I – A exceção dilatória de nulidade por ineptidão da petição inicial só pode ser arguida pelo réu, em ação declarativa comum, até à contestação e só pode ser conhecida ex officio pelo tribunal até ao despacho saneador, se anteriormente a não tiver apreciado ou, nos processos que não comportem despacho saneador, até à sentença final.
II – Se, numa ação declarativa comum, a ineptidão da petição inicial não foi arguida pela ré no seu articulado de contestação, se foi depois proferido despacho saneador consignando a inexistência de nulidades principais, foi depois designada data para a audiência final de julgamento e, no seu início, chegou a ser produzida prova por inspeção judicial, ao tribunal está vedado o conhecimento da ineptidão que entretanto oficiosamente suscitou, quer por já não o poder fazer, atenta a fase processual em que se encontram os autos, quer por via do obstáculo processual decorrente da interpretação conveniente do réu a que alude o n.º 3 do art. 186º do CPC.
III – A preclusão do conhecimento da ineptidão, nos termos referidos, consubstancia uma exceção à regra geral da insanabilidade das nulidades absolutas vigente em direito processual civil.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam os Juízes na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
I – Relatório
Recorrente: AA
Recorrida: A..., Lda.
Concluiu, pedindo a condenação da ré a) a reconhecer o seu direito de propriedade sobre o prédio identificado prédio; b) a reconhecer que o mesmo prédio é livre de ónus ou encargos, designadamente de qualquer servidão de passagem de pé, carro ou outra e a favor do prédio da Ré; c) a abster-se de transitar pelo prédio do autor a pé, de carro ou de qualquer outro modo; a d) tapar as aberturas sobre o seu prédio; e) a repor o terreno do prédio do A. junto às aludidas aberturas à situação anterior, ou seja, retirando os aterros e colocando o terreno ao mesmo nível do restante existente.
Após pronúncia das partes, foi proferido a seguinte sentença:
“A ineptidão da petição inicial, constitui uma nulidade absoluta de conhecimento oficioso (art. 186.º, 196.º, 278.º/1 b) CPC) – art. 3.º/3 e 547.º do CPC.
Não obstante a questão não ter sido suscitada nos autos, nada impede que o tribunal se pronuncie sobre ela, visto que, sendo de conhecimento oficioso, ainda não se encontra decidida com trânsito em julgado, por se encontrar inserida em mero despacho saneador tabelar ou genérico - cfr. neste sentido, a maiori ad minus, Ac. Do TRL de 06.03.2014, relator Fátima galante, disponível in www.gdsi.pt.
Da ineptidão da petição inicial:
Nos presentes autos, o A. AA, viúvo, aposentado, residente na Rua ... ... ... propôs uma acção de processo comum contra A..., LDA., sociedade por quotas com sede na Av. ..., ..., ... ....
Nos termos e com os seguintes fundamentos:
O A. alega ser proprietário de um prédio rústico, que melhor descreve no art. 1.º da respectiva petição inicial mais alegando que a Ré, tem vindo a ocupar parte da área do referido prédio rústico tendo aberto um caminho no interior do mesmo que dá acesso ao prédio da ré confinante com o do A.
Conclui a A. pedindo a condenação da Ré no seguinte:
“a) Reconhecer o direito de propriedade do A. sobre o seu prédio identificado no artigo 1º desta p.i..
b) Reconhecer que o mesmo prédio é livre de ónus ou encargos, designadamente de qualquer servidão de passagem de pé, carro ou outra e a favor do prédio da Ré;
c) Abster-se de transitar pelo prédio do A., designadamente através da travessia do mesmo a pé ou de carro ou de qualquer outro modo;
d) Tapar as aberturas a que alude o artigo 21º;
e) Repor o terreno do prédio do A. junto às aludidas aberturas à situação anterior, ou seja, retirando os aterros e colocando o terreno ao mesmo nível do restante existente;
f) Pagar custas e demais encargos e despesas judiciais.”
A Ré apresentou contestação, impugnando, em síntese os factos alegados pelo A., alegando que o caminho por onde passa é um caminho público, tal como resulta do teor da certidão de registo predial do prédio do A., concluindo pela improcedência da acção.
Vejamos.
Há que ter presente, antes de mais que: “A protecção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão razoável que aprecie (…) a pretensão regularmente deduzida em juízo” – art.2º/1 CPC.
Há que ter em conta igualmente que o pedido e a causa de pedir têm que estar em conformidade com os preceitos legais aos mesmos respeitantes, nomeadamente o pedido tem que ser dotado de existência, inteligibilidade, determinação, compatibilidade, licitude, viabilidade, probidade e juridicidade e a causa de pedir deve reunir as características de existência, inteligibilidade, facticidade, concretização, probidade, compatibilidade com o pedido ou com outras causas de pedir alegadas me termos de acumulação legal, juridicidade e licitude.
Assim, e no que concerne a causa de pedir, o A., deve, expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção, não bastando a mera invocação de um determinado direito subjectivo e a formulação da vontade de obter do tribunal determinada forma de tutela jurisdicional, tendo igualmente que alegar a relação material de onde o A. Faz derivar o correspondente direito e dentro dessa relação material a alegação dos factos
constitutivos.
Desta forma e de acordo com o princípio do dispositivo, é sobre o A. que invoca a titularidade de um direito que recai o dever de alegação dos factos de cuja prova seja possível concluir pela existência desse direito.
Quem invoca um direito tem o ónus de alegar os factos constitutivos desse direito, do mesmo modo que quem se defende por excepção tem de alegar os factos extintivos, modificativos ou impeditivos que lhe subjazem.
Assim, a causa de pedir é consubstanciada tão só pelos factos que preenchem a previsão da norma que concede a situação subjectiva alegada pela parte e cabe precisamente ao A. especificar a causa de pedir, ou seja, a fonte desse direito, o facto ou acto de que no seu entender, o direito procede.
A falta de tal alegação, ou seja, a falta de causa de pedir determina a ineptidão da petição inicial e conduz à absolvição da instância, constituindo uma nulidade absoluta (art. 278.º/1 b) CPC).
Ora, na petição inicial apresentada pelo A., esta pretende que a Ré reconheça o “direito de propriedade do A. sobre o seu prédio identificado no artigo 1º desta p.i..”. e a condenação da Ré a reconhecer que inexiste “qualquer servidão de passagem de pé, carro ou outra e a favor do prédio da Ré e a abster-se de transitar pelo prédio do A., designadamente através da travessia do mesmo a pé ou de carro ou de qualquer outro modo”.
Ora, em primeiro lugar o segundo pedido visa a declaração de uma realidade já existente e que a Ré não contesta, aceitando a propriedade do prédio em causa. Ou seja, o pedido da forma como é feito pretende alcançar algo que a A. já tem assegurado na sua esfera jurídica, que é a declaração do direito de propriedade do prédio referido, que não é posta em causa pela Ré (que apenas põem em causa e contestam que tenham invadido tal prédio e que tenha usado um caminho no interior do mesmo.
Por outro lado, resulta da exposição da situação efectuada na petição inicial que o A. pretenderá antes coisa diversa que é a reivindicação de uma determinada área deste mesmo prédio, área essa que estará a ser ilicitamente ocupada pelos RR.
Sucede que a A. em momento algum peticiona a reivindicação de tais áreas, sendo que, de resto, nem sequer identifica nem descrevem as concretas áreas que estarão a ser ilicitamente ocupadas pela Ré, limitando-se a dizer, sem mais, que a R. ocupa uma parte do seu terreno cuja concreta configuração e área não descreve nem identifica.
De igual modo não invoca o A. factos relativos não só à área do seu prédio ocupada ilicitamente como também, não descreve a localização e configuração de tal área – não obstante pedir igualmente a condenação da R. a não passar por esse local – qua não descreve nem identifica.
O A. alega ainda que a Ré decidiu “alterar a topografia do terreno do A., pois que procedeu a aterros criando rampas de acesso aos aludidos portões”, contudo não descreve tais alterações, não refere medidas nem descreve a configuração das rampas nem a área e localização exacta em que tais rampas ocupam o seu prédio.
Ora, conforme resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de de 05.04.2018, disponível in www.dgsi.pt: “- A ação de reivindicação é uma ação real, petitória e condenatória, destinada à defesa da propriedade, sendo a respetiva causa de pedir integrada pelo direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa reivindicada e pela violação desse direito pelo
reivindicado (que detém a posse ou a mera detenção desta). O pedido é o reconhecimento do direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa e a restituição desta àquele.”
Ou seja, uma acção de reivindicação, como refere o referido Acórdão: “o Autor instaura uma determinada ação em que pede a condenação do Réu a reconhecer o seu direito de propriedade sobre determinado prédio e que dele faz parte integrante uma determinada parcela de terreno que alega estar a ser possuída pelo Réu e pede a condenação do último a reconhecer esse seu direito de propriedade sobre esse seu prédio, nele se incluindo aquela
parcela de terreno e, bem assim a restituir-lhe essa parcela de terreno (pedidos típicos da reivindicação).”
Deste modo verifica-se desde logo que o A. não faz este pedido além de não identificar parcela ou parcelas de terreno (localização e áreas) ocupadas ilicitamente pela R., ou seja, não estamos perante um caso de alegação deficiente de factos, mas antes uma total ausência da mesma, a que acresce ainda a incongruência entre o pedido e a causa de pedir, pelo que a petição é inepta (art.186º/2 a) e b) CPC).
Face ao exposto e dada a manifesta ineptidão da petição inicial, declaro assim a nulidade de todo o processo, não conhecendo do pedido, e em consequência absolvo a R. da instância (art.278º/1 b) e CPC). (…)
*
Desta decisão veio o apelante, autor na ação, interpor recurso, apresentando as seguintes conclusões:
(…).
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo se a lei o permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cf. art.s 608º-2, 635º-4 e 639º do CPC).
As questões a decidir, em face do teor das conclusões formuladas pelo recorrente, consistem em apreciar, sucessivamente (i) se em função da fase processual em que os autos então se encontravam era permitido ao juiz do processo suscitar oficiosamente a questão da nulidade por ineptidão da petição inicial e, dessa forma, conhecê-la e declará-la; na afirmativa (ii) se efetivamente, em concreto, no caso dos autos, a petição inicial é inepta; (iii) se cabe ao juiz que iniciou a produção de prova continuá-la.
Os factos com interesse para a decisão da causa e a levar em consideração são as ocorrências processuais delimitadas no relatório que antecede e os que decorrem recortados na sentença recorrida posta em crise, tudo aqui dado por reproduzido.
O tribunal recorrido julgou inepta a petição inicial, declarou a nulidade de todo o processo e, em consequência absolveu o réu da instância.
A autora, não se conformando com a mesma reagiu interpondo o presente recurso.
Importa aferir do acerto da decisão recorrida, traçando as linhas gerais da ineptidão da petição inicial enquanto facto processual gerador de nulidade, compreendendo-o no recorte normativo que lhe respeita.
O art. 186º do CPC indica quais os casos em que pode verificar-se a ineptidão da petição inicial. E, caso se conclua pela sua ocorrência, indica a consequência legal: a da nulidade de todo o processo.
É a seguinte a redação da norma em apreço:
“(…) 2 - Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
3 - Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.
4 - No caso da alínea c) do n.º 2, a nulidade subsiste, ainda que um dos pedidos fique sem efeito por incompetência do tribunal ou por erro na forma do processo.”.
Preceitua o n.º 1 da mesma norma que “É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.”. Compreende-se. O processo não pode ser aproveitado quando a peça processual que lhe dá início e da qual depende o resto do processado (demais articulados, saneamento, instrução, julgamento, sentença e recurso) está ferida de ineptidão.
É inepto, por conseguinte, tudo aquilo que não tem aptidão, é inábil ou absurdo (Vid. entrada “Ineptidão” no Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora).
É por isso que a lei a enquadra como uma nulidade processual principal, pois afeta todo o processo (art. 198º-1 do CPC). Este, por força da ineptidão da petição inicial, fica irremediavelmente afetado por esse vício de extrema gravidade, como que ferido de morte. Não tem, por assim dizer, pernas para andar, porque, anulada a petição com base na ineptidão “todo o processo fica sem base nem suporte” (cf. J. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, C.ª Ed.ª, Coimbra, 1945, p. 395).
A ineptidão da petição inicial “resulta de não se poder determinar com rigor qual a situação de facto que é objecto de apreciação pelo tribunal e qual a sua localização temporal, por forma a permitir ao réu o efectivo exercício do direito de defesa e de modo a obviar à repetição da acção com o mesmo objecto” (cf. António Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. I, Almedina, 1997, p. 190).
Nesse caso, o processo deve terminar de imediato, por ser inútil todo o ulterior processado, tratando-se de uma consequência que é, aliás, corolário do princípio da proibição da prática de atos inúteis (art. 130º do CPC).
A nulidade do processo por força da ineptidão da petição inicial constitui uma exceção dilatória tipificada na lei (art. 577º-b) do CPC), a par de outras exceções dilatórias típicas e atípicas ou inominadas.
Como exceção dilatória que é, obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e constitui causa de absolvição do réu da instância (art. 278º-1-b) CPC), embora este não fica inibido de poder vir a propor outra ação sobre o mesmo objeto (art. 279º-1 do CPC).
Sendo a ineptidão da petição inicial um vício tão grave, a sua ocorrência vai precludir o conhecimento de quaisquer outras exceções eventualmente arguidas nos articulados, bem como, forçosa e naturalmente, o fundo ou mérito da causa. Não é por acaso que na ordem legal de conhecimento pelo tribunal das exceções dilatórias, a ineptidão figura imediatamente após a exceção de incompetência (absoluta ou relativa) do tribunal (art.s 577º-a) e 578º do CPC).
(i) só pode ser arguida pelo interessado até à contestação ou no âmbito deste articulado (art. 198º-1 do CPC; note-se que o réu pode limitar-se a arguir a ineptidão da petição inicial sem que seja, contudo, forçado a contestar a ação: sobre o ponto, vd. J. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, C.ª Ed.ª, p. 379, nota 1);
(ii) só pode ser conhecida ex officio pelo tribunal no despacho saneador, se anteriormente, tendo tido contato com os autos antes da fase final dos articulados, a não tiver apreciado ou, não havendo despacho saneador, pode conhecê-la até à sentença final (art. 200º-2 do CPC).
Qual é, então, a situação dos autos?
Num olhar global do processo sub judice, e para melhor compreensão, são as seguintes as vicissitudes processuais a considerar:
a. o autor instaurou a ação mediante a apresentação da respetiva p.i., alegando, como entendeu por conveniente, os factos que integradores da causa de pedir e terminou com a dedução de vários pedidos (acima sumariados no relatório);
b. a ré, sem arguir a ineptidão da petição inicial, apresentou a sua contestação onde se limitou a deduzir defesa por impugnação;
c. na fase final dos articulados foi proferido despacho saneador com dispensa da realização da audiência prévia, foi indicado o valor da causa, efetuado o saneamento da causa, apreciados os meios de prova requeridos, determinada oficiosamente a realização de uma inspeção judicial ao local e agendada data para a realização final da audiência de julgamento (vd. despacho de 09.11.2020: ref.ª citius n.º 86975581);
d. na rubrica “saneamento” do referido despacho saneador, ficou consignado o seguinte: “O tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia. O processo é o próprio e isento de outras nulidades principais. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, assiste-lhes legitimidade processual e estão devidamente patrocinadas. Não existem nem foram arguidas outras nulidades, exceções ou questões prévias que deva conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.”;
e. no dia 28.06.2021 ficou a constar da “Ata de Audiência Final (c/ Inspeção ao Local)”, além do mais, o seguinte: “(…) De seguida, conforme já ordenado, o tribunal deslocou-se ao local do litígio (…) e procedeu-se à inspecção judicial. Ali chegados passou a Mmª Juiz a inspeccionar os prédios objecto de litígio, percorrendo os mesmos, tomando então às partes todos os esclarecimentos que julgou pertinentes com vista à boa decisão da causa (…)”, tendo depois os ils. Mandatários das partes requerido a suspensão da instância para tentarem alcançar acordo quanto ao objeto do litígio, o que foi deferido pela Sra. Juiz titular do processo;
f. mais tarde, as partes informaram os autos da impossibilidade de acordo e a Sra. Juiz agendou data para a realização do julgamento (03.10.2022), momento em que a instância voltou a ser declarada suspensa para nova tentativa de composição amigável do litígio;
g. foi requerido o prosseguimento dos autos e agendada nova data para a audiência de julgamento, já para o ano judicial seguinte (04.11.2024: vd. ref.ª citius 95070028);
h. a nova Sra. Juiz titular do processo, por despacho de 30.10.2024, quatro dias antes da data designada para julgamento (vd. ref.ª citius n.º 96514082), proferiu o seguinte despacho: “Compulsados os autos verifica-se ocorrer uma nulidade absoluta de conhecimento oficioso, que prejudica consequentemente a realização de audiência de julgamento.”, dando sem efeito a data para julgamento e notificando as partes para se pronunciarem quanto à questão, vindo, como acima se referiu, o autor sustentar não se verificar ineptidão, e a ré sustentar o contrário;
i. por fim, foi proferida a sentença recorrida.
Outra, de raiz legal, vem prevista no n.º 3 do art. 186º do CPC: “Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial”. É a chamada interpretação conveniente do réu que funciona como obstáculo à ineptidão. Será improcedente a arguição da ineptidão nos casos em que se verifique que o réu, ao contestar, ainda que a tenha arguido, com fundamento na falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir, interpretou adequadamente a petição inicial. A ineptidão, nestes casos, se acaso pudesse verificar-se, não é operativa por ser - digamos assim - convalidada pelo réu: se o réu interpretou convenientemente o pedido deduzido pelo autor, então não se verifica falta de pedido. Se o réu interpretou convenientemente a causa de pedir, então é porque a entendeu e, por isso, não poderá alegar a sua ininteligibilidade. Nestes casos, o processo deve prosseguir os seus normais e ulteriores trâmites.
Este fenómeno é, há muito, explicado pela doutrina: “(…) pode suceder que o réu tenha dado à petição o seu verdadeiro sentido, e em tal caso não há motivo para o tribunal a considerar inepta. Se, apesar da obscuridade ou ambiguidade do pedido ou da causa de pedir, o réu pôde elaborar a sua contestação, isso quere dizer que lhe foi possível interpretar de certa maneira o pedido ou a causa de pedir” (cf. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. II, cit. pp. 379 e 380).
Nestes casos, como é bom de ver, verifica-se uma exceção à regra geral da insanabilidade das nulidades absolutas vigente no processo civil (cf. António Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. I, cit., p. 191).
Essa nulidade também não foi apreciada, sequer aventada ou indiciada, no despacho saneador.
Tendo sido suscitada oficiosamente pelo tribunal, o limite processual para o conhecimento da nulidade em análise seria, como vimos, nos termos da lei, o despacho saneador ou, não o havendo, até à sentença final (art. 200º-2 do CPC).
A doutrina clássica explica o alcance da norma no que concerne ao conhecimento oficioso das nulidades pelo tribunal:
“[E]ste poder de conhecimento oficioso sofre duas limitações: não pode ser conhecido depois da nulidade se dever considerar sanada; e nos processos que admitam despacho saneador esgota-se com a emissão desse despacho” (cf. J. Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. I, 3.ª Ed., Lisboa, 1999, p. 264).
A lei, contudo, como se referiu, alude à possibilidade de o juiz poder conhecer da nulidade por ineptidão da petição inicial até à sentença final nos casos em que não haja lugar à prolação de despacho saneador (art. 200º-2, in fine, do CPC). É certo. Afinal, contas feitas, é neste dispositivo que a sentença recorrida se filiou para se legitimar a conhecer a ineptidão da p.i. numa fase tão avançada da tramitação do processo.
Todavia, ainda assim, não o podia fazer.
Essa possibilidade aludida na norma, de acordo com a mens e voluntas legislatoris, sempre esteve prevista apenas para os casos em que a lei não previa o despacho saneador, como era o caso do antigo processo sumaríssimo e em alguns processos especiais e cuja formulação, provinda do CPC ´61, passou incólume para o CPC´13.
A doutrina sempre esclareceu o ponto: “[d]a ineptidão não pode, entretanto, o juiz conhecer depois do saneador (…), salvo se o processo não comportar tal despacho (processo sumaríssimo e alguns especiais), hipótese em que esse conhecimento poderá ter lugar até à sentença final” (cf. Fernando Luso Soares, Processo Civil de Declaração, Almedina, 1985, p. 454).
Ou seja: “[o] limite normal do saneador tem a sua justificação no facto de ser no saneador que cumpre ao juiz examinar todas as questões que possam eventualmente obstar ao conhecimento do mérito da causa. Além disso, após o saneador é elaborado o questionário [a especificação e o questionário foram já, entretanto, abolidos, sucedendo-lhes, como é consabido, os factos assentes e a base instrutória e, atualmente, os temas da prova] a que se segue a produção de prova. Ora, uma vez organizado aquele e feita esta, parece despropositado poder falar-se ainda em ineptidão da petição inicial” (cf. A. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. II, Almedina, 1982, p. 233).
Sabe-se que foram abolidas as antigas formas de processo comum ordinário, sumário e sumaríssimo, seguindo o processo de declaração, no regime hodierno, apenas a forma única (cf. art.s 546º e 548º do CPC). Subsistem, contudo, os processos especiais previstos no CPC (art.s 878º e ss. do CPC) e, por ex.º, enquanto tipo especial, a ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos e injunção (cf. art.s 1º e 7º do DL n.º 269/98, de 01-09) onde não se comporta o despacho saneador, e onde a nulidade do processo por ineptidão pode ser conhecida, como vimos, até à sentença final (art. 200º-2, in fine do CPC).
São para tais casos a ressalva prevista no art. 200º-2 do CPC.
Não pode sustentar-se este entendimento.
O tribunal, na fase processual em que suscitou a nulidade processual da ineptidão, já não podia conhecer a questão da eventual ineptidão da petição inicial, por lhe estar vedado por lei esse conhecimento.
No caso dos autos foi decidido no despacho saneador que o processo “estava isento de nulidades principais”, o que significa que o tribunal apreciou e ponderou, em concreto, a viabilidade dos autos, sem que tenha detetado qualquer nulidade impeditiva da marcha da instância, caso contrário tê-lo-ia indicado, pelo que, assim sendo, ficou precludido o conhecimento da ineptidão em momento processual ulterior [vd., com proveito, o Ac. do STJ de 15.04.1993, rel. Raul Mateus, Colectânea de Jurisprudência (STJ), Ano I, Tomo II (1993), pp. 62 a 65 sustentando que “a declaração, em termos genéricos no despacho saneador, de ausência de nulidades absolutas, ou implica conhecimento da arguida ineptidão da petição inicial, constituindo caso julgado formal, ou na hipótese contrária, preclude (…) o ulterior conhecimento se não foi arguida, oportunamente, a nulidade do saneador por omissão de pronúncia”; vd., no mesmo sentido, o Ac. do STJ de 02.04.1992, rel. Ricardo da Velha, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 416 (Maio 1992), p. 642].
Por outro lado, ainda que pudesse ser afirmada a nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial, tal nulidade, como vimos, encontrava-se já sanada em consequência da ausência da sua arguição pelo réu no articulado de contestação e correlativa interpretação conveniente do mesmo de todo o teor da petição inicial (art. 186º-3 do CPC) que não o impediu de apresentar, sem limitações e com a latitude que entendeu por conveniente, a sua contestação, como se alcança, sem esforço, do teor desse articulado (cf. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª Ed., C.ª Ed.ª, pp. 386, 391. Vd. António Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª Ed., Almedina, p. 246).
Procedendo as conclusões 1ª e 2ª do recurso, fica, em consequência, prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas no recurso (a. apreciar se, em concreto, a petição inicial está efetivamente inepta: conclusões 6ª a 8ª; b. apreciar a questão da plenitude da assistência do juiz: conclusões 3ª a 5ª).
(…).
Atento o exposto, acordam os Juízes da 3.ª Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida sindicada no recurso, mais determinando, em consequência, o prosseguimento da instância, com a realização da audiência final de julgamento.
Custas a cargo da recorrida.
Notifique e registe.
Coimbra, 28.10.2025.
Marco António de Aço e Borges
Luís Manuel Carvalho Ricardo
Cristina Neves