I – O processo de promoção e protecção nunca está contra o(s) representante(s) legal(is), mas sempre e só a favor da defesa do melhor interesse da criança ou jovem dela beneficiário.
II – Estando em causa a aplicação da medida protectiva de confiança com vista a futura adopção, impõe-se averiguar se os progenitores querem, de modo não fantasioso ou irrealista, e reúnem condições para ter consigo o filho, assegurando de modo proficiente e cabal a função parental, não bastando invocar que se quer o filho ou que se tem amor ao filho.
III – A existência dos vínculos próprios da filiação depende e assenta na continuidade das relações de afecto, e para uma criança, sobretudo nos primórdios da primeira infância, não é suficiente que os seus progenitores, ou os seus principais cuidadores, façam uma visita ou um telefonema de quando em vez, como se de mínimos olímpicos se tratasse, aparecendo e desaparecendo da sua vida a seu belo prazer, sem justificações.
IV – Provando-se, entre o mais, que os progenitores estão completamente alheados das necessidades e rotinas do filho – criança com doença genética –, não havendo qualquer sentimento de partilha, modelo ou referência parental afectiva estruturante de grande referência e que aquele carece de uma relação vinculativa, securizante e organizadora do seu crescimento, sendo o seu superior interesse o prevalente, é de decretar a medida de protecção de confiança com vista a futura adopção.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Tribunal a quo: Tribunal Judicial da Comarca de Leria/Juízo de Família e Menores de Leiria (J1)
Recorrente: AA
Sumário (art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
(…).
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:
I.
Em 26 de Julho de 2024, o Ministério Público intentou, em benefício de BB, nascido em ../../2020, acção de promoção e protecção – com pedido de aplicação de medida cautelar de acolhimento familiar –, sendo seus progenitores AA e CC, invocando, em síntese, que fôra instaurado processo de promoção e protecção na Comissão de Protecção de Crianças e Jovens ..., pois a criança ia para a escola muito suja, sofria de doença genética (síndrome do x frágil), foi exposta a violência doméstica parental, chegou a residir com a mãe na rua e existiam indicadores de déficit cognitivo nos progenitores, ambos com limitações ao nível da integração social, escolar, profissional e comunitária.
O processo que decorreu nesta Comissão foi remetido a Tribunal, atenta a proposta formulada de encaminhamento para projecto de vida adoptivo.
Findas as fases diagnóstica e instrutória dos autos, foi efectuado Debate Judicial, com a intervenção de Juízes Sociais, como prescrito pelos arts. 207.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, 125.º, n.º 2, da Lei da Organização do Sistema Judiciário, e 115.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei n.º 147/99, de 01-09).
No seu termo, concretamente em 14 de Julho de 2025, foi proferido Acórdão, de harmonia com o qual se decidiu:
«Aplicar a BB, nascido em ../../2020, a medida de promoção e proteção de confiança família de acolhimento (onde permanece) com vista à futura adoção, ao abrigo dos artigos 35.º, n.º 1, alínea g), 38.º-A e 62.º-A, todos da LPCJP;
b. Decretar a inibição do exercício das responsabilidades parentais de CC e AA e proibir as visitas e contactos entre estes e BB (cf. artigos 1978.º-A do Código Civil e 62.º, n.º 6 da LPCJP).».
II.
Descontente, a Requerida interpôs Recurso de Apelação, com as suas alegações a apresentarem estas
«CONCLUSÕES
(…)».
III.
A digna magistrada do Ministério Público, na sua Resposta, alinhavou as seguintes
«Conclusões:
(…)».
IV.
Questão decidenda
Sem embargo da apreciação de questões que sejam de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o âmbito da apelação (arts. 608.º, n.º 2, 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil):
- Da imposição da medida protectiva de confiança com vista a futura adopção.
V.
Dos Factos
Vêm provados os seguintes factos (transcrição):
1. A criança BB nasceu em ../../2020, sendo filho de CC e AA.
2. BB sofre de doença genética, designada de síndrome do x frágil.
3. A criança residia com os pais e com o sobrinho do pai, portador de doença mental, na Travessa ..., ..., ....
4. Em 21.12.2022, a situação de BB foi sinalizada à CPCJ ..., reportando-se que não recebia os cuidados necessários e que a casa em que residia se encontrava em mau estado.
5. Os progenitores manifestavam frequente resistência em levar BB para o pré-escolar.
6. Em 05.01.2023, os pais de BB deram o consentimento para a intervenção da CPCJ.
7. Neste dia, foi realizada visita domiciliária, apurando-se que a casa se encontrava cheia de mobiliário e sem água, por falta do pagamento de fatura.
8. Em 22.06.2023, por acordo, foi aplicada medida de apoio junto dos pais pela CPCJ, a qual foi revista em 13.12.2023.
9. Em 15.01.2024, a CPCJ recebeu sinalização por parte da Associação ... relativamente a uma situação de violência doméstica protagonizada por CC para com AA.
10. Em 26.01.2024, a CPCJ foi informada de que AA estaria a viver na rua com BB, o qual se encontrava muito sujo, sendo visível que não tomava banho há vários dias.
11. Em consequência, na CPCJ foi aplicada medida de acolhimento familiar, com o acordo dos pais, pelo prazo de seis meses, tendo BB sido integrado no Centro Paroquial ... e passado a frequentar o ensino pré-escolar no Centro Social e Paroquial da ....
12. No âmbito do acolhimento familiar, BB recusava tomar banho, tendo sido necessário cerca de um mês e meio para conseguir que tal ocorresse de forma completa.
13. Em 16.07.2024, a CPCJ remeteu o processo para os serviços do Ministério Público, com vista a ser aplicada medida de confiança de pessoa seleccionada, família de acolhimento ou instituição com vista a adopção.
14. Entre janeiro e agosto de 2024, os progenitores tiveram um único convívio com BB, em momentos distintos, tendo o convívio com a mãe ocorrido em 02.02.2024, sendo caracterizado como uma interação positiva entre mãe e filho, derivado da demonstração de afeto entre ambos, e o convívio com o pai ocorrido em 02.05.2024, não se verificando envolvimento deste com BB.
15. De acordo com as informações sociais recolhidas pela técnica gestora, em 16.08.2024, CC referiu que fazia biscates na área de jardinagem/construção civil e declarou auferir semanalmente, em média, €120,00 (cento e vinte euros).
16. AA informou ainda que passou a residir em ..., no Alentejo, juntamente com o seu companheiro, sendo a sua subsistência assegurada por este.
17. Neste âmbito, a informação junta pela técnica gestora afirma que os progenitores "não apresentam sentido crítico, nem estratégias concertadas para alterar as condições evidenciadas".
18. Em 04.09.2024, por acordo dos pais, o Tribunal determinou a conversão definitiva da medida cautelar referida em 14), pelo período de seis meses.
19. De acordo com as informações sociais recolhidas pela técnica gestora, em 30.09.2024, a família de acolhimento tem proporcionado a BB a avaliação e acompanhamento clínico, a nível de cuidados de saúde primários e de várias especialidades, designadamente, otorrinolaringologista, cirurgia pediátrica e estomatologia/ odontopediatria, tanto em consultas no sistema público como privado.
20. Neste âmbito, BB aguardava ser chamado para diversos tratamentos/cirurgias, designadamente: adenoamigdalectomia e otite sero mucosa bilateral; orquidopexia, correção cirúrgica de um testículo não descido; e tratamentos de estomatologia/odontopediatria, com anestesia geral.
21. Em 11.09.2024, o progenitor foi sujeito a avaliação psicológica, da qual se concluiu que: "(. . .) Não apresenta défices intelectuais/cognitivos; Apresenta traços disfuncionais ao nível da personalidade (que podem impossibilitar, condicionar ou limitar o exercício da parentalidade; Apresenta psicopatologia significativa e desestruturante (que pode impossibilitar, condicionar ou limitar o exercício da parenta/idade); (. . .) O progenitor sabe como desempenhar a sua função enquanto pai, no entanto, o seu desempenho encontra-se comprometido pela ausência de recursos ao nível da vinculação (que é insegura, ou seja, apesar de se sentir confortável com a proximidade e intimidade, não confia nos outros nem os sente disponíveis quando precisa de ajuda e sente um medo excessivo com a possibilidade de ser abandonado não conseguindo elaborar as perdas nem adaptar-se às mudanças), pelo défice ao nível da empatia, pela falta de conhecimento parental adequado de gestão doméstica, pela ausência de capacidade introspetiva suficiente para assunção da responsabilidade parental, pela falta de capacidade para promover o empoderamento da criança, pela inexistência de expetativas adequadas acerca dos limites do desenvolvimento normal da criança, pelo seu estilo de comunicação agressivo e pela falta de capacidade para resolver problemas; (. . .) O examinando é emocionalmente instável (i.e., tem elevado neuroticismo), é impulsivo, agressivo e tem baixa tolerância à frustração. Tende a recorrer à atuação, à externalização e/ou à intelectualização como mecanismos de defesa; (. . .) O examinado apresenta rigidez de pensamento, o que pode comprometer a mudança de comportamento; (..,) O examinado tem comprometida a capacidade para integrar a afetividade e o estabelecimento de regras; (. . .) O examinado tem prejudicada a capacidade para estabelecer uma vinculação segura; (. . .) O examinado não possui, à data, adequadas competências de comunicação e não o consegue fazer no interesse da criança (. . .)".
22. Em 23.10.2024, o progenitor foi sujeito a avaliação psiquiátrica, da qual se concluiu que: "Dos elementos reunidos para a apreciação do presente caso, designadamente do exame clínico-psiquiátrico, realizado numa perspectiva psiquiátrico-forense, e das fontes de informação consultadas até ao momento da realização deste relatório preliminar, constatou-se que o examinanda não apresentava, ao corte transversal, patologia major do foro psiquiátrico, no estrito sentido do termo. Sem prejuízo do atrás afirmado, é evidente a presença de traços disfuncionais de personalidade no examinando, em concreto impulsividade, baixa tolerância à frustração, inconsequência e desapego pelos sentimentos de terceiros que naturalmente condicionam o seu comportamento e postura na vida, sendo necessária informação complementar recolhida em sede de perícia de psicologia para melhor se poder concluir sobre o caso (. . .)".
23. Em 06.11.2024, foi homologado o plano de intervenção para execução da medida determinada em 18).
24. De acordo com as informações recolhidas pela técnica gestora, em 19.02.2025, BB encontra-se bem integrado na família de acolhimento, mantendo frequência no ensino pré-escolar e beneficiando de terapias multidisciplinares, assim como de tratamentos de diversas especialidades, ORL, cirurgia pediátrica, estomatologia/odontopediatria entre outras, exigidos em consequência da ausência de cuidados médicos essenciais a que a criança foi sujeita.
25. No mais, os contactos entre BB e CC têm sido pautados por uma reduzida interação entre ambos e distanciamento relacional, apesar de existir afeto, sendo reconhecida reduzida capacidade para o exercício das competências parentais e ausência de estratégias potenciadoras de mudança.
26. CC evidencia comparecer nos convívios como forma de ter acompanhamento dos técnicos para que o orientem nas questões do quotidiano e demonstrando interesse em retomar a relação com a mãe da criança.
27. Ao longo do acompanhamento referido em 25), CC demonstra fraca consistência e capacidade de decisão, não cumprindo o acompanhamento e terapêutica prescrita no âmbito das consultas de psiquiatria, sendo mencionado pelos técnicos que é pouco funcional, não sendo expectável que sozinho, sem orientação de terceiros consiga melhorar o seu desempenho.
28. Em momento anterior aos convívios com o pai, BB demonstra resistência no seu início, verbalizando com frequência "eu não quero ... o CC não é o meu pai', enquanto bate repetidamente com os pés no chão, a movimentar as mãos e cabeça.
29. Nos convívios, BB demonstra um desapego emocional com o pai, ficando a brincar sozinho, enquanto CC brinca com outros brinquedos.
30. Muitas vezes é a criança que reforça positivamente o pai, referindo "boa, pai',
31. Durante as visitas, a afectividade física deixa de existir, de parte a parte.
32. Em momentos posteriores aos convívios, BB refere que "não quer o pai BB".
33. Desde abril de 2025, BB não recebe visitas e contactos por parte de CC.
34. CC é acompanhado pelos Serviços de Atendimento e Ação Social, no âmbito do Rendimento Social de Inserção e da ação social.
35. Reside em casa própria de tipologia T3, juntamente com o seu sobrinho, o qual padece de doença mental.
36. O pai de BB encontra-se a trabalhar no âmbito do programa "Contrato Emprego-Inserção", celebrado com o Município ..., de duração de 1 ano, auferindo a remuneração mensal de €650,00 (seiscentos e cinquenta euros).
37. CC tem três filhos de anterior relação, maiores de idade.
38. AA faltou às entrevistas agendadas para a realização da perícia psiquiátrica.
39. Desde junho de 2025, AA reside juntamente com o companheiro e a filha DD, na ..., em ..., em casa arrendada com a renda mensal de €650,00 (seiscentos e cinquenta euros).
40. A mãe de BB encontra-se desempregada, sendo a sua subsistência assegurada pelo companheiro, que aufere remuneração mensal no montante de €1.200,00 (mil e duzentos euros).
41. AA tem dois filhos de anterior relacionamento, um encontrando-se a viver com pai e outro institucionalizado.
42. Em 24.10.2024, AA foi mãe de DD, filha do atual companheiro.
43. Desde fevereiro de 2024, BB não recebe visitas e contactos por parte de AA.
44. Desde agosto de 2024, a mãe não contacta com a técnica gestora ou outros técnicos intervenientes no processo para obter informações sobre BB.
45. BB beneficia de acompanhamento especializado, por parte da equipa de Intervenção Precoce, sessões de Terapia da Fala e acompanhamento da especialidade de medicina familiar, pediatria de desenvolvimento e otorrinolaringologia.
46. BB foi sujeito a operações à boca, relacionadas com a especialidade de Estomatologia/Odontopediatria, atendendo ao estado se encontravam os seus dentes, e ao testículo.
47. Em junho de 2025, no contexto de festa escolar, BB questionou a família de acolhimento se teria conhecimento do nome da mãe.
48. Nenhum elemento da família alargada se mostra disponível e com capacidade para cuidar da BB.
Facto não provado (transcrição):
a. CC criou os três filhos identificados em 38), tendo assumido o pagamento de pensão de alimentos do filho EE até à maioridade.
Para melhor enquadramento da factualidade adquirida nos autos, por consulta à plataforma informática, adita-se ainda que:
49. Por despacho que remonta a 5 de Agosto de 2024, foi aplicada, em favor do beneficiário desta acção protectiva, a título cautelar e pelo período temporal de 3 (três) meses, a medida de colocação promovida.
50. Em 7 de Agosto de 2024, o Comando Distrital de ... da PSP informa os autos que:
«… se encontram registadas as seguintes ocorrências em que se encontram envolvidos CC e AA:
- Auto de violência doméstica NUIPC 130/24, em 10-01-2024
- Desentendimento familiar entre o CC e a AA, em 12-09-2019
- Auto de violência doméstica NUIPC 663/19, em 11-09-2019
Ainda sobre o CC, existem ainda os seguintes registos relevantes:
- Condução ao hospital por tentativa de suicídio por parte do CC, ...79/2020
- Condução ao hospital por tentativa de suicídio por parte do CC, ...53/2019
- Proc. 598/19, por crimes contra a integridade física; queixa apresentada por CC contra o irmão FF, em 12-09-2019
- Auto de violência doméstica NUIPC 93/20, em 20-02-2020, entre o CC, tipificado como vítima e GG, ex-mulher do CC, como suspeito.
Sobre a criança BB, não existem registos de ocorrências.».
51. No Relatório Social de Avaliação Diagnóstica, elaborado pelo Centro Distrital de ... da Segurança Social, junto aos autos em 19 de Agosto de 2024, consta que:
«- Em janeiro do presente ano, na sequência de episódio de violência doméstica, AA saí de casa com ... e foi viver para parte incerta;
- Nessa sequência a CPCJ ..., teve conhecimento que ambos estavam em condição de sem abrigo, aplica a medida de “acolhimento familiar”;
- Desde então os progenitores tiveram um único convívio com a criança, em momentos distintos, o convívio com a mãe em 02/02/2024, foi um momento caracterizado pela interação positiva entre mãe e filho com demonstração de afeto entre ambos.
- No que diz respeito ao convivo com o pai no dia 02/05/2024, não se verificou envolvimento do pai com BB, não sendo verificado de manifestações de carinho e afeto na relação parental;», propondo a continuação em execução da medida protectiva.
52. Tomadas declarações aos progenitores, em 20 de Agosto de 2024, os mesmos aceitaram a aplicação da medida de promoção de acolhimento familiar.
53. Na Informação Social do Centro Social Paroquial ..., datada de 15 de Julho e entrada nos autos em 1 de Outubro de 2024, consignou-se que:
«O primeiro convívio e único de BB com a mãe ocorreu no dia 02/02/2024.
… A mãe não colocou nenhuma questão acerca da situação de saúde, escolar e social do filho.
O primeiro convívio e único de BB com o pai ocorreu no dia 02/05/2024.
…O pai não questionou em qualquer momento a situação de saúde, escolar e social do filho. BB trouxera a prenda do Dia do Pai, … o pai não deu grande relevância não a levando consigo.
De referir que, até à data, a esta equipa, não houve qualquer pedido de agendamento para a realização de convívios entre BB e o pai ou mãe.».
54. O Plano de Intervenção para Execução da Medida, vinculando os progenitores e a família de acolhimento, remonta a 29 de Outubro de 2024 e foi homologado em 6 de Novembro seguinte.
55. A progenitora foi notificada em 26 de Dezembro de 2024 para comparecer à perícia psicológica agendada para 3 de Fevereiro de 2025, mas faltou sem dar explicação.
56. Em sede de diligência efectuada em 12 de Maio de 2025, os progenitores declararam opor-se à aplicação da medida de confiança com vista à futura adopção, proposta pela equipa social.
VI.
Do Direito
O âmbito deste recurso centra-se na aplicação da medida de colocação mais gravosa, a de confiança com vista a futura adopção, sendo que, na óptica da Recorrente, a mãe da criança beneficiária desta instância de promoção e protecção, mal andou o Tribunal a quo, por não (cf. Conclusões 4.ª e 5.ª):
- ter atentado na mudança da sua residência (de ... para ...), com o seu actual companheiro e filha comum bebé, para estar mais perto do filho,
- lhe ter dado a oportunidade de comprovar que tem afecto, família e habitação adequados ao filho, o que seria atestado pelos técnicos sociais, em relatório.
Concluiu propendendo pela manutenção em vigor da situação protectiva que abrangia a criança, ou seja, a medida de colocação de acolhimento familiar.
Esta perspectiva é frontalmente contrariada pelo requerente desta acção protectiva, o Ministério Público, para quem se impõe a aplicação da medida de confiança com vista a futura adopção, porquanto a progenitora está completamente alheada das necessidades e rotinas do filho, o qual carece de uma relação vinculativa, securizante e organizadora do seu crescimento.
Em linha com múltiplos instrumentos de Direito Europeu e Internacional da Família[2], vinculativos para o Estado Português ex vi art. 8.º, n.ºs 2 e 4, da Constituição da República Portuguesa, e que, enquanto tal, constituem direito material interno, o legislador constitucional elencou como traves estruturantes e fundamentais atinentes à família, inter alia, as seguintes: o direito à igualdade na gestão parental (arts. 13.º e 36.º, n.º 3); o direito à identidade pessoal, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra formas de discriminação (art. 26.º, n.º 1); o direito de constituir família (art. 36.º, n.º 1); a responsabilidade parental primária na educação e manutenção dos filhos (art. 36.º, n.º 5), e a regra da inseparabilidade dos filhos dos progenitores, excepto se estes não cumprirem os deveres parento-filiais, comprovado por decisão judicial (art. 36.º, n.º 6).
Na esteira destes comandos, a lei ordinária prescreve que o parentesco é uma das fontes de relações jurídicas familiares, os progenitores são investidos na titularidade das responsabilidades parentais de modo igualitário e automático, e estas caracterizam-se pela sua irrenunciabilidade, inalienabilidade e controlabilidade judicial – arts. 1576.º, 1796.º, n.º 1, 1797.º, 1826.º, n.º 1, 1847.º, 1874.º, n.º 1, 1877.º, 1878.º, n.º 1, e 1882.º, todos do Código Civil.
No referido art. 1878.º, n.º 1, reside o conteúdo das responsabilidades parentais, enquanto complexo de poderes-deveres, faculdades e encargos legalmente cometidos aos progenitores, afirmando-se que lhes compete, na prossecução do melhor interesse dos filhos, velar pela sua segurança e saúde, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, administrar os seus bens e, de acordo com as suas possibilidades próprias, interesses, vontades e necessidades particulares dos filhos, promover o desenvolvimento harmónico, holístico e integral destes.
O processo de promoção e protecção nunca está contra o(s) representante(s) legal(is), mas sempre e só a favor da defesa do melhor interesse da criança ou jovem dela beneficiário.
No caso em apreço, a abertura da presente acção judicial de promoção e protecção fundou-se na existência concretizada de uma situação de perigo, legitimadora da intervenção judicial e, em obediência aos princípios orientadores desta mesma intervenção (superior interesse da criança, intervenção precoce, proporcionalidade, necessidade, suficiência, adequação e actualidade, responsabilidade parental, primado da continuidade das relações psicológicas profundas, prevalência da família e direito de participação), motivou a aplicação, a título provisório e cautelar, da medida protectiva em regime de colocação, concretamente a de acolhimento familiar – medida esta já em execução e acordada com os progenitores, na Comissão de Protecção (factos n.ºs 8 e 11).
Tudo como forma de remover o perigo em que a criança se encontrava, proteger a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento global, e garantir a sua recuperação física e psicológica do estado de negligência geral a que estava votada, ao abrigo dos arts. 1.º, 2.º, 3.º, n.ºs 1, e 2, als. a), b), c) e f), 4.º, als. a), c), e), f), g), h), i) e j), 34.º, 35.º, n.ºs 1, al. f), 2 e 3, 37.º, n.ºs 1 e 3, e 38.º, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (na sua última versão, operada pela Lei n.º 39/2025, de 1 de Abril).
Com efeito, haverá que não esquecer que esta é uma criança com necessidades de saúde, relacionais e educativas específicas, em função da doença genética de que padece e das limitações cognitivas e desenvolvimentais que aporta – cf., v.g., o Princípio 5.º da Declaração dos Direitos da Criança quanto aos direitos da criança com incapacidade.
Perante os termos em que o recurso foi gizado, impõe-se a densificação dos conceitos utilizados, quer no art. 36.º, n.º 6, da Constituição da República Portuguesa, quer no art. 1978.º do Código Civil[3], a par de uma ponderação muito exigente na verificação dos pressupostos ali contidos, posto que do que se trata é da quebra do vínculo do parentesco, aqui o primordial da filiação, com ascendentes em 1.º lugar da linha recta – arts. 1578.º, 1579.º, 1580.º e 1581º, todos do Código Civil.
Com a centralidade posta na criança, importa aquilatar do sentimento de pertença que porventura apresente aos progenitores, e, na afirmativa, se estes querem, de modo não fantasioso ou irrealista, e reúnem condições para a ter consigo, assegurando de modo proficiente e cabal a função parental.
A criança beneficiária desta instância protectiva nasceu em ../../2020 (facto n.º 1).
Pelo menos desde Dezembro de 2022, data da instauração do processo na Comissão de Protecção, que vivenciava uma situação de perigo a que os progenitores não quiseram ou souberam pôr cobro, oferecendo resistência em levá-lo para o ensino pré-escolar, vivendo num local sem abastecimento de água, por falta de pagamento do consumo facturado, em ambiente pautado por cenas de violência doméstica, tendo inclusive chegado a morar na rua com a mãe, sem cuidados básicos de higiene (factos n.ºs 4, 5, 7, 9, 10, 50 e 51).
Só logrou a assistência médica e medicamentosa de que tanto carece, por via da doença de que padece, com a intervenção da família de acolhimento que veio suprir uma lacuna vital para o seu desenvolvimento e bem-estar (factos n.ºs 2,12, 19, 20, 24, 45 e 46).
Perpassa da factualidade assente que o progenitor não está, minimamente, implicado na vida, na saúde ou no trajecto pré-escolar do filho, nem este comunga, com aquele, de qualquer sentimento de partilha, modelo ou referência paternal afectiva estruturante de grande referência (v.g., …o pai não questionou em qualquer momento a situação de saúde, escolar e social do filho. BB trouxera a prenda do Dia do Pai, … o pai não deu grande relevância não a levando consigo.
De referir que, até à data, a esta equipa, não houve qualquer pedido de agendamento para a realização de convívios entre BB e o pai ou mãe).
Acresce que não tem estratégias internas, nem potencial evolutivo para cuidar e manter consigo o filho (factos n.ºs 14, 21, 22, 25 a 33 e 53).
No tocante à Recorrente, a mera leitura da matéria de facto denota que não lhe assiste razão nas objecções que aqui trouxe, constatando-se que o Acórdão tomou em devida conta a mudança de domicílio e outras condicionantes pessoais (cf. factos n.ºs 39 ss.).
O que se retira é que a Recorrente, no intervalo temporal de 2 anos, mudou de residência, pelo menos 3 vezes, vive em casa arrendada com o actual companheiro, pai da filha mais nova, uma bebé nascida em Outubro de 2024, sendo certo que tem 4 filhos e com excepção desta bebé, nenhum está consigo, está desempregada e vive a expensas daquele, tendo faltado ao exame pericial de Fevereiro de 2025, sem aventar qualquer explicação para o sucedido (factos n.ºs 10, 16, 38 a 42 e 55).
Por referência a 8 de Julho de 2025 (data em que teve lugar o Debate Judicial), não contactava ou convivia com o filho já desde Fevereiro de 2024, e desde Agosto de 2024, igualmente não contactava com a técnica gestora ou outros técnicos intervenientes no processo para saber informações da vida do filho (factos n.ºs 14, 43, 44 e 53).
Ou seja, não vê o filho desde que este tinha 3 anos e 8 meses de idade.
Desligou-se e demitiu-se em absoluto de participar na vida do filho, o que ocorreu muito antes de estar grávida (v.g., … a mãe não colocou nenhuma questão acerca da situação de saúde, escolar e social do filho.
De referir que, até à data, a esta equipa, não houve qualquer pedido de agendamento para a realização de convívios entre BB e o pai ou mãe.).
A existência dos vínculos próprios da filiação depende e assenta na continuidade das relações de afecto, e para uma criança, sobretudo nos primórdios da primeira infância, não é suficiente que os seus progenitores, ou os seus principais cuidadores, façam uma visita ou um telefonema de quando em vez, como se de mínimos olímpicos se tratasse, aparecendo e desaparecendo da sua vida a seu belo prazer, sem justificações.
Não se questiona que a Recorrente possa ter amor ao filho, mas não basta a mera declaração de princípio no sentido de que se quer o filho.
Quando se trata do destino e da vida de um ser humano, mais a mais de uma criança, que necessita e exige do adulto cuidador estruturação sólida, é certo que se tem que conceder uma janela temporal, necessariamente breve, para promover e garantir que o mesmo adquira competências e capacidades para poder providenciar adequadamente pelas rotinas da criança, mas o que não pode, sequer, equacionar-se é uma dilação temporal incerta na prestação de cuidados (v.g., tomarei conta futuramente…quando puder …), ou a perpetuação ad eternum da indefinição pessoal da vida da criança (v.g., mantém-se em acolhimento à espera que os progenitores arranjem trabalho, ou casa, ou família, ou…).
Apurado ficou também o desrespeito contínuo dos progenitores pelas obrigações emergentes dos acordos protectivos, por último, o do Plano de Intervenção (facto n.º 54), a despeito dos esforços concertados do Tribunal e dos organismos de intervenção social.
As acções e as omissões da Recorrente, ambas com idêntico peso, são pautadas pela desresponsabilidade parental, indiferença pelas necessidades próprias do filho, indefinição e apatia pessoal, padrão de disfuncionalidade, desinteresse emocional e vivencial do filho, baixa capacidade de insight e de compreensão crítica dos seus actos, e falta de um referente de vida sustentado, global e coerente que lhe possa oferecer.
A Recorrente manifestou-se incapaz de se modelar para criar ou desenvolver laços afectivos robustos, de qualidade e significativos, e esta postura abandónica, traduzida em absentismo físico e sentimental, gerou a ausência de gratificação materna, por parte do filho, que, volvidos 1 ano e 4 meses sobre o último convívio, até se interrogava sobre o nome da Recorrente (facto n.º 47).
Por isso, com a Recorrente não existe continuidade nas referências, partilha ou vínculo afectivo, nem o seu reconhecimento como a figura materna, consubstanciadora das raízes e dos alicerces da sua vida.
Em suma, perpassa da factualidade provada que a Recorrente não apresenta um quadro pessoal – não tem capital de mudança, nem diligenciou activamente para obtê-lo, investindo nas competências parentais, podendo e devendo tê-lo feito –, que permita, em consciência, atribuir-se-lhe o encargo da responsabilidade educacional, proteccional e relacional do filho.
Por conseguinte, estas falhas, porque conjugadas, comprometeram irremediavelmente os laços afectivos próprios da filiação, e tornaram-se fracturantes na vida desta criança – cf. art. 1978.º, n.ºs 1, al. d), e 3, do Código Civil.
Este processo integra a categoria dos processos de jurisdição voluntária (art. 100.º da Lei de Protecção), o que convoca os critérios orientadores na tramitação e decisão consagrados nos arts. 986.º a 988.º do Código de Processo Civil, e, no confronto entre os direitos da criança e os dos respectivos progenitores, prevalecem inequivocamente os primeiros – cf. art. 1978.º, n.º 2, do Código Civil.
Urge reequilibrar a sua vida, definindo uma estratégia promotora de uma vida futura harmoniosa, o que implica dar-lhe a família que espera e merece, isto é, um contexto familiar alternativo, estável e duradouro.
Não em meio natural de vida ao nível da família nuclear, nem alargada, realçando-se que não se descortinaram membros da família alargada, materna ou paterna, que pudessem responsabilizar-se pela mesma – facto provado n.º 48.
Por seu turno, a manutenção em execução da medida protectiva de acolhimento familiar, como invoca a Recorrente, depõe contra o melhor interesse desta criança.
Assim é, porque qualquer forma de acolhimento é, mais ou menos, erosiva, e nenhuma constitui um projecto de vida para uma criança.
Mesmo o acolhimento familiar, hoje em dia priorizado sobre a medida de Acolhimento Residencial (art. 46.º, n.º 4, da Lei de Protecção), não tem esta virtualidade.
A adopção configura o único projecto de vida capaz de assegurar os cuidados e necessidades desta criança, indo ao encontro do seu melhor interesse[4], para garantir o seu são desenvolvimento, conforme sublinhou o Acórdão recorrido.
Decretando-se a medida de promoção e protecção de confiança com vista a futura adopção (arts. 35.º, n.º 1, al. g), 38.º e 38.º-A, al. b), todos da Lei de Protecção), no caso a família de acolhimento, tal acarreta, entre o mais e ope legis, a inibição do exercício das responsabilidades parentais, incluindo convívios, segundo os arts. 1978.º-A do Código Civil, e 62.º-A, n.º 6, ambos da Lei de Protecção.
Destarte, improcede o recurso.
O pagamento das custas processuais é encargo da Apelante (arts. 527.º e 607.º, n.º 6, este ex vi 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, por remissão do art. 126.º da Lei de Protecção).
VII.
Decisão:
Segundo expendido, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando o Acórdão recorrido.
O pagamento das custas processuais incumbe à Recorrente.
Registe e notifique.
28 de Outubro de 2025
[1] Juiz Desembargador 1.º Adjunto: Dr. José Avelino Gonçalves
Juiz Desembargadora 2.ª Adjunta: Dra. Maria Catarina Gonçalves
[2] Arts. 16.º, n.º 3, da Declaração Universal dos Direitos Humanos; 8.º e 12.º, ambos da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (e 5.º do Protocolo n.º 7, de 1984); 17.º, 23.º e 24.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos; 3.º, n.º 2, 7.º, 9.º, 16.º, 18.º, 20.º e 27.º, da Convenção sobre os Direitos da Criança, e 7.º, 9.º, 24.º, e 33.º, n.º 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Cf., também, os Princípios 6.º, 7.º e 9.º da Declaração dos Direitos da Criança; as Directrizes do Conselho da Europa sobre a Justiça Adaptada às Crianças, os Comentários do Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas e os Princípios de Direito Europeu da Família quanto às Responsabilidades Parentais, sobretudo 3.3, 3.7, 3.26, 3.28, 3.32, 3.33, e 3.35.
[3] Sob a epígrafe Confiança com vista a futura adopção, assinala, no segmento pertinente, que:
«1 - O tribunal, no âmbito de um processo de promoção e proteção, pode confiar a criança com vista a futura adoção quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, pela verificação objetiva de qualquer das seguintes situações:
…
d) Se os pais, por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança;
2 - Na verificação das situações previstas no número anterior, o tribunal deve atender prioritariamente aos direitos e interesses da criança.
3 - Considera-se que a criança se encontra em perigo quando se verificar alguma das situações assim qualificadas pela legislação relativa à proteção e à promoção dos direitos das crianças.».
[4] Margarida Santos e Chandra Gracias in, Manual de Justiça Juvenil e de Justiça Penal, Coordenação de Maria João Leote de Carvalho, Vera Duarte, Sílvia Gomes e Rafaela Granja, Editora Húmus, Novembro de 2024, p. 76: «Transversal à forma de processo, à entidade que preside e ao tipo de acto que se pretende realizar, encontra-se sempre o princípio do superior interesse da criança.
A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem afirmado que o interesse superior da criança é:
- um princípio jurídico interpretativo da maior importância;
- um direito material que deve ser identificado e valorizado em cada caso concreto e que deve ser sempre tomado em consideração;
- uma norma processual que exige uma avaliação do impacto da decisão sobre a criança.».