INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
REQUERIMENTO INCIDENTAL
PRAZO PERENTÓRIO
Sumário

I – A abertura ulterior do incidente pleno de qualificação da insolvência encontra-se prevenida no art. 188.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, podendo ser requerida por qualquer interessado nessa qualificação, em requerimento autuado por apenso, a carrear aos autos no prazo de 15 (quinze) dias após a realização da Assembleia de Credores ou, na eventualidade desta não ter sido convocada, a partir da data da junção aos autos do relatório referido no art. 155.º, contendo os fundamentos da qualificação da insolvência como culposa e a menção às pessoas afectadas por essa mesma qualificação.
II – O prazo consagrado naquela norma é um prazo peremptório, já que a lei estabeleceu um limite temporal para a prática de um acto processual, sendo certo que o decurso integral do prazo irá extinguir o direito de praticar esse acto, na acepção do art. 139.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Recurso de Apelação

Tribunal a quo: Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra/Juízo de Comércio de Coimbra (J1)

Recorrentes: AA, BB e CC

Sumário (art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):

(…).

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I.

Em 4 de Fevereiro de 2024[2], DD e EE, na qualidade de ex-trabalhadores de FF, Lda., sociedade declarada Insolvente (Autos Principais), requereram fosse aberto Incidente de Qualificação da Insolvência[3] (declarando-se a mesma como culposa), dado que fôra criada pelos seus sócios FF e GG, casados entre si, e respectivos filhos comuns, BB, AA e CC, todos de apelido HH.

Em sede de Oposição, os filhos excepcionaram a caducidade do direito, pela circunstância dos Requerentes terem espoletado o incidente em 26 de Abril de 2024, estando ultrapassado o prazo peremptório previsto no art. 188.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.     

Actuado o princípio do contraditório, os Requerentes assinalaram que deram origem ao incidente em 4 de Fevereiro de 2024, e como a junção aos autos do relatório a que alude o art. 155.º desse Código remonta a 15 de Março de 2024, não tendo sido convocada a Assembleia de Credores, o termo do prazo ocorreu em 30 de Março de 2024.

 No Despacho Saneador lavrado em 18 de Julho p.p., decidiu-se:

«Assim, por se encontrar deduzido com respeito pelo limite do prazo, julga-se improcedente a excepção de caducidade, determinando o prosseguimento dos autos.».

II.

Irresignados, os Afectados Filhos interpuseram Recurso de Apelação, emergindo das suas alegações estas

«CONCLUSÕES

(…).».

III.

A digna magistrada do Ministério Público encerrou a sua Resposta, com as seguintes 

«CONCLUSÕES:

(…)».

IV.

Questão decidenda

Afora a apreciação de questões que sejam de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o âmbito da apelação (arts. 608.º, n.º 2, 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil):

- Da intempestividade do pedido visando a qualificação da Insolvência.

V.

Dos Factos

Para além das circunstâncias já enunciadas, através da consulta à plataforma informática, extrai-se que:

1. Por despacho de 7 de Fevereiro de 2024 foi determinado que:

«Por ora, aguardem os autos pelo envio aos autos principais do relatório previsto no artº 155º, do CIRE.».

2. O Administrador Judicial apresentou relatório, nos termos do art. 155.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, notificando-o aos credores, em 15 de Março de 2024[4].

3. Foi dispensada a convocação da Assembleia de Credores[5].

4. Não houve prorrogação do prazo para requerer o incidente pleno de qualificação da insolvência[6].

VI.

Do Direito

Os Recorrentes começam por indicar que o requerimento datado de 4 de Fevereiro de 2024 não estava fundamentado, não solicitava a abertura do incidente de qualificação da insolvência, tendo sido endereçado aos Autos Principais, e que mal andou a Secção ao autuá-lo por apenso. 

Não obstante, admitem expressamente que consubstanciava um «… requerimento no qual pedem a qualificação como culposa da presente insolvência, …» [Conclusão c)], o que é suficiente para denegar qualquer mérito que este argumento pudesse ter no sentido de considerar que o apenso foi criado de «… forma autónoma e unilateral».

Efectivamente, flui do art. 157.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, que é obrigação da Secretaria Judicial assegurar «… o expediente, autuação e regular tramitação dos processos pendentes, nos termos estabelecidos na respetiva lei de organização judiciária, em conformidade com a lei de processo e na dependência funcional do magistrado competente.», ao mesmo tempo que lhe cumpre «… realizar oficiosamente as diligências necessárias para que o fim daqueles possa ser prontamente alcançado.», afirmando-se, desta forma, a escrupulosa observância das suas competências funcionais, ao verificar que o expediente remetido para a acção principal devia ser autuado por apenso, o que fez, submetendo-o seguidamente a despacho judicial.   

Por outro lado, foi exactamente porque da leitura do requerimento resultava, inequivocamente, que o propósito dos Requerentes era o de desencadear a instauração deste incidente, que houve a prolação de despacho convidando-os a concretizarem aspectos da sua alegação, com esteio, quer no dever de gestão processual, quer no aperfeiçoamento de articulados, conforme preconizam os arts. 6.º e 590.º, n.ºs 2, al. b), 3 e 4, ambos do Código de Processo Civil, aplicáveis subsidiariamente ex vi art. 17.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

E foi o que os Requerentes fizeram em 26 de Abril de 2024: juntaram requerimento suprindo as deficiências e imprecisões salientadas no convite do Tribunal relativamente ao requerimento originário (o de 4 de Fevereiro de 2024) que havia originado o Apenso B.

No que especificamente respeita à excepção de caducidade, assim se pronunciou o Tribunal a quo:

«Da tempestividade da apresentação do pedido de abertura do incidente de qualificação de insolvência e cumprimento das formalidades legais.

Cumpre apreciar.

Face à actual redacção do art. 188.º, do CIRE, não tendo o juiz, na sentença que declarou a insolvência, declarado aberto o incidente de qualificação respectiva, a legitimidade para o requerer passou a pertencer exclusivamente ao administrador da insolvência e aos interessados; e ambos disporão de um prazo de quinze dias para o efeito, de natureza peremptória (contando-se o mesmo da data de realização da assembleia de credores, ou, se esta tiver sido dispensada, da data de apresentação, pelo administrador da insolvência, do relatório previsto no art. 155.º, do CIRE).

Ora, o requerimento a requerer a abertura do presente incidente deu entrada em 4 de fevereiro de 2024, e independentemente de ser junto por apenso, ou não, incumbe à secretaria analisar o mesmo e autuar por apenso, no caso como nos presentes autos, o mesmo corre por apenso, sendo que, em caso de dúvida, sempre teria de suscitar a mesma ao Juiz.

Acresce que autuado o requerimento por apenso foi aberta conclusão, e foi proferido o seguinte despacho: “Por ora, aguardem os autos pelo envio aos autos principais do relatório previsto no artº 155º, do CIRE.”

A junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º do CIRE ocorreu em 15/03/2024, sendo que não foi convocada, nem realizada Assembleia de Credores.

Nessa decorrência o prazo a que alude o artigo 188º do CIRE só terminou em 30/03/2024, e até tal data qualquer outro interessado ou o administrador judicial poderia também requerer a abertura do incidente de qualificação da insolvência, sendo que como tal, apenas no fim do prazo para requerer deve o tribunal declarar, ou não a abertura do referido incidente.

Ora, decorre da factualidade supra exarada que o presente incidente foi deduzido antes do decurso daquele prazo, mas respeitando o limite do prazo. Ou seja, mesmo que se considerasse “acto prematuro”, ou seja, praticado antes do início de um prazo estabelecido por lei, “a intempestividade por antecipação do acto processual não equivale à preclusão temporal, por esgotamento do prazo” (Ac. do TRC, de 10-12-2020, publicado em www.dgsi.pt). Ou seja, a caducidade pelo decurso do prazo “respeita, apenas, às situações em que o direito da parte os apresentar se extinguiu pelo decurso do prazo peremptório assinalado e não às situações de prematuridade, em que a irregularidade não traduz qualquer extinção ou perda do direito à prática do acto” (Ac. do TRG, de de 6/2/2020, publicado em www.dgsi.pt e mencionado no anterior).

Aliás, tal foi o entendimento do Tribunal e por isso determinou que o presente apenso aguardasse o decurso do prazo para, sim, proceder à apreciação de outros eventuais pedidos de abertura.

Quanto ao facto de, por despacho de 18-04-2024, terem os Requerentes sido convidados ao aperfeiçoamento do requerimento inicial por forma a concretizar factualidade, e ao que os mesmos em 26-04-2024 terem aceite tal convite e apresentado requerimento com respeito ao mesmo, não significa que só com tal requerimento tenha sido cumprida a formalidade prevista no nº 1 do artigo 188º do CIRE, pois que tal foi tão só, uma vez perante despacho liminar, convite ao aperfeiçoamento de articulados previsto no artigo 590.º, n.ºs 2, alínea b), 3 e 4, do CPC aplicável “ex vi” artº 17º, do CIRE, mas o pedido de abertura do presente incidente já tinha ocorrido em 4 de fevereiro de 2024.

Assim, por se encontrar deduzido com respeito pelo limite do prazo, julga-se improcedente a excepção de caducidade, determinando o prosseguimento dos autos.».

A abertura ulterior do incidente pleno de qualificação da insolvência encontra-se prevenida no art. 188.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[7], podendo ser requerida por qualquer interessado nessa qualificação – in casu, dois antigos trabalhadores da sociedade insolvente –, em requerimento autuado por apenso, a carrear aos autos no prazo de 15 (quinze) dias, após a realização da Assembleia de Credores ou, na eventualidade desta não ter sido convocada, a partir da data da junção aos autos do relatório referido no art. 155.º, contendo os fundamentos da qualificação da insolvência como culposa e a menção às pessoas afectadas por essa mesma qualificação.

O prazo consagrado naquela norma é um prazo peremptório, já que a lei estabeleceu um limite temporal para a prática de um acto processual, sendo certo que o decurso integral do prazo irá extinguir o direito de praticar esse acto, na acepção do art. 139.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Com efeito, o fundamento do instituto da caducidade é a necessidade da certeza jurídica, isto é, possibilitar que uma determinada situação jurídica fique definitiva e inalterada.

«Com a alteração introduzida pelo n.º 2 da Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, o legislador pôs fim a um dissenso sobre a natureza, dilatória ou peremptória, do prazo, qualificando-o expressamente como prazo peremptório. A natureza peremptória era justificada por razões de segurança jurídica e de protecção de potenciais afectados; já a natureza meramente ordenadora encontrava respaldo na finalidade do incidente qualificador da insolvência – o reforço da tutela dos credores concursais, que não se basta com a mera responsabilização patrimonial do insolvente e a privação do seu poder de disposição. Conciliando estes dois interesses antagónicos, o legislador temperou a rigidez do prazo de 15 dias (imposta pela tutela dos potenciais afectados), com a possibilidade de prorrogação do mesmo, com o fundamento previsto no n.º 2 do artigo 188.º (agora, em nome dos interesses sancionatórios e indemnizatórios dos credores concursais)….»[8].   

Como é aceite pelos Recorrentes e resulta dos factos acima alinhados, tendo sido dispensada a realização da Assembleia de Credores e sido junto o relatório em 15 de Março de 2024, o prazo de 15 (quinze) dias findou em 30 de Março subsequente.

A questão do requerimento ter dado entrada em Tribunal (4 de Fevereiro) ainda antes do início da contagem do prazo (15 de Março) – o que se poderia equacionar como uma extemporaneidade ex ante –, também não colhe, posto que a caducidade só respeita à prática de um acto realizado após o termo do respectivo prazo.

Por conseguinte, conclui-se pela tempestividade do incidente pleno de qualificação da insolvência, com o que improcede o recurso.

Pelo pagamento das custas processuais respondem os Apelantes, em função do seu decaimento integral (arts. 527.º e 607.º, n.º 6, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, ex vi art. 17.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).

VII.

Decisão:

Com os fundamentos indicados, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando o despacho recorrido.

O pagamento das custas processuais responsabiliza os Recorrentes.

Registe e notifique.


                   28 de Outubro de 2025

 (assinatura electrónica – art. 153.º, n.º 1, do Código de Processo Civil)



[1] Juiz Desembargador 1.º Adjunto: Dr. José Avelino Gonçalves
Juiz Desembargador 2.º Adjunto: Dr. Paulo Correia
[2] Aqui se considerando a petição aperfeiçoada em 26-04-2024, na esteira de despacho proferido nesse sentido.
[3] Dando origem ao Apenso B, do qual foi retirado o despacho recorrido que integra este Apenso E.  
[4] O que foi admitido pelos Recorrentes, tal qual consta da Conclusão g).
[5] Idem, Conclusão i).
[6] Idem, Conclusão j).
[7] Epigrafado Tramitação, na parcela relevante, dispõe que:
«1 - O administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, no prazo perentório de 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.
2 - O prazo de 15 dias previsto no número anterior pode ser prorrogado, quando sejam necessárias informações que não possam ser obtidas nesse período, mediante requerimento fundamentado do administrador da insolvência ou de qualquer interessado, e que não suspende o prazo em curso.
3 - A prorrogação prevista no número anterior não pode, em caso algum, exceder os seis meses após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º.».
[8] Maria do Rosário Epifânio in, Manual de Direito da Insolvência, 8.ª Edição (Reimpressão), Almedina, Outubro de 2024, p. 178.