REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário

I - Na fundamentação da sentença recorrida, o Tribunal a quo fundamentou o conhecimento da língua Portuguesa pelo arguido, de nacionalidade italiana, trazendo à colação as regras da experiência comum. Este apelo é inaceitável, porque as regras de experiência comum só autorizam a apreciar um comportamento determinado em função da cultura e comportamento social de um determinado povo, num tempo determinado. A regra de experiência comum é uma generalização, decorrente da observação empírica de factos anteriores, bastas vezes confundindo-se com pré-juízos, mesmo preconceitos, daí a necessária cautela no seu uso. As regras da experiência comum não podem ter ligação a factos concretos e não podem brotar de uma ciência pessoal, mas sim de um conhecimento que é partilhado pela generalidade das pessoas de um País, de uma região, de uma classe de pessoas, e concretizam-se na ideia de que certos factos geralmente ocorrem associados a outros.
II - Tomada isoladamente uma “regra de experiência comum”, esta é inoperante em qualquer processo, ou seja, uma regra de experiência comum não pode isoladamente fazer prova num processo, a não ser que haja uma aproximação ao acontecido. Na apreciação e valoração da prova produzida em julgamento, a lógica resultante da experiência comum não pode valer só por si, pois a realidade do quotidiano desmente muitas vezes os padrões de normalidade, que não constituem regras absolutas. De outro modo, seríamos conduzidos, a coberto de uma suposta “normalidade”, resultante da “experiência comum”, para um sistema de convenções apriorísticas, equivalente a uma espécie de prova tarifada, resultado que o legislador não quis e que a própria razão jurídica rejeita, pois equivaleria à definitiva condenação do princípio da livre apreciação da prova.

Texto Integral



Acordam na 2ª subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Reclamação apresentada pelo MºPº ao abrigo do disposto no artº 417 nº 8 do C.P.P.

No processo nº 864/23.0GCFAR.E2, foi efectuado o exame preliminar neste Tribunal da Relação de Évora pela Juíza Desembargadora relatora tendo sido considerado existirem motivos atendíveis e legais, para o conhecimento do recurso interposto pelo arguido M, passando então a proferir decisão sumária, ao abrigo do disposto no artº 417º nº 6 al. d) do Código de Processo Penal revisto, a qual, consta dos presentes autos, tendo sido proferida em 3/10/2025 com a referência citius nº 9772395.

No prazo legal, veio o Ministério Público ora reclamante, apresentar reclamação para a conferência nos termos do artº 417º nº 8 do C.P.P., por não se conformar com a decisão sumária (que absolveu o arguido) tendo assim interesse em obter uma decisão colegial, logo decisão diversa.
Esta tem o seguinte teor (transcrição):
O Ministério Público, notificado da decisão sumária proferida nos autos em epígrafe identificados vem, ao abrigo do disposto no artº 417º, nº 8, do Cód. Proc. Penal, RECLAMAR para a conferência (referência 1457).
A decisão sumária proferida no dia 03.10.2025 concluiu da seguinte forma:
“os factos que constam dos pontos 3,4 e 5 dos factos provados e que devem considerar-se como não provados.
E provados os factos contidos nas alíneas ii,iii e iv do elenco dos factos não provados e concretizando:
ii. Na sequência do referido em 6, o arguido apresenta sérias dificuldades em se expressar de forma clara e compreender termos que não se enquadrem na linguagem comum e termos técnicos, o que causa confusão na interpretação do discurso que o mesmo produz, e bem assim dificuldade de compreensão do discurso que lhe é dirigido, sendo que, a compreensão do arguido não chega a muitas palavras portuguesas, fora da linguagem comum, como o sejam conceitos legais e jurídicos que não compreende.
iii. O arguido, no momento da sua detenção, não tomou efetivo conhecimento do que lhe era imposto e das consequências advenientes do não cumprimento de tal ordem, por entender o que os guardas da GNR que o detiveram, lhe transmitiram no momento.
iv. Nomeadamente, que cometia um crime e que seria detido.”
Em consequência decidiu “absolver o arguido M do crime p.p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal pelo qual tinha sido condenado.”
O Tribunal fundou esse seu juízo, no princípio “in dubio pro reo”, por ter considerado que as regras da experiência comum, “…face as circunstâncias em que ocorreu a interceção e fiscalização do Recorrente, no passado dia 21 de Novembro de 2023, a conjugação da prova produzida em julgamento não permite afirmar, com a certeza considerada indispensável em processo crime, que o Arguido entendeu as consequências da recusa em se submeter ao teste de alcoolémia, ou seja que incorreria na pratica de um crime de desobediência.”
Em consequência, o Tribunal concluiu pela procedência do recurso apresentado pelo arguido e pela sua absolvição da prática do crime de desobediência, p. e p. pelo artº 348º, nº 1, al. a), do Cód. Penal.

*
Para além de todos os argumentos já esgrimidos nos autos, afigura-se ser aqui de evidenciar o seguinte:
O Ministério Público revê-se nas doutas considerações efectuadas na decisão sumária, a propósito das regras da experiência comum, e na conclusão de que “As regras da experiência não são meios de prova, mas antes raciocínios, juízos hipotéticos de conteúdo genérico, assentes na experiência comum, independentes dos casos individuais em que se alicerçam, com validade, muitas vezes, para além do caso a que respeitem, adquiridas, em parte, mediante observação do mundo exterior e da conduta humana, e, noutra parte, mediante investigação ou exercício científico de uma profissão ou indústria, permitindo fundar as presunções naturais, mas sem abdicar da explicitação de um processo cognitivo, lógico, sem espaços ocos e vazios, conduzindo à extracção de facto desconhecido do facto conhecido, porque conformes à realidade reiterada, de verificação muito frequente e, por isso, verosímil.”
Já não concorda com a conclusão extraída na decisão reclamada “que perante as circunstâncias em que ocorreu a interceção e fiscalização do Recorrente, no passado dia 21 de Novembro de 2023, a conjugação da prova produzida em julgamento não permite afirmar, com a certeza considerada indispensável em processo crime, que o Arguido entendeu as consequências da recusa em se submeter ao teste de alcoolémia, ou seja que incorreria na pratica de um crime de desobediência.”
Com efeito,
A decisão sumária não elenca as concretas circunstâncias que determinaram a extracção dessa conclusão.
E da análise global da decisão apenas se detectam três elementos nesse sentido:
- arguido tem nacionalidade italiana;
- alega não dominar a cem por cento a língua portuguesa; e
- foi-lhe nomeado intérprete para o julgamento.
Na perspectiva do Ministério Público esses elementos são insuficientes para afastar o juízo formulado na fundamentação de facto do tribunal de primeira instância.
Como ali se mencionou:
- “nos autos depuseram igualmente os Militares da GNR intervenientes na situação em análise, sendo que, relataram ao tribunal o circunstancialismo em crise, tendo descrito de forma credível, perentória e circunstanciada o mesmo. De facto, foi referido que o arguido chegou ao local a conduzir, aparentando, pelo odor a álcool que emanava, encontrar-se alcoolizado, tendo-lhe sido solicitado que efetuasse o teste de álcool, o que o mesmo recusou, mesmo após advertido de que incorria na prática de um crime.
- o arguido, ao longo das declarações que prestou, não referiu que não procedeu ao teste por não perceber a língua portuguesa, e antes, por estar, como referiu, em “choque” e igualmente porquanto no local se encontrava o vizinho V, o que o deixara nervoso.
- em julgamento o arguido referiu inclusivamente conversas com terceiros
– nomeadamente e noutra situação, com o Militar autuante –, sem fazer qualquer referência à sua dificuldade em estabelecer as mesmas, referindo ademais que se encontra em Portugal há cerca de 7 anos, ainda que não passando cá todo o ano e não obstante, falando diversas línguas.”
A estes elementos acrescem, ainda, os factos julgados provados trazidos aos autos pela contestação:
“6. O arguido tem nacionalidade italiana, residindo em Portugal há vários anos, o que faz com que consiga comunicar em português.
9. O arguido utiliza a sua carrinha Mercedes para fazer transporte turístico de clientes, no âmbito da sua atividade profissional.
13. O arguido é gerente de uma empresa que se dedica à realização de transporte turístico, necessitando da carta de condução para exercício da sua atividade.” Resulta ainda do auto de notícia e do registo individual de condutor, juntos ao processo, que o arguido é titular de carta de condução, para as Categorias: A1 (desde 26-07-2006), A (desde 26-07-2006), B1 (desde 26-07-2006), B (desde 26-07-2006), com o Número (…..), emitida em 27-07-2006, pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes.
Face a todo esse conjunto de circunstâncias afigura-se, manifesto, que, no dia 21.11.2023, o arguido bem sabia que estava obrigado a realizar o teste de despistagem de álcool no sangue, como lhe foi solicitado pelos militares da G.N.R. que o abordaram nesse sentido, depois de o detectarem a conduzir um veículo automóvel na via pública, o que o arguido recusou realizar, de forma livre, deliberada e consciente e que ao recusar realizar aquele teste incorria em responsabilidade criminal, na prática de um rime de desobediência. Efectivamente,
Em julgamento, o arguido, não declarou sequer que não realizou o teste por não perceber o que lhe foi dito pelos militares, mas porque estava “em choque” e “nervoso”.
O arguido trabalha a conduzir regularmente um veículo automóvel de passageiros, em Portugal e reside em Portugal há vários anos o que faz com que consiga comunicar em português.
É titular de uma carta de condução portuguesa, emitida pelo IMT, pelo que necessariamente conhece a obrigação de se submeter a testes de pesquiza de álcool no sangue e as consequências do incumprimento dessa obrigação legal, prevista no artº 152º, nº 3, do Cód. da Estrada.
O conjunto dessas concretas circunstâncias - todas elas referentes à pessoa do arguido - permite, efectivamente, fundar a prova descritos nos nºs. 3, 4 e 5, dos factos julgados provados, na sentença recorrida.
Note-se que o crime p. e p. pelo artº. artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, não exige sequer como elemento do tipo de ilícito que seja efectuada a cominação da desobediência, pois ela encontra respaldo numa disposição legal - no caso, o artº 152º, nº 3, do Cód. da Estrada.
Aquele tipo legal basta-se, em termos objectivos, com a verificação dos seguintes elementos:
- o agente conduza um veículo na via pública ou equiparada (que se encontra provado no nº 1)
- com a solicitação ao arguido, pela autoridade competente, da realização do teste de álcool e com a sua recusa em proceder à realização do teste (o que no caso dos autos se verificou, conforme julgado provado no nº 2, da factualidade descrita na sentença).
E em termos subjectivos exige-se o dolo, em qualquer das suas modalidades e a consciência da ilicitude.
No caso o dolo resulta do acto objecto do arguido de não realizar o teste que lhe foi solicitado, por sua vontade.
A consciência da ilicitude verifica-se pelo necessário conhecimento da obrigação decorrente do artº 152º, nº 3, do Cód. da Estrada, por um titular de carta de condução portuguesa, que vive em Portugal e conduz um veículo de transporte de passageiros, em Portugal, há vários anos, ainda não o faça durante todo o ano e mesmo que possua nacionalidade italiana.
Note-se que também em Itália idêntico comportamento é criminalmente punido como crime de desobediência [como resulta do artigo 186, parágrafo 7, do Código da Estrada italiano] como ocorre na generalidade dos países da união europeia. Assim
Afigura-se que nenhuma dúvida ocorre a um condutor italiano que seja encontrado a conduzir um veículo automóvel na via pública, em Portugal, que sendo instado por uma autoridade policial a realizar o teste de pesquiza de álcool no ar expirado, está obrigado a realizar esse teste e que a recusa na sua realização conduz à prática de um ilícito criminal. Por tudo o exposto,
Considera-se que Vªs. Exªs deverão negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida nos seus precisos termos.

A reclamação foi admitida.

O arguido foi notificado da apresentação da reclamação e veio apresentar requerimento opondo-se à reclamação apresentada pelo MºPº e pugnando pela manutenção da decisão sumária nos exactos termos por ela decididos.

Tudo visto aduz-se:

A decisão sumária “reclamada” tem o seguinte teor:
Decisão sumária ao abrigo do disposto no artigo 417º al. d) do C.P.P.
I - Nos autos de processo abreviado, que correm termos no Tribunal judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Faro-Juiz 3, o arguido M, nascido a (……), através de sentença proferida nestes autos com a referência 135657887, este foi, a final condenado nos seguintes termos:
- Face ao exposto, decide-se julgar a acusação deduzida pelo Ministério Público procedente por provada e, em consequência,
a) Condenar o arguido M pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido nos termos do artigo 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de EUR 5,00.
b) Condenar o arguido M na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, por um período de 5 meses, nos termos e para os efeitos do artigo 69.º, n.º 1, alínea c) do CP.
Esta sentença foi proferida após a anulação de sentença anterior proferida nestes autos na 1ª instância por este Tribunal Superior.
O arguido inconformado, veio agora deduzir um recurso da nova sentença, apresentando as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto da sentença de 09/04/2024, que condenou o Arguido, ora Recorrente pela prática de um crime de desobediência, nos termos dela constantes.
2. Conforme prova produzida, nomeadamente, parte das gravações da audiência de julgamento do dia 12-02-2024, referente às declarações do Arguido (com início às 15:17 e término às 16:15), nomeadamente minutos 27:48 aos minutos 30:10; 12:43 ao minuto 13:21; minutos 15:45 ao minuto 16:15; minutos 17:49 ao minuto 19:50; minutos 34:45 ao minuto 38:31; minutos 50:22 ao minuto 50:41; minutos 24:40 ao minuto 25:03; minutos 38:36 ao minuto 39:34; minutos 40:22 ao minuto 40:41; minutos 43:38 ao minuto 43:50; minutos 07:32 ao minuto 09:41; minutos 26:18 ao minuto 26:33; minutos 14:20 ao minuto 15:22;minutos 51:00 ao minuto 51:15; 4:41 ao minuto 5:17; 18:26 ao minuto 18:53 e minutos 31:28 ao minuto 33:15, conforme depoimento da Testemunha H (com início a 16:17 e término às 16:27), nomeadamente, minutos 00:32 ao minuto 01:13; minutos 04:51 a minutos 05:15; minutos 09:45 ao minuto 10:24; minutos 03:51 ao minuto 03:59 e minuto 04:19 ao minuto 03:59, bem como o depoimento testemunha B (com início às 16:28 e término às 16:37), nomeadamente minutos 01:58 ao minuto 02:30; minutos 03:00 ao minuto 03:07 e minutos 4:41 ao minuto 5:17.
3. Sempre se teria de concluir que solução dada pela sentença recorrida resultou de um erro na apreciação da prova (art.º 410.º, n.º 2, al. c), do CPP), bem como da matéria de direito, não tendo o Tribunal a quo realizado um adequado e necessário exame crítico da prova produzida em audiência de julgamento.
4. Contextualizando os factos, é necessário referir que 7 dias antes dos factos sub judice, o Recorrente contactou o posto da GNR devido a uma disputa com um vizinho que frequentemente ocupa o seu lugar de estacionamento.
5. Ao contactar a GNR, o Arguido foi atendido pelo G, aqui testemunha no processo, que o acusou de estar bêbado, informando que não tinha patrulha disponível e solicitando ao Recorrente que não voltasse a ligar.
6. Em virtude desse facto o Recorrente, nesse mesmo dia, dirigiu-se pessoalmente ao Posto da GNR de Faro, e solicitou ao Guarda H que colocasse por escrito o que lhe tinha dito por telefone.
7. Neste momento, sem razão aparente o Guarda H ordenou o Recorrente que fizesse um teste de álcool, o que deixou o Recorrente surpreso, pois, tinha ido ao posto pedir auxílio, tal ordem resultou em consecutivos testes negativos, uma vez que, o Guarda lhe pediu para fazer o teste três vezes, até acabar por dizer para o Recorrente ir para casa.
8. Acontece que, o próprio Guarda, admitiu mais tarde, em julgamento, que não tinha visto o Recorrente a conduzir até ao posto, sabendo que o que legitima a ordem de submissão ao teste de pesquisa de álcool no sangue é ter presenciado a condução no momento da abordagem, admitindo também em audiência de julgamento que o Recorrente nesse dia, apesar das suas suspeitas que o mesmo estava embriagado, estaria apto para conduzir.
9. O que demonstra ab initio a atitude da testemunha H perante o Recorrente.
10. Ora, dias depois, no dia 21/11/2023, foi chamado este mesmo Guarda, juntamente com outro Colega, ao local dos factos, por um vizinho do Recorrente, para resolver outra disputa de estacionamento.
11. Chegado o Recorrente ao local, os Guardas pediram-lhe os documentos das suas viaturas, bem como os documentos da propriedade dos lugares de estacionamento, solicitando, por fim, ao Recorrente que fizesse um teste de despistagem de álcool.
12. Face ao “histórico” já existente com o Guarda H, que já em dia anterior, tinha pedido ao Recorrente para fazer um teste alcoolémia, sem razão aparente, foi com surpresa e “choque” que o Recorrente ouviu novamente a ordem do mesmo Guarda para fazer um teste de álcool, já depois de lhes ter disponibilizado todos os documentos solicitados.
13. O Recorrente tem nacionalidade italiana, residindo 6 meses por ano em Portugal, de há sete anos para cá.
14. Apesar de conseguir comunicar em linguagem comum em português, apresenta sérias dificuldades em se expressar de forma clara e compreender termos que não se enquadrem na linguagem comum e termos técnicos, o que causa confusão na interpretação do discurso que o mesmo produz e, bem assim, dificuldade de compreensão do discurso que lhe é dirigido, o que foi relevante durante os factos.
15. Após pedido para fazer o teste de álcool, o Recorrente solicitou a presença da sua Advogada várias vezes, insistindo que só faria o teste de álcool na presença da sua Advogada, por estar ciente das suas dificuldades de compreensão e por se sentir impotente, no entanto, foi detido antes que isso fosse permitido.
16. O Tribunal a quo não considerou a importância de o Recorrente tentar contactar sua advogada, bem como as suas dificuldades linguísticas.
17. A barreira linguística do Recorrente dificultou a comunicação clara durante a sua detenção.
18. Certo é que, mais tarde, já no posto a Advogada do Recorrente solicitou que se fizesse o teste já na sua presença, não tendo este pedido sido consentido pelos Guardas.
19. Perante as circunstâncias em que ocorreu a interceção e fiscalização do Recorrente, no passado dia 21 de novembro de 2023, não é possível afirmar com a certeza considerada indispensável em processo-crime, que o Recorrente entendeu as consequências decorrentes da recusa em fazer o teste de álcool, no local.
20. E esta falta de certeza, ou melhor, este estado de dúvida revela-se inultrapassável e exigia a convocação do princípio in dubio pro reo, não tendo a sentença aplicado corretamente este princípio, resultado de uma avaliação inadequada da prova.
21. Nesta perspetiva, a violação do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova quando do texto da decisão recorrida se extrair, tendo o tribunal a quo optado por decidir, na dúvida, contra o arguido.
22. Não podendo resultar do circunstancialismo provado que os contornos da atuação do Recorrente integrem o crime de desobediência.
23. Face ao exposto a Sentença recorrida não merece qualquer censura nos factos dados como provados nos pontos 1, 7, 8 e 10 a 16.
24. O ponto 2 deve ser reformulado nos seguintes termos: “ Nessa circunstância de tempo e de lugar, aquando da fiscalização que se encontrava a ser feita ao arguido por Militares da GNR, foi solicitado ao arguido que se submetesse ao teste de álcool, por meio de expiração de ar pela boca, tendo o arguido recusado a realização do teste sem a presença da sua advogada.”
25. Por se demonstrar que o Recorrente não compreendeu ou tomou efetivamente conhecimento do que lhe era imposto e das consequências advenientes do não cumprimento de tal ordem, devem os pontos 3, 4 e 5 passar a integrar os factos não provados da sentença.
26. Deve passar a constar dos factos dados como provados que: “O Arguido perante a ordem para fazer o teste de álcool solicitou, ainda no local dos factos, que o teste fosse feito na presença da sua advogada, mais tarde, já no posto a sua Advogada solicitou mais uma vez aos Guardas da GNR que o Arguido fizesse o teste de álcool, o que não foi consentido”
27. O ponto 6 dos factos dados como provados deve ser reformulado para “O arguido tem nacionalidade italiana, residindo 6 meses por ano em Portugal, de há 7 anos para cá, o que faz com que se consiga comunicar em português, no entanto, tal compreensão não chega a muitas palavras portuguesas, fora da linguagem comum e muito menos aos conceitos legais e jurídicos que não compreende”.
28. O ponto 9 dado como provado deve ser reformulado em dois pontos, para que melhor se entenda o contexto dos factos, nos seguintes termos:
1 - “No dia 14/11/2023, pelas 22:00, o arguido tinha chegado a casa com a sua carrinha Mercedes, pretendendo estacioná-la num dos seus locais de estacionamento, verificando que no local estava estacionado um veículo de um vizinho, tendo contactado o posto da GNR para pedir auxílio, acabando por se desentender com o Guarda que recebeu a chamada, ato contínuo, dirigiu-se ao Posto da GNR, solicitando ao Guarda H, com quem havia falado, que colocasse por escrito o que lhe tinha dito por telefone”
2- “Dirigindo-se o Arguido ao posto, a fim de pedir auxílio numa situação que ocorreu na sua propriedade, foi surpreendido com a ordem do Guarda H para que fizesse um teste de álcool, tendo o mesmo pedido para repetir o teste por 3 vezes, verificando-se nessa ocasião que o Arguido estava apto para conduzir”
29. Quanto à matéria dada como não provada a Sentença recorrida não merece qualquer censura nos factos dados como não provados nos pontos i), iii) e iv).
30. Quanto ao ponto ii) dado como não provado deve ser eliminado dos factos não provados e passar a integrar os factos provados.
31. Quanto ao ponto v) dado como não provado deve ser eliminado e passar a integrar os factos provados, por se vislumbrar um facto essencial para a compreensão dos factos, nomeadamente, para o nervosismo e recusa do Recorrente em fazer o teste de álcool no local dos factos sem a presença da sua Advogada.
29. Certo é que tendo a Recorrente nacionalidade italiana e não dominando por completo a língua portuguesa, a utilização deste idioma não garante a comunicação que se pretende entendível e isenta de equívocos nos atos processuais penais, nomeadamente, no momento da detenção.
30. Em momento algum antes da sua detenção o Recorrente compreendeu que a recusa a fazer o teste de alcoolémia no local consubstanciaria um crime de desobediência.
31. São elementos objetivos do crime de desobediência a ordem ou mandado, a legalidade substancial e formal da ordem ou mandado, a competência da autoridade ou funcionário para a emissão da ordem ou mandado e a regularidade da sua transmissão ao destinatário.
32. Face à prova produzida só poderia o Tribunal a quo concluir não se ter provado a regularidade da transmissão ao destinatário, porquanto o mesmo não a terá compreendido pela barreira linguística.
33. De um ponto de vista subjetivo, tendo em consideração os factos descritos, não se verifica a existência de qualquer das modalidades de dolo do tipo, uma vez que, o Recorrente nunca teve consciência e vontade de realizar os elementos objetivos do crime de desobediência e tanto assim é que se disponibilizou para fazer o teste na presença da sua Advogada, bem como no Posto da GNR.
34. Ora, ignorando o Recorrente que a sua recusa no local não era legítima e que a mesma acarretaria a prática de um crime, não poderá a sua atuação ser considerada culposa.
35. A questão da ilicitude concreta da conduta do Arguido é discutível e controvertida, uma vez que, o Arguido desconhecia em absoluto que a sua recusa acarrearia um crime de desobediência, atuando assim em erro sobre a ilicitude dos factos.
36. Em suma, no quadro da atuação descrita, encontram-se manifestamente preenchidos os requisitos exigidos para a configuração da não censurabilidade do “erro sobre a ilicitude”.
37. Assim, ter-se-ia de concluir pela inexistência de censurabilidade da falta de consciência da ilicitude do facto e, como tal, pela verificação de erro sobre a ilicitude nos termos e para os efeitos do artigo 17.º, n.º 1, do Código Penal.
38. Perante as circunstâncias em que ocorreu a interceção e fiscalização do Arguido, no passado dia 21 de novembro de 2023, não é possível afirmar com a certeza considerada indispensável em processo-crime, que o Arguido entendeu as consequências decorrentes da recusa em fazer o teste de álcool, no local.
39. Por tudo o exposto, deverá o Arguido ser absolvido da prática do crime de desobediência de que vem acusado
40. Não concedendo, por mero dever de patrocínio, sempre se dirá que na eventualidade de se manter a decisão recorrida, deverá ser reduzida a aplicação da pena acessória de inibição de conduzir para 3 meses.
41. Na determinação da pena acessória é necessário observar os critérios estabelecidos no artº 71º do CP, dando especial importância à prevenção especial, que visa a consciencialização e a socialização do arguido de molde que futuramente paute as suas condutas de acordo com o prescrito pela lei.
42. Ora ao contrário do que referiu a Juíza nas suas motivações referindo que o Recorrente não manifestou “qualquer contrição pela sua conduta e antes desresponsabilizando-se” vide Pág. 5, 3.º parágrafo da sentença, na verdade o que o Recorrente fez foi contextualizar os factos da acusação, sendo que, nas suas declarações pediu várias vezes desculpa ao Tribunal pelo sucedido.
43. E ainda assim, deveria o Tribunal ter em conta na aplicação da sanção acessória o facto de o arguido receber o ordenado mínimo e necessitar da carta de condução para exercer a sua profissão, sendo certo que a finalidade da prevenção de tal medida e os bens e interesses da sociedade que visa tutelar, vislumbram-se garantidos pela aplicação da pena acessória pelo seu mínimo.
Nestes termos, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência:
a) alterar-se a matéria de facto dada como provada não provada na sentença recorrida, conforme motivações e conclusões do Recorrente
b) ser revogada a sentença recorrida e substituída por decisão que absolva totalmente o Recorrente.
c) por mero dever de cautela no patrocínio judiciário, caso não sejam atendidos os pedidos supra expostos sempre terão V.Exas., atendendo a tudo o supra invocado, de reduzir a pena acessória de inibição de conduzir para três meses.
O recurso foi admitido por despacho judicial com a referência 136072312.
O Mistério público apresentou resposta ao recurso com a referência 35705, infirmando o seguinte nas suas conclusões:
A.- O recorrente veio interpor recurso da douta sentença que o condenou pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido nos termos do artigo 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de EUR 6,00, e ainda na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, por um período de 5 meses, nos termos e para os efeitos do artigo 69.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal.
B.- Após recurso inicial apontando que o Tribunal a quo ignorou alguns factos constantes
da contestação, insurge-se novamente o recorrente porquanto:
i) – o arguido não domina a língua portuguesa;
ii) – a sentença contém juízos subjetivos e ad hominem;
iii) - existe erro notório na apreciação da prova;
iv) – foi violada a presunção de inocência do arguido;
v) – quando foi dada a ordem para soprar o alcoolímetro, o recorrente não tinha a qualidade de condutor e os militares da GNR não atuavam como autoridade de fiscalização rodoviária, mas como agentes intervenientes em conflito de vizinhança;
vi – o recorrente não sabia que estava obrigado a efetuar o teste de alcoolemia.
C.- Adiantando desde já a nossa posição quanto ao mérito do recurso, somos de nos pronunciar pela sua total improcedência, pelas seguintes razões:
a) – o recorrente o que pretende é um novo julgamento em que a sua opinião e visão dos factos tenha provimento, não se conformando com a apreciação e argumentos, adiantamos, racionais e lógicos, utilizados pelo Tribunal a quo;
b) – Todas as provas e meios de prova oferecidos pelo recorrente foram analisadas e devidamente apreciadas pelo Tribunal a quo na sua decisão;
c) – Inexiste quaisquer razões, factos ou provas, que imponham decisão diversa da proferida pelo Tribunal a quo, que efetuou análise crítica de todas as provas que lhe foram apresentadas e fez uma valoração lógica e racional, inclusive quanto a ter-se dado como provado que o recorrente fala e compreende a língua portuguesa;
d) – inexiste violação do princípio in dúbio pro reo porquanto o Tribunal a quo não teve quaisquer dúvidas nos factos dados como provados;
D.- Perscrutadas as alegações de recurso não se vislumbra que prova ou meios de prova sequer indiciam que o arguido não perceba ou domine a língua portuguesa.
E.- Ao contrário do referido, toda a prova é no sentido de que o recorrente fala e percebe perfeitamente a língua portuguesa, tendo até sido constrangedor que após ter requerido em sede de contestação a presença de interprete na audiência de julgamento, ao longo das sessões de julgamento:
- perceber que o recorrente ia corrigindo a tradução que lhe era efetuada pelo Exmo Sr. Interprete;
- ouvir as testemunhas H e B dizer que o recorrente sempre dialogou com eles em português, correcto e fluente;
- que durante a inquirição da esposa do recorrente e depois de confrontada acerca de como comunicava com o recorrente, o próprio recorrente ter tomado da palavra para, em português, dizer que tinha aprendido no último ano e que ajudava o seu filho a fazer os trabalhos de casa.
F.- Ensaia depois o recorrente um argumento de que o recorrente não pretendia desobedecer a uma autoridade policial com competência (militar da GNR), de uma ordem legitima (o arguido chegou ao local onde estavam os militares da GNR a conduzir um automóvel e foi pedido ao condutor que se submete-se a teste de alcoolemia) e que lhe foi regularmente transmitida e ele compreendeu.
G.- O próprio recorrente admitiu em sede de audiência de julgamento que não quis voluntaria e deliberadamente submeter-se ao teste de deteção de álcool no sangue.
H.- Por outro lado, desconhece-se a que atualidade ou qualidade [de condutor] o recorrente se refere nas suas alegações, bem como desconhece-se o alcance da alegação de que forças de segurança ou autoridades actuem em várias vestes ou qualidades, ou que indo para uma ocorrência não assumam todas as suas competências.
I.- No demais, o recorrente limita-se a efetuar considerações e comentários à douta sentença não se alcançando o pretendido a não ser introduzir questões e factos absolutamente desnecessários e inúteis à matéria em discussão e balizada pela acusação pública: o arguido conduziu a Mercedes Vito, foi abordado pelos militares da GNR devidamente fardados e identificados como tal, em pleno exercício de funções, foi pedido para efetuar o teste de alcoolemia por ar expirado, o recorrente imediatamente recusou.
J.- A questão do estacionamento, do condomínio, da animosidade com vizinhos, de ocasiões anteriores em que esteve na presença dos militares da GNR, salvo melhor opinião, não fazem parte nem objeto do processo, pelo que nem qualquer pronúncia mereceria do Tribunal a quo.
K.- Finalmente, o artigo 152.º do Código da Estrada é absolutamente claro: os condutores devem submeter-se às provas estabelecidas para deteção dos estados de influenciado pelo álcool, sob pena de incorrerem num crime de desobediência.
L.- Note-se que é do conhecimento geral de qualquer cidadão da União Europeia desta obrigação a qual é transversal a todos os países
M- Termos em que, deve ser rejeitado o recurso apresentado pelo recorrente e, consequentemente, ser mantida a douta sentença nos seus precisos termos
Termos em que, deve ser rejeitado o recurso apresentado pelo recorrente e, consequentemente, ser mantida a douta sentença proferida.
Já neste Tribunal o digno procurador Geral Adjunto proferiu douto parecer com a referência 9724552, pugnando que o recurso seja julgado improcedente.
Foi cumprido o artº 417º nº 2 do CPP, tendo o arguido silenciado.
O processo seguiu os termos legais e devidos.

II - O artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., enuncia que a motivação indique especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).
O objecto do recurso que irá ser apreciado por este Tribunal Superior já foi reiteradamente conhecido e decidido de forma predominantemente uniforme pela jurisprudência Portuguesa (entre outros vide os AC do TRE 884/15.PBSTB.E1, AC TRE 23 de ABRIL 2024, in www.dgsi.pt
Acresce que no Tribunal Constitucional, se afirma que as “decisões sumárias”, proferidas nos termos do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, (na redacção da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro), vêm gradualmente assumindo maior relevância na jurisprudência do Tribunal Constitucional, no que respeita quer aos pressupostos do recurso de constitucionalidade, quer a julgamentos de mérito quando é manifesta a falta de fundamento do recurso (http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/decsumarias/).
Temas a decidir:
-Erro notório da apreciação da prova, art.º 410º nº2 al. c) do C.P.P.;
-Ausência de exame critico da prova;
-Os pontos 3, 4 e 5 devem ser considerados como não provados e as alíneas ii) e v) dos factos não provados devem ser dados como provados;
Erro sobre a ilicitude artigo 17º nº 2 do C.P.;
-A pena acessória deverá ser reduzida para três meses:

(…) Vejamos então e transcrevendo nos segmentos que interessam a sentença recorrida.
II. DOS FACTOS
a) Factos Provados
Com relevância para a decisão da causa deram-se como provados os seguintes factos:
Da Acusação Pública:
1. No dia 21 de novembro de 2023, pelas 14 horas e 40 minutos, no Caminho da Boleta, em Faro, após a patrulha da GNR ter sido chamada ao local porquanto se encontrava uma carrinha marca Bedford, com a matrícula (…..), a impedir o acesso de viaturas a uma área de acesso a residências, o arguido compareceu no local, a conduzir o veículo ligeiro de passageiros, com matrícula (…..).
2. Nessa circunstância de tempo e de lugar, aquando da fiscalização que se encontrava a ser feita ao arguido por Militares da GNR, o qual se deslocou até junto da patrulha, tendo sido percebido o odor a álcool que emanava, apresentando o rosto avermelhado e um discurso pouco coerente, foram solicitados ao arguido os documentos para realização de uma fiscalização rodoviária, o que o mesmo acatou, e ainda que se submetesse ao teste de álcool, por meio de expiração de ar pela boca, tendo o arguido recusado a realização do teste.
3. O arguido foi advertido de que iria incorrer na prática de um crime de desobediência acaso não realizasse o teste, sendo que, após várias advertências, continuou a recusar ser submetido ao referido teste.
4. O arguido agiu, conforme descrito, com o propósito concretizado de se eximir à realização de qualquer tipo de exame de pesquisa de álcool, bem sabendo que, na qualidade de condutor, lhe era exigível a sujeição a tal exame e que a sua recusa era proibida e punida por Lei Penal.
5. Ao praticar tais factos, o arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, não ignorando o carácter censurável da sua conduta, bem sabendo que a mesma era proibida e punida por Lei Penal, que podia e devia ter observado.
Da Contestação:
6. O arguido tem nacionalidade italiana, residindo em Portugal há vários anos, o que faz com que consiga comunicar em português.
7. No dia em análise nos autos não interveio qualquer intérprete, tendo os militares utilizado a língua portuguesa para comunicar com o arguido.
8. Na sequência da detenção, o arguido solicitou no posto efetuar uma chamada para a sua advogada, sendo que naquele local o mesmo se disponibilizou para fazer o teste e não foi permitido ao arguido que o fizesse.
9. O arguido utiliza a sua carrinha Mercedes para fazer transporte turístico de clientes, no âmbito da sua atividade profissional.
10. O “acesso”, referido em 1, é o acesso a 3 lugares de estacionamento, propriedade do arguido à data dos factos, tendo o mesmo mostrado documentação a comprovar tal circunstancialismo, sendo que após foi solicitado ao arguido que fizesse o teste de álcool.
11. No dia 14/11/2023, pelas 22:00, o arguido tinha chegado a casa com a sua carrinha Mercedes, pretendendo estacioná-la num dos seus locais de estacionamento, verificando que no local estava estacionado um veículo de um vizinho, tendo ligado para o posto e sido informado que não existia nenhuma patrulha disponível, tendo-se o mesmo dirigido ao Posto da GNR de Faro, solicitando ao Guarda H, com quem havia falado, que pusesse tal por escrito, tendo-lhe sido ordenado que fizesse o teste de álcool, tendo-lhe sido referido que tinha álcool no sangue e para ir embora e voltar a ligar se a situação do estacionamento fosse a mesma, tendo o arguido ido embora.
12. Nessa sequência, cerca das 23:30, o Militar da GNR ligou ao arguido referindo que depois das 24:00 poderia enviar uma patrulha, tendo o mesmo, depois das 00:00 voltado a ligar e tendo sido enviada uma patrulha, a qual, atenta a hora, não pôde remover o veículo.
13. O arguido é gerente de uma empresa que se dedica à realização de transporte turístico, necessitando da carta de condução para exercício da sua atividade.
Mais se provou que,
14. O arguido encontra-se neste momento sem trabalhar, auferindo subsídio da Segurança Social, no montante de cerca de EUR 440,00.
15. O arguido reside em casa arrendada, não sendo o mesmo que procede ao pagamento da renda.
16. O arguido tem cinco filhos, de 6, 8, 10, 23 e 26 anos de idade, pagando a título de alimentos, o montante de cerca de EUR 360,00, por mês.
17. O arguido tem o título de capitão de longo curso.
18. O arguido não possui antecedentes criminais.
*
b) Factos não provados
Com relevância para a decisão da causa, deram-se como não provados os seguintes factos:
Da Acusação Pública:
i. Na sequência do referido em 1, a carrinha encontrava-se a impedir o acesso de viaturas a uma garagem.
Da Contestação:
ii. Na sequência do referido em 6, o arguido apresenta sérias dificuldades em se expressar de forma clara e compreender termos que não se enquadrem na linguagem comum e termos técnicos, o que causa confusão na interpretação do discurso que o mesmo produz, e bem assim dificuldade de compreensão do discurso que lhe é dirigido, sendo que, a compreensão do arguido não chega a muitas palavras portuguesas, fora da linguagem comum, como o sejam conceitos legais e jurídicos que não compreende.
iii. O arguido, no momento da sua detenção, não tomou efetivo conhecimento do que lhe era imposto e das consequências advenientes do não cumprimento de tal ordem, por entender o que os guardas da GNR que o detiveram, lhe transmitiram no momento.
iv. Nomeadamente, que cometia um crime e que seria detido.
v. O referido em 8, ocorreu porque naquele momento, a Advogada lhe explicou porque tinha sido detido e as consequências da recusa de fazer o teste de álcool.
vi. Na sequência do referido em 2, o discurso um pouco incoerente e a vermelhidão no resto, deveram-se à barreira linguística que o impedia de comunicar convenientemente com os militares, nomeadamente para explicar os antecedentes relacionados com aquele e outros lugares de estacionamento no local.
vii. Na sequência do referido em 10, o arguido foi buscar a documentação a casa.
viii. Desde maio de 2023 que o arguido tem sido impedido de estacionar por diversas vezes nos três locais de estacionamento que lhe pertenciam à data dos factos, tendo sido destruídas barreiras físicas que o arguido colocou em tal local, o que despoletou um processo crime contra desconhecidos e contra os seus vizinhos J, Agente da PSP, e SV, por estes terem impedido durante meses o arguido de estacionar nos seus lugares.
ix. Os referidos vizinhos colocavam a sua viatura no local onde o arguido tinha colocado a sua carrinha Bedford, matrícula (…..), no dia dos factos, sendo que quando lá se encontra estacionado um veículo, é impossível o arguido lá passar com a sua carrinha Mercedes, sem pôr em causa a integridade da mesma.
x. Na sequência do referido em 11, tendo o Militar da GNR se dirigido ao arguido em modos que o mesmo considerou não serem os mais corretos e tendo-lhe sido solicitado que não voltasse a ligar e, na sequência teste de álcool efetuado no Posto, tendo o resultado sido, por duas vezes, de 0% de taxa de alcoolemia, sendo que, numa terceira vez, não lhe tendo sido mostrado o resultado.
xi. Na sequência do referido em 12, o arguido foi aconselhado a ligar novamente às 09:00 e a solicitar à Câmara Municipal de Faro que colocasse uns postes anti-estacionamento.
xii. Tal situação contribuiu para o nervosismo do arguido, que em situações de stress fica com mais dificuldades em expressar-se e compreender a língua portuguesa.
*
c) Motivação da matéria de facto
O tribunal formou a sua convicção relativamente aos factos considerados como provados, tendo em consideração, desde logo, as declarações prestadas pelo arguido, as declarações prestadas pelas testemunhas que em sede de audiência de julgamento prestaram o seu depoimento, a saber, H e B, Militares da GNR, e ainda, E, companheira do arguido, tudo conjugado com a prova documental junta aos autos e com as regras da experiência comum.
Neste sentido, desde logo se diga que, os factos 1 a 3, dados como provados no âmbito do presente processo, resultaram da conjugação das declarações prestadas pelo arguido e pelas testemunhas que nos autos prestaram o seu depoimento.
Ora, é certo que o arguido prestou declarações nos autos, numa atitude na qual não manifestou qualquer contrição pela sua conduta e antes desresponsabilizando-se, não negando que chegou ao local conduzindo a sua viatura, e referindo não obstante que ali se encontrava além da GNR, o seu vizinho V, tendo sido abordado pelos Militares da GNR e tendo-lhe sido pedida documentação, apenas lhe tendo sido pedido que fizesse o teste de álcool muito depois desse momento, o que ocorreu, não obstante, naquele local. Referiu ademais que estava muito nervoso, porquanto já tinha tido uma situação anterior com o Militar autuante, o qual, numa atitude que não lhe agradou, lhe tinha já anteriormente pedido para fazer um teste ao álcool quando se deslocou ao posto por via do estacionamento de viaturas nos seus lugares de estacionamento. Por outro lado, referiu ainda não ter feito o teste porque estava em “choque” com a situação referida, envolvendo estacionamento de viaturas em locais indevidos e a alegada abordagem anterior por parte do Militar autuante, assumindo que lhe poderia ter sido feita a advertência de que incorria na prática de um crime e porém, como estava em choque, não percebeu a mesma.
Ora, aqui chegados, como referido, nos autos depuseram igualmente os Militares da GNR intervenientes na situação em análise, sendo que, relataram ao tribunal o circunstancialismo em crise, tendo descrito de forma credível, perentória e circunstanciada o mesmo. De facto, foi referido que o arguido chegou ao local a conduzir, aparentando, pelo odor a álcool que emanava, encontrar-se alcoolizado, tendo-lhe sido solicitado que efetuasse o teste de álcool, o que o mesmo recusou, mesmo após advertido de que incorria na prática de um crime.
Ora, aqui chegados, e porquanto suscitada a questão de o arguido não compreender a língua portuguesa, não tendo compreendido a ordem que lhe havia sido transmitida, desde logo importando igualmente referir que o arguido, ao longo das declarações que prestou, não referiu que não procedeu ao teste por não perceber a língua portuguesa, e antes, por estar, como referiu, em “choque” e igualmente porquanto no local se encontrava o vizinho Valentim, o que o deixara nervoso, não obstante, tendo relatado aos autos os diversos circunstancialismos, relativos a diversas situações atinentes ao estacionamento no local, referindo inclusivamente conversas com terceiros – nomeadamente e noutra situação, com o Militar autuante –, sem fazer qualquer referência à sua dificuldade em estabelecer as mesmas, referindo ademais que se encontra em Portugal há cerca de 7 anos, ainda que não passando cá todo o ano e não obstante, falando diversas línguas.
Por sua vez, referiram os Militares da GNR que o arguido comunicava perfeitamente na língua portuguesa. E, considerando que o arguido reside em Portugal há diversos anos, inclusivamente trabalhando em Portugal e até tendo negócios no país, não seria desde logo compatível com as regras da experiência comum que o mesmo não soubesse comunicar e entender a língua portuguesa. De facto, se nada nos autos o indica, – ainda que invocado o mesmo, em concreto, em sede de contestação – sempre se refira que, observando o depoimento prestado pelo arguido em juízo, foi no mínimo caricato perceber que, pese embora auxiliado na sua comunicação por intérprete de língua italiana, era o próprio arguido quem corrigia o intérprete quando aquele traduzia para a língua portuguesa, o que o mesmo dizia na língua italiana, não ficando o tribunal com quaisquer dúvidas, tudo sopesado, que o arguido comunica perfeitamente na língua portuguesa, tendo não obstante, tentado fazer-se valer de tal circunstancialismo, para se escusar à sua responsabilidade. Na verdade, igualmente da segunda vez em que o arguido prestou declarações nos autos, tendo o tribunal iniciado a sua inquirição dirigindo-se ao senhor Intérprete para que o mesmo pedisse ao arguido para colocar o microfone corretamente, o próprio arguido, previamente a qualquer tradução se apressou a fazê-lo, sendo certo que, mais se diga, nos autos prestou igualmente depoimento a testemunha E, companheira do arguido, a qual diga-se, em depoimento altamente nervoso e inseguro, tendo a mesma referido que o arguido se encontra em Portugal há cerca de 9 anos, quando inusitadamente perguntada, referindo que o arguido falou com os militares da GNR em português, referindo que o mesmo percebe português e não obstante, rapidamente referindo que muitas vezes comunicam com auxílio do Google Translate, em casa, o que, não só resultou para o tribunal como efetivamente falso, tendo-se ficado com a notória perceção, por tudo o referido, que o arguido fala e entende bem a língua portuguesa e, por outro lado, em sede de últimas declarações, tendo-se o arguido dirigido ao tribunal, em língua portuguesa, sozinho, sem auxilio de intérprete, para referir que aprendeu a língua porquanto ajudava os filhos com os trabalhos de casa, tendo um nível de português de uma criança de 10 anos, o que, como é bom de ver, efetivamente não corresponde à verdade. O arguido fala e compreende português, o que resultou notório e à saciedade dos autos, pese embora todas as tentativas, até, reitere-se, caricatas, de o mesmo tentar passar ao tribunal essa ideia.
É certo que, como veremos, ficou o tribunal convicto de que existiam problemas atinentes ao estacionamento naquele local, com o arguido e com vizinhos e não obstante, tão pouco se entendendo que os mesmos fossem compatíveis com um estado de nervosismo tal – que reitere-se, não se encontra de modo nenhum demonstrado nos autos – e que lhe toldasse a sua capacidade de entendimento e compreensão do que lhe estava a ser transmitido.
De facto, se não se coloca em causa que o arguido tenha mostrado a documentação relativa aos lugares de estacionamento que refere pertencerem-lhe, e tendo-o o feito, tendo os militares apurado o circunstancialismo atinente àqueles lugares, não se vislumbra que, após demonstrar tal facto aos mesmos, o mesmo ficasse no estado de nervosismo que tentou passar ao tribunal, pelo contrário, dizendo as regras da experiência comum que, esclarecendo a situação, deveria o arguido ficar, outrossim, descansado, o que não ocorreu, como é bom de ver, porquanto tendo chegado ao local num veículo, sabendo que certamente não o poderia conduzir porquanto tinha ingerido bebidas alcoólicas e, tal nervosismo, a ter existido, relacionava-se outrossim com o receio do eventual resultado do teste de pesquisas de álcool no sangue.
Diga-se ainda que, foi levantada em sede de decisão sumária, a questão de que não se compreende como são praticados pela GNR três atos na mesma hora e dia, a saber, o auto de notícia, a constituição de arguido e o TIR. Pois bem, a explicação é fácil, considerando-se que efetivamente, como é sabido, o expediente elaborado pelo OPC não o é elaborado em simultâneo com as ocorrências, no momentos em que as mesmas se encontram a decorrer e, tendo sido questionada a testemunha H, referiu o mesmo que ao elaborar o expediente, a hora é aquela em que foi dada voz de detenção, sendo essa a hora que por regra fazem constar do mesmo, não se vislumbrando como tal circunstancialismo possa colocar em causa a factualidade em análise nos autos, tão pouco que se vislumbrando que a explicação não corresponda à verdade, assim se esclarecendo o referido circunstancialismo.
E, mais tendo o arguido tentado trazer aos autos um alegado conflito com o militar da GNR H, diga-se igualmente que o mesmo, não resultou de modo nenhum comprovado e que, nessa sequência, permitisse fazer crer ao tribunal que quer o nervosismo invocado quer a recusa em efetuar o exame de pesquisa de álcool no sangue houvessem sido causados por receio do mesmo. Na verdade, nada nos autos, além do arguido, que sem grande credibilidade tentou sempre e em todos os momentos vitimizar-se na situação dos autos, existe e que permita com o mínimo de comprovação fática, entender que afinal, foi não só o conflito com os vizinhos como, ainda, o conflito com o militar da GNR H que teria levado a tal ocorrência. À data dos factos, o arguido tinha falado com o mesmo anteriormente, uma vez, num dia em que efetuara uma deslocação ao posto da GNR, e posteriormente, no dia dos factos, pelo que desde logo sendo totalmente inverosímil que, vendo o militar pela segunda vez, sem nada de relevante a relatar – pese embora o ênfase que lhe pretendeu dar o arguido – tal facto, o levasse a tal temor de tal modo grave que o toldasse de compreender o que lhe era transmitido – mais tendo trazido aos autos, na referência 13409549, após o recurso apresentado nos mesmos, um resumo de ocorrência, datado de 20/06/2024, no qual o referido militar da GNR se deslocou a casa do arguido por via de uma denúncia de ruído, efetuada pelo vizinho do arguido, o qual acabou detido pela alegada prática de um crime de resistência e coação sob funcionário. É certo que, pela terceira vez, desta feita, contactou o militar da GNR com o arguido e não obstante, nada a tal obstando, nem existindo nos autos qualquer circunstância que permita ao tribunal colocar em causa a atuação do mesmo, sendo que, por sua vez, tendo o arguido referido ter sido agredido pelo mesmo e, novamente, nada nos autos existindo e que permita concluir por tal possibilidade – reiterando-se que, não obstante, a referida situação ocorreu já um ano após os factos dos autos, e neste sentido, nada permitindo concluir quanto à conduta do arguido no dia dos mesmos, sendo que neste, reitere-se, o arguido tinha efetivamente contactado já uma vez com a testemunha e não obstante, nada tendo sido relatado e que permitisse colocar em causa a factualidade nos autos.
Neste sentido, conjugando-se as declarações dos intervenientes referidos, a verdade é que, efetivamente, nenhuma razão se vislumbra existir para que o arguido não lograsse efetuar o teste, apenas não o tendo feito, não porque não entendeu que devia proceder ao mesmo, mas porquanto, eventualmente desagradado com a situação, pretendeu recursar-se a fazer o mesmo
E neste sentido, não se aferindo de nenhum outro motivo para a não realização do teste, senão o facto de o arguido pretender obstar à sua realização, a fim de não incorrer na prática de outro ilícito relacionado com a condução com álcool. Neste sentido, pese embora as declarações prestadas pelo arguido, a verdade é que, concedendo-se nesta sede credibilidade à versão trazida aos autos pelas testemunhas, consentânea a mesma com as regras da experiência comum, e assim, entendendo-se que efetivamente não procedeu o arguido à realização do teste porquanto não pretendendo conhecer outra infração relacionada com o consumo de álcool.
Mais se refira que resulta das regras da experiência comum que um indivíduo médio, colocado na posição do arguido, sabe que se encontrava obrigado a realizar o exame de pesquisa de álcool no sangue, porém, querendo evitar a realização do mesmo e a obtenção de um resultado, e ainda assim, não o efetuou, bem sabendo que a sua conduta é proibida por lei e, ainda assim, não a adequando ao direito, agindo como agiu.
Por sua vez, no que respeita aos factos 6 a 13, foram os mesmos referidos pelo arguido e igualmente, pelo Militar H e ainda pela testemunha E, razões não existindo para colocar os mesmos em causa.
E, já os factos 14 a 17, da factualidade provada, deram-se como provados com base nas declarações prestadas pelo arguido em sede de audiência, as quais mereceram credibilidade.
Finalmente, o facto provado 18, relativo aos antecedentes criminais do arguido, deu-se como provado com recurso ao Certificado de Registo Criminal daquele, junto na referência 35391489.
Por sua vez, no que respeita aos factos não provados, a verdade é que dos mesmos não foi feita prova, com a certeza exigida nos autos, e que permitisse dá-los como provados, nenhum interveniente processual tendo deposto sobre os mesmos, com a certeza exigida nos autos e, por outro lado, nenhum outro elemento de prova existindo nos autos e que permitisse dá-los como provados, sendo que, em particular, desde logo se observa pela planta junta aos autos pelo arguido, do local em análise, a qual não se coloca em causa, que efetivamente o local em análise dá acesso a lugares de estacionamento e residências privadas e não a uma garagem, assim se dando como não provado o facto i., sendo que, por sua vez, considerando tudo o referido quanto à compreensão por parte do arguido da língua portuguesa, que ora se reitera, igualmente se dando como não provados os factos ii. a v., e, no que respeita ao facto não provado vii., se refira que, pese embora tendo o arguido referido que foi a casa buscar a referida documentação, apenas o fez na segunda vez que prestou declarações nos autos – tendo na primeira vez referido que mostrou os documentos das suas viaturas, após o que foi instado a efetuar o teste de álcool e, apenas quando instado pela sua, à data, Il. Mandatária, tendo referido que igualmente mostrara os documentos daquele local, não fazendo qualquer referência a que teria abandonado o local para ir busca-los –, o que igualmente aconteceu com a testemunha E, a qual igualmente referiu tal circunstancialismo, reiterando-se que a mesma, não obstante, apenas prestou declarações na segunda sessão da audiência de julgamento, sendo que, primeiramente tendo sido prescindida e após arrolada novamente e, pelo que acima se disse, em depoimento que se teve como muito inseguro, inclusivamente algo contraditório, tentando passar ao tribunal a realidade de que o arguido não sabia comunicar fluentemente em língua portuguesa, e tão pouco se logrando conceder credibilidade ao depoimento da testemunha e, mais sendo verdade que, quanto ao referido circunstancialismo, o Militar da GNR não o corroborou e, ficou o tribunal com sérias dúvidas quanto à ocorrência do mesmo, e assim não se entendendo ter sido o referido circunstancialismo relatado de modo isento de dúvidas, assim se dando o mesmo como não provado. E, mais se referindo ainda que, no que respeita aos factos não provados viii. a ix., e ao conflito atinente ao estacionamento de viaturas no local, não se colocando o mesmo em causa e não obstante, não tendo o tribunal – sequer sendo esse o objeto dos autos – ademais das declarações prestadas pelo arguido, tido acesso a meios de prova que lhe permitissem, em concreto, decidir de modo diverso, assim se dando os referidos factos como não provados. E, em igual medida, no que respeita ao facto x., igualmente, ademais das declarações do arguido, nada existindo nos autos e que permitisse dar o mesmo como provado, mais sendo certo que a própria testemunha H, relatou o episódio aos autos, tendo referido que, pese embora tendo o arguido testado positivo para efeitos de pesquisa de álcool no sangue, como não o havia visto conduzir, não retirou o mesmo qualquer consequência de tal conduta e, por fim, no que respeita ao facto não provado xii., igualmente se remetendo para tudo o acima referido quanto à alegada situação de nervosismo por parte do arguido e às dificuldade por parte do mesmo, em comunicar em língua portuguesa, que não quedaram minimamente comprovadas nos autos, assim se dando os referidos factos como não provados, nada mais havendo a decidir quanto aos mesmos e assim se decidindo.(…)fim de transcrição.
*
Decidindo afirma-se:
Antes demais transcrevemos o disposto no artigo 92º do C.P.P.
“Artigo 92.º (Língua dos actos e nomeação de intérprete)
1 - Nos actos processuais, tanto escritos como orais, utiliza-se a língua portuguesa, sob pena de nulidade.
2 - Quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada.”
- Assim, para que haja nomeação de tradutor/intérprete, não basta que a pessoa que intervenha no processo seja de nacionalidade estrangeira. É preciso que não conheça ou não domine a língua portuguesa.
No caso “sub judice”, haverá que decidir de acordo com as questões indicadas pelo recorrente ou outras que tenham de ser oficiosamente conhecidas.
Então haverá que descortinar o seguinte conforme pretensão do recorrente:
-Erro notório da apreciação da prova, art 410º nº2 al. c) do C.P.P.;
-Ausência de exame critico da prova;
-Os pontos 3, 4 e 5 devem ser considerados não provados e as alíneas ii) e v) dos factos não provados devem ser dados como provados;
Erro sobre a ilicitude artigo 17º nº 2 do C.P.:
-A pena acessória deverá ser reduzida para três meses:
Seguindo de perto o exarado no acórdão da TRE 884/15.PBSTB.E1, in www.dgsi.pt , diremos que e como se sabe que nos atos processuais, tanto escritos como orais, utiliza-se a língua portuguesa.
A nomeação de intérprete imposta pelo n.º 2 do artigo 92.º do Código de Processo Penal visa salvaguardar comunicação isenta de qualquer equívoco.
Escrutinando dos autos vemos que o arguido tem a nacionalidade italiana ( facto notório ) e que só a seu pedido foram traduzidos os documentos legais aptos para que este tomasse conhecimento dos factos e que lhe foi nomeado um intérprete pelo Tribunal em todas as audiências de discussão e julgamento bem como na leitura da sentença.
O arguido primordialmente estriba o presente recurso, que não percebeu que lhe tenha sido dada a advertência pelos agentes das forças policiais na recusa de fazer o teste de álcool, e que tenha compreendido as consequências da recusa em realizá-lo, face ao facto de não ter o domínio total da língua portuguesa.
Que depois na esquadra e já assistido por advogada lhe tenha sido recusado a feitura do teste.
Ora deste quadro até mais pormenorizado resultante da sentença recorrida, e usando o seu próprio léxico, será “caricato“, o Tribunal recorrido concluir que o arguido percebeu perfeitamente as consequências legais da recusa da feitura do teste de álcool, por no seu entendimento este dominar perfeitamente a língua portuguesa, face à sua postura em julgamento, mas mais, atente-se, recorrendo até às regras de experiência comum.
Assim o arguido aponta o vicio de erro notório na apreciação da prova, que quem julgou valorou mal a prova produzida em julgamento e que foi desrespeitado o princípio o exame critico da prova.
Dai pretender que os pontos 3, 4 e 5 devem ser considerados não provados e as alíneas ii) e v) dos factos não provados devem ser dados como provados;
Vejamos então:
Sobre o modo como pode sindicar-se a valoração da prova feita em 1.ª Instância, determinante para a fixação dos factos que aí se consideraram como provados e não provados – sindicância que pode fazer-se num primeiro momento fora e, depois, no âmbito dos vícios que devem ser aferidos perante o texto da decisão em causa (dito de outra forma, e respetivamente, no domínio da impugnação ampla da matéria de facto e no domínio da impugnação restrita da matéria de facto). A impugnação ampla da decisão proferida sobre a matéria de facto [ou aquela que se encontra fora do âmbito da previsão do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal], depende da observância dos requisitos consagrados nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, ou seja: «(...) 3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas. 4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. (...)» E ocorrendo impugnação da matéria de facto, com observância das regras acabadas de mencionar, o Tribunal, conforme se dispõe no n.º 6 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, «procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta de verdade e a boa decisão da causa.» Encontramo-nos no domínio dos vícios do julgamento. No domínio do erro na “aquisição” da prova, que ocorre quando o Julgador perceciona mal a prova – porque o conteúdo dos depoimentos não corresponde ao que, efetivamente, foi dito por quem os prestou. Erro do Julgador, no momento em que perceciona a prova, em que toma contacto com ela, e não no momento em que a avalia. Erro que pode viciar a avaliação da prova, mas que a antecede e dela se distingue. Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, página 1131, em anotação ao artigo 412.º do Código de Processo Penal, afirma que «a especificação dos “concretos pontos de facto” só se satisfaz com indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorretamente julgado (...)»; «a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida (...) mais exatamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de “voltas” do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento».
«(...) acresce que o recorrente deve explicitar a razão porque essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. É este o cerne do dever de especificação. O grau acrescido de concretização exigido pela Lei nº 48/2007, de 29.8, visa precisamente impor ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado (...).».De onde é lícito concluir que «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros». Ou seja, a gravação das provas funciona como “válvula de segurança” para o tribunal superior poder sindicar situações insustentáveis, situações limite de erros de julgamento sobre a matéria de facto.
A sindicância da matéria de facto pode, ainda, obter-se pela via da invocação dos vícios da decisão (e não do julgamento) – impugnação restrita da matéria de facto –, de conhecimento oficioso, que podem constituir fundamento de recurso, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso à matéria de direito (n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal). Dispõe o artigo 410.º do Código de Processo Penal, reportando-se aos fundamentos do recurso: «1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida. 2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável entre a fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.(...)»
Tais vícios, que se encontram taxativamente enumerados no preceito legal acabado de mencionar, terão de ser evidentes e passíveis de deteção através do mero exame do texto da decisão recorrida sem possibilidade de recurso a outros elementos constantes do processo, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada constitui «lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, ocorrendo quando se conclui que com os factos considerados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato que é preciso preencher. Porventura melhor dizendo, só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o Tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final. Ou, como vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, só existe tal insuficiência quando se faz a “formulação incorreta de um juízo” em que “a conclusão extravasa as premissas” ou quando há “omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão”.»
A contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão ocorre quando se deteta «incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão. Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.» -O erro notório na apreciação da prova constitui «falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável. Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o Tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.» Não pode incluir-se no erro notório na apreciação da prova a sindicância que os recorrentes possam pretender efetuar à forma como o Tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência – valoração que aquele Tribunal é livre de fazer, ao abrigo do disposto no artigo 127.º do Código Penal.
Mas tal valoração é, também, sindicável.
O que equivale a dizer que a matéria de facto pode ainda sindicar-se por via da violação do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Neste preceito legal consagra-se um modo não estritamente vinculado na apreciação da prova, orientado no sentido da descoberta da verdade processualmente relevante, pautado pela razão, pela lógica e pelos ensinamentos que se colhem da experiência comum, e limitado pelas exceções decorrentes da “prova vinculada” [artigos 84.º (caso julgado), 163.º (valor da prova pericial), 169.º (valor probatório dos documentos autênticos e autenticados) e 344.º (confissão) do Código de Processo Penal] e está sujeita aos princípios estruturantes do processo penal, entre os quais se destaca o da legalidade da prova [artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa, e artigos 125.º e 126.º do Código de Processo Penal] e o do “in dubio pro reo” [artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa]. Enformado por estes limites, o julgador perante o qual a prova é produzida – e quem se encontra em posição privilegiada para dela colher todos os elementos relevante para a sua apreciação crítica – dispõe de ampla liberdade para eleger os meios de que se serve para formar a sua convicção e, de acordo com ela, determinar os factos que considera provados e não provados.
E, por ser assim, nada impede que dê prevalência a um determinado conjunto de provas em detrimento de outras, às quais não reconheça, nomeadamente, suporte de credibilidade.
«O ato de julgar é do Tribunal, e tal ato tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção. Tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objetivos para uma formação lógico-intuitiva. Como ensina Figueiredo Dias (in Lições de Direito Processual Penal, 135 e ss.) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte: - a recolha de elementos – dados objetivos – sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência; - sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal – que é livre, art.º 127.º do Código de Processo Penal – mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material; - a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz refletir, segundo as regras da experiência humana; - assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis- como a intuição. Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objetivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objetiváveis). Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência a perceção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade) a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).
A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objetiváveis atinentes com a valoração da prova. A Constituição da República Portuguesa impõe a publicidade da audiência (art.º 206.º) e, consequentemente, o Código Processo Penal pune com a nulidade a falta de publicidade (art.º 321.º); publicidade essa que se estende a todo o processo – a partir da decisão instrutória ou quando a instrução já não possa ser requerida (art.º 86.º), querendo-se que o público assista (art.º 86.º/a); que a comunicação social intervenha com a narração ou reprodução dos atos (art.º 86.º/b)); que se consulte os autos, se obtenha cópias, extratos e certidões (art.º 86.º/c)). Há um controlo comunitário, quer da comunidade jurídica quer da social, para que se dissipem dúvidas quanto à independência e imparcialidade. A oralidade da audiência, que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal (art.º 96.º do Código de Processo Penal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam por gestos, comoções e emoções, da voz, p. ex.. A imediação que vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma perceção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão. É pela imediação, também chamado de princípio subjetivo, que se vincula o juiz à perceção à utilização à valoração e credibilidade da prova. A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão.» E, seguindo tais ensinamentos, não resta senão concluir que não basta defender que a leitura feita pelo Tribunal da prova produzida não é a mais adequada, o que supõe que a mesma é possível, sendo, antes, necessário demonstrar que a análise da prova, à luz das regras da experiência comum ou da existência de provas inequívocas e em sentido diverso, não consentiam semelhante leitura.
O Arguido, ora Recorrente, é de nacionalidade italiana e alega não dominar a cem por cento a língua portuguesa. Asserção que parece ter fundamento, uma vez que lhe foi nomeado intérprete para todas as audiências de julgamento, cujas últimas cujas sessões decorreram nos dias 24.02.2025 e 11.03.2025 e traduzidos os documentos processuais legais por determinação do tribunal mas a pedido do arguido.
Podemos, portanto, aceitar que o Arguido, de nacionalidade da República Italiana, não conhece ou não domina a língua portuguesa.
Daí a necessidade de nomeação de intérprete – de pessoa que traduz a outrem, numa língua, o que ouve ou lê noutra – na comunicação com o Arguido, tal como é imposta pelo n.º 2 do artigo 92.º do Código de Processo Penal.
E atente-se que o conhecimento da língua utilizada pela pessoa que não conhece ou não domina a língua portuguesa por qualquer dos participantes processuais não obsta à nomeação de intérprete. As opções legislativas nesta matéria são, pois, claras e inequívocas – salvaguardar uma comunicação perfeita. Isto posto, deixamos desde já consignado que desconhecemos se o Arguido domina de forma plena a língua portuguesa.
Mas sabemos que este foi abordado por agentes que falaram em Português com ele. Mas deixamos também consignado que estes aspetos não nos interessam, porque – conforme se dispõe no n.º 1 do artigo 92.º do Código de Processo Penal – nos atos processuais, tanto escritos como orais, utiliza-se a língua portuguesa.
Interessam-nos os acontecimentos ocorridos no dia 21 de Novembro de 2023, constantes do nº 1 e seguintes dos factos provados.
Resulta da sentença recorrida que, nessa ocasião, não interveio intérprete e que o agente que pretendeu fazer o exame de álcool e que o advertiu (arguido) das consequências legais dessa recusa utilizou a língua Portuguesa para com ele comunicar.
A utilização deste idioma não garante a comunicação que se pretende entendível e isenta de equívocos nos atos processuais penais.
Por outro lado, a convicção de quem julgou quanto ao grau discernimento/conhecimento pleno que o Arguido tem da língua portuguesa é inaceitável.
Desde logo porque a lei pretende uma comunicação isenta de qualquer equívoco, e se tanta certeza tinha não se entende a razão pela qual o interprete então não foi dispensado, resguardando assim o erário público.
De seguida, porque tendo o Julgador um contacto fugaz com o Arguido – o que ocorre no decurso da audiência de julgamento – as suas sensações ou perceções não confirmadas por outros meios são, inevitavelmente, frágeis.
Por último, porque o tempo decorrido entre a data da prática dos factos que deram origem aos presentes autos ocorrido em 21 de Novembro de 2023 e a ocasião em que o 2º julgamento se realizou em 24.02.2025 e leitura da decisão em 11.03.2025, terá conferido ao Arguido um outro domínio de entendimento da língua portuguesa, uma vez que passa no nosso País cerca de metade do ano.
Acresce ainda que o facto de o arguido ajudar os filhos a fazer os trabalhos de casa também está condicionado ao tempo em que este passa em Portugal, como ao modo de o fazer, o tempo e características dessa ajuda tanto mais que não se concretiza no tempo quando é que esse apoio é dado e como e a que filhos (asserção inserta na fundamentação dos factos da sentença recorrida).
Acresce o facto de o arguido poder comunicar em Português não contraria o facto de este poder não dominar de forma plena e abrangente a língua de Camões, e aqui a dúvida é indelével.
A tal acresce o seguinte.
Mais diremos, que, na fundamentação da sentença recorrida como se pode bem ver o Tribunal “a quo”, fundamentou o conhecimento de Português pelo arguido trazendo à colação as regras da experiência comum.
Este “apelo”, diz-se é inaceitável, e tal aduz-se pela seguinte ordem de motivos:
- As regras de experiência comum autorizam a apreciar um comportamento determinado em função da cultura e comportamento social de um determinado povo, num tempo determinado. As presunções, ao invés, permitem partir de um facto conhecido para um facto desconhecido.
A presunção vive e gera factos.
A regra de experiência comum é uma generalização, decorrente de observação empírica de factos anteriores, bastas vezes confundindo-se com pré-juízos, mesmo preconceitos, daí a necessária cautela no seu uso.
Regras de experiência comum, uma afirmação se impõe então: só é possível presumir factos com ancoragem no caso concreto e não a partir de uma duvidosa generalização. Vide o AC do Tribunal da Relação de Évora de 25-06-2013 (proc. 35/09.0TAOLH.E1):
Tomada isoladamente uma “regra de experiência comum” é inoperante em qualquer processo. Isto é, uma regra de experiência comum não pode isoladamente fazer prova num processo, a não ser que haja uma aproximação ao acontecido, o que se opera por via de uma presunção hominis». Idêntica ideia fora afirmada no acórdão da Relação de Coimbra de 22-05-2013 (proc. 40/11.4TASRE.C1, rel. Jorge Jacob):
Na apreciação e valoração da prova produzida em julgamento, a lógica resultante da experiência comum não pode valer só por si. Efectivamente, a realidade do quotidiano desmente muitas vezes os padrões de normalidade, que não constituem regras absolutas.
De outro modo, seríamos conduzidos, a coberto de uma suposta “normalidade”, resultante da “experiência comum”, para um sistema de convenções apriorísticas, equivalente a uma espécie de prova tarifada, resultado que o legislador não quis e que a própria razão jurídica rejeita, pois equivaleria à definitiva condenação do princípio da livre apreciação da prova.
Assim há que afirmar que as regras de experiência comum (ou técnicas e científicas de conhecimento generalizado), ou máximas da experiência, são juízos ou normas de comportamento social de natureza geral e abstracta, sem ligação a factos concretos sobre que há que decidir, mas concretamente observáveis pela experiência anterior de casos semelhantes.
E não são resultantes de uma ciência pessoal, mas de um conhecimento que é partilhado (comum) pela generalidade das pessoas de um país, de uma região, de uma classe de pessoas e concretizam-se na ideia de que certos factos geralmente ocorrem associados a outros. De forma mais sucinta, se os factos costumam ocorrer de certa forma, isso permite um raciocínio indutivo que conclua que, em iguais circunstâncias, voltarão a ocorrer dessa forma. Assim, é aceite que uma “regra de experiência comum” ou máxima da experiência não passa de uma lei social constatada de forma empírica por observação de factos anteriores.
Usando as palavras do acórdão do STJ de 06-07-2001 «As regras da experiência são “ou o resultado da experiência da vida ou de um especial conhecimento no campo científico ou artístico, técnico ou económico e são adquiridas, por isso, em parte mediante observação do mundo exterior e da conduta humana, em parte mediante investigação ou exercício científico de uma profissão ou indústria”, que permitem fundar as presunções naturais, não abdicando da explicitação de um processo cognitivo, lógico, sem espaços ocos e vazios, conduzindo à extracção de facto desconhecido do facto conhecido, porque conformes à realidade reiterada, de verificação muito frequente e, por isso, verosímil” – Proc. 3612/07.6TBLRA.C2.S1, rel. o Cons. Helder Roque, citando, Castanheira Neves (Sumários de Processo Criminal, 1967/68, 48) e Vaz Serra (citando Nikisch, in “Provas, Direito Probatório Material”, BMJ nº 110, 97).
Na valoração da prova e sua fundamentação o seu papel essencial é o de fornecerem a premissa maior de um silogismo, sendo a premissa menor o facto conhecido (o comummente chamado indício) e a conclusão o resultado da presunção, o facto obtido.
Em suma:
Dentro das regras da experiência que vigoram na nossa sociedade podem identificar-se dois grandes grupos: por um lado, as leis científicas e, por outro, todas aquelas ilações que não são mais que regras de experiência quotidiana. As primeiras formam-se a partir dos resultados obtidos pelas investigações das ciências, a que se atribui o carácter de empíricas, enquanto as outras assentam na denominada experiência quotidiana que surge através da observação, ainda que não exclusivamente científica, de determinados fenómenos ou práticas e a respeito das quais se pode estabelecer consenso.
A máxima da experiência é uma regra que exprime aquilo que sucede na maior parte dos casos, mais precisamente é uma regra extraída de casos semelhantes. A experiência permite formular um juízo de relação entre os factos, ou seja, é uma inferência que permite a afirmação que uma determinada categoria de casos é normalmente acompanhada de uma outra categoria de factos.
Contudo, seja em analepse ou em prolepse, as regras da experiência servem para produzir prova de primeira aparência, na medida em que desencadeiam presunções judiciais simples, naturais, de homem, de facto ou de experiência, que são aquelas que não são estabelecidas pela lei, mas se baseiam apenas na experiência de vida”. “Então, elas ficam sujeitas à livre apreciação do juiz.
São “argumentos que ajudam a explicar o caso particular como instância daquilo que é normal acontecer, já se sabendo, porém, que o caso particular pode ficar fora do caso típico. O juiz não pode, pois, confiar nas regras da experiência mais do que na própria averiguação do real concreto, sob pena de voltar, de forma encapotada, ao velho sistema da prova legal, o qual se baseava, afinal de contas, em meras ficções de prova. Em última análise, a prova é particularística, sempre” (vide Paulo de Sousa Mendes “A prova Penal e as Regras da experiência, Estudos em Homenagem ao prof.Figueiredo Dias,III, p.1011)
(Vide também o AC do TRC, 13/09/2017, in www.dgsi.pt )
As regras da experiência não são meios de prova, mas antes raciocínios, juízos hipotéticos de conteúdo genérico, assentes na experiência comum, independentes dos casos individuais em que se alicerçam, com validade, muitas vezes, para além do caso a que respeitem, adquiridas, em parte, mediante observação do mundo exterior e da conduta humana, e, noutra parte, mediante investigação ou exercício científico de uma profissão ou indústria, permitindo fundar as presunções naturais, mas sem abdicar da explicitação de um processo cognitivo, lógico, sem espaços ocos e vazios, conduzindo à extracção de facto desconhecido do facto conhecido, porque conformes à realidade reiterada, de verificação muito frequente e, por isso, verosímil.
(vide AC TRE de 21.01.2021, AC do TRC, 13/09/2017 in www.dgsi.pt , Ac do TRE 33/18.0OGMZ.E1 de 22 de Outubro de 2024)
Tudo isto para dizer que perante as circunstâncias em que ocorreu a interceção e fiscalização do Recorrente, no passado dia 21 de Novembro de 2023, a conjugação da prova produzida em julgamento não permite afirmar, com a certeza considerada indispensável em processo crime, que o Arguido entendeu as consequências da recusa em se submeter ao teste de alcoolémia, ou seja que incorreria na pratica de um crime de desobediência .
E esta falta de certeza, ou melhor, este estado de dúvida revela-se inultrapassável e exige a convocação do princípio in dubio pro reo. (O princípio in dubio pro reo, sendo o correlato processual do princípio da presunção de inocência do arguido, constitui princípio relativo à prova, decorrendo do mesmo que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do Tribunal).
Dito de outra forma, o princípio in dubio pro reo constitui imposição dirigida ao Juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa. / vide neste sentido, Ac TRE 884/15.8PBSTB.E1/
Não podemos dar como provado que o Arguido M tenha entendido as consequências da recusa em se submeter à realização do teste de álcool, o que não significa o contrário, mas tão só que da análise da prova produzida, no seu conjunto, não retiramos a certeza que consideramos necessária à afirmação de tais factos.
Procurando, agora, concretizar, face à factualidade em causa nos autos, diremos que da análise da prova produzida, no seu conjunto, não retiramos a certeza que consideramos necessária a afirmar que:
- O arguido foi advertido de que iria incorrer na prática de um crime de desobediência acaso não realizasse o teste, sendo que, após várias advertências, continuou a recusar ser submetido ao referido teste.
- O arguido agiu, conforme descrito, com o propósito concretizado de se eximir à realização de qualquer tipo de exame de pesquisa de álcool, bem sabendo que, na qualidade de condutor, lhe era exigível a sujeição a tal exame e que a sua recusa era proibida e punida por Lei Penal.
- Ao praticar tais factos, o arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, não ignorando o carácter censurável da sua conduta, bem sabendo que a mesma era proibida e punida por Lei Penal, que podia e devia ter observado.
São os factos que constam dos pontos 3,4 e 5 dos factos provados e que devem considerar-se como não provados.
E provados os factos contidos nas alíneas ii,iii e iv do elenco dos factos não provados e concretizando:
ii. Na sequência do referido em 6, o arguido apresenta sérias dificuldades em se expressar de forma clara e compreender termos que não se enquadrem na linguagem comum e termos técnicos, o que causa confusão na interpretação do discurso que o mesmo produz, e bem assim dificuldade de compreensão do discurso que lhe é dirigido, sendo que, a compreensão do arguido não chega a muitas palavras portuguesas, fora da linguagem comum, como o sejam conceitos legais e jurídicos que não compreende.
iii. O arguido, no momento da sua detenção, não tomou efetivo conhecimento do que lhe era imposto e das consequências advenientes do não cumprimento de tal ordem, por entender o que os guardas da GNR que o detiveram, lhe transmitiram no momento.
iv. Nomeadamente, que cometia um crime e que seria detido.
Verifica-se assim a nulidade da sentença recorrida atento o atrás exposto prevista no artº 410º nº2 al.c) do C.P.P.
E assente a factualidade provada nos termos acabados de indicar não pode deixar de se concluir que não se encontram preenchidos os elementos quer objectivos, quer subjectivos do crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, pelo que deve o Arguido ser absolvido da sua prática.
Julga-se o recurso procedente, embora por razões não inteiramente coincidentes com as nele invocadas.
III. DISPOSITIVO
Em face do exposto e concluindo, decide-se dar provimento ao recurso por verificada a nulidade do artº 410 nº2 al. c) do C.P.P. e, em consequência:
Dar como não provados os factos 3, 4 e 5, ou seja:
- O arguido foi advertido de que iria incorrer na prática de um crime de desobediência acaso não realizasse o teste, sendo que, após várias advertências, continuou a recusar ser submetido ao referido teste;
- O arguido agiu, conforme descrito, com o propósito concretizado de se eximir à realização de qualquer tipo de exame de pesquisa de álcool, bem sabendo que, na qualidade de condutor, lhe era exigível a sujeição a tal exame e que a sua recusa era proibida e punida por Lei Penal;
- Ao praticar tais factos, o arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, não ignorando o carácter censurável da sua conduta, bem sabendo que a mesma era proibida e punida por Lei Penal, que podia e devia ter observado.
E provados os factos ii, iii, iv que estavam contidos nos não provados, concretamente:
ii. Na sequência do referido em 6, o arguido apresenta sérias dificuldades em se expressar de forma clara e compreender termos que não se enquadrem na linguagem comum e termos técnicos, o que causa confusão na interpretação do discurso que o mesmo produz, e bem assim dificuldade de compreensão do discurso que lhe é dirigido, sendo que, a compreensão do arguido não chega a muitas palavras portuguesas, fora da linguagem comum, como o sejam conceitos legais e jurídicos que não compreende.
iii. O arguido, no momento da sua detenção, não tomou efetivo conhecimento do que lhe era imposto e das consequências advenientes do não cumprimento de tal ordem, por entender o que os guardas da GNR que o detiveram, lhe transmitiram no momento.
iv. Nomeadamente, que cometia um crime e que seria detido.
E consequentemente absolver o arguido M do crime p.p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal pelo qual tinha sido condenado.
Não são devidas custas.
Notifique-se e D.N.
ds
(fim de transcrição)
*
Decidindo, dir-se-á:
Constata-se assim da leitura da reclamação apresentada pelo reclamante (até pelo pedido que formulou a final) que este na verdade discorda da decisão sumária proferida, mas revelando tão-só em suma, e sem qualquer desmerecimento, anote-se, um inconformismo com aquela decisão, não apresentando argumentos ou base legal consentânea que faça com que se altere a decisão sumária proferida.
Efectivamente o reclamante não se conforma com aquela decisão e não podendo ser considerados os seus argumentos que a faça modificar.
Primeiro porque até o mesmo refere que: “Para além de todos os argumentos já esgrimidos nos autos, afigura-se ser aqui de evidenciar o seguinte:
O Ministério Público revê-se nas doutas considerações efectuadas na decisão sumária, a propósito das regras da experiência comum, e na conclusão de que “As regras da experiência não são meios de prova, mas antes raciocínios, juízos hipotéticos de conteúdo genérico, assentes na experiência comum, independentes dos casos individuais em que se alicerçam, com validade, muitas vezes, para além do caso a que respeitem, adquiridas, em parte, mediante observação do mundo exterior e da conduta humana, e, noutra parte, mediante investigação ou exercício científico de uma profissão ou indústria, permitindo fundar as presunções naturais, mas sem abdicar da explicitação de um processo cognitivo, lógico, sem espaços ocos e vazios, conduzindo à extracção de facto desconhecido do facto conhecido, porque conformes à realidade reiterada, de verificação muito frequente e, por isso, verosímil.”
No entanto a sua discordância e baseando-se nos seus argumentos são:
A decisão sumária não elenca as concretas circunstâncias que determinaram a extracção dessa conclusão.
E da análise global da decisão apenas se detectam três elementos nesse sentido:
- arguido tem nacionalidade italiana;
- alega não dominar a cem por cento a língua portuguesa; e
- foi-lhe nomeado intérprete para o julgamento.
Na perspectiva do Ministério Público esses elementos são insuficientes para afastar o juízo formulado na fundamentação de facto do tribunal de primeira instância.
E que : Note-se que o crime p. e p. pelo artº. artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, não exige sequer como elemento do tipo de ilícito que seja efectuada a cominação da desobediência, pois ela encontra respaldo numa disposição legal -no caso, o artº 152º, nº 3, do Cód. da Estrada.
Vejamos então as normas:
“Artigo 152.º
Princípios gerais
1 - Devem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas:
a) Os condutores;
b) Os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito;
c) As pessoas que se propuserem iniciar a condução.
2 - Quem praticar atos suscetíveis de falsear os resultados dos exames a que seja sujeito não pode prevalecer-se daqueles para efeitos de prova.
3 - As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência.
4 - As pessoas referidas na alínea c) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são impedidas de iniciar a condução.
5 - O médico ou paramédico que, sem justa causa, se recusar a proceder às diligências previstas na lei para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas é punido por crime de desobediência.”
Mas o que sucede é que na sentença recorrida da qual o Ministério Público não recorreu, pese embora nos números 3 4 e 5 dos factos provados ali se deu como provado o seguinte:
3. O arguido foi advertido de que iria incorrer na prática de um crime de desobediência acaso não realizasse o teste, sendo que, após várias advertências, continuou a recusar ser submetido ao referido teste.
4. O arguido agiu, conforme descrito, com o propósito concretizado de se eximir à realização de qualquer tipo de exame de pesquisa de álcool, bem sabendo que, na qualidade de condutor, lhe era exigível a sujeição a tal exame e que a sua recusa era proibida e punida por Lei Penal.
5. Ao praticar tais factos, o arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, não ignorando o carácter censurável da sua conduta, bem sabendo que a mesma era proibida e punida por Lei Penal, que podia e devia ter observado.
(…) e ainda “Ora, provou-se que o arguido previu e quis agir do modo acima descrito, bem sabendo que a recusa à submissão do exame de pesquisa de álcool no sangue o faria incorrer na prática de um crime de desobediência.
Consequentemente, agiu com dolo direto. “
Ou seja, estando perante a situação supra descrita efectivamente o arguido veio a ser condenado nos termos em que foi baseado na recusa em ser submetido ao teste de álcool, mas mais do que isso acrescentou-se a expressa advertência que lhe foi feita em que persistindo na recusa esta o faria incorrer na pratica de um crime de desobediência.
Pese embora e muito bem, o Digno procurador Geral adjunto refira que numa situação de recusa à submissão do teste de álcool não é necessário proceder-se à expressa advertência de que tal recusa faz incorrer o/a “negacionista” na pratica de um crime de desobediência, nos termos da conjugação dos artigos 152º nº 1 al. a) e nº 3 do Código da Estrada e 348 º n.º 1 do Código Penal, inquestionável é que no caso dos autos tal expressa advertência lhe terá sido feita mas eventualmente não compreendida pelo recorrente / in dubio pro reo / face às barreiras linguísticas evidentes.
Foi feita nestes autos pelos agentes da autoridade, como em muitos outros processos, já julgados e devidamente transitados em julgado, atrevendo-nos até em afirmar que tal prática (a advertência) é efectuada pelas forças policiais e militarizadas, em quase todas as situações de recusa. Observa-se mesmo uma prática “judiciária recorrente” neste conspecto.
A atestar o referido veja-se a título de exemplo os seguintes Acórdãos e entre muitos outros:
- Ac do TRC de 6 de Maio de 2020, relatado pela Juíza Desembargadora Helena Bolieiro, in www.dgsi.pt ;
- Ac do TRE de 8.03.2016, relatado pelo Juiz Desembargador Fernando Ribeiro Cardoso, in www.dgsi.pt ;
- Ac do TRP no processo 102/17.4PTPRT.P1, in www.dgsi.pt , e
-Ac. do TRE de 24 de Abril de 2012, relatado pelo Juiz Desembargador Alberto Dias, in www.dgsi.pt .
(Anote-se naturalmente, que não ignoramos o teor do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 34/2012, in DR n.º53, Série II de 14.03.2012, bem como a titulo meramente explanatório, o Ac. do TRP de 09.05.2018 Crime de desobediência. Recusa de teste de alcoolemia. Ordem da autoridade policial. Atendo o disposto no artº 152º nº 1 al. a) e nº3 CE, comete o crime de desobediência do artº 348º1 a) CP o condutor que tendo-lhe sido transmitida uma ordem da autoridade de fiscalização rodoviária para se submeter às provas de detecção de álcool se recusa a tal, sem necessidade de tal ordem ser acompanhada de qualquer cominação relativa ao seu não cumprimento).
Mas nestes autos, não podemos “in casu” regredir para o artigo 152 nº 1 al a) e nº 3 do CE, subtraindo-o, ou melhor aplicando-o agora a “frio” e considerando desnecessária a advertência que terá sido feita ao recorrente, pois tal constituiria na verdade uma subtração de um “ direito” que lhe foi graciosamente concedido pelos agentes da autoridade, a que corresponderia efectivamente, no caso dos a uma diminuição dos seus direitos, que lhe foram dados.
Tal regressão ou compressão de direitos, pensa-se, não será possível de considerar nem de cogitar neste caso e neste momento, ou em qualquer outro, pois, e sem querer esticar muito a corda poderíamos estar a violar a Constituição da Republica Portuguesa ao fazer aquela interpretação do artº 152 nº 1 al. a) e nº 3 do Código da Estrada, ao retirar agora direitos que em analepse foram eventualmente concedidos ao arguido de nacionalidade italiana, aquando da sua interpelação pelos agentes da autoridade ao fazer-lhe a advertência que a sua recusa em submeter-se ao teste de álcool poderia fazer incorrer o mesmo na pratica de um crime de desobediência.
Se a interpretação daquela norma, fazendo tábua rasa da advertência que terá sido feita, fosse agora possível atento os factos e quadro dos presentes autos, poderá ferir normas Constitucionais (e até gerar consequências nefastas para a República Portuguesa), nomeadamente os artigos 19º nº 1, 20º nº 4 e 5, 22º e 27º nº 4 e 32º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
Tanto mais que o arguido foi condenado nos seguintes termos na 1ª instância (pese embora ali se tivesse escrito “Verificam-se, pois, todos os elementos objetivos e subjetivo do crime de Desobediência, previsto e punível pelo artigo 348º, nº 1, alínea a), do Código Penal, em conjugação com a previsão contida no artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 3, do Código da Estrada, devendo o arguido ser condenado pelo seu cometimento, mas que não foi transposta para o seu dispositivo/ DECISÃO
a) Condenar o arguido M pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido nos termos do artigo 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de EUR 5,00.
b) Condenar o arguido M na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, por um período de 5 meses, nos termos e para os efeitos do artigo 69.º, n.º 1, alínea c) do CP.
Em suma e tendo em conta o que, já supra se deixou exarado, é exactamente aqui que com os elementos constantes dos autos da forma que foi explanada que este tribunal ficou com dúvidas que o arguido tivesse cabalmente entendido tal ordem, uma vez que lhe foi feita em Português e dúvidas subsistem que este tivesse o completo domínio da língua Portuguesa da forma que se deixou expressa na decisão sumária e daí o vicio do erro notório na apreciação da prova / in dubio pro reo / artº 410º nº 2 al. 2 c) do C.P.P, que não vamos repetir na integra por motivos óbvios, mas resumidamente” importa-se” o que ali se escreveu :
- Interessam-nos os acontecimentos ocorridos no dia 21 de Novembro de 2023, constantes do nº 1 e seguintes dos factos provados.
Resulta da sentença recorrida que, nessa ocasião, não interveio intérprete e que o agente que pretendeu fazer o exame de álcool e que o advertiu (arguido) das consequências legais dessa recusa utilizou a língua Portuguesa para com ele comunicar.
A utilização deste idioma não garante a comunicação que se pretende entendível e isenta de equívocos nos atos processuais penais.
Por outro lado, a convicção de quem julgou quanto ao grau discernimento/conhecimento pleno que o Arguido tem da língua portuguesa é inaceitável.
Desde logo porque a lei pretende uma comunicação isenta de qualquer equívoco, e se tanta certeza tinha não se entende a razão pela qual o interprete então não foi dispensado, resguardando assim o erário público.
De seguida, porque tendo o Julgador um contacto fugaz com o Arguido – o que ocorre no decurso da audiência de julgamento – as suas sensações ou perceções não confirmadas por outros meios são, inevitavelmente, frágeis.
Por último, porque o tempo decorrido entre a data da prática dos factos que deram origem aos presentes autos ocorrido em 21 de Novembro de 2023 e a ocasião em que o 2º julgamento se realizou em 24.02.2025 e leitura da decisão em 11.03.2025, terá conferido ao Arguido um outro domínio de entendimento da língua portuguesa, uma vez que passa no nosso País cerca de metade do ano.
Acresce ainda que o facto de o arguido ajudar os filhos a fazer os trabalhos de casa também está condicionado ao tempo em que este passa em Portugal, como ao modo de o fazer, o tempo e características dessa ajuda tanto mais que não se concretiza no tempo quando é que esse apoio é dado e como e a que filhos (asserção inserta na fundamentação dos factos da sentença recorrida).
Acresce o facto de o arguido poder comunicar em Português não contraria o facto de este poder não dominar de forma plena e abrangente a língua de Camões, e aqui a dúvida é indelével.
A tal acresce o seguinte.
Mais diremos, que, na fundamentação da sentença recorrida como se pode bem ver o Tribunal “a quo”, fundamentou o conhecimento de Português pelo arguido trazendo à colação as regras da experiência comum.”(…)
Temos assim que os argumentos “data vénia “apresentados pelo reclamante não colhem por não corresponderem à totalidade da fundamentação plasmada em analepse na decisão sumária reclamada e omitirem o primordial que foi considerado e decidido.
Pois conclui-se que verdadeiramente o reclamante não se conformou com a decisão sumária proferida nos temas submetidos à apreciação do Tribunal.
Ora, de acordo com o Ac do TRC de 15/01/2020, in www.dgsi.pt(…)
”I - Na configuração do sistema de recursos do C.P.P. saída da reforma operada pela Lei n.º 48/2007, o tribunal de recurso passou a funcionar em três níveis distintos e autónomos de decisão: - decisões da competência do relator (art.º 417.º, n.º 6 com referência ao art.º 420.º); - em conferência (art.º 419.º); e - em audiência (art.º 423.º).
II - Pela própria natureza e definição, a figura jurídica de reclamação prevista no n.º 8 do art.º 417.º do CPP, como em qualquer ramo do direito, constitui uma prerrogativa legal, procedimental de controlo, de impugnação de algum dos actos decisórios enunciados nos n.ºs 6 e 7 do citado art.º 417.º, posta à disposição do destinatário da decisão que por ela se considere prejudicado, com vista à sua revogação, modificação ou substituição com base em violação da lei.
III - A reclamação para a conferência não constitui instrumento de manifestação da mera discordância do recorrente em relação à decisão reclamada. Ou até de mera renovação dos fundamentos do recurso. Exige uma motivação, autónoma, de rebatimento jurídico das razões ou dos fundamentos da decisão de que se reclama, no sentido de demonstrar a sua ilegalidade, obrigando assim o reclamante a demonstrar a ilegalidade que aponta à decisão reclamada, no caso, a decisão sumária do relator.
Efectivamente na configuração do sistema de recursos do C.P.P. saída da reforma operada pela Lei 48/2007, procedeu o legislador a uma repartição de competências com o objectivo de “racionalizar o funcionamento dos tribunais superiores, promovendo-se uma maior intervenção dos juízes que os compõem a título singular” – cfr. Exposição de Motivos da Proposta de Lei 109/X.
O tribunal de recurso passou a funcionar em três níveis distintos e autónomos de decisão – decisões da competência do relator (art. 417º, nº6 com referência ao art. 420º); - em conferência (art. 419º); e - em audiência (art. 423º).
Tratando-se de níveis distintos e autónomos de decisão, não existe uma hierarquia entre eles.
Certo é que as decisões de mérito agora da competência do relator estão sujeitas a reclamação para a conferência.
No entanto, como qualquer reclamação, a reclamação para a conferência – art.º 419º, nº 3, al. a), do CPP - não tem como finalidade obter uma nova decisão fundada num qualquer critério de maior força ou melhor autoridade do órgão colegial em relação ao órgão singular.
Pela própria natureza e definição, a figura jurídica de reclamação prevista no n.º 8 do art.º 417 do CPP, como em qualquer ramo do direito, constitui uma prerrogativa legal, procedimental de controlo, de impugnação de algum dos actos decisórios enunciados nos nºs 6 e 7 do citado art. 417º, posta à disposição do destinatário da decisão que por ela se considere prejudicado, com vista à sua revogação, modificação ou substituição com base em violação da lei.
A reclamação para a conferência não constitui instrumento de manifestação da mera discordância do recorrente em relação à decisão reclamada. Ou até de mera renovação dos fundamentos do recurso (que neste caso nem foi interposto pelo reclamante).
Exige uma motivação, autónoma, de rebatimento jurídico das razões ou dos fundamentos da decisão de que se reclama, no sentido de demonstrar a sua ilegalidade.
Obrigando assim o reclamante a demonstrar a ilegalidade que aponta à decisão reclamada, no caso, a decisão sumária da relatora, o que não aconteceu “in casu” (vide retro).
Então decidindo-se, aduz-se que o reclamante pese embora apontar desacerto na decisão sumária e, consequentemente desprezando-a enquanto decisão judicial fundamentada, fenece de razão nos argumentos utilizados, uma vez que estes não correspondem ao que, na verdade foi decidido, bastando para tal reler a decisão reclamada que infra se identificou, bem como para os fundamentos “in solo” desta decisão Colegial, para que dúvidas não subsistissem, quanto ao seu teor e à decisão tomada.
O que acontece é que este não se conforma com tal decisão.
No mais, refere-se que inexistem patologias, pois, como claramente se pode constatar o recurso foi julgado em tempo útil e decidido pelos motivos proficuamente exarados na decisão sumária, os quais são inultrapassáveis devido à decisão ai proferida, em suma de existir uma dúvida no domínio por completo do arguido de nacionalidade Italiana da língua Portuguesa pelos motivos ali, julga-se proficuamente explanados, o que se declara mais uma vez.
Ora não invocando o reclamante qualquer crítica válida e juridicamente atendível, ou argumentos que não correspondem à verdade do que ali se deixou exarado, à decisão sumária, mais não haverá do que mantê-la na sua essência.
Então:
Ora, relendo a decisão sumária na sua totalidade, dúvidas não subsistem, de que não se perscruta qualquer fundamento legal que fosse atendível para julgar procedente a presente “reclamação”, apresentada pelo MºPº, pelos motivos já indicados.
Concluímos não ter assim razão o reclamante, o que se declara.
No mais e quanto à substância da globalidade da decisão sumária ora reclamada, este Tribunal Colectivo, analisando-a, delibera confirmar a essencialidade da mesma, reiterando todos os seus fundamentos atrás aflorados naquela decisão, e os demais nesta decisão exarados, o que aqui se infirma, aderindo-se incondicionalmente a estes o que se declara, tendo assim de ser julgada improcedente a reclamação apresentada.

DISPOSITIVO:
Pelo exposto indefere-se, em substância a reclamação confirmando-se a decisão reclamada.
Não são devidas custas, por delas estar o Ministério Público isento.
Notifique-se e demais diligências necessárias.
*
(Elaborado em computador e revisto pela relatora, artigo 94º nº 2 do CPP)

Évora, 11 de novembro de 2025

Filipa Costa Lourenço
Filipa Valentim
Maria Perquilhas