I – Para se aferir se uma cláusula contratual geral estabelece uma cláusula penal desproporcionada face aos danos a ressarcir e, por isso, deve considerar-se proibida, nos termos da al. c) do art. 19º do DL nº 446/85, de 25 de outubro, haverá que, através de um juízo objetivo e abstrato, reportado ao momento em que a cláusula penal é fixada, estabelecer uma relação entre os danos que normal e tipicamente resultam, dentro do quadro negocial padronizado em que o contrato se integra, e a pena contratual.
II – É nula, por ser abusiva e contrária ao princípio da boa-fé, a cláusula penal que, em caso de desistência ou recusa injustificada do comprador receber a mercadoria que encomendou ao vendedor, confere a este o direito a exigir a totalidade do preço, como se o contrato tivesse sido cumprido, sem que haja a efetiva correspondência na entrega dos bens, pois neste caso o vendedor ficará desonerado da sua prestação e simultaneamente poderá vender os bens a outrem, o que cria um desequilíbrio nas prestações contratuais, por comparação com o regime geral.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Recorrido/autora: B..., Ldª
«B..., LDA.» instaurou ação declarativa sob a forma de processo comum contra «A... – UNIPESSOAL, LDA.», pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de €9.943,30 - sendo (i) €8.352,68 a título de cláusula penal prevista no contrato de fornecimento, correspondente ao valor da mercadoria confecionada e produzida para a ré que esta recusou receber e (ii) €1.590,62 de juros de mora vencidos respeitantes às duas faturas que titulam o fornecimento - acrescida de juros vincendos desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide este Tribunal julgar a acção parcialmente procedente, por provada em parte e, consequentemente, condenar a ré a pagar à autora a quantia de €8.298,56 (oito mil e duzentos e noventa e oito euros e cinquenta e seis cêntimos), acrescida de juros moratórios, vencidos e vincendos, à taxa legal prevista para os juros comerciais sucessivamente em vigor, contados desde a data da citação (24/03/2023) até efectivo e integral pagamento, absolvendo-a do demais peticionado.
Valor: o já fixado no despacho saneador.
Custas por autora e ré, na proporção do respectivo decaimento, cujo apuramento depende de mero cálculo aritmético (artigo 527.º, n.º s 1 e 2 do Código do Processo Civil).
Registe e notifique.
(…).
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, é pacífico que o objeto do recurso se delimita pelas conclusões das respetivas alegações, evidentemente sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim as questões a apreciar, pela sua ordem lógica, consistem em determinar se:
a) se deve proceder a impugnação da matéria de facto;
b) Se deve ser revogada a sentença recorrida por:
- existir fundamento – mora da autora – para a ré recusar a mercadoria (conclusões 20º a 32º);
- existir fundamento para a ré resolver o contrato com base no instituto da alteração anormal das circunstâncias, nos termos do art.º 437º do Código Civil (conclusões 33º a 40º);
- Por ser nula a cláusula penal que fundamentou a condenação da recorrente (conclusões 41º a 45º);
c) Se a cláusula penal em questão é desproporcional e, por isso, deverá ser reduzida (conclusões 46º e 47º);
d) Se são devidos juros de mora, contados desde a citação da ré, sobre o valor dessa cláusula penal (conclusão 48º);
A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:
1) A Autora uma sociedade comercial cujo objecto social incide sobre o comércio de vestuário e acessórios. (acordo);
2) A ré é uma sociedade comercial cujo objecto social incide sobre comércio a retalho de vestuário para adultos. (acordo);
3) No âmbito das respectivas actividades comerciais, a ré encomendou à autora os artigos de vestuário da colecção Primavera/Verão de 2020 da marca «XT Studio» discriminados na nota de encomenda n.º ...51, de 16/09/2019, junta sob documento n.º 1 da petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, nas quantidades e tamanhos aí indicados, no total de 194 peças, com o valor global de €8.829,92;
4) Consta da mencionada nota de encomenda que essa mercadoria seria entregue no período compreendido entre 01/01/2020 e 30/04/2020, destinando-se a ser comercializada na loja «C...», em ....
5) Nos termos das «Condições Gerais da Venda» que integram tal nota de encomenda, juntas com o requerimento de 19/10/2023 a fls. 64 e 64 verso do suporte físico, «(…) 5 – ANULAÇÃO DAS ENCOMENDAS: O comprador tem o direito de cancelar ou modificar a ENC, por meio de comunicação escrita, decorridos 10 dias sobre a data da sua realização. Findo tal prazo, o Comprador não poderá cancelar ou modificar a ENC. Fora do prazo estipulado, se o comprador cancelar, modificar ou não aceitar receber a ENC fica obrigado a pagar na íntegra a totalidade da ENC, a título de cláusula penal, podendo ainda o fornecedor vender os artigos a terceiros. (…)» e «(…) 10 – EXPEDIÇÕES 10.1 O Cliente aceita receber a mercadoria encomendada da empresa transportadora contratada pela B..., que fará a entrega no estabelecimento comercial indicado nas Condições Especiais. (…)».;
6) Estas «Condições Gerais da Venda», pré-elaboradas pela autora, não foram objecto de negociação prévia com a ré, destinando-se a ser por esta aceites em bloco;
7) A legal representante da ré assinou a referida nota de encomenda, incluindo as «Condições Gerais da Venda» nela insertas, de que tomou conhecimento.
8) A ré não procedeu ao cancelamento, modificação ou alteração da encomenda no prazo de 10 dias contados da sua realização.
9) A autora mandou proceder à confecção da totalidade da mercadoria encomendada - escolhida e seleccionada - pela ré.
10) No dia 14/05/2020, através de transportadora, a autora expediu e enviou para a ré, dirigida à morada desta indicada na nota de encomenda (... ...), a mercadoria encomendada e já produzida, no valor global de €8.298,56.
11) A encomenda seguiu acompanhada das seguintes facturas, referentes aos artigos nelas discriminados, na soma global de €8.352,68:
– Factura n.º ...98, de 14/05/2020, com vencimento a 13/07/2020, no valor total de €8.259,20 (documento n.º 2 junto com a petição inicial);
– Factura n.º ...99, de 14/05/2020, com vencimento a 13/07/2020, no valor total de €93,48 (documento n.º 3 junto com a petição inicial).
12) Tal mercadoria foi recusada pela ré no momento da sua entrega, no dia 15/05/2020, tendo sido devolvida à autora;
13) A autora interpelou a ré para que esta procedesse à recepção da mercadoria recusada e ao bom pagamento do seu valor aquando do respectivo vencimento;
14) A ré não manifestou interesse em recepcionar a mercadoria.
(…).
Em primeira linha, a recorrente vem afirmar que não pode ser condenada no pagamento de qualquer valor a título de cláusula penal por ter ocorrido incumprimento contratual imputável à autora, que não entregou a encomenda no prazo convencionado, o que a legitimava a recusar o recebimento da mercadoria.
Sustenta também que, por ter ocorrido, em virtude da eclosão da pandemia Covid 19, uma alteração extraordinária das circunstâncias em relação ao momento em que fez aquela encomenda, tinha o direito a resolver o contrato com fundamento no disposto no art.º 437º do Código Civil, razão pela qual não deve ser condenada no pagamento do valor reclamado a título de cláusula penal.
Cremos, porém, em ambos os casos, estamos perante questões novas, consistentes na arguição de fundamentos de defesa nunca antes equacionados pela recorrente e que não podem ser conhecidas ex officio, razão pela qual está este tribunal impedido de apreciar tais fundamentos de recurso.
Com efeito, a atuação do tribunal ad quem está delimitada subjetivamente (em caso de pluralidade de vencedores) e objetivamente, quer quanto ao concreto âmbito do recurso (às questões que a parte vencida pretende ver reapreciadas), quer ainda pela proibição da reformatio in peius, quer ainda por só poder incidir sobre questões que tenham sido objeto de discussão e decisão pelo tribunal recorrido, exceto quando se tratem de questões de conhecimento oficioso e o processo reúna os elementos necessários à sua decisão.
A este respeito, refere Abrantes Geraldes[1] que “a natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objecto, decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o Tribunal ad quem com questões novas. (…) A diversidade de graus de jurisdição determina que, em regra, os Tribunais Superiores apenas devam ser confrontados com questões que as partes discutiram nos momentos próprios. Quando respeitem à matéria de facto, mais se impõe o escrupuloso respeito de tal regra afim de obviar a que, numa etapa desajustada, se coloquem questões que nem sequer puderam ser convenientemente discutidas ou apreciadas”.
E, de facto, é o entendimento assente quer na doutrina, quer na jurisprudência, nomeadamente do nosso Supremo Tribunal de Justiça. Assim, a título de exemplo, no Acórdão proferido em 07/07/2016[2] decidiu-se que “não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação”.
Única exceção a esta regra constituem as questões de conhecimento oficioso, ou seja, aqueles de que o tribunal deve conhecer ex oficio, ainda que não invocadas.
Nesta medida, ao tribunal ad quem está vedado conhecer de questões novas, nunca antes invocadas nos articulados, nem apreciadas e decididas pelo tribunal de primeira instância, como vedado está ao recorrente suscitar fundamentos de oposição, nunca antes suscitados nos articulados. Conforme assinala o Acórdão desta Relação de 25/05/2021[3], “face aos termos em que se configura o princípio da concentração da defesa no âmbito da ação executiva, retiramos que os executados têm o ónus de, por meio de oposição à execução/ embargos de executado, no prazo que para tal efeito lhes é concedido, deduzir todos os fundamentos de oposição de que se possam socorrer, quer contendam com a existência ou configuração do direito exequendo seja com alguma questão processual, sob pena de não o poderem mais fazer no âmbito da ação executiva.”
Quer isto dizer, que nem recorrente pode invocar nas alegações de recurso um fundamento de oposição que não invocou nos articulados, nem este tribunal de recurso dele poderia conhecer, por constituir questão nova e não mero e diverso dissêndio quanto à qualificação jurídica da factualidade apurada [sabido que qualificação jurídica efetuada pelas partes não vincula o tribunal e pode ser conhecida oficiosamente (artº 5, nº3, do Código de Processo Civil)].
O ora alegado, seja quanto ao incumprimento contratual imputável à autora, seja no tocante à verificação dos pressupostos para a resolução do contrato em razão da alteração extraordinárias das circunstâncias (art.º 437º do Código Civil), importa a invocação de exceções perentórias não oportunamente deduzidas na contestação e que não são de conhecimento oficioso.
Nesta medida, impõe-se o não conhecimento destas duas questões suscitadas pelo recorrente, por constituírem questão novas.
Como se diz na sentença recorrida, resulta da matéria de facto provada que entre autora e ré foi celebrado um contrato de compra e venda dos artigos de vestuário da coleção Primavera/Verão de 2020 da marca «XT Studio» discriminados na nota de encomenda n.º ...51, de 16/09/2019, nas quantidades e tamanhos aí indicados, no total de 194 peças, com o valor global de €8.829,92.
Mais se provou que a legal representante da ré assinou a referida nota de encomenda, incluindo as «Condições Gerais da Venda» nela insertas, de que tomou conhecimento.
E o certo é que, na Cláusula 5.ª dessas condições dessas «Condições Gerais da Venda» que integram a nota de encomenda, diz-se: “ANULAÇÃO DAS ENCOMENDAS: O comprador tem o direito de cancelar ou modificar a ENC, por meio de comunicação escrita, decorridos 10 dias sobre a data da sua realização. Findo tal prazo, o Comprador não poderá cancelar ou modificar a ENC. Fora do prazo estipulado, se o comprador cancelar, modificar ou não aceitar receber a ENC fica obrigado a pagar na íntegra a totalidade da ENC, a título de cláusula penal, podendo ainda o fornecedor vender os artigos a terceiros. (…)».
Ficou também demonstrado que a ré não procedeu ao cancelamento, modificação ou alteração da encomenda no prazo de 10 dias contados da sua realização, razão pela qual a autora mandou proceder à confeção da totalidade da mercadoria encomendada - escolhida e selecionada - pela ré.
Igualmente se provou que, no dia 14/05/2020, através de transportadora, a autora expediu e enviou para a ré, dirigida à morada desta indicada na nota de encomenda (... ...), a mercadoria encomendada e já produzida, no valor global de €8.298,56, sendo que tal mercadoria foi recusada pela ré no momento da sua entrega, no dia 15/05/2020, tendo sido devolvida à autora.
Mais se provou que a autora interpelou a ré para que esta procedesse à receção da mercadoria recusada e ao pagamento do seu valor aquando do respetivo vencimento e que, não obstante, a ré não manifestou interesse em rececionar a mercadoria.
Não podemos assim deixar de concluir, tal como na sentença recorrida, que houve uma recusa injustificada cumprimento do contrato por parte da ré, que se presume culposa.
Com base nesta factualidade, a autora, ora recorrida, veio exigir da ré, por referência à supratranscrita condição geral n.º 5, a quantia de €8.352,68, correspondente ao valor da mercadoria confecionada e produzida para a ré, que esta recusou receber.
Na sentença recorrida encontram-se corretamente expostas as razões pelas quais devemos considerar que, na segunda parte da supra transcrita cláusula n.º 5 das «condições gerais da venda», estabelece-se uma verdadeira cláusula penal, na aceção do art.º 810º do Código Civil, que, simultaneamente, configura uma cláusula contratual geral inserida num contrato individualizado, à qual também será aplicável o regime das previsto no Decreto-Lei 446/85, de 25 de Outubro, com as alterações que posteriormente lhe foram introduzidas, por via do disposto no n.º 2 do art.º 1º do diploma referido[4].
Isto significa que a questão da validade, ou não, de tal cláusula – que é objeto do presente recurso - terá que ser analisada à luz da problemática especial dos contratos de adesão e não como o seria se integrada num contrato avulso entre dois particulares, concluído após negociação
A sentença recorrida entendeu que a cláusula penal acima identificada não traduzia uma cláusula relativamente proibida, nos termos e para os efeitos previstos na al. c) do art.º 19º do DL n.º 446/85, de 25 de outubro, por não ocorrer, in casu, a desproporção a que alude a mencionada norma, considerando-a, por conseguinte, uma cláusula válida.
Por seu turno, defende a recorrente a invalidade de tal cláusula – que estabelece, para a hipótese de desistência ou não aceitação da mercadoria por parte do comprador, em simultâneo, a obrigação de pagamento da mercadoria em termos de cláusula penal para o incumprimento e o direito do fornecedor vender a mesma a terceiros (e, subentende-se, fazer seus os proventos dessa venda) - por ser desproporcionada em relação aos danos a ressarcir.
Vejamos, então, de que lado está a razão.
O citado Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de outubro, indica uma série de cláusulas que considera proibidas, tutelando o aderente do ponto de vista do controlo do conteúdo das cláusulas incluídas nos negócios singulares.
Assim, começa por autonomizar as disposições comuns por natureza (arts.15º e 16º), depois as relações entre empresários ou entidades equiparadas (arts.17º a 19º) e finalmente as relações com os consumidores finais (arts.20º a 23º).
Os princípios gerais dos artigos 15º e 16º centram-se na boa fé, determinando o primeiro a proibição das cláusulas contratuais gerais contrárias à boa fé e procedendo o segundo a uma concretização da norma anterior.
No que respeita às relações entre empresários ou entidades equiparadas (art.17º), estabelecem-se, a título exemplificativo, cláusulas absolutamente proibidas (art.18º), que não podem incluir-se, a nenhum pretexto, nos contratos celebrados por adesão, e cláusulas relativamente proibidas (art.19º), que podem ser válidas para certos contratos e não para outros, dependendo de um juízo valorativo suplementar realizado em face das próprias cláusulas, encaradas no seu conjunto e de acordo com os padrões considerados.
No que concerne às relações com os consumidores finais e, genericamente, em todas as não abrangidas pelo art.17º (cfr. o art.º 20º), consagrou-se uma tutela de maior amplitude. Assim, às proibições já indicadas, acrescentam-se mais algumas, quer absolutamente proibidas (art.º 21º), quer relativamente proibidas (art.º 22º).
No caso dos autos, uma vez que estamos no domínio das relações entre empresários, têm aplicação as proibições, designadamente, previstas no artº. 19º.
Este último artigo, na sua alínea c), estabelece que: «São proibidas, consoante o quadro negocial padronizado, designadamente, as cláusulas contratuais gerais que consagrem cláusulas gerais desproporcionadas aos danos a ressarcir».
Como se diz no acórdão do STJ de 9-11-2017[5], “(p)ara aferir da adequação do conteúdo da referida cláusula com esta norma há, assim, que estabelecer uma relação entre o montante dos danos a reparar e a pena fixada contratualmente, de modo a que se possa afirmar que há uma equivalência entre os dois valores.
Para tanto e na expressão de Joaquim Sousa Ribeiro[19], impõe-se atender, não aos danos do caso concreto, mas antes aos danos que «normal e tipicamente resultam, dentro do quadro negocial padronizado, em que o contrato se integra», segundo «critérios objectivos, numa avaliação prospectiva guiada por cálculos de proporcionalidade e valores médios usuais, tendo em conta factores que, em casos daquele género, habitualmente relevam na produção e na medida dos prejuízos.
E, por outro lado, apurar se a pena incluída na referida cláusula é, ou não, desproporcionada aos danos a ressarcir, por a mesma impor ao contratante que a ela fica sujeita um sacrifício desproporcionado e injustificado”.
Sobre o sentido da expressão “quadro negocial padronizado”, refere Pinto Monteiro[6], “(e)sta fórmula, utilizada pelo legislador sempre que enumera cláusulas relativamente proibidas, ou seja, mediante valoração previa das mesmas (arts 19º e 22º) pretenderá significar, a nosso ver, que o juízo a emitir sobre elas não depende do circunstancialismo concreto que as rodeia, antes da sua compatibilidade e adequação ao ramo ou setor de atividade negocial a que pertencem as cláusulas contratuais gerais. Quer dizer, trata-se de prescrever um critério ou padrão de referência a ter em conta pelo juiz, o que é de índole objetiva, prescinde das especificidades do caso concreto (…)”.
Por conseguinte, o valor a ter em conta é o dos danos que provavelmente, em face das circunstâncias típicas e segundo o normal desenrolar das coisas, o predisponente venha a sofrer, subentendendo-se aqui uma certa margem de variação contida dentro dos limites do previsível.
Sendo que só é de afirmar a desproporção quando a pena atinge um montante que ultrapassa tudo o que ainda corresponde, minimamente, a um cálculo baseado em índices de tipicidade e normalidade[7].
Tal como se refere no citado acórdão do STJ de 9-11-2017, está em causa “um juízo objectivo e abstracto que se deve fazer, reportado ao momento em que a cláusula penal é estabelecida, não havendo, por isso, que ter em conta as circunstâncias concretas do caso, o que tudo significa que a aferição da adequação do conteúdo da concreta cláusula penal com a norma da al. c) do citado art. 19º, não se pode fazer quanto aos danos concretos do contrato em apreço, mas aos que normal e tipicamente resultam, dentro do quadro negocial padronizado, em que o contrato se integra”.
Tal como refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de maio de 2014[8] “O princípio da proporcionalidade impõe uma relação equilibrada (não se exigindo uma desproporção manifestamente excessiva ou flagrante) entre o montante dos danos a ressarcir e a pena previamente fixada por via da cláusula penal, aferição que tem de ser com base no quadro negocial padronizado, apelando a critérios objetivos, guiados por cálculo de probabilidade e de valores médios usuais. A aferição da proporcionalidade não emerge da ponderação de interesses individuais dos intervenientes, mas sim da ponderação dos interesses típicos do círculo de pessoas normalmente implicadas no negócio da espécie em consideração.”.
Por outro lado, como nos diz Pinto Monteiro[9], “(…) o facto de a lei eleger, como critério para a determinação da excessividade da pena, a sua desproporção em face dos danos a ressarcir – o que conduzirá à sua nulidade e não a uma simples redução – não significa que haja de proibir-se a pena logo que se mostre superior ao dano, que ela tenha de ajustar-se ou coincidir com este, antes nos parecendo que o pressuposto da al. c)do art.º 19, só estará preenchido caso se manifeste uma desproporção sensível”
Como bem sintetiza o acórdão do Tribunal do Relação do Porto, de 10 de janeiro de 2019[10], “a desproporção ou desequilíbrio entre a cláusula penal e os danos a ressarcir não tem de ser manifestamente elevado ou excessivo, ao contrário do que é exigência do art.º 812.º n.º 1 do Código Civil para a redução equitativa da cláusula penal (é preciso não esquecer que nestes casos a cláusula penal é fixada por negociação das partes), bastando apenas que a pena estabelecida seja desrazoavelmente superior aos danos, para que possa falar-se de violação do principio da boa fé e nessa medida considerar tal cláusula como proibida”.
Ora, a cláusula em discussão prevê que, quando haja desistência da encomenda ou recusa do recebimento dos bens, a vendedora tem o direito a haver do comprador o pagamento integral do preço dos bens encomendados e ao mesmo tempo a ficar com os mesmos, podendo vendê-los a terceiro pelo preço que entender.
Quer dizer, tal cláusula obriga ao pagamento da totalidade do preço previsto como se o contrato tivesse sido cumprido pelo comprador, mesmo não ficando com os bens.
Ao mesmo tempo, desonera o vendedor da sua obrigação, permitindo-lhe que fique com os bens, podendo vendê-los a outrem e deles tirar proveito, pelo que, em tese, este poderá vir a obter duas vezes o valor dos bens vendidos.
Como se refere no citado acórdão do tribunal da Relação do Porto de 10 de janeiro de 2019, a propósito de uma cláusula em tudo idêntica à que está em causa nos autos, “(é) como se só uma das partes ficasse obrigada ao cumprimento do contrato, com o pagamento da totalidade do preço acordado, pelo que já se vê que tal cláusula cria um desequilíbrio nas prestações contratuais, por comparação com o regime geral, sendo ficcionado para a A. um prejuízo fora do comum, o que não tem justificação e se apresenta como contrário ao princípio da boa fé. Regista-se que, no caso da A. efectuar as vendas dos bens o seu prejuízo pelo cancelamento ou recusa de uma encomenda pode não ser nenhum. Tal cláusula é por isso abusiva e nula”.
É verdade que, na sentença recorrida, a Mmª Juiz a quo elenca um conjunto de argumentos que, no seu entender, são demonstrativos de que, face ao quadro negocial padronizado, não se verifica a desproporção que é pressuposto da al. c) do art.º 19 do DL n.º 446/85, de 25 de outubro.
Em síntese, tal argumentação relaciona-se com o facto de autora e ré serem empresárias do mesmo ramo de atividade; com a “temporalidade poria das encomendas entregas dos artigos transacionados, segundo a qual as encomendas e artigos de uma determinada estação são efetuados na estação anterior, a fim de serem produzidos e entregues para comercialização estação a que se destinam, sendo que mediem cerca de seis meses entre cada coleção”; com a circunstância de, em regra, as transações comerciais desse tipo ou natureza se basearem na confiança que as partes depositam uma na outra, designadamente ao não ser exigido ao comprador que pague a mercadoria no momento da encomenda mas somente aquando do recebimento da mesma; e ainda com o facto de a cláusula prever a possibilidade de o vendedor vender os artigos a terceiro, não ser, em si mesma, “uma garantia, total ou parcial, de conseguir escoar os artigos em causa, estando dependente de contingências várias e do desenvolvimento de diligências adicionais, com os inerentes custos logísticos e operacionais não contemplados no contrato”.
Contudo, como se disse, a desproporção que está prevista na referida norma deve ser aferida em relação ao dano expetável nesse quadro negocial padronizado.
Como afirma Sousa Ribeiro, in Responsabilidade e Garantia em Cláusulas Contratuais Gerais, pág.48), “no cômputo destes danos deverão seguir-se critérios objectivos, numa avaliação prospectiva guiada por cálculos de probabilidade e por valores médios e usuais, tendo em conta os factores que, em casos do mesmo género, habitualmente relevam na produção e na medida dos prejuízos”.
Ora, salvo o devido respeito por opinião em contrário, não se retira dos argumentos utilizados na sentença recorrida, e sobretudo da factualidade provada, que o valor dos prejuízos decorrentes do incumprimento contratual que a referida cláusula penal visava acautelar – ou seja, aqueles que decorrerem da desistência extemporânea ou recusa injustificada de recebimento da mercadorias - ultrapassem o preço estipulado no contrato.
Dito de outro modo, nada indicia, em termos de probabilidade, que os danos decorrentes de tal incumprimento não possam ser integralmente ressarcidos pelo recebimento do valor equivalente ao preço das mercadorias.
De resto, a própria Mmª juiz a quo não deixa de notar que “o dano a reparar equivalerá ao valor estipulado a título de preço, que o vendedor tinha a expetativa legítima de receber” (sic).
Desse modo, a aludida vantagem da autora predisponente – correspondente ao direito de, em caso de recusa da mercadoria encomendada, receber o preço convencionado e simultaneamente poder vender os bens objeto do contrato a terceiros pelo preço que entender – gera uma desproporção sensível relativamente aos interesses em confronto, que deve ser arredada em face de juízos de razoabilidade e das regras da boa-fé contratual, já que delas resulta, em abstrato e previsivelmente, uma desequilibrada repartição de direitos e deveres entre as partes, sem que haja motivo justificável e atendível.
Concluimos assim pela desproporção da cláusula penal fixada no contrato com os danos a ressarcir e consequentemente pela sua nulidade.
Assim sendo, fica prejudicada a apreciação dos restantes fundamentos de recurso, apenas subsidiariamente invocados para hipótese de se ter como válida a mencionada cláusula penal.
É certo que a matéria factual apurada permite concluir pelo incumprimento culposo do contrato pela recorrente, perspetivando assim a possibilidade de a autora obter o ressarcimento dos danos que tal incumprimento lhe terá causado, nos termos gerais, o que determinaria o apuramento dos prejuízos efetivamente sofridos pelo credor, sem os ficcionar (como acontece quando se estabelece uma cláusula penal).
No caso, contudo, a autora fundamentou o pedido indemnizatório exclusivamente na cláusula penal abusiva, pelo que o mesmo tem de improceder na íntegra.
Em face do exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso interposto pela ré, declarando-se nula e excluída do contrato a cláusula contratual geral que corresponde à segunda parte da cláusula quinta das «condições gerais de venda» constantes a nota de encomenda e, em consequência, revogar a sentença recorrida, absolvendo a ré do pedido.
Custas da ação e do recurso pela recorrida.
Notifique.
Assinado eletronicamente por:
Hugo Meireles
Luís Manuel Carvalho Ricardo
Francisco Costeira da Rocha
(O presente acórdão segue na sua redação as regras do novo acordo ortográfico, com exceção das citações/transcrições efetuadas que não o sigam)
[1] Recursos em Processo Civil, Almedina 2017, 7ª edição, págs. 139 a 142.
[2] Processo n.º nº 156/12.0TTCSC.L1.S1, acessível in https://juris.stj.pt/
[3] processo nº 4886/19.7T8CBR-A.C1, disponível in www.dgsi.pt.
[4] Nos termos desta norma, “O presente diploma aplica-se igualmente às cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar”
[5] Processo n.º 26399/09.5T2SNT.L1.S1, acessível no site www.dgsi.pt
[6] In Cláusula penal e Indemnização, Almedina, 1990, pag. 593 e 594, nota 1409.
[7] Como se refere no acórdão do STJ de 28-03-2017, processo n.º 2041/13.9TVLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt
[8] Processo n.º 1004/12.6TJLSB.L1-1, disponível em www.dgsi.pt
[9] Op. cit. pag, 599 e 600
[10] Processo n.º 35616/17.7YIPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt, cujo entendimento aqui seguimos de perto.