TESTAMENTO
FORMA LEGAL
VALIDADE
DOENÇA MENTAL
INCAPACIDADE DE FACTO DO TESTADOR
ÓNUS DA PROVA
Sumário

I – O testamento caracteriza-se por ser um negócio jurídico unilateral, mortis causa, não receptício, pessoal, individual, livremente revogável e formal. Por esse motivo deve ser o testador a expressar a sua vontade e “a expressão da vontade da pessoa tem de ser integral” sem prejuízo, naturalmente, das excepções expressamente consagradas nos artigos 2182º, n.º 2, e 2183º, do Código Civil.
II – A exigência de forma para a celebração do testamento visa o reforço das condições para que a declaração corresponda à vontade real do testador, surgindo o formalismo “como garante de expressão livre e última do testador”. A intenção fundamental da lei é a de garantir o carácter pessoal do testamento, não a de reforçar a exigência de clareza ou inequivocidade da declaração - o modo como o testador manifesta ou expressa a sua vontade.
III – Para a validade do testamento é necessário que o testador tenha expressado a sua vontade por palavras suas, exigindo, ainda, que a vontade seja claramente manifestada, ou seja, que não fiquem dúvidas sobre aquilo que o testador manifestou querer - o que não se confunde com dúvidas sobre o teor da vontade manifestada, as quais são resolvidas por via de interpretação do testamento mas, em regra, não afectam a sua validade.
IV – É indispensável que o testador tenha a “consciência do seu acto e dos efeitos deste; que tenha uma ideia justa da extensão do bem de que dispõe; que esteja em estado de compreender e de apreciar os direitos que vão nascer da sua disposição de ultima vontade, e, especialmente, com relação a este ultimo objecto, que nenhuma perturbação de espírito envenene as suas afeições, ou perverta o seu sentimento do justo, ou ponha obstáculo ao exercício das suas faculdades naturais; que nenhum delírio influencie a sua vontade, quando dispõe da sua fortuna, ou o arraste a fazer um uso dela que não faria, se estivesse em plena integridade do seu espírito” – ler o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Abril de 2013, acessível em www.dgsi.pt.
V – O ónus da prova dos factos reveladores de uma situação de incapacidade de facto do testador, no momento da feitura do testamento, para efeitos do artigo 2199.º, recai sobre o interessado na anulação do testamento em virtude do estatuído no artigo 342.º, n.º 1, ambos do Código Civil. A capacidade testamentária activa não é afectada por qualquer deficiência cerebral ou mental do testador, ao tempo da feitura do testamento, mas tão-somente por anomalias daquela natureza que eliminem a vontade e o entendimento - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-1971, in Boletim do Ministério da Justiça nº 212, Ano 1972, pág. 257.
VI – Não é qualquer psicopatia que tira ao indivíduo a possibilidade de dispor dos seus bens: a doença mental há-de obnubilar-lhe a inteligência ou enfraquecer-lhe de tal jeito a vontade, que possa afirmar-se que não entendeu o que disse ou, em condições normais, não quereria o que declarou - Acórdão da Relação do Porto de 14-3-73, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 226, pág. 279.
VII – O testamento só pode ser anulado quando o testador não estiver em condições de entender o sentido daquilo que declare no testamento ou não tenha o livre exercício da sua vontade. A existência de doenças, tais como a senilidade e a arteriosclerose não é, por si só, suficiente para afastar a capacidade testamentária activa, tornando-se necessário, para tal, que, ao tempo da feitura do testamento, o testador não tenha podido entender a sua declaração constante do mesmo testamento – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-01-1991, in www.dgsi.pt.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

 

1 – Relatório

AA, intentou contra BB, a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, pedindo que, na sua procedência:

a) que se declare nulo o testamento outorgado por CC, em 17 de Fevereiro de 2017;

b) que seja declarada a anulação desse testamento, por incapacidade do testador.

Alega para tanto, em síntese, que autor e ré são os únicos filhos do falecido testador CC, e de DD, também falecida; por alegado testamento outorgado em 17 de Fevereiro de 2017, o falecido CC, terá instituído como herdeira da quota disponível de todos os seus bens a ora ré; no entanto, a assinatura que consta desse testamento como do testador, não foi feita pelo punho deste, e ademais, que o falecido testador padecia de demência que o tornava incapaz de entender e querer o teor desse testamento outorgado.

A ré contestou defendendo-se por impugnação e arguiu a caducidade do direito de acção, nos seguintes termos:

- o autor teve conhecimento do testamento, pelo menos, desde 23.04.2018, através de comunicação que a ré lhe fez, por mensagem de correio eletrónico, onde anexou a habilitação de herdeiros e a relação de bens (cf. doc. 1 que junta);

- certamente por lapso do funcionário que tomou as declarações para instrução do processo de imposto de selo, deste processo de imposto de selo não consta a referência ao testamento - mas da habilitação de herdeiros ele consta, de forma inequívoca, encontrando-se anexo à mesma (Doc. 2);

- em mensagem de correio eletrónico de dia 1 de Maio de 2018 dirigido ao autor, a ré volta a falar no testamento quando diz: “Preocupado com a necessidade de me compensar, decidiu deixá-lo expresso em testamento”, conforme cópia de email que junta como doc. 3;

- donde, nos termos do nº 2 do art. 2308º do Código Civil “ Sendo anulável o testamento ou a disposição, a acção caduca ao fim de dois anos a contar da data em que o interessado teve conhecimento do testamento e da causa da anulabilidade”.

- não houve qualquer facto ou circunstância que tivesse suspendido ou interrompido tal prazo de caducidade, nos termos do que se estabelece no nº 3 daquela citada norma: no que respeita à suspensão torna-se manifesto que nenhuma das situações prescritas nos art.s 318º a 322º do CC, aqui se verificam; quanto à interrupção (art. 323º do CC ) também aqui não opera; é pressuposto da suspensão que haja citação ou notificação judicial ou o uso de outro meio judicial (cf. nº 4); nunca qualquer meio extrajudicial- donde a “ Oposição e Reclamação contra a Relação de Bens” apresentada pelo aqui autor, em sede do processo de inventário que corre termos pelo Cartório Notarial Drª EE, em 18.03.2019 não tem eficácia interruptiva da caducidade: pese embora os poderes atribuídos aos Notários para tramitarem os processos de inventário, no âmbito de políticas de desjudicialização e de desjurisdicionalização, que são permitidas pelo nº 4 do art. 202º da Constituição da República Portuguesa, certo é que estes ( Notários) não passaram a ser tribunais, que no nº 1 do citado art. 202º da CRP “ (…) são os órgãos de soberania com competência para administra a justiça em nome do povo “ e, consequentemente, também não praticam atos judiciais, pelo que, o entendimento de que a prática do ato de oposição / reclamação praticado em notário tem eficácia para efeitos de interrupção da caducidade, de acordo com o estabelecido no art. 323º do CC estaria irremediavelmente ferido de inconstitucionalidade, por violação da norma do art. 2º da CRP, que consagra que a República Portuguesa é um estado de direito democrático baseado, para além de mais, na separação de poderes e do art. 202º da CRP que atribui aos tribunais a competência exclusiva para administrar a justiça em nome do povo- donde, quando o autor instaurou apresente acção em 27.01.2021 já há muito tinha decorrido o prazo de 2 anos para a instauração da acção de anulação do testamento – sendo manifesta a inexistência de qualquer nulidade - previsto no citado art. 2308º, nº 2, tendo caducado, por isso, o seu direito.

Responde o autor, em sede de audiência prévia, em sumula:

- refuta a verificação da caducidade, na medida em que o conhecimento da outorga do testamento pelo autor tao somente ocorreu com a citação para os termos do inventário, verificada em Fevereiro de 2019;

- a arguição verificada no âmbito do inventário também tem como efeito a interrupção do prazo de caducidade; - outrossim o email junto como doc. 1 da contestação não foi recepcionado pelo autor, bem como os demais atinentes às referidas comunicações (doc. 3, ambos da contestação).

Teve lugar a audiência prévia e proferido despacho saneador, decidiu-se, além do mais julgar improcedente a arguida caducidade quanto à primeira causa de pedir e relegar quanto à segunda, o conhecimento, para momento posterior isto porque o autor funda a sua pretensão de invalidade em duas causas autónomas:

- a falsidade da assinatura do testador (assim, também do testamento enquanto documento público dotado de força pública) o que se reconduz a um vicio gravoso de nulidade (ou mesmo da sua inexistência, caso se entenda ter sido forjada a emissão de declaração de vontade);

- a demência- incapacidade do testador;

assim,

a- quanto à referida falsidade de assinatura(primeira causa de pedir), sendo determinante, ao menos, de uma nulidade; atendendo que nas causas de nulidade do testamento, designadamente por força do disposto nos artºs 2180º, 2184º, 2185º, 2186º, 2190º, 2192º, 2194º, 2196º, 2197º e 2198º do CC, a acção de nulidade do testamento ou de disposição testamentária caduca ao fim de dez anos, a contar da data em que o interessado teve conhecimento do testamento e da causa da nulidade (artº 2308º, nº 1, CC)- decidiu-se ser manifesto que o prazo de caducidade não decorreu, atenta a data da outorga do testamento e sua abertura.

b- Quanto à segunda, sendo efectivamente aplicável os termos do art. 2199º do Código Civil –“É anulável o testamento feito por quem se encontrava incapaz de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória” e tratando-se de anulabilidade - cf. seu no nº2, tal prazo ocorre ao fim de 2 anos; quanto a esta segunda causa de pedir da caducidade, cf. art. 329.º do Código Civil, começando o prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido relegou-se decisão para momento posterior, pois dependente de prova a produzir: na verdade, o autor invoca que teve conhecimento da existência do testamento apenas em Fevereiro de 2019, com a citação para os termos do inventário - data que se confirma por consulta eletrónica; assim, atenta a data da propositura desta acção e citação –27-1-2021- e -2-2-2021- respectivamente, a caducidade ainda não teria ocorrido; no entanto, invoca a ré que o conhecimento ocorreu pelo menos a 23-4-2018- nesta caso, inexistindo causas de suspensão ou interrupção ordinárias, quanto a esta causa de pedir, a caducidade teria ocorrido a 24-4-2020, - mas deduzindo o período entre 9 de Março de 2020 e 3 de Junho de 2020, nos termos dos n.ºs. 1 e 3 do artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março – lei que aprovou diversas medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, agente causador da doença COVID-19 -, aditado pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro- a caducidade terá ocorrido a 20 de Julho de 2020.

No Juízo Central Cível de Coimbra - Juiz 2   foi proferida a seguinte decisão final:

Nestes termos e nos mais de direito, julga-se improcedente a arguição de excepção de caducidade, e bem assim, improcedente por não provada, a presente acção.

Custas pelo autor.

Registe e notifique.

Não há sinais de litigância de má fé.

Data e assinatura electronicamente apostas


*

AA, Autor nos autos à margem melhor identificado, notificado de tal decisão dela interpõe recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

(…).


*

BB, notificada das alegações do Apelante, apresenta as suas contra-alegações assim concluindo:

(…).


*

2. Do objecto do recurso

Apurar da invalidade de testamento publico outorgado por CC, pai de autor e ré, em 17 de Fevereiro de 2017, que instituiu como herdeiro da quota disponível de todos os bens a ré, aberto a 8-3-2018, fundada na alegação: de que a assinatura que consta desse testamento como do testador, não foi feita pelo punho deste (nulidade); de que o falecido testador padecia de demência que o tornava incapaz de entender e querer o teor desse testamento outorgado(anulabilidade).

2.1-Da matéria de facto;

2.1.1 – Fixada na 1.ª instância;

 1. Matéria de facto provada:

a) Factos provados:

a- O A. e a R. são filhos do falecido CC e da falecida FF, tudo conforme certidões de habilitações de herdeiros, junta com documento n.º 1 da pi;

b- ela falecida a ../../2015 e ele falecido a ../../2017.

c- Por testamento outorgado em 17 de fevereiro de 2017 o falecido CC instituiu como herdeira da quota disponível de todos os seus bens a ora R., tudo conforme testamento aberto a 8 de março de 2018, que se encontra junto com a certidão da habilitação de herdeiros já junta como documento n.º 1 (cfr. doc. 2 da pi.), nele fazendo constar: “Que para a compensar das importâncias em dinheiro dado a seu filho AA, por si e pelo seu falecido cônjuge, no período de seis de Julho de dois mil e dez a dez de Janeiro de dois mil e doze, no montante global

d- de sessenta e seis mil novecentos e cinquenta e dois euros e vinte e dois cêntimos, que foi retirado das contas bancárias dele testador e do seu referido cônjuge (…)”; também a segunda parte da declaração, que se vai transcrever, tem pleno fundamento, como se demonstrará : “ (…) e ainda para lhe agradecer a dedicação, atenção e cuidado que sempre teve com o testador e seu falecido cônjuge, sempre que necessário, por não ter outros meios para o fazer, institui herdeira da sua quota disponível, sua filha BB”.

e- O de cujus e a sua esposa passaram a residir no lar de 3ª idade, concretamente no Lar ..., em ... por ocasião de inicio de 2013

f- O A. e a sua esposa, já emigrados no estrangeiro e de modo a inteirar-se do estado de saúde dos falecidos, iam trocando mensagens com a ré. ( cf. doc. 5)

g- Desde 2012 que o estado de lucidez que ambos os progenitores foi tema de conversas entre ambos e a esposa do A.. cf. doc. 5 .- nomeadamente por ocasião da sua entrada no Lar, por eles contestada, e bem assim na sequência de quedas do de cuius.

h- GG e HH, testemunhas do testamento são respectivamente: mandatário da R. numa fase inicial, no âmbito do processo de inventário 2903/2018, que corria termos no Cartório Notarial Dr.ª EE, tudo conforme documento n.º 11 da pi- entretanto substituído pelo Sr. Mandatário contestante; e funcionária do escritório do atual mandatário da R. e do respetivo marido da R.;

i- A assinatura de comparação foi efetuada em “ Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros e Registo “, perante a Conservadora, II , em 04.11.2016, estando como tal o decuius presumidamente capaz de prestar declarações válidas e assinar apenas 72 dias antes da outorga do testamento;

j- Ao Sr. Notário, Dr. JJ, notário com grande experiência e prestígio não se lhe ofereceu dúvida quanto à capacidade do testador;

k- Antes de celebrar o testamento, o testador foi ao Banco pessoalmente pedir cópia de todos os cheques e transferências que documentassem os O marido da R., KK, apesar de ter a inscrição na Ordem dos Advogados suspensa, foi e era à data da outorga do testamento, colega de escritório do mandatário da R., tudo conforme documento n.º 12;

l- empréstimos efetuados a seu filho, o ora autor e estando as contas em seu nome só este podia fazer tal pedido, como fez, e só a ele as cópias podiam ser entregues, como foram, - cf. Doc. s 4 a 32 da contestação;

m- A quantia dada por seus pais ao autor , entre julho de 2010 e janeiro de 2012, perfaz 66 952,22€ ( cf. docs. 4 a 32 da contestação) e 55 857,26€ (valor confessado pelo autor).

n- O autor foi para o Brasil em Dezembro de 2011, na ocasião, como agora se sabe, em que seus pais lhe deram 33 257.42€, - devido à sua necessidade- tendo, de seguida, ido a sua família.

o- Os pais viram-se, assim, de um momento para o outro, sem grande parte das suas economias e sem uma parte da família que até então vivia próxima ( em Lisboa).

p- Os pais frequentavam o Centro de Dia ..., nos ..., Lisboa, mas sentiam-se sozinhos, como é compreensível.

q- A ré e o marido iam frequentemente a Lisboa para lhes fazerem companhia, sobretudo ao fim de semana, devido ao facto de trabalharem, como professora de História e advogado, respetivamente, na cidade de Coimbra;

r- Sempre que iam levavam o computador portátil para que os pais pudessem falar, via Skype, com o filho e netos, mas atendendo à zona em que estes viviam no Brasil, nem sempre era fácil o contacto por deficiência das comunicações.

s- Como se sentiam isolados, a ré trouxe-os para sua casa onde estiveram durante os meses de setembro, outubro e quase a totalidade de novembro de 2012.

t- Porém, devido às suas ocupações como professora, a ré não conseguia dar- lhes a companhia e o apoio diário que era necessário, até porque sua mãe sofria da doença de Parkinson, que começava a exigir cuidos especiais;

u- entretanto, o pai do autor e da ré foi tendo até ao seu falecimento vários problemas de saúde, do foro da cardiologia, da neurologia, neurocirurgia e ortopedia de que recebeu tratamento hospitalar no Centro Hospitalar e Universitário ...;

v- não tendo os médicos declarado que o mesmo sofria de demência nem foi tratado a uma pretensa demência.

w- Aliás, nenhum dos médicos que o acompanhavam no dia – a -dia, quer o Dr. LL, quer a Drª MM – sua médica de família - quer a Drª NN lhe diagnosticou, tratou ou informou a ré de que este sofria de demência.

x- Em 13 de março de 2013, o pai de ambos deu uma entrevista jornal de .... (cf. print da pagina junto por reqº REFª: 38854097

y- No final desse mesmo ano, o pai da ré pediu-lhe um caderno para tomar notas das suas memórias.

z- O pai de ambos participava nas atividades que os serviços do Lar organizavam para as pessoas ali residentes.

aa- O autor e família regressaram do Brasil em 2014 e, nessa altura, visitaram os pais e avô que os não viam pessoalmente desde finais de 2011 e ficaram naturalmente muito contentes e com a esperança de que os iriam ter de novo próximos de si.

bb- Porém, logo em janeiro de 2015, o autor e família foram viver para Inglaterra.

cc- O autor, entre dezembro de 2011 e a morte de sua mãe em fevereiro de 2015 visitou os pais 1 vez e, desde a morte desta e a vinda ao funeral até ao decesso de seu pai, visitou-o igualmente uma vez;

dd- O autor não compareceu no funeral do pai que faleceu na véspera do Natal de 2017.

ee- A autora procurou estar presente e sempre os apoiou e acarinhou, em especial nos últimos anos da vida de ambos, acompanhando todos os vários internamentos, consultas e urgências hospitalares.

ff- E procurou manter a ligação entre os pais e a família do filho, deslocando-se, a Lisboa quer, depois da ida para o Lar, a esta instituição no ..., levando o seu computador para que pudessem ver-se e falar via Skype.

gg- A pedido dos seus pais enviou encomendas para o Brasil, postais e dinheiro pelo aniversário dos membros da família do filho, ora autor.

hh- E manteve o seu irmão, ora autor, e cunhada informados da situação de saúde dos Pais.

ii- Daí o natural reconhecimento de seu pai, bem expresso na declaração que fez no testamento.

b) Factualidade não provada:

1) A assinatura feita constar do testamento não é do punho do testador;

2) Os progenitores de autor e ré passaram a viver numa instituição era precisamente porque já não tinham capacidade cognitiva para viverem sem a ajuda;

3) Na verdade, o de cujus padecia de demência que o tornava incapaz de entender e querer o teor do testamento outorgado a 17 de fevereiro de 2017;

4) À data da outorga, o decuius não tinha capacidade para entender o alcance do mesmo;

ºººº

5) O autor teve conhecimento do testamento, pelo menos, desde 23.04.2018, através de comunicação que a ré lhe fez, por mensagem de correio eletrónico, onde anexou a habilitação de herdeiros e a relação de bens (cf. doc. 1 da contestação);

6) devido a lapso do funcionário que tomou as declarações para instrução do processo de imposto de selo, e não qualquer tentativa de ocultação por parte da ré, deste ( processo de imposto de selo) não consta a referência ao testamento;

7) e consta da habilitação de herdeiros de forma inequívoca, encontrando-se anexo à mesma ( Doc. 2 da contestação.

8) Por mensagem de correio eletrónico de dia 1 de maio de 2018 dirigido ao autor a ré volta a falar no testamento quando diz: “ Preocupado com a necessidade de me compensar, decidiu deixá-lo expresso em testamento”, conforme cópia de email- Doc. 3 da contestação.

9) O autor, apesar de generosas dádivas de seus pais em dinheiro, nunca os teve como preocupação da sua vida.

2.1.2-Da impugnação da matéria de facto;

Em direito processual, sendo a prova o acto ou série de actos processuais através dos quais há que convencer o juiz da existência ou inexistência dos dados lógicos que tem que se ter em conta na causa, o ónus da prova - artigo 342º do Código Civil - é a obrigação que recai sobre os sujeitos processuais da realidade de tais actos - traduz-se para a parte a quem compete no encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o facto contrário, quando omitiu ou não logrou realizar essa prova.

O juiz aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido - art.º 607º, nº 5 do Código do Processo Civil/será o diploma a citar sem menção de origem. Por isso, exige-se ao magistrado que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação – cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

O princípio da prova livre significa a prova apreciada - a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes - em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente, mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – neste preciso sentido, Alberto dos Reis, CPC Anotado, 3ª ed.  Vol. III, pág.245.

Acresce, que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas, pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas – “a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico”/no Acórdão do STJ de 11.12.2003, pesquisável em dgsi.pt.

Os autos e a questão do testamento.

Como é sabido, o artigo 2180.º do Código Civil exige que o testador tenha expressado a sua vontade por palavras suas, tenha manifestado claramente a sua vontade e que essa expressão revele uma vontade que tenha ultrapassado a fase da ideia, projecto ou mero desígnio. A capacidade testamentária activa não é afectada por qualquer deficiência cerebral ou mental do testador mas apenas por anomalias daquela natureza que no momento da celebração do testamento eliminem a vontade e o entendimento, recaindo sobre o interessado na anulação do testamento o ónus da prova da situação de incapacidade de facto do testador, sendo que a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita – artigo 414.º.

A exigência de forma para a celebração do testamento visa o reforço das condições para que a declaração corresponda à vontade real do testador, surgindo o formalismo “como garante de expressão livre e última do testador” – ver Pamplona Corte Real, in Curso de Direito de Sucessões, Vol. I, pág. 150. A intenção fundamental da lei é a de garantir o carácter pessoal do testamento, não a de reforçar a exigência de clareza ou inequivocidade da declaração - o modo como o testador manifesta ou expressa a sua vontade.

Por outro lado, para a validade do testamento é necessário que o testador tenha expressado a sua vontade por palavras suas, exigindo, ainda, que a vontade seja claramente manifestada, ou seja, que não fiquem dúvidas sobre aquilo que o testador manifestou querer - o que não se confunde com dúvidas sobre o teor da vontade manifestada, as quais são resolvidas por via de interpretação do testamento mas, em regra, não afectam a sua validade.

O testamento é um acto jurídico e, como tal, a sua validade depende dos mesmos requisitos de validade de qualquer outro acto jurídico. A disposição de vontade deve ser querida e assumida, o que pressupõe que no momento em que faz a disposição o testador esteja munido de plena consciência desse acto e possua capacidade de perceber, entender e manifestar as consequências, efeitos e alcance do acto que vai realizar.

É indispensável que o testador tenha a consciência do seu acto e dos efeitos deste; que tenha uma ideia justa da extensão do bem de que dispõe; que esteja em estado de compreender e de apreciar os direitos que vão nascer da sua disposição de ultima vontade, e, especialmente, com relação a este ultimo objecto, que nenhuma perturbação de espírito envenene as suas afeições, ou perverta o seu sentimento do justo, ou ponha obstáculo ao exercício das suas faculdades naturais; que nenhum delírio influencie a sua vontade, quando dispõe da sua fortuna, ou o arraste a fazer um uso dela que não faria, se estivesse em plena integridade do seu espírito – ler o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Abril de 2013, acessível em www.dgsi.pt.

Mais, dispõe o nº 1 do art.º 371º do Código Civil que “Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador”. Ou seja , ficam plenamente provados os factos que nele se referem como tendo sido praticados pela entidade documentadora, autora do documento  - que conferiu a identidade das partes, ou que lhes leu o documento…-, ou que nele são atestados com base nas suas percepções - por ex., as declarações que ouviu ou os actos que viu serem praticados; mas os meros juízos pessoais do documentador  - que a parte se encontrava no pleno uso das faculdades mentais ou semelhante -  ficam sujeitos à regra da livre apreciação pelo julgador – ler, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, anotação ao artigo 371º, da autoria de Maria dos Prazeres Pizarro Beleza; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-09-2019, pesquisável em www.dgsi.pt.

A propósito da intervenção do notário, escreveu-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 16-06-09, pesquisável emn www.dgsi.pt:

“Para além de a matéria de facto provada não sustentar a afirmação de uma situação de incapacidade para testar, uma tal conclusão debater-se-ia com a forte presunção em sentido inverso emergente do facto de o testamento ter sido exarado perante Notário. Tratou-se de testamento público, acto jurídico regulado pela lei substantiva de forma extremamente rigorosa, o que, por exemplo, se revela através da sua natureza pessoal, nos termos que constam do art. 2182º do CC, ou da previsão de um conjunto de indisponibilidades relativas decorrentes dos arts. 2192º e segs. Semelhante rigor foi espelhado na solenidade que rodeia a sua outorga. Sendo lavrado pelo próprio Notário, segundo as declarações do testador, o testamento fica exarado no respectivo Livro de Notas. Na ocasião em que recebe a declaração, cumpre ao Notário esclarecer o testador acerca dos seus efeitos, devendo estar atento ainda a qualquer aspecto que faça duvidar das suas faculdades mentais.

Mais do que acontecerá com a generalidade das pessoas, os Notários são profissionais familiarizados tanto com as dificuldades e motivações das pessoas de idade que se apresentam a outorgar testamentos, como com as situações de aproveitamento por parte de terceiros das debilidades físicas ou mentais dos testadores ou dos efeitos que podem projectar-se a partir de situações de dependência em que se encontrem”.

O ónus da prova dos factos reveladores de uma situação de incapacidade de facto do testador, no momento da feitura do testamento, para efeitos do artigo 2199.º, recai sobre o interessado na anulação do testamento em virtude do estatuído no artigo 342.º, n.º 1, ambos do Código Civil. A capacidade testamentária activa não é afectada por qualquer deficiência cerebral ou mental do testador, ao tempo da feitura do testamento, mas tão-somente por anomalias daquela natureza que eliminem a vontade e o entendimento - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-1971, in Boletim do Ministério da Justiça nº 212, Ano 1972, pág. 257.

Não é qualquer psicopatia que tira ao indivíduo a possibilidade de dispor dos seus bens: a doença mental há-de obnubilar-lhe a inteligência ou enfraquecer-lhe de tal jeito a vontade, que possa afirmar-se que não entendeu o que disse ou, em condições normais, não quereria o que declarou - Acórdão da Relação do Porto de 14-3-73, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 226, pág. 279.

O testamento só pode ser anulado quando o testador não estiver em condições de entender o sentido daquilo que declare no testamento ou não tenha o livre exercício da sua vontade. A existência de doenças, tais como a senilidade e a arteriosclerose não é, por si só, suficiente para afastar a capacidade testamentária activa, tornando-se necessário, para tal, que, ao tempo da feitura do testamento, o testador não tenha podido entender a sua declaração constante do mesmo testamento - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-01-1991, in www.dgsi.pt.

Ora, como é sabido, a Relação pode alterar a matéria de facto se a prova produzida impuser decisão diversa - art.º 662º, nº 1. O Tribunal da Relação goza assim de autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção sobre os meios de prova sujeitos a livre apreciação, sem exclusão do uso de presunções judiciais.

Por conseguinte, a livre convicção -  a livre convicção probatória nada tem de discricionário, constituindo uma atividade profundamente vinculada ao cumprimento dos princípios e regras do direito probatório, às normas da experiência comum pertinentes e da lógica, sendo alvo de um denso escrutínio pelos intervenientes processuais - da Relação deve ser assumida em face dos meios de prova que estão disponíveis, impondo-se que o tribunal de recurso sustente a sua decisão nesses mesmos meios de prova, descrevendo os motivos que o levam a confirmar ou infirmar o resultado fixado em 1ª instância - sem prejuízo de que a imediação e a oralidade fornecem ao juiz da 1ª instância um plus na apreciação da prova, pelo que, a censura da sua convicção, máxime quando está em causa prova pessoal, apenas pode ser censurada, se os elementos probatórios ou a exegese operada pelo recorrente, não apenas sugerirem, mas antes impuserem.

Nas palavras do Acórdão desta Relação de Coimbra, de 13.06.2023, pesquisável em www.dgsi.pt:

“I- Para efeitos do disposto no artigo 607.º, n.º 4 e 5, do Código de Processo Civil, quando o juiz se confronta com duas hipóteses factuais que se excluem mutuamente, isso implica, logicamente, que não possam ter existido ambas no mesmo lapso de tempo; II - Salvo se os elementos probatórios a favor de cada uma das hipóteses forem sensivelmente iguais, a convicção do julgador formar-se-á de acordo com a hipótese factual que apresentar mais indícios, mais variados e que permita ter uma compreensão global e coerente de todos os factos; III – Do mesmo modo, quando a prova testemunhal e por declarações de parte forma blocos com versões factuais opostas, não podendo ambas ser verdadeiras, a convicção acerca da correspondência ou não correspondência dos depoimentos com a realidade deve formar-se no sentido de corresponderem à realidade histórica aqueles depoimentos que são corroborados por factos indiciários numerosos e sobretudo variados e que permitem ao juiz ter uma compreensão global e coerente acerca de uma das hipóteses factuais.”

Só assim se poderá satisfazer o critério da prudente convicção do julgador na apreciação da prova livre, em conformidade com o disposto, designadamente no artigo 396.º do Código Civil, em conjugação com o n.º 5 do artigo 607.º com vista a obter uma decisão que se possa ter por justa e legítima - na dúvida acerca da realidade de um facto ou da repartição do ónus da prova, o tribunal decidirá a mesma contra a parte à qual o facto aproveita, tal como decorre do disposto nos artigos 414º e 346º do Código Civil.

Mas, para que o tribunal de recurso possa levar a cabo tal função de esmiuçamento do lastro probatório levado aos autos, é necessário - a lei assim o determina nas normas dos artigos 639.º e 640.º - que o recorrente para obter ganho de causa neste particular, deve efectivar uma análise concreta, discriminada – por reporte de cada elemento probatório a cada facto probando - objetiva, crítica, logica e racional, do acervo probatório produzido, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.

Este ónus não se compadece com a mera alusão a depoimentos parcelares e sincopados, sem indicação concreta das insuficiências, discrepâncias ou deficiências de apreciação da prova produzida, em confronto com o resultado que pelo Tribunal foi declarado. Exige-se, pois, o confronto desses elementos com os restantes que serviram de suporte para a formulação da convicção do Tribunal - e que ficaram expressos na decisão -, com recurso, se necessário, às restantes provas produzidas, apontando as eventuais disparidades e contradições que infirmem a decisão impugnada.

A impugnação da matéria de facto não se basta, para a sua alteração, fazer transcrições interessadas, excertos de certos depoimentos, que desgarrados de todo o bolo probatório, podem servir, na sua alegação/motivação, uma das partes interessadas. A motivação/fundamentação desinteressada do julgador vai além dessas partículas probatórias interessadas – a impugnação só pode proceder quando o recorrente, tendo por base o raciocínio lógico e racional feito pelo tribunal na decisão em crise, indica provas que imponham decisão diversa. Mais, os factos não são meras transcrições de documentos, vão mais além no ajuizamento final do julgador, embrulham-se com outras provas, nomeadamente a testemunhal.

Nas palavras do Acórdão do STJ de 3.7.2025, pesquisável em www.dgsi.pt:

O artigo 662.º do CPC estabelece um verdadeiro segundo grau de jurisdição sobre a apreciação da prova.

Ao Tribunal da Relação, por força do que se acha disposto no artigo 607.º, n.º 4, ex vi artigo 663º, n.º 2, do CPC, cabe apreciar criticamente as provas indicadas pelas partes recorrentes em fundamento da impugnação, de forma conjugada e contextualizada, por forma a criar a sua própria convicção.

Uma distinção, contudo, se impõe traçar nos poderes- deveres do Tribunal da Relação com previsão no artigo 662º do CPC. No que respeita aos meios de provas sujeitos à livre apreciação, o exame crítico da Relação está limitado ao que resulta da impugnação da matéria de facto pelo recorrente, vinculado ao cumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º, n.º 1, do CPC.

Se, foi satisfeito, na reapreciação da matéria de facto, então a Relação fica autorizada a proceder à análise dos demais meios de prova e factos provados e não provados, (ainda que não impugnados), com vista à formação de uma convicção própria, obtida activa e criticamente em face dos elementos probatórios indicados ou mesmo adquiridos oficiosamente.

Estando em causa norma de direito probatório material, ou a contradição entre os factos, então o Tribunal da Relação deve intervir na reapreciação da prova e à alteração dos factos dados como provados e não provados, ainda que o recorrente não tenha procedido correctamente ou não tenha procedido de todo à impugnação da matéria de facto.

Abstraindo de tais situações de actuação oficiosa da Relação, a sua intervenção e exercício dos poderes de reapreciação da matéria de facto correção ficará, pois, na dependência da satisfação pelo recorrente de um específico ónus de impugnação.

Ora, salvo o devido e honroso respeito pelo Apelante, esmiuçadas o corpo do seu recurso e as suas conclusões, verificamos que não deu o mínimo cumprimento a esta exigência processual. Limita-se a trazer aos autos as suas dúvidas - Saberia o Testador o que estava a assinar? Assinou? Confiou apenas na Filha e conhecidos desta? Se nunca quis o Pai que se soubesse que tinha entregue o dinheiro ao Recorrente, seu Filho, como pode a Recorrida alegar na sua defesa que o Testamento teve por base igualar valores? Por que motivo, ao longo de todo o processo, a Recorrida não menciona porque ficou com acesso às contas bancárias e cartões bancários do seu Pai? Não justifica por que motivo há gastos, na conta do de cujus, para compra de roupas e cabeleireiro, quando o mesmo não saía do Lar onde se encontrava? Ou o Testamento foi efetivamente assinado por terceiro que não o alegado Testador? Salvo melhor opinião, se o objeto dos autos é a veracidade do Testamento e os moldes em que o mesmo foi ou não assinado, como poderá a Douta Sentença dar por provado que o Testamento tem como finalidade recompensar a Recorrida? Por que motivo estaremos a considerar que um Pai dar dinheiro ao Filho é apenas e só um empréstimo? Seria por falta de cuidado – que diz ter tido ao longo dos vários anos – ou por saber que o seu Pai não tinha capacidade para realizar o Testamento a seu favor? (…).

A alegação não faz prova. Como escreve a Apelada/Ré, o recurso carece inteiramente de fundamento, uma vez que com ele não se impugna, efetivamente, nem a matéria de facto, nem a matéria de direito, ou seja, está-se perante um não recurso – até porque a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto deve incidir sobre concretos pontos de facto, não podendo abranger segmentos da motivação constante da sentença recorrida.

No entanto, sempre se dirá o seguinte - questões de forma:

Alega o Apelante:

As declarações do Recorrente foram redigidas através de assentada.

Diz a Douta Sentença “Donde, de tal depoimento confessório - no confronto com as declarações de parte da ré, decorre a admissão, por um lado da ausência por grande período e bem assim a mencionada ajuda financeira”.

O Recorrente é o Autor dos autos. As suas declarações são consideradas confissões quando as mesmas possam ser desfavoráveis para si e favoráveis para a Ré.

O Recorrente, ali Autor, em momento algum negou a ausência do país ou o facto de ter recebido valores por parte dos de cujus.

Negou, sim, o valor que a Recorrida, ali Ré, tinha alegadamente apurado.

E alegou que os documentos da Recorrida que não eram legíveis (…).

De facto, a 1.ª instância confrontada com as declarações de parte do Apelante/Autor, mandou verter em assentada:

1 -“ Soube da existência do testamento ajuizado por meio de correio eletrónico expedido pela sua irmã aquando do processo de venda da casa de Lisboa, já após o falecimento do pai, em 2021 ou 2022 - recebendo o testamento como anexo dessa comunicação, não conseguindo precisar neste momento qual a data da comunicação.

2 - Emigrou para o Brasil aproximadamente em janeiro de 2012 e regressou em março de 2014, sendo que apenas visitou os seus pais, no lar, no ano de 2014, uma única vez; emigrou em setembro desse mesmo ano para o Reino Unido, onde se encontra até ao momento, tendo vindo a Portugal na ocasião do funeral da mãe, e visitou o seu pai e sua irmã em Coimbra numa única ocasião em deslocação posterior; confirma que não veio a Portugal na ocasião do falecimento e funeral do seu pai porque ele faleceu em véspera de Natal e não conseguiu viagem de modo a comparecer no funeral.

3 - Confirma que recebeu ajuda financeira dos seus pais, consubstanciada em empréstimos de diversas quantias no período entre 2010 e 2011, quantias entre €2.000.00 a € 6.000,00, sendo que o último valor emprestado pelos pais era superior a €33.000,00, perfazendo a totalidade dessas quantias cerca de €54.000,00.

4 -Não conseguiu condições para pagar aos seus pais qualquer quantia desse valor.

Concluindo, na sua avaliação e na sua motivação fáctica:

Donde, de tal depoimento confessório - no confronto com as declarações de parte da ré, decorre a admissão, por um lado da ausência por grande período e bem assim a mencionada ajuda financeira- no confronto ainda com os elementos documentais carreados sob docs. 4 a 32 da contestação - assim, a factualidade provada sob l-,, m-, n-, o- , bem como aa- a dd-.

Ora, as irregularidades, quanto à assentada, constituem nulidades procedimentais, consistente na omissão de um acto que a lei prescreve e que poderia ter influência no exame e decisão da causa – artº 195º. Estando o Apelante presente aquando da prática do acto em sede de audiência de julgamento, deveria ele tê-la arguido imediatamente, antes de finda esta diligência – art.º 199.º do CPC. Não o tendo feito, a alevantada nulidade ficou sanada, e dela não se podendo retirar qualquer relevância probatória para a confissão.

Atenta a diversidade de factos que as declarações de parte podem abranger, o artigo 466.º, n.º 3 estabelece que estas serão livremente apreciadas pelo tribunal na parte em que não representem confissão, significando que a parte do depoimento, ou dos esclarecimentos do sujeito processual, que não assumam a natureza de confissão, com a amplitude referida, não tem que ser reduzida a escrito por não ser prova tarifada. Porém, tal como já resultava do disposto no artigo 563.º, n.º 1, do regime pretérito, o actual artigo 463.º, n.º 1, continua a impor a redução a escrito da confissão do depoente, que pode ocorrer tanto em depoimento como em declarações de parte, bem como em prestação de informações ou esclarecimentos ao tribunal.

A desconsideração da formalidade da assentada na acta da audiência de discussão e julgamento implica que a declaração confessória da parte, mesmo que se encontre gravada, ao invés de ter o valor probatório de prova plena contra o confitente, que lhe atribui o n.º 1 do artigo 358.º do CC, passa a ser livremente apreciada pelo tribunal, nos termos do n.º 4 do mesmo normativo e ainda do artigo 361.º da mesma codificação, que rege sobre o valor do reconhecimento não confessório de factos desfavoráveis.

Alega ainda o Apelante, quanto às testemunhas escutadas, que são familiares ou amigos próximos da Recorrida ou do Marido desta e que muito se dirá sobre a parcialidade das mesmas; das Testemunhas que há largos anos são amigas da Recorrida e/ou do Marido desta, surgem duas Testemunhas: o Notário onde terá sido realizado o Testamento e a Conservadora onde, no falecimento da cônjuge do de cujus, este assinou a Habilitação de Herdeiros; .ademais, estas Testemunhas pouco conviviam com o de cujus, tendo, sobretudo, um discurso indireto sobre as situações refletidas nos autos

Ora, a impugnação das testemunhas/depoimento deverá, desde logo, ter lugar no momento e de acordo com as normas dos artigos 516.º e sgs., sendo que os recursos apenas visam a reapreciação ou reponderação da decisão de questões oportunamente suscitadas, salvo quando se trate de questões de conhecimento oficioso - Vide, por todos, o acórdão do STJ de 15 de Dezembro de 2022 (processo n.º 125/20.6T8TND.C1-A.S1) pesquisável em www.dgsi.pt.

Dito de outra forma, os recursos destinam-se à apreciação de questões já antes levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que antes não foram submetidas ao contraditório e decididas pelo Tribunal recorrido. As questões a apreciar em sede de recurso devem circunscrever-se às questões que já tenham sido submetidas ao Tribunal de categoria inferior e aos fundamentos em que a sentença se alicerçou e que resultaram da prova produzida e carreada para os autos, salvo, naturalmente, as questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos imprescindíveis ao seu conhecimento” - cfr. José Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, CPC Anotado, Vol. III., Tomo 1, 2ª Ed., Coimbra Editora, pág. 8.), pelo que, nos acertados dizeres do acórdão do STJ de 17.11.2016 (proferido no processo 861/13.3TTVIS.C1.S2, disponível em www.dgsi.pt).

Mais, diz o Apelante na sua motivação:

“33. Saberia o Testador o que estava a assinar? Assinou? Confiou apenas na Filha e conhecidos desta?

34. Não sabemos responder, mas face às várias descrições que a Recorrida fez, não se crê que soubesse o que estava a assinar ou sequer se assinou.

Ora, importante para a certeza de tal facto – assinou? - seria a realização de prova pericial à assinatura do Sr. CC, requerida, de facto, pelo Autor/Apelante. Sendo fixada a formulação do quesito pericial - A assinatura aposta no testamento de CC, outorgado a 17.2.2017, no cartório notarial de OO, Livro 7T, folhas 20 a 21, sito no ... à Avenida ..., ..., salas ..., ... e ... não é de CC? - a guia de encargos não foi paga no prazo, o que implicou a não realização da diligência.

Por isso, inatacável a motivação da julgadora da 1.ª instância – que aqui damos como reproduzida – e os factos aí fixados, improcedendo, assim, a impugnação da matéria de facto.


*

3. Do Direito

O testamento caracteriza-se por ser um negócio jurídico unilateral, mortis causa, não receptício, pessoal, individual, livremente revogável e formal. Por esse motivo deve ser o testador a expressar a sua vontade e a expressão da vontade da pessoa tem de ser integral sem prejuízo, naturalmente, das excepções expressamente consagradas nos artigos 2182º, n.º 2, e 2183º, do Código Civil.

A exigência de forma para a celebração do testamento visa o reforço das condições para que a declaração corresponda à vontade real do testador, surgindo o formalismo como garante de expressão livre e última do testador - a intenção fundamental da lei é a de garantir o carácter pessoal do testamento, não a de reforçar a exigência de clareza ou inequivocidade da declaração - o modo como o testador manifesta ou expressa a sua vontade.

Para a validade do testamento é necessário que o testador tenha expressado a sua vontade por palavras suas, exigindo, ainda, que a vontade seja claramente manifestada, ou seja, que não fiquem dúvidas sobre aquilo que o testador manifestou querer - o que não se confunde com dúvidas sobre o teor da vontade manifestada, as quais são resolvidas por via de interpretação do testamento mas, em regra, não afectam a sua validade.

É indispensável que o testador tenha a consciência do seu acto e dos efeitos deste; que tenha uma ideia justa da extensão do bem de que dispõe; que esteja em estado de compreender e de apreciar os direitos que vão nascer da sua disposição de ultima vontade, e, especialmente, com relação a este ultimo objecto, que nenhuma perturbação de espírito envenene as suas afeições, ou perverta o seu sentimento do justo, ou ponha obstáculo ao exercício das suas faculdades naturais; que nenhum delírio influencie a sua vontade, quando dispõe da sua fortuna, ou o arraste a fazer um uso dela que não faria, se estivesse em plena integridade do seu espírito – ler o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Abril de 2013, acessível em www.dgsi.pt.

O ónus da prova dos factos reveladores de uma situação de incapacidade de facto do testador, no momento da feitura do testamento, para efeitos do artigo 2199.º, recai sobre o interessado na anulação do testamento em virtude do estatuído no artigo 342.º, n.º 1, ambos do Código Civil. A capacidade testamentária activa não é afectada por qualquer deficiência cerebral ou mental do testador, ao tempo da feitura do testamento, mas tão-somente por anomalias daquela natureza que eliminem a vontade e o entendimento - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-1971, in Boletim do Ministério da Justiça nº 212, Ano 1972, pág. 257.

Não é qualquer psicopatia que tira ao indivíduo a possibilidade de dispor dos seus bens: a doença mental há-de obnubilar-lhe a inteligência ou enfraquecer-lhe de tal jeito a vontade, que possa afirmar-se que não entendeu o que disse ou, em condições normais, não quereria o que declarou - Acórdão da Relação do Porto de 14-3-73, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 226, pág. 279.

O testamento só pode ser anulado quando o testador não estiver em condições de entender o sentido daquilo que declare no testamento ou não tenha o livre exercício da sua vontade. A existência de doenças, tais como a senilidade e a arteriosclerose não é, por si só, suficiente para afastar a capacidade testamentária activa, tornando-se necessário, para tal, que, ao tempo da feitura do testamento, o testador não tenha podido entender a sua declaração constante do mesmo testamento – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-01-1991, in www.dgsi.pt.

Como escreve a julgadora da 1.ª instância - decisão que seguimos:

B) FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

O art. 2179 nº1 do CCivil define testamento como “O ato unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles” e por ser um ato unilateral, pessoal, e não um negócio jurídico, o que releva para interpretação da vontade do testador é a consideração da sua intenção, em ordem a saber se a sua vontade prevalece sobre a interpretação de terceiros, sobretudo, os que se arroguem direitos emergentes da vontade do testador expressa solenemente no testamento, como ato de vontade.

Como referimos no despacho saneador, um testamento publico pertence indiscutivelmente à categoria dos documentos autênticos (art. 369º, nºs 1 e 2 do CCiv) e faz, por isso, prova plena dos factos que sejam atestados pela entidade documentadora (art. 371º, nº 1 do CCiv.), incluindo a aposição da assinatura.

Um documento autêntico prova a verdade dos factos que se passaram na presença do documentador, quer dizer os factos que nele são atestados com base nas suas próprias percepções (art. 371º, nº 1, 2ª parte, do CCiv.), o documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos que documenta se passaram. Em resultado dessa força probatória plena, o facto ter-se-á, em princípio, de considerar como provado, sem poderem ser admitidas outras provas para isso contrariar (designadamente, a prova testemunhal - artº 393º, nº 2 - e, consequentemente, o funcionamento das presunções judiciais - artº 351º, nº 1, do CCiv), sem prejuízo, porém, de se poder demonstrar a falsidade do aludido documento autêntico.

A demonstração de falsidade passava necessariamente pela realização de perícia em incidente. (recaindo sobre o autor - cf. formulação aliás conferida ao quesito pericial- o ónus de tal prova.).

Sucede que não se provando a referida alegação de que a assinatura feita constar do testamento não é do punho do testador ( facto não provado sob 1), não logrou o autor provar a factualidade inerente à primeira causa de pedir.

Quanto à segunda causa, a factualidade não provada sob 5 a 8 faz soçobrar a caducidade. Importava à procedência da caducidade considerar que o autor teve conhecimento da outorga testamento em data não anterior aos 2 anos que precederam a propositura - ressalvado o período de suspensão de prazos de 9 de Março de 2020 e 3 de Junho de 2020- ou seja, que tal conhecimento ocorrera já em 23-4-2018.- o direito estaria caduco com este fundamento se e na medida em que à data da propositura estivessem volvidos 2 anos+ período de suspensão. Efectivamente, a suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos em “Estado de Emergência” [suspensão em virtude da pandemia gerada pela doença do COVID-19] decretada pelo nº 3 do art. 7º da Lei nº 1-A/2020 de 19 de Março, implica que estes retomam do tempo em que pararam e, consequentemente, não se contam do início.

Ora, in casu, não podemos afirmar que o autor teve conhecimento da outorga do testamento antes de Fevereiro de 2019, com a citação para os termos do inventário - data que se confirma por consulta electronica, - donde, à data da propositura, a caducidade ainda não teria ocorrido, tanto mais que na participação de imposto de selo feita pela própria R., tal testamento não era mencionado

Pedro Pais de Vasconcelos in “Teoria Geral do Direito Civil” 3ª edição pág. 396 escreve: “o testamento é um negócio de cariz muito peculiar. Ao contrário dos negócios entre vivos, não tem por função vincular o seu autor, mas antes dispor sobre o destino do seu espólio para depois da sua morte. O respeito pela última vontade das pessoas é uma exigência de Direito Natural que implica, na interpretação do testamento, o respeito escrupuloso pela vontade real do testador em tudo aquilo que não seja contrário à Lei imperativa e à Moral ou não seja impossível. Nesta perspetiva, a interpretação dos testamentos deve ser subjetiva”. Tratando-se de um acto de disposição patrimonial gratuito, importa sobremaneira, que a vontade e o livre arbítrio do testador não sejam afetados por qualquer circunstância temporária ou permanente que tolha as suas faculdades intelectuais, volitivas, pois, de outro modo, não pode falar-se em ato de vontade livre e esclarecido.

No caso em presença, não se trata de interpretar o testamento, mas de saber se é válida a declaração de vontade do testador, se a sua vontade naquele momento, estava afetada por doença ou circunstância impeditiva de saber o que queria e medir o alcance do ato unilateral que o testamento é. Os preceitos são claros e o art. 2188 do CCivil rege sobre capacidade testamentária ativa (limitando-a a pessoas singulares, os “indivíduos”), afirmando que “Podem testar todos os indivíduos que a lei não declare incapazes de o fazer”, acrescentando o art. 2189 que “São incapazes de testar: a) os menores não emancipados; b) os maiores acompanhados, apenas nos casos em que a sentença de acompanhamento assim o determine” e concluindo o art. 2199 ser “anulável o testamento feito por quem se encontrava incapaz de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória”.

A incapacidade acidental a que alude este último preceito, constitui vício da vontade que determina a anulabilidade do ato visando proteger o testador e a unilateralidade do seu acto por oposição ao previsto no art. 257 do CCivil no qual a incapacidade em sede de actos contratuais bilaterais pretende proteger essencialmente o declaratário, exigindo como requisito de anulabilidade da declaração que o facto determinante da incapacitação acidental de entender o sentido da declaração de vontade seja notório, ou conhecido do declaratário.

Em comentário ao art. 2199 Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. VI, pág. 323 advertem para “A primeira destas regras específicas, constante do artigo 2199.°, refere-se à incapacidade (tomada a expressão no sentido rigoroso próprio da falta de aptidão natural para entender o sentido da declaração ou da falta do livre exercício do poder de dispor mortis causa dos próprios bens, por qualquer causa verificada no momento em que a disposição é lavrada.

A disposição legal refere-se expressamente ao carácter transitório que pode ter a falta de discernimento ou de livre exercício da vontade de dispor, por parte do testador, para significar que o vício contemplado nesta norma é a deficiências psicológica que comprovadamente se verifica no preciso momento em que a disposição é lavrada. E, por conseguinte, o mesmo tipo de deficiência psicológica que o artigo 257º considera em relação aos atos entre vivos em geral.

A anulação pretendida, com base no artigo 2199º CC assenta pelo contrário na falta alegada e comprovada de capacidade do testador, no preciso momento em que lavrou o testamento, fosse para entender o sentido e alcance da sua declaração, fosse para dispor, com a necessária liberdade de decisão, dos bens que lhe pertenciam.”

O estado de incapacidade acidental do testador deve existir no momento da feitura do testamento, incumbindo ao interessado na invalidade o ónus da prova dos factos reveladores de incapacidade acidental – art. 342º, nº1, do Código Civil – vd. acs. do STJ de 11.4.2013 no proc. 1565/10.4TJVNF.P1.S1 e de 19-1-2016 no proc. 893/05.5TBPCV.C1.S1, ambos in dgsi.pt.

Tratando o art. 2199 do CCivil de situações episódicas que não constituem fundamento para acompanhamento (art. 138) ou que, revestindo-se embora das mesmas características, ainda não tenham dado lugar ao seu decretamento, esse preceito sinaliza a diferença que reside em o interdito (ou o portador de anomalia psíquica fundamentadora de acompanhamento mas ainda não decretado) poder testar validamente num “intervalo lúcido”, enquanto que a incapacidade do art. 2199 contempla o ato praticado por pessoa normalmente capaz, mas acidentalmente incapacitada para entender o sentido da sua declaração ou despojada do livre exercício da sua vontade.

Estando em causa uma situação de doença com afetação das faculdades mentais – demência, alzheimer - compete ao interessado na anulação do testamento provar que o testador sofria de doença, que no plano clínico, é comprovada e cientificamente suscetível de afetar a sua capacidade de perceção, compreensão, discernimento e entendimento, e passível de disturbar e comprometer qualquer ato de vontade que pretenda levar a cabo, na sua vivência quotidiana e corrente. Como doença que clinicamente se reflete na degenerescência evolutiva das condições de perceção, compreensão, raciocínio, gestão dos atos quotidianos e da sua vivência existencial, aptidões de pensamento abstrato e concreto, discernimento das opções comportamentais básicas e fatores de funcionamento das relações interpessoais e sociais, o interessado na anulabilidade do testamento realizado por uma pessoa portadora deste quadro patológico apenas está obrigado a provar o estado de incapacidade de que o declarante padece por ser previsível, à luz da ciência e da experiência comum, que este tipo de situações não se compatibilizam com períodos de lucidez ou compreensão (normal) das situações vivenciais.

Devemos, no entanto, ter presente que esta conclusão apenas poderá ser retirada quando à data do testamento a doença já tenha sido declarada clinicamente ou quando o quadro de factos obtidos permita a conclusão segura de o estado de incapacidade fixado no relatório pericial compreender o momento em que o testador o outorgou. Só nestes casos a conclusão da incapacidade se pode com segurança estender como regra a todos os atos do acompanhado, justificando-se que “provado o estado de demência em período que abrange o ato anulando, seja de presumir sem necessidade de mais, que na data do mesmo ato aquele estado se mantinha sem interrupção. Corresponde ao id quod plerum accidit; está em conformidade com as regras da experiência. À outra parte caberá ilidir a presunção demonstrando (se puder fazê-lo) que o ato recaiu num momento excecional e intermitente de lucidez” – vd. Inocêncio Galvão Telles, Revista dos Tribunais, 72, pg. 268. Nas situações em que no momento da prática do ato que se pretende anulado haja já declaração da doença incapacitante ou naqueles em que, não existindo ainda, pela declaração posterior que venha a ser feita e elementos apurados sobre o comportamento do testador deva formular-se um juízo existência evidente e permanente da doença, mesmo que a permanência da situação de incapacidade não seja incompatível com a existência de intervalos lúcidos por parte da pessoa demente, justifica-se que caiba ao interessado na manutenção do ato jurídico em causa a prova dessa lucidez aquando da realização do acordo.

( acompanhamos de perto o AC revista STJ prolatado no Processo: 5142/21.6T8CBR.C1.S1)

No caso subjudice, a data da prática do acto que se pretende anular não cabe num período de situação impeditiva do exercício pleno, pessoal e consciente dos direitos ou de cumprimento dos deveres.

O ónus da prova dos factos demonstrativos da incapacidade do testador, no momento da feitura do testamento - cfr. art. 2199º do CCivil -, recai sobre o interessado na anulação do testamento – art. 342, n.º 1 do CCivil – ( o autor) não podendo afirmar-se que o interessado na anulação do testamento provou que o testador padecia de doença (v.g. de alzheimer) com anterioridade ao período que abrange o testamento ou e que esse quadro era o existente com evidência médica à data do testamento.

Improcede, pois, a Apelação.

Apenas uma última nota - acerca do pedido formulado pela Apelada nas suas contra-alegações - d) Com a sua conduta o autor recorrente litiga de má – fé, ao abrigo do disposto nas al. a) e parte final da d) do nº 2 do art.º. 542º do C.P.C.; e) Pelo que, deve ser condenado em multa e condigna indemnização, esta a favor da ré/ recorrida, em montante não inferior a 7500,00€ (sete mil e quinhentos euros), sendo 2500,00€ para suportar as despesas e encargos próprios com a ação; e 5000,00€ de honorários ao seu mandatário:

Como sabem os ilustres mandatários, a litigância de má-fé configura um tipo especial de ilícito civil em que uma parte, com dolo ou negligência grave, age processualmente de forma inequivocamente reprovável, violando deveres de legalidade, boa-fé, probidade, lealdade e cooperação, suscetíveis de causar prejuízo à parte contrária e obstar à realização da justiça.

Mas, para que a parte incorra em litigância de má-fé é necessário que altere a verdade dos factos essenciais ou relevantes para a decisão da causa, sendo que a mesma deve ser apreciada tendo em vista uma não limitação do direito de defesa do particular, pelo que, a condenação com tal fundamento só deve ter lugar em casos de chocante e grosseiro uso dos meios processuais.

Ora, no caso em análise, foram questões de forma –desde logo na impugnação da matéria de facto – que levaram à improcedência da Apelação, pelo que, não resultam elementos suficientes para condenar o Apelante/Autor como litigante de má-fé.


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Sumariando:

(…).


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3. Decisão

Assim, na improcedência da instância recursiva, mantemos a decisão proferida pelo Juízo Central Cível de Coimbra - Juiz 3.

Custas pelo Apelante.

Coimbra, 28 de Outubro de 2025

(José Avelino Gonçalves - relator)

(Catarina Gonçalves – 1.ª adjunta)

(Maria Fernanda Fernandes de Almeida– 2.ª adjunta)