actos decisórios e de promover a sua aceitabilidade, com a imediação e a publicidade da audiência.
Radicando na lógica da investigação que estrutura o processo penal, que é uma investigação virada à descoberta da verdade objectiva do caso, a prova livre centra-se no mérito objectivamente concreto desse caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo (pelas alegações, respostas, meios de prova utilizados, etc.)' (Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 1967-68, pp. 47-48).
Sem dúvida, como sublinha Figueiredo Dias, o princípio da livre apreciação da prova adquiriu um lugar no sistema de processo 'pela deslocação do fulcro de compreensão do próprio direito das normas gerais e abstractas para as circunstâncias concretas do caso'. A liberdade do juiz é um critério de justiça que não prescinde da verdade histórica das situações nem do contributo dos dados psicológicos, sociológicos e científicos para a certeza da decisão. É uma certeza sobre os factos da existência e tudo o que neles 'de material e espiritual participa (Castanheira Neves).
Esta justiça, que conta com o sistema da prova livre (ou prova moral) não se abre, de ser assim, ao arbítrio, ao subjectivismo ou à emotividade. Esta justiça exige um processo intelectual ordenado que manifeste e articule os factos e o direito, a lógica e as regras da experiência. O juiz dá um valor posicional à prova, um significado no contexto, que entra no discurso argumentativo com que haverá de justificar a decisão. Este discurso é um discurso 'mediante fundamentos que a 'razão prática' reconhece como tais' (Kriele), pois que só assim a obtenção do direito do caso está 'apta para o consenso'. A justificação da decisão é sempre uma justificação racional e argumentada e a valoração da prova não pode abstrair dessa intenção de racionalidade e de justiça.
A liberdade do juiz de que aqui se fala é, como diz Castanheira Neves, uma liberdade para a objectividade (...) não é uma liberdade meramente intuitiva, mas aquela que se concede e assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, uma verdade que se comunique e imponha aos outros (ob. cit., pág. 50).
A norma do artigo 127º do Código de Processo Penal não é, pois, contrária ao artigo 32º da Constituição da República. Também assim decidiu o acórdão nº 1165/96, do Tribunal Constitucional, D.R., II Série, de 6-2-1997, com apoio num longo excurso sobre a doutrina.(…).”(fim de transcrição)”
Ensina, sobre a matéria, o Prof. Figueiredo Dias: «À luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do tribunal, também não possam considerar-se como provados. E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão (...) – tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo» (Direito Processual Penal, reimpressão, 1984 p. 213).
A dúvida que fundamenta o apelo ao princípio in “dubio pro reo” não é uma qualquer dúvida, devendo ser insanável, razoável e objectivável, que é o que indubitavelmente acontece no caso dos autos, pois permanece esse estado de dúvida insuperável neste caso e que tem de ser valorado a favor da arguida, primeiro quanto ao facto de se afirmar que ela sabia que a infeliz vitima só podia comer alimentos passados, quando não resultou provado quando, nem por quem, tal informação lhe foi dada, se o foi, e segundo porque afinal eram dados à infeliz vitima alimentos sólidos de vez em quando, mais concretamente pão de ló, de acordo com a fundamentação da matéria de facto, porque nos factos provados nada se fez exarar e ficamos com dúvidas de tal omissão.
Igualmente também por explicar fica que, tendo a morte da vitima ocorrido em 13 de Agosto de 2019, a arguida ali continuou a trabalhar até 17 de Abril de 2020, e não constando dos factos provados, e tal seria bastante relevante, quem efectivamente e concretamente, era a diretora técnica do lar, ou gerente, ou supervisora das auxiliares, quem era responsável por dar as ordens de serviço sobre o funcionamento do lar e do tratamento diferenciado de cada um dos utentes, etc, etc, etc, sendo que só um leve afloramento de tal temática foi salientado na fundamentação de facto, e mesmo assim, não se conseguiu apurar se e quem deu tal indicação à arguida, (coisa que no quadro da instituição é bastante nebuloso ficando nós com uma dúvida se efectivamente tal indicação foi feita), nem quando, tal ordem ou indicação foi dada à arguida, fundamentando de modo displicente, ou seja se lá trabalhava, tinha que saber o modo de alimentar a vitima ( alimentos pastosos ou líquidos dados à vitima e por terceiro/ note-se /auxiliar), e pronto.
“A latere “sempre se dirá, que mais eficaz teria sido, em vez de ser feita uma massagem cardíaca à infeliz vítima, que lhe tivesse sido feita uma manobra de Heimlich (vide facto provado sob o nº 23. Dias mais tarde, a demandante deslocou-se à Casa de Repouso para ir buscar os objectos pessoais de seu pai e, em tal momento, uma auxiliar contou-lhe que vira o seu pai a comer pão e, posteriormente, a babar-se e sem reacção, pelo que tentou reanimá-lo fazendo-lhe massagem cardíaca ) e que por identificar fica qual o nome da auxiliar do lar de Repouso que assim procedeu.
No entanto ainda mais surpreendente é o facto dado como provado sob o nº 21. Chegada ao hospital, a demandante encontrou H e uma auxiliar do Lar, que lhe disse que o seu pai havia falecido, mas que tivera uma "morte santa" ...
Igualmente se refere na fundamentação de facto:
“Devemos ter em conta que estamos perante uma unidade pequena, com menos de duas dezenas de utentes, em que os funcionários trabalham com grande proximidade (em equipas de duas pessoas, normalmente, dando as refeições em conjunto), estando em muitos dias da semana a gerente presente, deslocando-se a directora técnica dois a três dias por semana ao espaço.”
Ora aqui não podemos de referir que duas auxiliares para cerca de vinte (20) utentes não será o ideal.
Adiante:
“Assim, existindo apenas uma ou duas pessoas que comiam alimentos pastosos (este ponto é praticamente comum a todos os intervenientes, incluindo a Arguida, embora esta indique outras pessoas que não a vítima), não é possível que, sendo ministradas quatro refeições por dia aos utentes, a Arguida, que já trabalhava há seis meses no lar, continuasse a ignorar as restrições alimentares da vítima, nomeadamente que o mesmo apenas comia alimentos pastosos, de acordo com as indicações do lar.
AF, para além da gerente do lar, refere que era conhecimento comum que a vítima apenas comia alimentos pastosos, sendo que MT afirma, de modo semelhante, que julga que todas as auxiliares sabiam.
Neste segmento da fundamentação é manifesta a sua inconsistência: senão atente-se não há a certeza de ser uma ou duas pessoas que comiam alimentos pastosos e também a afirmação de que era conhecimento comum que a vítima comia alimentos pastosos, e que se julga que todas as auxiliares sabiam…portanto que não há aqui é a certeza de nada, mas sim suposições que levam naturalmente ao despontar de dúvidas.
- Todas estas incongruências polvilhadas com as dúvidas já supra relatadas (bem como todos os outros vícios já supra exarados) a fundamentação de facto em confronto com os factos provados fazem destacar uma dúvida relevante sobre as acções da arguida que resultaram provadas e que culminaram com a sua condenação.
Assim se o Tribunal “a quo” não teve dúvidas deveria tê-las tido.
Assim destaca-se com nitidez na fundamentação de facto feita o que atrás se vincou de forma concentrada, mas exactamente como consta da sentença recorrida, a ver:
-“(…) Assim, com base em especial no depoimento das aludidas testemunhas, deve concluir-se que as refeições diárias eram efectuadas exclusivamente de alimentos passados ou líquidos e que a vítima necessitava sempre de uma funcionária que o auxiliasse.
É também com base nos mesmos depoimentos e uma vez estabelecidos os factos anteriores, que deve ser concluído que todas as funcionárias, incluindo a Arguida, tinham conhecimento das restrições alimentares da vítima AJ, nomeadamente, de que não lhe poderiam administrar alimentos sólidos.
Se não é possível estabelecer em que momento tal foi transmitido à Arguida, nem por quem, nomeadamente se na entrevista, se numa qualquer reunião, se pela gerente, pela directora técnica ou por uma colega, a verdade é que tal não obsta a que se estabeleça tal afirmação.
Devemos ter em conta que estamos perante uma unidade pequena, com menos de duas dezenas de utentes, em que os funcionários trabalham com grande proximidade (em equipas de duas pessoas, normalmente, dando as refeições em conjunto), estando em muitos dias da semana a gerente presente, deslocando-se a directora técnica dois a três dias por semana ao espaço.
Assim, existindo apenas uma ou duas pessoas que comiam alimentos pastosos (este ponto é praticamente comum a todos os intervenientes, incluindo a Arguida, embora esta indique outras pessoas que não a vítima), não é possível que, sendo ministradas quatro refeições por dia aos utentes, a Arguida, que já trabalhava há seis meses no lar, continuasse a ignorar as restrições alimentares da vítima, nomeadamente que o mesmo apenas comia alimentos pastosos, de acordo com as indicações do lar.
AF, para além da gerente do lar, refere que era conhecimento comum que a vítima apenas comia alimentos pastosos, sendo que MT afirma, de modo semelhante, que julga que todas as auxiliares sabiam.
Também AA (directora técnica), apesar de não ter prestado um depoimento especialmente pormenorizado ou concretizado, não deixou de referir, em termos gerais, que as informações eram transmitidas, oralmente, até pela gerente do lar que se encontrava mais presente (uma vez que AA trabalhava a tempo parcial).
MT refere mesmo que se alguma vez tivesse visto alguém a dar alimentos sólidos à vítima teria agido e chamado a atenção. Assim, a versão da Arguida, não é minimente credível, não sendo verosímil, como a mesma presente fazer crer, que todos os dias a vítima comia um pão, sem ser fragmentado e sem auxílio, ou que nas restantes refeições não comesse comida passada.
Assim, embora não se saiba em que momento concreto a Arguida tomou conhecimento, trabalhando já há seis meses no lar, onde eram ministradas quatro refeições por dia, tinha necessariamente de saber as restrições alimentares impostas pelo estabelecimento, em função da doença da vítima.
A tal não obsta o facto de R (marido da filha da vítima) referir que se recorda de uma vez, ao lanche, ter dado pão de ló ao seu sogro.
Em primeiro lugar porquanto não está absolutamente estabelecido que o doente não pudesse comer alimentos sólidos. Com efeito, do relatório médico constante dos autos apenas se retira que o doente deve comer com ajuda e que os alimentos devem ser previamente fragmentados. Não ignoramos que o mesmo é datado de 21 de Abril de 2018 e que o estado de saúde da vítima se terá, com toda a certeza, agravado (o próprio relatório afirma que “por se tratar de doença neurodegenerativa, progressiva, crónica, resulta expectável o agravamento e a perda de autonomia progressivas, que exigirão o cuidado por parte duma terceira pessoa”). Todavia, não há qualquer relatório médico mais actualizado que imponha uma dieta líquida ou quase líquida.
Tal não impede que o lar tivesse imposto essa dieta, que já seria inclusivamente ministrada a outros utentes, até para minorar substancialmente o risco de acidente e asfixia. São pontos diferentes, que não se confundem. As dificuldades de deglutição conhecidas por todos podem ter feito com que a instituição impusesse uma dieta praticamente líquida, por cautela, mesmo que tal não fosse absolutamente necessário. Todavia, mesmo que inexistisse parecer médico definitivo, a Arguida deveria ter cumprido as regras da instituição, que, como afirmado supra tinha conhecimento.
Assim, tendo em conta a textura do pão de ló e o relatório médico de fls. 4, não surpreende, minimamente, nem é contrário ao afirmado supra, que numa ou noutra ocasião, tenha sido dado pão de ló à vítima, previamente fragmentado e sob supervisão.
Deste modo, deve ser concluído que a Arguida tinha conhecimento das restrições alimentares da vítima AJ, nomeadamente, de que não lhe poderiam administrar alimentos sólidos (fim de transcrição).
Concluindo:
- Como diz Cristina Líbano Monteiro: «O universo fáctico – de acordo com o “pro reo” – passa a compor-se de dois hemisférios que receberão tratamento distinto no momento da emissão do juízo: o dos factos favoráveis ao arguido e o dos factos que lhe são desfavoráveis. Diz o princípio que os primeiros devem dar-se como provados desde que certos ou duvidosos, ao passo que para a prova dos segundos se exige a certeza.» (Perigosidade de Inimputáveis e «In Dubio Pro Reo», pág. 53).
A este propósito, lê-se no acórdão desta Relação lisboa, de 14.12.2010, processo 518/08.7PLLSB.L1-5: «(…), um primeiro aspecto cumpre realçar: o in dubio pro reo só vale para dúvidas insanáveis sobre a verificação ou não de factos (objectivos ou subjectivos) relevantes, quer para a determinação da responsabilidade do arguido, quer para a graduação da sua culpa.
O segundo aspecto a assinalar é o de que não é qualquer dúvida que há-de levar o tribunal a decidir “pro reo”.
Tem de ser uma dúvida razoável, que impeça a convicção do tribunal (vide AC TRL de 9.04.2013, in www.dgsi.pt)
Logo a violação do princípio «in dubio pro reo» traduz-se num dos vícios enunciados no art.º 410º/nº 2 al c) do Código de Processo Penal, os quais são de conhecimento oficioso, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (vide, Ac STJ de 19.10.1995, DR, I,S-A, de 28.12.1995).
Assim a violação do indicado princípio, reconduz-se ao erro notório na apreciação da prova enunciado na alínea c) do n.º2 do art.º 410º do Código de Processo Penal ( vide AC STJ de 17.12.1997, BMJ, nº 472, p. 497), e também neste contexto, conforme se assinala no Acórdão do STJ de 20-04-2006, o erro notório na apreciação da prova previsto na alínea c) do referido normativo “consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto, quando a conclusão deveria manifestamente ter sido a contrária, já por força de uma incongruência lógica, já por ofender princípios ou leis formulados cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas, ou contrariar princípios gerais da experiência comum das pessoas, já por se ter violado ou postergado um princípio ou regra fundamental em matéria de prova. Existe erro notório na apreciação da prova quando, «pelo menos, a prova em que se baseou a decisão recorrida não poderia fundamentar a decisão do tribunal sobre essa matéria de facto»”. Aresto proferido no processo n.º 06P363 e disponível na Internet em <http://www.dgsi.pt>.( vide aqui AC. do TRC de 13.18.208 in www.dgsi.pt .
No erro notório da apreciação da prova está em causa, não o conteúdo da prova em si, nomeadamente do que foi dito no depoimento ou nas declarações prestadas, cujo teor se aceita, mas a utilização que foi dada à referida prova, no sentido de a mesma suportar a demonstração de um determinado facto..
A violação do princípio traduz o postergar por exemplo de “leges artis” e é resultante de dois postulados, o de que o juiz terá de decidir sempre e o da inadmissibilidade de condenação penal quando o juiz se não convença da efectiva responsabilidade do arguido.
Relativamente ao vício previsto na al. c) do C.P.P., erro notório na apreciação da prova como já se referiu, o mesmo ocorre quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária, ou, visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum, ou se considera provado um facto totalmente ao arrepio desta experiência comum e da lógica normal, traduzindo-se uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e por isso incorreta, ou ainda quando resultado próprio texto da motivação da aquisição probatória que foram violadas as regras do “in dúbio” (cfr Ac. do S.T.J de 24.3.2004 proferido no processo nº 03P4043 em www.dgsi.pt, Ac. do S.T.J3.3.1999 in proc 98P930 e Ac. da Rel. Guimarães de 27.4.2006 in proc. 625/06) ou quando se violam as regras sobre prova vinculada ou de “leges artis” (cfr Ac. da Rel.Porto de 2.2.2005 no proc.0413844 e da Rel.Guimarães de 27.6.2005 no proc. 895/05-1ª).
Como se decidiu no Ac. da Relação de Lisboa, de 13/09/2017, Proc.353/16.9JELSB.L1-3, Relator Jorge Raposo, in www.dgsi.pt ocorre o vício previsto na alínea c), do nº 2 do art. 410º quando o tribunal (21/10/25, 17:04 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/c7ec3543948a9e468025887200558103?OpenDocument 17/32), se valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente. Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido.
O erro notório na apreciação da prova tem que resultar impreterivelmente do próprio teor da sentença, e ocorre quando considerado o texto da decisão recorrida por si só ou conjugado com as regras de experiência comum se evidencia um erro de tal modo patente que não escapa à observação do cidadão comum ou do jurista com preparação normal.
Da leitura atenta do texto da sentença recorrida em especial da matéria de facto provada e não provada que aí é descrita, bem como da parte relativa à respectiva fundamentação, o que se pode constatar com clareza e desde já, é que a análise crítica da prova e a decisão de facto constante da mesma e a sua motivação/justificação, não está bem assente em qualquer plataforma jurídica admissível e cognoscível levantando dúvidas relevantes como atrás se deixou exarado.
O Tribunal “a quo” como já se disse, não teve dúvidas, mas devia tê-las tido.
Pelo que e com base no disposto nos arts.º 127º do CPP deve ter-se a prova produzida como insuficiente para a incriminação/ condenação da arguida.
Decorre do princípio que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis à arguida que face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador não podem dar-se como provados.
A decisão recorrida só é de alterar quando as provas (as quais à saciedade se deixaram supra excursas) não conduzam aquela factualidade que se previamente “assentou” neste caso o Tribunal “a quo” violando as regras legais, que se traduz exactamente o caso dos autos, e não sendo este um exemplo em que existem duas versões e o Tribunal opta por uma delas.
Deste modo e ao abrigo do disposto no artº 410 nº 2 al. c) do CPP, julga-se verificada o erro notório na apreciação da prova, e, não sendo caso de se proceder ao reenvio do processo para novo julgamento nos termos do disposto no artº 426º nº 1 do CPP, procede-se à modificação da matéria de fato provada, considerando-a não provada, de acordo com o disposto no artº 431 al. a) do CPP, pela seguinte forma:
FACTOS NÃO PROVADOS:
3. Com efeito, as refeições diárias da vítima AJ eram efectuadas exclusivamente de alimentos passados ou líquidos, sendo que o mesmo necessitava sempre de uma funcionária que lhe administrasse as mesmas.
6. Todas as funcionárias do Lar «…..», incluindo a arguida M, tiveram conhecimento das restrições alimentares da vítima AJ, nomeadamente, de que não lhe poderiam administrar alimentos sólidos.
13. A arguida M, porque estava distraída, entregou à vítima AJ um alimento sólido, nomeadamente, um pão, apesar das restrições alimentares deste utente – que impediam a arguida de encetar tal prática –, restrições essas que, inclusivamente, haviam sido transmitidas à arguida, que, por conseguinte, delas tinha conhecimento, até porque já exercia funções no Lar desde Fevereiro de 2019 e já havia cuidado da vítima anteriormente.
14. A arguida M, enquanto auxiliar de geriatria, tinha responsabilidade acrescida em, diariamente, tratar com zelo da higiene pessoal, alimentação, medicação, ajudar a vestir, ajudar na mobilidade física e na comunicação com os idosos que se encontravam ao seu cuidado, entre os quais estava o ofendido AJ. Apesar de ser um trabalho que exige especial cautela e preocupações, a arguida M, no momento em que efectuou a entrega da alimentação à vítima AJ, olvidou que a mesma não poderia receber tal alimento.
15. Se a arguida M atendesse ao facto de a vítima AJ não poder comer alimentos sólidos, administrando-lhe, ao invés, alimentos passados ou líquidos, a morte de AJ não teria ocorrido nas circunstâncias descritas. Contudo, a arguida M não fez tal adequação, pois os comandos legais impostos pela sua profissão e deveres normais de cuidado foram-lhe indiferentes no momento em apreço.
16. Não o tendo feito, a arguida M violou os deveres objectivos de cuidado e de diligência e as necessárias cautelas que lhe eram exigíveis, de que era capaz e que devia ter adoptado para evitar um resultado que podia e devia prever – nomeadamente, de não facultar à vítima AJ um alimento sólido, por o mesmo padecer de vários problemas que lhe toldavam o discernimento, sendo normal e previsível que o mesmo, mecanicamente, fosse comer qualquer alimento que lhe dessem, até porque já não tinha capacidade de avaliar situações de perigo –, podendo ter tido outro comportamento que não provocasse o resultado verificado, designadamente, o de administrar alimentos passados ou líquidos, assim agindo apesar de bem saber que a situação exigia atenção e cuidado da sua parte.
17. Dessarte, a arguida M, ao agir da forma descrita, actuou de forma descuidada, esquecendo-se das restrições alimentares da vítima AJ, não observando as precauções exigidas pela prudência e cuidado que era capaz de adoptar e que devia ter adoptado para impedir a verificação de um resultado que, de igual forma, podia e devia prever, mas que não previu, causando a morte de AJ, ainda que sem que se tivesse conformado com esse resultado.
Termos em que, se decide que a arguida e ora recorrente terá de ser absolvida pela prática do crime pelo qual foi condenada, ou seja: -
- de 1 (um) crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 1 do Código Penal na pena de na pena de 8 (oito) meses de prisão cuja execução foi suspensa pelo período de 2 (três) anos, sujeita a regime de prova, com elaboração de competente plano de reinserção social, com imposição à Arguida dos seguintes deveres (nos termos dos artigos 50.º, n.º 1, 2, 3, 4 e 5, 51, n.º 1, al. a), 53.º, n.º 2 e 3, 54.º, n.ºs 1, 2 e 3):
Proceder ao pagamento parcial do montante indemnizatório infra atribuído pelo menos à razão mensal de 100,00 € (cem euros), mensalmente, a P, até perfazer o aludido montante, devendo proceder à junção aos autos dos devidos comprovativos até ao dia 08 do mês seguinte;
Responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social;
Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência;
Informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso.
Bem como do pedido de indemnização cível em que a arguida foi condenada.
Sem necessidade de se tecer mais e maiores considerações, impõe-se, pois, a absolvição da arguida, o que se declara.
Esta decisão, prejudica a apreciação subsequente das demais questões suscitadas no presente recurso, razão pela qual se torna despiciendo e inútil prosseguir no seu conhecimento.
DISPOSITIVO
Em face do que se expendeu acordam as Juízas Desembargadoras que compõem a 2ª subsecção criminal do Tribunal da Relação de ÈVORA, em:
Concedendo provimento ao recurso apresentado pela arguida e ora recorrente, acorda-se em revogar a sentença recorrida por se verificar o vicio do erro notório na apreciação da prova nos termos do nº 2 al. c) do artigo 410º do C.P.P., dando como não provados os factos que foram julgados provados, nomeadamente os constantes dos seguintes números:
3. Com efeito, as refeições diárias da vítima AJ eram efectuadas exclusivamente de alimentos passados ou líquidos, sendo que o mesmo necessitava sempre de uma funcionária que lhe administrasse as mesmas.
6. Todas as funcionárias do Lar «…..», incluindo a arguida M, tiveram conhecimento das restrições alimentares da vítima AJ, nomeadamente, de que não lhe poderiam administrar alimentos sólidos.
13. A arguida M, porque estava distraída, entregou à vítima AJ um alimento sólido, nomeadamente, um pão, apesar das restrições alimentares deste utente – que impediam a arguida de encetar tal prática –, restrições essas que, inclusivamente, haviam sido transmitidas à arguida, que, por conseguinte, delas tinha conhecimento, até porque já exercia funções no Lar desde Fevereiro de 2019 e já havia cuidado da vítima anteriormente.
14. A arguida M, enquanto auxiliar de geriatria, tinha responsabilidade acrescida em, diariamente, tratar com zelo da higiene pessoal, alimentação, medicação, ajudar a vestir, ajudar na mobilidade física e na comunicação com os idosos que se encontravam ao seu cuidado, entre os quais estava o ofendido AJ. Apesar de ser um trabalho que exige especial cautela e preocupações, a arguida M, no momento em que efectuou a entrega da alimentação à vítima AJ, olvidou que a mesma não poderia receber tal alimento.
15. Se a arguida M atendesse ao facto de a vítima AJ não poder comer alimentos sólidos, administrando-lhe, ao invés, alimentos passados ou líquidos, a morte de AJ não teria ocorrido nas circunstâncias descritas. Contudo, a arguida M não fez tal adequação, pois os comandos legais impostos pela sua profissão e deveres normais de cuidado foram-lhe indiferentes no momento em apreço.
16. Não o tendo feito, a arguida M violou os deveres objectivos de cuidado e de diligência e as necessárias cautelas que lhe eram exigíveis, de que era capaz e que devia ter adoptado para evitar um resultado que podia e devia prever – nomeadamente, de não facultar à vítima AJ um alimento sólido, por o mesmo padecer de vários problemas que lhe toldavam o discernimento, sendo normal e previsível que o mesmo, mecanicamente, fosse comer qualquer alimento que lhe dessem, até porque já não tinha capacidade de avaliar situações de perigo –, podendo ter tido outro comportamento que não provocasse o resultado verificado, designadamente, o de administrar alimentos passados ou líquidos, assim agindo apesar de bem saber que a situação exigia atenção e cuidado da sua parte.
17. Dessarte, a arguida M, ao agir da forma descrita, actuou de forma descuidada, esquecendo-se das restrições alimentares da vítima AJ, não observando as precauções exigidas pela prudência e cuidado que era capaz de adoptar e que devia ter adoptado para impedir a verificação de um resultado que, de igual forma, podia e devia prever, mas que não previu, causando a morte de AJ, ainda que sem que se tivesse conformado com esse resultado.
Termos em que, se decide que a arguida e ora recorrente terá de ser absolvida pela prática do crime pelo qual foi condenada, ou seja:
- de 1 (um) crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 1 do Código Penal na pena de na pena de 8 (oito) meses de prisão cuja execução foi suspensa pelo período de 2 (três) anos, sujeita a regime de prova, com elaboração de competente plano de reinserção social, com imposição à Arguida dos seguintes deveres (nos termos dos artigos 50.º, n.º 1, 2, 3, 4 e 5, 51, n.º 1, al. a), 53.º, n.º 2 e 3, 54.º, n.ºs 1, 2 e 3):
Proceder ao pagamento parcial do montante indemnizatório infra atribuído pelo menos à razão mensal de 100,00 € (cem euros), mensalmente, a P, até perfazer o aludido montante, devendo proceder à junção aos autos dos devidos comprovativos até ao dia 08 do mês seguinte;
Responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social;
Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência;
Informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso.
Bem como do pedido de indemnização cível em que a arguida foi condenada.
Não são devidas custas a cargo da arguida art.º 513º nº 1 do C.P.P. ( a contrario).
Custas do pedido Cível a cargo da demandante ( art.º 523º “a contrario” do C.P.P. e 527 nº 1 e 2 do C.P.C).
Notifique-se e DN.
Évora, 11 de novembro 2025
Filipa Costa Lourenço
Maria Perquilhas
Renata Whytton da Terra