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ATO DE CONDUÇÃO
PROVA
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
Sumário
I - Em processo penal são admissíveis todas as provas que não sejam proibidas por lei (artigo 125º do C. P. Penal), aí se incluindo as presunções judiciais, que são as ilações que o julgador retira de factos conhecidos para firmar outros factos, desconhecidos (artigo 349º do Código Civil). II - Assim, não sendo a presunção judicial um meio de prova proibido por lei, pode o julgador, à luz das regras da experiência e da sua livre convicção, retirar dos factos conhecidos as ilações que se ofereçam como evidentes ou como razoáveis e firmá-las como factos provados. III - Sabendo-se (até por confissão do arguido) que o arguido estava no local dos factos, que tinha saído do “café” no qual tinha ingerido bebidas alcoólicas em excesso, que se sentou no seu veículo automóvel (no lugar do condutor) e que o colocou em “ponto morto”, e sendo também certo (por prova direta) que, logo após tudo isso, foi interveniente num acidente de viação, ao bater com a parte traseira do veículo num poste de um estabelecimento aí existente, tem de considerar-se, por presunção judicial, que o arguido conduziu o veículo em questão.
Texto Integral
ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
1. RELATÓRIO
A – Decisão Recorrida
No processo sumário nº 23/25.7GETDZ, do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, Juízo de Competência Genérica de Fronteira, o arguido D, foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p. pelos Artsº 292 nº1 e 69 nº1 al. a), ambos do C. Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 19 (dezanove) meses.
B – Recurso
Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido, alegando o erro notório na apreciação da prova, porquanto não se fez prova directa do cometimento dos factos em causa, pelo que o tribunal recorrido ao dar como provados os mesmos, incorreu numa violação do princípio in dúbio pro reo, devendo, por isso, o arguido ser absolvido do crime pelo qual foi condenado.
Mais alega, que a pena acessória que lhe foi fixada é demasiado severa para o seu grau diminuto de culpa, devendo ser reduzida a cinco meses.
C – Resposta ao Recurso
O M. P, junto do tribunal recorrido, respondeu ao recurso, manifestando-se pela sua improcedência, apesar de não ter apresentado conclusões.
D – Tramitação subsequente
Aqui recebidos, foram os autos com vista ao Exmº Procurador-Geral Adjunto, que deu por reproduzida a resposta ao recurso deduzida na 1ª instância.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
A – Objecto do recurso
De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Na verdade e apesar de o recorrente delimitar, com as conclusões que retira das suas motivações de recurso, o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, este, contudo, como se afirma no citado aresto de fixação de jurisprudência, deve apreciar oficiosamente da eventual existência dos vícios previstos no nº2 do Artº 410 do CPP, mesmo que o recurso se atenha a questões de direito.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem, assim, da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no nº 2 do Artº 410 do CPP, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no nº1 do Artº 379 do mesmo diploma legal.
O objecto do recurso cinge-se às conclusões do recorrente, das quais, se podem extrair as seguintes questões:
1) Impugnação factual
2) Alteração da pena acessória
B – Apreciação
Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra fixado, em termos factuais, pela instância recorrida.
Aí, foi dado como provado o seguinte (transcrição):
1. No dia 14/03/25, pelas 22.30, na Rua das Covas, em Sousel, o arguido conduzia o veículo automóvel de matrícula (…..), após a ingestão de bebidas alcoólicas, tendo sido interveniente num acidente de viação, ao bater com a parte traseira num poste de um estabelecimento aí existente. 2. No seguimento do referido acidente, foi o arguido submetido ao exame de pesquisa de álcool através do método de ar expirado, apresentando uma taxa de álcool no sangue (TAS) de, pelo menos, 2,72 g/l, deduzida a margem de erro admissível, correspondente à TAS de 2,87g/l. 3. A taxa de álcool no sangue que o arguido apresentava resultou da ingestão voluntária de bebidas alcoólicas. 4. O arguido bem sabia que havia ingerido bebidas alcoólicas antes de iniciar a condução do mencionado veículo e que a quantidade destas era idónea a determinar uma taxa de álcool no sangue superior ao legalmente permitido e, não obstante, quis conduzir o referido veículo na via pública, depois de ter ingerido tais bebidas, o que efectivamente fez, bem sabendo que não estava em condições de o fazer. 5. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente bem sabendo que a condução de veículos na via pública, nas condições em que o fez, era proibida e punível por lei. 6. O arguido vive com os pais de 63 e 61 anos de idade, e não tem filhos. 7. O arguido estudou até ao 12 ano de escolaridade. 8. Trabalha na construção civil, recebe o equivalente ao ordenado mínimo nacional, tem dois créditos bancários, um de 213,00 € e outro de 220,00 €, ajuda mensalmente com cerca de 150,00 € a € 200,00 € por mês em casa. 9. O arguido regista um antecedente criminal, no âmbito do processo nº 47/22.6GAARL, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Évora, Juízo Criminal de Évora, Juiz 2, onde, por factos praticados em 15/04/22, foi condenado em 14/06/22, com trânsito em julgado ocorrido em 14/07/22, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 55 dias de multa à taxa diária de € 5,00, e na pena acessória de conduzir veículos motorizados pelo período de 4 meses e 10 dias, penas declaradas extintas em 15/12/22.
Estabelecida a base factual pela sentença em análise, importa apreciar da bondade do peticionado pelo recorrente:
B.1. Impugnação factual
Invoca o recorrente que o Tribunal a quo não deveria ter dado como provada a matéria descrita na respectiva factualidade, matéria que, em seu entender, não se provou, tendo em conta que inexiste prova directa da prática do crime em causa, pois do simples facto de o arguido estar sentado no veículo automóvel com as chaves no bolso não resulta que estivesse a conduzir o seu veículo automóvel, sendo por isso errada a formação da presunção judicial que conduziu à sua condenação, o que consubstancia um erro notório na apreciação da prova, com violação do princípio in dubio pro reo.
Nessa medida, tal factualidade deverá ser considerada não provada, o que acarretará a sua consequente absolvição do crime pelo qual foi condenado.
Pelo tribunal recorrido, foi assim justificada, no que importa, a motivação da decisão de facto na sentença que foi proferida oralmente (transcrição):
“Na condução tem sido muito discutido na doutrina e na jurisprudência, mais concretamente e também aqui nos autos, se o arguido estava a conduzir.
Considera o Tribunal que o arguido estava a conduzir.
Porquê?
Tendo sido considerado, nomeadamente pela Relação de Coimbra, no Acórdão de 16/06/21, que o primeiro acto de condução é a introdução da chave na ignição e aí começa o domínio e o controlo da máquina.
É verdade que o senhor arguido, até porque disse aqui uma testemunha, que o arguido teve um contributo, permita-se um contributo q.b., na formação da convicção do Tribunal.
Porquê?
Porque indicou que o arguido não estava a conduzir e tinha a chave no bolso.
Ora, uma pessoa que abre a porta, que se senta no carro, que até destrava o carro e que mesmo tendo a chave não na ignição, mas no bolso, apenas pretende conduzir, não pretende estar lá a dormir, aquilo não é um quarto, não é um sítio para que uma pessoa possa descansar, até porque se queria descansar até tem outros meios para ir, aquilo não é certamente um local que se possa dizer que não seja para conduzir.
Há uma jurisprudência do tribunal da Relação de Évora, de 2017, que diz que para efeitos do disposto no Artº 292 nº1 do C. Penal, que constitui acto de condução a acção do agente que tendo em vista inverter o sentido de marcha, empurra na via pública um veículo colocando-o em ponto morto, com o motor desligado, manobrando o guiador, de forma a orientar o seu trajecto, dessa forma invadindo a faixa de rodagem.
Ora, o que aqui interessa, é que mesmo estando em ponto morto, já a Relação de Évora, já em 2017, disse que já se considera estar a conduzir.
Se uma pessoa está no lado do condutor, certamente é para conduzir, isto é o mesmo, permitam-me a expressão e a imagem do que é encarnado, gordo, tem barbas, chega a 24 de dezembro é Pai Natal e não é coca-cola.
A presunção é precisamente essa.
As presunções são permitidas em processo penal, precisamente para que quando se tenha um facto conhecido, dos factos que são conhecidos se possa extrair um facto. Ora, se uma pessoa está no local, tem carta, neste caso até tinha carta, saiu do café, a uma hora que se presume não querer aí estar, se sentou no carro, abriu o carro, até o colocou em ponto morto, ora não pode ser a solução, plausível, verosímil e expectável, que não seja conduzir, a menos que queira ir descansar, mas o senhor arguido não disse isso, mas também não faz muito sentido, porque se quer ir descansar, não era aquele o sítio ou pedia então para que fosse um amigo a buscá-lo. Até porque não nos podemos esquecer aqui que não é a primeira vez, que o arguido não é inexperiente neste tipo de crime.
(…)
O Tribunal não tem dúvidas que o arguido cometeu o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.°, n.° 1.
É verdade que não é uma prova directa, mas a prova por presunção é admissível na legislação processual penal, tendo sido admissível pelo Tribunal Constitucional.
(…)”.
Como atrás se disse o recorrente invoca o erro notório na apreciação da prova, por entender que o tribunal errou ao dar por assente a factualidade descrita e que permitiu a sua condução pelo crime que lhe era imputado.
Preceitua o Artº 410 nº2, do CPP, que, “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) - A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) - A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) - Erro notório na apreciação da prova”.
Por outro lado, dispõe o seu nº3, que, “o recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada”.
Como ressalta do nº2 do citado Artº 410, a norma reporta-se aos vícios intrínsecos da decisão, como peça autónoma, verificáveis pelo simples exame do seu texto ou por esse exame conjugado com as regras da experiência comum, sendo por isso evidente que os ditos vícios têm de resultar da sentença recorrida considerada na sua globalidade, por si só, ou conjugada com as regras de experiência comum, sem possibilidade de recurso a quaisquer elementos que à mesma sejam estranhos, ainda que constem dos autos.
Daí que não possa invocar-se a existência de qualquer um dos vícios enumerados nas alíneas do referido nº2 apelando para elementos não constantes da sentença, como seja, por exemplo, um documento junto aos autos, ou um depoimento prestado em audiência, ainda que os depoimentos se achem documentados como é o caso deste processo.
Relativamente ao invocado erro notório na apreciação da prova pelo tribunal a quo, ensinam Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 80, que é uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível para o cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se tirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável. Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou daslegis artis”.
Erro notório na apreciação da prova, é, assim, aquele que não escapa à normal observação da generalidade das pessoas, isto é, o que, pela sua certeza, não pode passar despercebido ao comum dos cidadãos e que só deve ter-se por verificado quando se dê como provada uma determinada factualidade com base em juízos ilógicos, arbitrários, contraditórios e insustentáveis e que, por isso, desde que detectados no texto decisório, se apresentem como manifestamente violadores das regras da experiência comum.
É um vício que não pode ser confundido - apesar de assim suceder com frequência - com o erro de julgamento, que resulta de uma errada apreciação da prova produzida ou da insuficiência desta para fundamentar a decisão recorrida.
Ora, o recorrente, na prática, não concretiza este vício, tal como este é legalmente definido, limitando-se, ao invés, a impugnar a factualidade apurada, por entender que a prova produzida não permitia a sua assunção probatória, designadamente, por ninguém o ter visto a conduzir, o mesmo é dizer, não haver prova directa do cometimento dos factos.
Aduz, assim, o recorrente, na essência, um erro de julgamento, decorrente do Artº 412 nº3 do CPP, e não, um erro/vício da sentença previsto no nº2 do Artº 410 do mesmo diploma legal, já que o seu recurso se reporta à matéria de facto, por uma incorrecta e deficiente apreciação da prova testemunhal que foi produzida em Audiência de Julgamento.
É sabido que constitui princípio geral que as Relações conhecem de facto e de direito, nos termos do estatuído no Artº 428 do CPP, sendo que, no tocante à matéria de facto, é também sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem: primeiro, da impugnação alargada, se tiver sido suscitada, incumbindo a quem recorre o ónus de impugnação especificada, previsto no Artº 412 nsº3 e 4 do citado diploma, condição para que a mesma seja apreciada e, depois e se for o caso, dos vícios a que alude o artigo 410 nº2 do aludido Código.
O erro de julgamento, ínsito no Artº 412 nº3, do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nsº3 e 4 do Artº 412 do CPP.
É que nestes casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
E é exactamente porque o recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes, um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando (violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (violação de normas de direito processual), que se impõe, ao recorrente, o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do nº3 do Artº 412 do CPP.
Assim, impõe-se-lhe a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, o que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considera indevidamente julgado.
Mais se lhe atribui, a explicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, o que se traduz na anotação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que acarreta decisão diversa da recorrida, acrescendo a necessidade de explicitação da razão pela qual essa prova implica essa diferente decisão, devendo, por isso, reportar o conteúdo específico do meio de prova por si invocado ao facto individualizado que considera mal julgado.
Por fim, é-lhe ainda assacada a pormenorização das provas que devem ser renovadas, o que só se compraz com a informação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em sede de 1ª instância, dos vícios referidos nas alíneas do nº2 do artº 410 do CPP e das razões para crer que aquela renovação da prova permitirá evitar o reenvio do processo (Cfr. Artº 430 nº1 do citado diploma).
No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla da matéria de facto, é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão revidenda, justificando, em relação a cada facto alternativo que propõe, porque deveria o Tribunal ter decidido de forma diferente.
Ou, por outras palavras, como se afirma no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 08/03/12, publicado no D.R., I Série, nº 77, de 18/04/12:
“Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório. A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas. O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão (iam) uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto. Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo.”
Postos estes considerandos e sem os olvidarmos, importa dizer, desde já, que o recorrente não deu cumprimento, de forma mínima que fosse, à referida tripla exigência do nº3 do Artº 412 do CPP, o que implicaria, desde logo, o naufrágio do recurso, ainda que se perceba o ataque factual que deduz à decisão recorrida.
O que na verdade ocorre, é que o requerente, parecendo impugnar a matéria de facto, se limita a discordar da valoração da prova, tal como esta foi levada a cabo pelo tribunal a quo, bastando-se, para tal defesa, no entendimento que inexiste prova directa de ter conduzido o veículo sob influência da TAS por si apresentada.
A este proposto, o recorrente não teve sequer a preocupação de reproduzir e contextualizar os depoimentos produzidos em Audiência de Julgamento, pois se o tivesse feito, naturalmente que o fracasso da sua argumentação se lhe desenharia com evidência.
Dos três depoimentos ouvidos em Audiência – J e B, ambos militares da GNR, e C, dona do estabelecimento onde o arguido ingeriu as bebidas alcoólicas – pode-se extrair, com total segurança, o seguinte:
Durante a tarde desse dia, o arguido ingeriu inúmeras bebidas alcoólicas, durante um considerável período de tempo, ficando bastante alcoolizado, o que levou a que a dona do mesmo, C, dissesse que não lhe servia quaisquer outras bebidas alcoólicas, vindo o ora recorrente a abandonar o estabelecimento.
Entrou, com a respectiva chave, na sua viatura, que se encontrava estacionada junto à esplanada do mesmo e, sem o colocar a trabalhar, mas deixando-o descair, numa manobra de marcha-atrás, fez com que a viatura viesse a embalar num poste ali existente, deixando-o em plena faixa de rodagem e dificultando a normal circulação rodoviária.
O que motivou que C chamasse a GNR, que se deslocou ao local, tendo o arguido, perante os dois referenciados agentes, confirmado a factualidade agora descrita, vindo a fazer o teste de alcoolemia, acusando uma TAS de, pelo menos, 2,72 g/l, deduzida a margem de erro admissível, correspondente à TAS de 2,87g/l.
Nesta medida, e apesar de ninguém ter visto o arguido ao volante, no momento em que o seu veículo embateu no poste existente na esplanada do estabelecimento, junto ao qual estava estacionado, torna-se evidente que a afirmação que era o ora recorrente que se encontrava aos comandos da sua viatura se apresenta como a única explicação lógica, racional e razoável, de acordo com as regras da experiência e o sentido das coisas.
Salvo o devido respeito por opinião contrária, entende-se que não assiste nenhuma razão ao recorrente que, no fundo, pretende substituir-se ao julgador na apreciação da prova, trazendo à liça a sua discordância com o tribunal julgador nesta matéria, pretendendo sobrepor a sua perspectiva pessoal à livre convicção daquele, mau grado a forma sequencial e sistemática como na decisão recorrida se fez a apreciação e valoração da prova produzida em julgamento.
O tribunal explica, de forma clara e isenta de dúvidas, as razões pelas quais deu por assente que foi o arguido quem fez com que o seu veículo descaísse até embater no aludido poste, ilacção que retirou da prova que atrás, sumariamente, se descreveu, conclusão que se mostra totalmente conforme com a normalidade da vida e que em nada é abalada pela negação do arguido, sendo certo que a sua versão, como refere a decisão recorrida, não merece qualquer credibilidade.
Compreende-se que registando o arguido uma anterior condenação por condução de veículo em estado de embriaguez, tenha optado por uma versão negatória dos factos, esperando que a circunstância de inexistirem testemunhas que o tenham visto a conduzir levasse à sua absolvição.
Ora, é sabido que a prova não pode ser analisada de forma compartimentada, segmentada, atomizada, mas, ao invés, deve ser valorada na sua globalidade, estabelecendo conexões, conjugando os seus diferentes meios de prova e não desprezando as presunções simples, naturais ou hominis, que são meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção.
Como bem refere o MP na sua resposta:
“...em processo penal, são admissíveis todas as provas que não sejam proibidas por lei (art. 125 do CPP9, aí se incluindo as presunções judiciais, que são as ilações que o julgador retira de factos conhecidos para firmar outros factos, desconhecidos (art. 349 do Código Civil).
Assim, não sendo a presunção judicial um meio de prova proibido por lei, pode o julgador, à luz das regras e experiência e da sua livre convicção, retirar dos factos conhecidos as ilações que se ofereçam com evidentes ou como razoáveis e firmá-las como factos provados.
Na formação da convicção do julgador intervêm, assim, provas e presunções, sendo certo que as primeiras são instrumentos de verificação direta dos factos ocorridos, e as segundas permitem estabelecer a ligação entre o que se tem por adquirido e aquilo que as regras da experiência nos ensinam poder inferir.
Na verdade, apesar das reservas e objecções que ainda lhe são opostas, o sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indireta se faz valer através desta espécie de presunções.
Aliás, o sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e, para certos factos, como sejam os relativos aos elementos subjetivos do tipo (doloso ou negligente), não havendo confissão, a sua comprovação não poderá fazer-se senão por meio de prova indireta.”
Importa ainda dizer que as provas não têm forçosamente que criar no espírito do julgador uma absoluta certeza dos factos a provar, certeza, essa, que, muitas vezes, seria impossível, ou quase impossível de alcançar.
O que é necessário, é que as mesmas provoquem um grau de probabilidade tão elevado, que se baste, como certeza possível, para as necessidades de vida, de forma a se poder concluir, sem dúvida razoável, que um indivíduo praticou determinados factos.
Por outro lado, no nosso ordenamento jurídico, e particularmente no processo penal, não existe prova tarifada, inexistindo regras de valoração probatória que vinculem o julgador, pelo que, por regra, qualquer meio de prova deve ser analisado e valorado de acordo com o princípio da livre convicção do julgador.
O recorrente, nesta sede, mais não faz do que atentar contra a apreciação da prova, livremente feita pelo tribunal, e segundo a convicção alcançada pelo respectivo julgador, como lho permite o Artº 127 do CPP - princípio da livre apreciação da prova – onde se estipula que : Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Tal princípio assenta, fundamentalmente, em duas premissas:
A de que o juiz decide de forma livre e de acordo com a sua íntima convicção, formada a partir do confronto das provas produzidas em audiência.
E que tal convicção há-de ser formada com base em regras de experiência comum.
Nestes termos, o juiz não está sujeito a critérios de valoração de cada um dos meios probatórios, legalmente pré-determinados, sistema da prova legal, sendo o tribunal livre na apreciação que faz da prova e na forma como atinge a sua convicção.
Contudo, sendo esta uma apreciação discricionária, não é a mesma arbitrária, tendo a referida apreciação os seus limites.
Não verdade, livre convicção não pode ser sinónimo de arbitrariedade.
Ou seja, a livre apreciação da prova tem sempre de se traduzir numa valoração "racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência (…), que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão” de modo a que seja possível, por qualquer pessoa, entender porque é que o tribunal se convenceu de determinado facto, ou, dito de outro modo, porque é que o juiz conferiu credibilidade a uma testemunha e descredibilizou outra, por exemplo.
“A sentença, para além dos factos provados e não provados e da indicação dos meios de prova, deve conter os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituam o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados na audiência.”- Ac. do STJ de 13/02/92, CJ Tomo I, pág. 36.
O que o juiz não pode fazer nunca é decidir de forma imotivada ou seja, decidir sem indicar o iter formativo da sua convicção, “é o aspecto valorativo cuja análise há-de permitir (…) comprovar se o raciocínio foi lógico ou se foi racional ou absurdo” (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, II, pág. 126 e sgs.).
Como diz o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 1º Vol., Coimbra Editora, 1974, págs. 202/203, “a liberdade de apreciação da prova é uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a verdade material -, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo”.
Por outro lado, e segundo o mesmo, “a livre ou íntima convicção do juiz não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável. (...) Se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal, mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros. Uma tal convicção existirá quando e só quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável”.
Também o Prof. Cavaleiro Ferreira, in Curso de Processo Penal, 1986, 1° Vol., pág. 211, diz que o julgador, sem ser arbitrário, é livre na apreciação que faz das provas, contudo, aquela é sempre “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório”.
Directamente ligada a esta apreciação livre das provas, e determinante na formação da convicção do julgador, está o princípio da imediação, que Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 232, define como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão”.
“(...) Só estes princípios (também o da oralidade) permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. E só eles permitem, por último, uma plena audiência destes mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso”.
Ora, analisada a valoração que da prova foi feita pelo tribunal recorrido, é óbvio que a convicção alcançada por este se mostra suficientemente objectivada e motivada, capaz, portanto, de se impor aos outros.
Como se diz no Ac. da Relação de Coimbra, de 18/02/09, proferido no proc. 1019/05.0GCVIS.IC, disponível em www.dgsi.pt:
“A sindicância da matéria de facto na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações (cfr ac. do S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008 (Processo:07P4375, www.dgsi.pt):
1º) – A que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
2º) – A que decorre da natural falta de oralidade e de imediação, com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
3ª) – A que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disse;
4ª) – A que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º)”.
O que se impunha ao tribunal recorrido é que explicasse e fundamentasse a sua decisão, pois só assim seria possível saber se fez a apreciação da prova segundo as regras do entendimento correcto e normal, isto é, de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
E isso foi feito, poder-se-á dizer, de modo perfeitamente inteligível para qualquer leitor, que logo compreenderá o modo de valoração das provas e o juízo resultante dessa mesma aferição efectuado pelo tribunal a quo, sendo manifesto que as razões que presidiram à motivação da prova provada e apresentam como lógicas, racionais e coerentes, com o conjunto da prova produzida.
O raciocínio consequente do tribunal recorrido no que concerne à factualidade agora impugnada pelo recorrente configura-se, por isso, como adequado às regras de experiência, à normalidade da vida e à razoabilidade das coisas, razão pela qual, não merecendo censura, não é sindicável por este tribunal, inexistindo por isso motivos para ser alterado.
O modo de valoração das provas e o juízo resultante dessa mesma aferição, efectuado pelo tribunal a quo, ao não coincidir com a perspectiva do recorrente nos termos em que este as analisa e nas consequências que daí derivam, não traduz, face ao que se expôs, qualquer vicio ou erro de julgamento.
E ao ter actuado assim, o tribunal recorrido não violou o princípio in dubio pro reo, cujo alcance, com o devido respeito, parece ser desconhecido do recorrente, na medida em que uma violação do mesmo só ocorre, quando, em sede de prova, perante uma dúvida objectiva e intransponível, o tribunal decide desfavoravelmente ao arguido.
Sendo uma emanação do princípio constitucional da presunção de inocência, surge como resposta ao problema da incerteza em processo penal, impondo a absolvição do acusado quando a produção de prova não permita resolver a dúvida inicial que está na base do processo.
Se, a final, persistir uma dúvida razoável e insanável acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da actuação do acusado, esse non liquet na questão da prova terá de ser resolvido a seu favor, por imposição do estatuído no Artº 32 nº1 da Constituição da República Portuguesa.
Mas esta dúvida não é a que o recorrente entende que o tribunal deveria ter tido, mas antes, a que este efectivamente teve.
Ora, resulta com toda a clareza, da fundamentação do acórdão recorrido, que não existiu qualquer dúvida no espírito dos julgadores, na construção do esqueleto factual dos autos, após a apreciação, livre, mas responsável, livre, mas motivada, da prova produzida em Audiência de Julgamento, corroborada com a já existente nos autos.
Nessa medida, não tem cabimento a aplicação do referenciado princípio in dubio pro reo, pois o tribunal a quo entendeu que havia sido produzida suficiente prova do cometimento dos factos pelo arguido, entendimento que foi sufragado ao abrigo do já escalpelizado princípio da livre apreciação da aprova, ínsito no Artº 127do CPP.
Importa então trazer à colação o já afirmado em Acórdão deste Tribunal da Relação, em 03/05/07, proferido no processo n.º 80/07-3 disponível no sítio da internet www.dgsi.pt,
“O erro na apreciação das provas relevante para a alteração da decisão de facto pressupõe, pois, que estas (as provas) deveriam conduzir a uma decisão necessária e forçosamente diversa e não uma decisão possivelmente diferente; se a interpretação, apreciação e valoração das provas permitir uma decisão, diversa da proferida, mas sem excluir logicamente a razoabilidade desta, neste caso pode haver erro na apreciação das provas, mas não será juridicamente relevante para efeitos de modificação da matéria de facto pelo Tribunal Superior; a decisão proferida com base numa interpretação e valoração (ainda que discutíveis) fundamentadas nas provas produzidas contida no espaço definido pela livre apreciação das provas e pela convicção por elas criada no espírito do juiz, não pode ser alterada, a menos que contra ela se apresentem provas irrefutáveis, já existentes nos autos e desconsideradas ou supervenientes. Por outras palavras: a sindicância da decisão de facto deve limitar-se à aferição da sua razoabilidade em face das provas produzidas … … A segunda instância em matéria de facto não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas tão só apreciar se a convicção expressa pelo tribunal a quo na decisão da matéria de facto tem suporte razoável …”
A decisão, nesta matéria, do tribunal recorrido, foi proferida com base numa interpretação e valoração que se mostra suficientemente fundamentada, quer nas provas produzidas, quer pela livre convicção por elas criada no espírito do julgador, só podendo ser alterada, se contra si se apresentassem meios de prova irrefutáveis, existentes nos autos e que tivessem sido desconsiderados, ou se a mesma se configurasse como totalmente irrazoável, contrária às mais elementares regras de experiência ou ao sentido das coisas.
Mas nenhuma destas condições é o caso sub judice, em que o decidido pelo tribunal recorrido, se desenha com lógica e razoabilidade necessárias, de modo que se deve concluir como no aresto citado: “… se a interpretação, apreciação e valoração das provas permitir uma decisão, diversa da proferida, mas sem excluir logicamente a razoabilidade desta, neste caso pode haver erro na apreciação das provas, mas não será juridicamente relevante para efeitos de modificação da matéria de facto pelo Tribunal Superior.”
Discordar, sem qualquer fundamento legal, leva simplesmente à sua improcedência, como já por este Tribunal foi afirmado em Acórdão de 23/03/01: “A divergência quanto à decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto será relevante na Relação apenas quando resultar demonstrada pelos meios de prova indicados pelo recorrente a ocorrência de um erro na apreciação do seu valor probatório, sendo necessário para que ele se verifique, que os mencionados meios de prova se mostrem inequívocos no sentido pretendido pelo recorrente”.
O presente tribunal só poderia assim alterar o decidido factualmente pela 1ª instância se existissem provas nos autos que impusessem decisão diferente e in casu, embora a prova produzida, eventualmente e no entender do recorrente, permitisse uma decisão de facto em sentido diverso, ela não impunha decisão distinta, pelo que o pretendido por aquele está destinado ao fracasso.
Trata-se de uma evidente limitação em matéria de facto, o qual não serve para possibilitar uma intervenção reparadora do tribunal de recurso face a toda e qualquer discordância relativamente à apreciação factual levada a cabo pelo tribunal recorrido, mas apenas e tão só, para os casos em que esta foi proferida através de uma clara, flagrante e patente violação das regras que regem a apreciação da prova, seja porque assente em prova proibida, seja porque existe evidente desconformidade entre a prova produzida e a decisão recorrida.
Só nestes casos é que se poderá dizer que as provas impõem uma decisão diversa.
Mas esta não é, de todo, a situação dos autos.
Inexistindo, assim, qualquer erro na avaliação da prova por banda do tribunal a quo e por consequência, qualquer violação do disposto no Artº 127 do CPP, ter-se-á que finalizar pela improcedência do recurso, nesta parte.
B.2. Alteração da pena acessória
Peticiona ainda o recorrente, a alteração da pena acessória de dezanove meses aplicada pelo tribunal recorrido, por a considerar excessiva e desproporcional ao seu grau, diminuto ou, quanto muito, mediano, da sua culpa, razão pela qual peticiona a sua redução para cinco meses.
Como se pode constatar da audição da sentença, a medida da pena acessória foi fixada pelo tribunal recorrido em função da TAS apresentada pelo arguido, agravada pelo antecedente criminal reportado a ilícito idêntico.
Como se sabe, na determinação da pena concreta, importa ter em conta, nos termos do Artº 71 do C. Penal, as necessidades de prevenção geral e especial que nos autos se imponham, bem como, as exigências de reprovação do crime, não olvidando que a pena tem de ser orientada em função da culpa concreta do agente e que deve ser proporcional a esta, em sentido pedagógico e ressocializador.
Como ensina Figueiredo Dias in Direito Penal, Parte Geral, Tomo 2, As consequências jurídicas do crime. 1988, pág. 279 e segs :
«As exigências de prevenção geral, constituirão o limiar mínimo da pena, abaixo do qual já não será possível ir, sob pena de se pôr em risco a função tutelar do Direito e as expectativas comunitárias na validade da norma violada; As exigências de culpa do agente serão o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas, por respeito ao princípio politico-criminal da necessidade da pena ( Artº 18 nº2 da CRP ) e do principio constitucional da dignidade da pessoa humana (consagrado no nº1 do mesmo comando) Por fim, as exigências de prevenção especial de socialização, sendo elas que irão determinar, em último termo e dentro dos limites referidos, a medida concreta da pena»
Importa ainda ter em conta que :
«A função primordial de uma pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos. O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham. O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos. Dentro destes dois limites situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente. Ainda, embora com pressuposto e limite na culpa do agente, o único entendimento consentâneo com as finalidades de aplicação da pena é a tutela de bens jurídicos e, (só) na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade» (Cf. Anabela Miranda Rodrigues, RPCC, Ano 12º, nº 2, pág. 182).
Ora, confrontando o raciocínio expendido pela instância recorrida, e no que toca , especificamente à pena acessória - única que é impugnada pelo recorrente - constata-se que apesar de ali terem sido considerados, na determinação da pena a aplicar, todos os critérios legais a que aludem os Artsº 70 e 71 do C. Penal, acredita-se que o arguido se pode queixar de alguma severidade por banda do tribunal a quo, mostrando-se o decidido pelo tribunal recorrido como algo excessivo e desproporcional ao caso concreto e para com as exigências de prevenção geral e especial que a situação suscita, devendo, por isso, ser alterado em conformidade.
Importa dizer, antes de mais, que em linguagem técnico-jurídica, a sanção acessória de inibição de conduzir anda associada às contra-ordenações estradais e tem natureza administrativa, ao passo que a proibição de conduzir prevista no Artº 69 do C. Penal constitui uma verdadeira pena acessória.
Na verdade, pese embora o conteúdo material seja idêntico – ambas se traduzem na proibição de conduzir veículos automóveis – a sanção acessória de inibição de conduzir prevista no Artº 138 do C. Estrada, aplicável às contra-ordenações graves e muito graves (Arts 145 e 146 do mesmo Código, respectivamente) tem natureza administrativa tal como os ilícitos de mera ordenação social a que se aplicam), ao passo que a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados prevista no Artº 69 do C. Penal constitui uma pena criminal (sendo esta a da natureza da infracção que lhe dá origem).
Na situação dos autos, estamos, por isso, na presença de uma verdadeira pena acessória, tal como está prevista no Artº 69 do C. Penal.
Como diz Figueiredo Dias, in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pág. 165: “A pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor assenta no pressuposto formal duma condenação do agente numa pena principal por crime previsto nos artigos 291.º ou 292.º do Código Penal, ou por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante, sendo que, dentro do limite da culpa, desempenha um efeito de prevenção geral de intimidação e um efeito de prevenção especial para emenda cívica do condutor imprudente ou leviano, cumprindo, assim, as penas acessórias uma função preventiva adjuvante da pena principal”.
A condução de veículos em estado de embriaguez constitui, por si só, grave violação das regras do trânsito rodoviário e é grandemente responsável pela elevada sinistralidade que se verifica nas nossas estradas, colocando em perigo a vida, a integridade física e os bens patrimoniais próprios e alheios.
A proibição de conduzir veículos com motor tem assim por objectivo conseguir, através da privação da faculdade de conduzir o veículo, prevenir a perigosidade do agente revelada pela prática do crime, p.p., pelo Artº 291 nº1 do C. Penal.
O aludido Professor, na ob. citada, pág. 205, ensina que «…à proibição de conduzir deve também assinalar-se (e pedir-se) um efeito de prevenção geral de intimidação, que não terá em si nada de ilegítimo porque só pode funcionar dentro do limite da culpa. Por fim, mas não por último, deve esperar-se desta pena acessória que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano»
Ora, na fixação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, balizada entre um mínimo de três meses e um máximo de três anos, importa ter em conta os mesmos critérios que foram utilizados para a determinação da pena concreta pelo crime em causa, não perdendo de vista, que tal pena acessória tem, por escopo, prevenir a perigosidade revelada pelo agente no cometimento dos factos em crise.
Assim sendo, na sua graduação, importa apreciar o circunstancialismo de cada caso, sendo as exigências de prevenção geral intensas, pela necessidade de rigor na definição da pena acessória, como medida dissuasora de uma conduta cujas consequências são muito gravosas para o tecido social.
Ora, sendo particular o juízo de censura, muito acentuado o grau de ilicitude, directo o dolo, e apesar da elevada TAS apresentada pelo arguido e do registo criminal que sobre si impende, a verdade é que o mesmo mostra-se integrado, social e familiarmente, e que a pena acessória aplicada pelo tribunal recorrido, até por comparação com outras situações similares que têm sido apreciadas por esta Relação, se mostra algo exagerada, devendo, por isso, ser corrigida para 12 meses, que se entende como adequada, proporcional e justificada, ao juízo de censura, ao grau de ilicitude, às circunstâncias do caso concreto, à medida da culpa do ora recorrente, e ainda, às razões de prevenção geral e especial que no caso concorrem.
Procede, nestes termos, parcialmente, o recurso.
DECISÃO
Nestes termos, decide-se conceder parcial provimento ao recurso e em consequência, revogando-se parcialmente a sentença recorrida, condena-se o arguido D,pela prática deum crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p.p. pelos Artsº 292 nº1 e 69 nº1 al. a), ambos do C. Penal, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 12 (doze) meses.
No mais, mantêm-se o decidido pela 1ª instância.
Sem custas.
xxx Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi integralmente revisto e elaborado pelo primeiro signatário.
Évora, 11 de novembro de 2025
Renato Barroso
Helena Bolieiro
Renata Whytton da Terra