I – Ressalvando a existência de qualquer negócio jurídico ou outro facto que, nos termos da lei, tenha aptidão jurídica para alterar essa situação, o direito de propriedade sobre determinado prédio abrange, nos termos previstos no art.º 1344.º do CC, não só o edifício ou edifícios nele existentes, mas também o respectivo subsolo e o que nele se contém.
II – Sem a sua prévia autonomização e constituição de propriedade horizontal, um espaço (cave) que se situa por baixo de edifício existente em determinado prédio urbano, ocupando o respectivo subsolo – ainda que sem ligação interior a esse edifício e ainda que fisicamente ligado ao prédio adjacente – é parte integrante do aludido edifício que não tem autonomia jurídica e não pode ser transacionado de forma autónoma e separada da parte restante do edifício.
III – A posse correspondente ao direito de propriedade sobre a dita parcela ou parte de edifício apenas poderia conduzir à respectiva aquisição por usucapião se e na medida em que estivesse constituída (ainda que por usucapião) – ou fosse constituída em simultâneo – a propriedade horizontal.
IV – Não tendo sido constituída a propriedade horizontal – por qualquer das formas admitidas na lei – e não tendo ocorrido qualquer acto com aptidão para operar a sua autonomização e desintegração do domínio, o espaço em questão continua a ser parte integrante do edifício e a estar incluído no direito de propriedade correspondente ao prédio onde está implantado esse edifício, conforme previsto no art.º 1344.º do CC.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I.
AA, melhor identificada nos autos, intentou acção, com processo comum, contra BB, melhor identificada nos autos, alegando, em resumo, que, sendo proprietária de um imóvel (moradia) que adquiriu por escritura pública outorgada em 16/06/2023, veio a ser confrontada – em Outubro de 2023 e por força das obras de recuperação a que deu início e da necessidade de realização de um furo no chão para substituição de tubagem – com o facto de o subsolo do aludido prédio estar ocupado com uma cave que estava ocupada e a ser utilizada pela Ré (proprietária da moradia confinante), tendo sido derrubado o muro comum das duas moradias e tendo sido executada uma abertura que liga o prédio da Ré ao aludido espaço (com uma área de 44,9m2) que se situa abaixo do prédio da Autora e no respectivo subsolo, alterando a estrutura da moradia da Autora e pondo em risco a sua sustentabilidade.
Com esses fundamentos, sustentando que a área em questão faz parte do seu prédio e que a situação em causa determinou o atraso das obras que estava a realizar com os inerentes prejuízos, conclui pedindo:
1 – Que a Autora seja declarada proprietária do prédio urbano inscrito na matriz da freguesia de União de Freguesias de ... e ... sob o número ...07 e descrito na C.R.P. ... sob o número ...79 e composto por Casa de Habitação com dois pisos e com a área de 44,9 m2.
2 – Que a Autora proprietária do imóvel identificado no ponto anterior é titular do direito do espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém (art.º 1344.º do CC).
3 – Que a Ré seja condenada a reconhecer o direito de propriedade pleno e a não ocupar qualquer parte da construção, do espaço aéreo nem do subsolo da propriedade da Autora com a restauração do muro comum que divide as propriedades da Autora e da Ré.
4 – Que a Ré seja condenada no pagamento à Autora de indemnização calculada na base de 20,00€ ao dia, pelo abuso de direito, a contar da data da citação, até à data que deixe de ocupar qualquer espaço pertencente à Autora no referido imóvel, nos termos do disposto no artigo 483º do CC.
A Ré contestou, alegando, em resumo: que adquiriu o prédio em causa por escritura de 26/05/2023 com a configuração e áreas que apresenta actualmente e que a situação hoje existente se mantém desde há mais de quarenta anos e desde o tempo em que a casa era ocupada pela vendedora e anteriores proprietários; que não realizou as obras a que se reporta a Autora sendo certo que, quando adquiriu o prédio, já não existia qualquer muro/parede e o espaço em questão já estava integrado no seu prédio, o que, aliás, acontece desde pelo menos 1977. Mais alega que, antes de comprar o seu prédio, a Autora visitou a habitação da Ré, pelo que, quando comprou, sabia que o rés do chão do prédio da Ré se estendia por baixo do seu prédio, tendo sido alertada para esse facto, tendo sido nessas circunstâncias e com essas configurações que adquiriu o prédio, ou seja, com apenas dois andares, rés do chão e 1º andar, sem inclusão, portanto, de qualquer cave ou garagem que não vem mencionada em lugar algum, e nomeadamente na escritura publica de compra e venda, na caderneta predial ou na descrição predial.
Com estes fundamentos, sustentando que a situação descrita configura uma propriedade horizontal irregular e não constituída onde Autora e Ré partilham as paredes referidas e placa/tecto e alegando ainda que, por força das obras que efectuou, a Autora causou danos no tecto, paredes e piso do seu prédio, bem como no sofá ali existente, termina pedindo a improcedência da acção e formulando em reconvenção as seguintes pretensões:
i) que se declare que a Ré é dona e legitima proprietária do imóvel descrito no artigo 7º da contestação com a configuração e áreas que tem atualmente, descritos nos artigos 13º a 16º;
ii) que a Autora seja condenada abster-se da prática de qualquer acto que perturbe a propriedade da Ré na sua plenitude;
iii) que se declare que a Ré teve um prejuízo de € 2.000,00 (dois mil euros) causado pela Autora;
iv) que a Autora seja condenada a pagar à Ré a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros) acrescidos de juros vencidos e vincendos desde citação até efetivo e integral pagamento;
Subsidiariamente se assim se não entender,
v) que se declare que existe uma propriedade horizontal entre os prédios da Autora e Ré, em que as partes comuns são as paredes que partilham entre ambos descritas nos artigos 42º e 43º;
vi) que se declare que a fracção da Autora é o seu prédio urbano, descrita no artigo 3º e 4º da petição inicial, com a configuração e área com que a adquiriu e que tem nesta data;
vii) que se declare que a fracção da Ré é o seu prédio urbano, descrito no artigo 7º da contestação, com a configuração e área com que a adquiriu e que tem nesta data,
viii) que se declare que a Ré teve um prejuízo de € 2.000,00 (dois mil euros) causado pela Autora;
ix) que a Autora seja condenada a pagar à Ré a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros) acrescidos de juros vencidos e vincendos desde citação até efetivo e integral pagamento;
E sempre,
x) que a Autora seja condenada, como litigante de má-fé em quantia não inferior a € 2.000,00 (dois mil euros).
A Autora replicou, impugnando, no essencial, o alegado pela Ré, contestando os danos que esta lhe imputa, reafirmando a posição assumida na petição inicial e concluindo pela improcedência da reconvenção deduzida.
Foi realizada audiência prévia, no âmbito da qual: foi proferido despacho a admitir a reconvenção, foi proferido despacho saneador, foi fixado o objecto do litígio e foram delimitados os temas da prova.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença onde se decidiu nos seguintes termos:
a) Declarar que a Autora é proprietária do prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo ...07 da União das Freguesias ... (... e ...) e ... e concelho ... e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ...79, com a composição de rés-do-chão e 1.º andar;
b) Declarar que a Ré é proprietária do prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo ...09 da União das Freguesias ... (... e ...) e ... e concelho ... e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ...77, com a composição de três pisos;
c) Absolver a Ré do demais peticionado;
d) Absolver a Autora do pedido reconvencional formulado;
e) Absolver as partes do pedido de condenação como litigantes de má-fé.
Inconformada, a Autora veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…).
A Ré respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…).
II.
Questões a apreciar:
Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
· Saber se a sentença recorrida está ferida de nulidade, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC e por violação do art.º 20.º, n.º 2, da CRP, por ter omitido pronúncia sobre o pedido formulado na petição inicial e sobre a questão da titularidade do espaço/cave que está em litígio;
· Saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento (quando julgou improcedente a pretensão da Autora e não reconheceu o seu direito de propriedade), analisando a questão de saber se, por força do disposto no art.º 1344.º do CC, o espaço em litígio (cave com 31m2) é parte integrante do prédio da Autora – e, consequentemente, de sua propriedade – por se situar no respectivo subsolo;
· Apurar, em caso de resposta afirmativa à questão anterior, se assiste à Autora/Apelante o direito à indemnização que vem reclamar.
III.
Na 1.ª instância, julgou-se provada a seguinte matéria de facto:
1. Por escritura pública outorgada no Cartório Notarial ..., no dia 16/06/2023, CC declarou vender e a Autora declarou comprar “[…] casa de habitação composta por dois pisos, sita na Rua ..., com a área de quarenta e quatro vírgula noventa metros quadrados”, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...07 da União das Freguesias ... (..., ...) e ..., concelho ..., com a área de 44,9 m2, que aqui se dá como inteiramente reproduzida e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ...79.
2. Por escritura pública outorgada no Cartório Notarial ..., no dia 26/05/2023, CC declarou vender e a Ré declarou comprar “[c]asa de habitação, composta por três pisos, sita na Rua ..., com a área de quarenta e oito vírgula oitenta metros quadrados” inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...09 da União das Freguesias ... (..., ...) e ..., concelho ..., com a área de 48,8 m2, que aqui se dá como inteiramente reproduzida e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ...77.
3. O prédio identificado no ponto 1. confina de norte e nascente com o prédio mencionado no ponto 2..
4. O prédio identificado no ponto 2. confina a sul e nascente com prédio mencionado no ponto 1..
5. O prédio referido no ponto 2. encontra-se ligado, no rés-do-chão, a uma área de 31,00 m2, que se situa no subsolo do prédio mencionado no ponto 1..
6. A área mencionada no ponto 5. não se encontra inserida nos prédios identificados nos pontos 1. e 2..
7. Em data não concretamente apurada, mas anterior ao ano de 1977 os prédios identificados nos pontos 1. e 2. constituíam um único prédio.
8. Desde, pelo menos, o ano de 1977 que os prédios referidos nos pontos 1. e 2. possuem a actual configuração.
9. Desde, pelo menos, o ano de 1977, os prédios inscritos na matriz sob os artigos ...07 e ...09 são independentes, não possuindo qualquer ligação entre eles e com saída independente para a via pública.
10. A área de 31,00 m2 inserida no subsolo do prédio da Autora nunca possuiu ligação direta ao prédio desta.
11. A Autora executou trabalhos no prédio identificado no ponto 1. que culminaram numa abertura no teto do rés-do-chão da Ré.
Não se julgaram provados os seguintes factos:
a. A Autora com a outorga da escritura de compra e venda adquiriu a cave sita no subsolo do prédio inscrito na matriz urbana sob o artigo ...07.
b. Existia um alçapão que dava acesso, através do prédio da Autora, à cave do prédio da Ré.
c. A Ré derrubou o muro que confrontava com o prédio da Autora, abrindo uma cave no subsolo deste.
d. Em consequência de tal trabalho, a estrutura do prédio urbano da Autora foi alterada e coloca em risco a sustentabilidade do mesmo.
e. A Ré ao utilizar a cave situada no subsolo do prédio da Autora provocou a interrupção dos trabalhos de melhoramentos por si executados.
f. Os trabalhos executados pela Autora no seu prédio estragaram o piso, as paredes das escadas e o sofá da Ré.
g. Os estragos mencionados no ponto f. importam a quantia de € 2.000,00.
IV.
A Apelante começa por invocar a nulidade da sentença, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC e por violação do art.º 20.º, n.º 2, da CRP, por ter omitido pronúncia sobre o pedido formulado na petição inicial.
Segundo a Apelante, não existiu decisão sobre a titularidade da cave em causa nos autos (com a área de 31m2), não tendo sido decidida a questão em litígio e que havia sido fixada e elencada na audiência prévia nos seguintes termos: “Apurar se a cave utilizada pela Ré pertence à Autora e em que medida”. Sustenta, por isso, estar em causa uma situação de denegação de justiça por não ter sido definida a titularidade do espaço em questão.
Pensamos não lhe assistir razão.
É certo que, conforme previsto na alínea d) do n.º 1 do citado art.º 615.º, a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar. E essas questões – que ao juiz cabe apreciar, sob pena de nulidade da sentença – são as que se encontram definidas no art.º 608.º onde se determina que, além das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica (que devem ser apreciadas em primeiro lugar), o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
É indiscutível que a questão principal que se discute nos autos é reportada à titularidade do espaço em questão (cave) e que a questão a que se reporta a Apelante (apurar se a cave utilizada pela Ré pertence à Autora e em que medida) estava inserida no objecto no litigio – correspondendo, aliás, à essência da pretensão que a Autora havia formulado nos autos e que era pressuposto dos restantes pedidos formulados – e, nessa medida, era questão que tinha que ser apreciada e decidida na sentença.
Mas já não será correcto afirmar que isso não tenha acontecido e que a sentença tenha omitido pronúncia sobre essa questão e sobre a pretensão formulada pela Autora.
Na verdade, a sentença decidiu essa pretensão, julgando-a improcedente, conforme resulta claramente do segmento decisório.
E fê-lo com a fundamentação que a seguir se reproduz (pág. 17 da sentença):
“In casu, resultou não demonstrado que a Ré tenha procedido a qualquer abertura e/ou escavação no subsolo do prédio pela Autora que originasse a cave utilizada pela primeira, antes sim advém da facticidade provada que, desde pelo menos, 1977 os prédios em apreço possuem a configuração pela qual foram adquiridas pela Autora e pela Ré.
Daqui resulta que não se pode concluir que a Autora tenha adquirido a propriedade total do prédio, uma vez que apenas adquiriu o prédio inscrito na matriz sob o artigo ...07, sendo que a vendedora efetuou uma cisão do prédio urbano, no qual o prédio adquirido pela Autora apenas é composto por casa de habitação com dois pisos.
Acresce que, não resultou provado que a vendedora do prédio tenha querido vender a cave, antes sim apenas o que consta na caderneta.
Adite-se ainda que não resultou demonstrado que tenha existido uma qualquer ligação direta entre o prédio urbano adquirido pela Autora e a cave existente no subsolo do mesmo, bem como não resultou provado que a Ré procedeu à abertura/demolição de um muro de confrontação com o prédio da Autora.
Pelo que, tem de improceder o pedido formulado pela Autora de reconhecer o seu direito de propriedade sobre o subsolo do prédio inscrito sob o artigo ...07 e, consequentemente, tem ainda de improceder o pedido referente à condenação da Ré na reconstrução de um muro que divida as propriedades da Autora e da Ré.
Assim, pese embora conste que a Autora tenha adquirido o prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo ...07, o que consequentemente lhe dá, em princípio, direito de propriedade sobre o espaço aéreo e subsolo, é necessário encontrar um instituto jurídico que melhor se adeque à concreta situação da Autora e da Ré, porquanto a Autora adquiriu um prédio que se encontra implantado sobre um prédio alheio: o prédio da Ré” (sublinhados e negrito nossos).
Releva notar que a pretensão da Ré (no sentido de lhe ser reconhecida a ela o direito de propriedade sobre o aludido espaço) também foi julgada improcedente, por se ter considerado – ainda que em termos algo confusos e com alusão ao regime do direito de superfície, usucapião e propriedade horizontal – que, apesar de o espaço em questão pertencer à Ré, não era possível julgar procedente a sua pretensão na medida em que “...a atribuição dessa área está dependente da constituição do prédio em propriedade horizontal e não se encontram preenchidos, por ora, os requisitos necessários para tal, por este motivo, não se pode assacar outras ilações à situação em apreço, em virtude do Tribunal se encontrar limitado pelo princípio do pedido, nos termos do art. 609.º, n.º 1 do Código de Processo Civil”.
Significa isso, portanto, não ser correcto afirmar que a sentença recorrida tenha omitido pronúncia sobre as pretensões e questões que haviam sido formuladas e suscitadas. A sentença recorrida proferiu decisão sobre as pretensões formuladas por cada uma das partes no que toca à titularidade do espaço (cave) em questão – julgando ambas improcedentes – indicando as razões/fundamentos que conduziram a essa decisão e apreciando, portanto, aquela que era a questão essencial que se suscitava nos autos.
A decisão em causa e respectiva fundamentação poderá estar errada – como sustenta a Apelante – mas isso já não traduz uma nulidade da sentença, mas sim um erro de julgamento. Bem ou mal, a sentença recorrida pronunciou-se sobre as questões suscitadas e emitiu decisão sobre as pretensões formuladas e, portanto, não padece de nulidade, podendo, quando muito, estar afectada de erro de julgamento.
Na sequência do que se disse, importa agora saber se a sentença recorrida incorreu (ou não) em erro de julgamento.
Começamos por referir que não existiu qualquer impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto. Ainda que, ao longo das suas alegações, a Apelante faça algumas considerações a propósito de determinados factos, a verdade é que não incluiu nas conclusões das alegações (e, consequentemente, no objecto do recurso) qualquer questão referente a tal decisão, sendo certo que não identificou nesse local qualquer ponto de facto que considerasse incorrectamente julgado e que, nessa medida, pretendesse ver reapreciado.
Assim sendo, a matéria de facto a considerar é aquela que foi fixada em 1.ª instância.
Está em causa nos autos uma situação em que o subsolo de um prédio onde está implantado um edifício (não constituído em propriedade horizontal e que consta da matriz como “Prop. Total sem Andares nem Div. Susc. De Utiliz. Independente”) está ocupado com espaço (edificado) que está ligado ao prédio confinante (que também não está constituído em propriedade horizontal e que também consta da matriz como “Prop. Total sem Andares nem Div. Susc. De Utiliz. Independente”) e que está a ser utilizado pela proprietária deste último prédio (a Ré) como parte integrante da sua habitação, importando acrescentar que esse espaço não consta da inscrição matricial e predial de nenhum dos prédios em causa.
Refira-se que, ao contrário do que havia sido alegado pela Autora, não resultou provado que tenha sido a Ré a executar a obra por via da qual aquele espaço foi ligado ao prédio que adquiriu. O que se retira da matéria de facto provada é que a obra em questão foi feita pelos anteriores proprietários e antes, portanto, da transmissão dos prédios em causa à Autora e à Ré.
Discute-se agora a propriedade daquele espaço e, mais concretamente, se ele pertence à Autora (que adquiriu – por escritura de compra e venda celebrada em 16/06/2023 – o prédio em cujo subsolo se encontra o referido espaço) ou se ele pertence à Ré (que adquiriu – por escritura de compra e venda celebrada em 26/05/2023 – o prédio que tem ligação interior ao dito espaço).
Na perspectiva da Apelante, a sentença recorrida decidiu mal, incorrendo em erro de julgamento (quando julgou improcedente a sua pretensão e não reconheceu o seu direito de propriedade), porquanto o disposto no art.º 1344.º do CC impunha – sem mais, de acordo com o entendimento da Apelante, por não existir lei ou negócio jurídico que altere a solução aí consignada – que se decidisse de outro modo e que se reconhecesse que o espaço em questão (cave com 31m2) é parte integrante do seu prédio e, consequentemente, de sua propriedade.
Vejamos se assim é.
O citado artigo (1344.º) dispõe nos seguintes termos:
“1. A propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico.
2. O proprietário não pode, todavia, proibir os actos de terceiro que, pela altura ou profundidade a que têm lugar, não haja interesse em impedir”.
É certo, portanto, que, por regra, o direito de propriedade abrange, não apenas o solo e as edificações nele implantadas, mas também o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e é, portanto, dentro desses limites que o proprietário exerce os seus poderes de proprietário, ou seja, os poderes de usar, fruir e dispor da coisa de modo pleno e exclusivo (cfr. art.º 1305.º do CC), ainda que não lhe seja lícito proibir os actos de terceiro que, pela altura ou profundidade a que têm lugar, não haja interesse em impedir. Só assim não será – conforme resulta do disposto no citado art.º 1344.º, se, por lei ou negócio jurídico alguma dessas partes integrantes do imóvel tiver sido desintegrada do domínio, passando, portanto, para a propriedade de outrem.
Impõe-se, portanto, saber se, de alguma forma, esse espaço foi desintegrado do domínio – por lei ou negócio jurídico – de forma a passar para a propriedade de outrem (no caso, da Ré).
Tendo em conta que o espaço em questão se situa no subsolo do prédio da Autora e por baixo do edifício que aí se encontra implantado – correspondendo, portanto, a uma parcela (cave) desse edifício –, parece seguro afirmar que qualquer desintegração desse espaço do prédio da Autora e correspondente integração no prédio da Ré teria que pressupor a constituição de uma propriedade horizontal já que é esse o instituto que permite a autonomização da propriedade relativamente a fracções do mesmo edifício com a subsistência de partes comuns.
Apelamos, no que toca a essa matéria, às palavras de Manuel Henrique Mesquita[1] - também reproduzidas por Pires de Lima e Antunes Varela[2] – quando diz: “Em face do regime geral do direito de propriedade sobre imóveis, qualquer edifício incorporado no solo só pode ser objecto de um único direito de domínio – direito que abrangerá toda a construção, o solo em que esta assenta e os terrenos que lhe sirvam de logradouro. É o que facilmente se infere das regras sobre acessão industrial imobiliária (arts. 1339.º a 1343.º) e do preceito delimitador da propriedade imóvel (art. 1344.º, n.º 1)”.
Essa regra é, no entanto, derrogada – como também referem os citados autores – pelo instituto da propriedade horizontal, que se caracteriza pelo facto de um mesmo edifício ser composto por várias unidades (fracções) independentes e pertencentes a proprietários diferentes (cfr. art.º 1414.º do CC).
É certo, portanto, que o pretenso direito de propriedade da Ré sobre o aludido espaço (situado no subsolo do prédio da Autora) pressupunha necessariamente a constituição de uma propriedade horizontal, já que é este o regime que permite que diversas partes do mesmo edifício (como aqui acontece, já que a cave faz parte do edifício onde também está o prédio da Autora) possam pertencer a proprietários diferentes em regime de propriedade exclusiva, com regime de compropriedade em relação a partes comuns (como sucederia aqui com o solo onde o edifício está implantado, o telhado/cobertura, os alicerces, paredes e restante estrutura (cfr. art.º 1421.º do CC)).
Refira-se que, ainda que se convocasse o regime do direito de superfície – como se fez na decisão recorrida, ainda que não nos pareça apropriado e adequado à situação dos autos –, sempre a situação seria reconduzida ao regime da propriedade horizontal (cfr. art.º 1526.º do CC).
É, aliás, esse o regime que também é convocado pela Ré quando alude – na sua contestação – a uma “propriedade horizontal irregular e não constituída”, pedindo, além do mais, que se declare a existência desse tipo de propriedade (horizontal) entre os prédios da Autora e da Ré.
Ora, à data da celebração do contrato de compra e venda por via do qual a Ré adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio identificado no ponto 2 da matéria de facto provada, não estava constituída qualquer propriedade horizontal, pelo que, o espaço em questão, fazendo parte do edifício correspondente ao prédio da Autora (ocupando o respectivo subsolo) não tinha autonomia jurídica enquanto “coisa” susceptível de negócios jurídicos que, como tal, pudesse ser transacionada de forma autónoma e separada da parte restante do prédio onde estava implantado o edifício no qual estava integrada (o prédio da Autora).
Ainda que os prédios em causa tenham correspondido a um único prédio e ainda que, aquando da autonomização dos dois prédios, o espaço/cave em questão já existisse nos termos em que hoje se encontra (ficando, portanto, com ligação interior – acesso – apenas ao prédio hoje da Ré), a verdade é que essa situação não foi reflectida no acto que implicou a divisão do prédio anterior em dois novos prédios, uma vez que a cave em questão e a área por ela ocupada não foi incluída na descrição do prédio hoje da Ré nem existiu qualquer acto que tivesse aptidão jurídica para autonomizar e destacar esse espaço do edifício no qual se inseria e que correspondia ao prédio hoje da Autora. Tal autonomização passava pela constituição de propriedade horizontal que, conforme se referiu, não foi constituída aquando da divisão e separação dos prédios nem em momento posterior.
Importa lembrar que as realidades prediais (os prédios) não são alteráveis por mera vontade e a bel-prazer dos respectivos proprietários. Para que qualquer alteração física dos prédios (divisão, separação, unificação, etc.) tenha relevância jurídica, é necessário que ela resulte ou seja apoiada em qualquer acto (de divisão, anexação, desanexação ou outro) que, à luz da lei, tenha a aptidão necessária para determinar juridicamente assa alteração e para modificar a realidade predial que enquanto “coisa” é susceptível de negócios e relações jurídicas.
É irrelevante, portanto, que a situação em questão já existisse aquando da separação dos prédios e é irrelevante que os anteriores proprietários (vendedores) tivessem pretendido vender o aludido espaço como parte integrante do prédio referido no ponto 2 da matéria de facto (prédio vendido à Ré). Não tendo ocorrido qualquer acto por via do qual aquele espaço tivesse sido desintegrado/separado/desanexado do prédio em cujo subsolo se encontrava e que o tivesse integrado/anexado ao prédio do lado (hoje da Ré) – e que, como se disse, tinha que passar pela constituição de uma propriedade horizontal – o dito espaço não tinha autonomia jurídica enquanto “coisa” susceptível de negócios jurídicos (continuando a estar abrangido pelo direito de propriedade correspondente ao prédio da Autora) e, portanto, não podia ser vendido de forma separada e desintegrada do edifício onde estava inserido.
Por isso entendemos que a escritura de compra e venda não é título legítimo de aquisição desse espaço (que, aliás, nem sequer é mencionado na escritura nem é mencionado em qualquer outro documento, designadamente certidões da matriz e da Conservatória). Não é verdade, portanto, que a Ré tenha adquirido – por via daquela escritura – um imóvel com a área e configurações que, à data, lhe foram mostradas (com inclusão daquele espaço); a Ré terá pensado que assim era – porque foi isso que lhe foi dito e era isso que parecia, dada a circunstância de esse espaço estar fisicamente ligado ao prédio que estava a adquirir (sem ligação a qualquer outro) – e terá comprado nesse pressuposto (circunstância que poderá relevar para efeitos de erro sobre o objecto do negócio e eventual anulação do negócio de compra e venda), sendo certo, no entanto, que não era essa a realidade predial que efectivamente existia e que estava a adquirir. O que a Ré adquiriu, por via da referida escritura, foi o imóvel a que ela se reporta e nos termos em que ele existia, enquanto coisa susceptível de negócios jurídicos, e que, conforme se referiu, era um imóvel em propriedade plena que não incluía o espaço em questão que se situava no subsolo de um outro prédio, correspondendo a parcela do edifício que aí estava implantado e que dele não havia sido autonomizado por via de qualquer acto com aptidão para o efeito.
O espaço em questão – reafirma-se – correspondia a parcela do prédio da Autora e do edifício aí implantando (ocupando o seu subsolo) que não estava autonomizada como fracção e que, nessa medida, não correspondia a uma “coisa” que fosse susceptível de negócios jurídicos e que pudesse ser transmitida à Ré de forma autónoma, separada e desintegrada da parte restante do prédio do prédio da Autora.
Nas circunstâncias descritas, pensamos que só a usucapião poderia constituir título legítimo para aquisição pela Ré daquele espaço correspondente a parcela/parte de um prédio (no caso, o prédio que hoje pertence à Autora) e para que, consequentemente, o espaço em questão se tivesse desintegrado do domínio em relação ao prédio da Autora no qual estava naturalmente integrado, nos termos previstos no art.º 1344.º.
Será o caso?
Conforme resulta do que já dissemos supra, o eventual direito de propriedade da Ré sobre este espaço haveria sempre de pressupor uma propriedade horizontal porque só esse instituto permitiria que diversas partes do mesmo edifício (como aqui acontece, já que a cave faz parte do edifício onde também está o prédio da Autora) pudessem pertencer a proprietários diferentes em regime de propriedade exclusiva, com regime de compropriedade em relação a partes comuns.
E é por isso que se tem vindo a considerar que a posse correspondente ao direito de propriedade sobre determinada parcela ou parte de um prédio/edifício apenas pode conduzir à respectiva aquisição por usucapião se e na medida em que esteja constituída – ou seja constituída em simultâneo – a propriedade horizontal[3], sendo que esta também pode ser constituída por usucapião (conforme resulta do disposto no art.º 1417.º, n.º 1, do CPC, a propriedade horizontal pode ser constituída por negócio jurídico, usucapião, decisão administrativa ou decisão judicial, proferida em acção de divisão de coisa comum ou em processo de inventário).
Na situação dos autos, a Ré não pede a constituição da propriedade horizontal[4], pedindo apenas, em reconvenção, que seja declarada a existência de uma propriedade horizontal entre o seu prédio e o da Autora, no pressuposto aparente de que ela já teria sido constituída (só assim se poderia reconhecer a sua existência).
Mas, não tendo invocado a existência de qualquer negócio jurídico ou decisão por via dos quais se tivesse constituído a propriedade horizontal – resultando, aliás, da contestação que não existiu nenhum desses actos – apenas por usucapião ela se poderia ter constituído.
A verdade é que não se verificam os pressupostos necessários para a usucapião, seja no que toca à aquisição do direito de propriedade sobre a parcela em causa (a dita cave) seja no que toca à constituição da propriedade horizontal, desde logo porque não constam da matéria de facto provada – e nem sequer foram alegados – os factos necessários para esse efeito.
Como decorre do disposto no art.º 1287º, a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade ou de outro direito real pressupõe a posse do direito durante um determinado lapso de tempo, que varia em função das características da posse (relevando, para este efeito, o facto de a posse ser ou não titulada e registada e o facto de a posse ser de boa-fé ou má-fé). A posse que é susceptível de conduzir à aquisição do direito por usucapião tem que ser uma posse pública e pacífica (já que, como decorre do disposto no art.º 1297º do C.C., os prazos para a usucapião não correm enquanto a posse for violenta ou oculta) e tem que ser uma posse efectiva (que corresponde, segundo o disposto no art.º 1251º, ao poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real) e não uma detenção ou posse precária.
Ora, uma posse correspondente a uma propriedade horizontal haverá de pressupor – naturalmente – uma actuação dos “condóminos” em termos correspondentes àqueles que são inerentes a esse tipo de propriedade, usando, cada um deles de modo exclusivo, uma determinada fracção do edifício e actuando em fruição conjunta das partes comuns do prédio e comparticipando nas respectivas despesas, actuando, portanto – todos eles – em conformidade com o regime e a natureza específica desse tipo de propriedade e com os direitos e deveres que lhe são inerentes.
Não é isso que acontece na situação dos autos, sendo certo que a matéria de facto não evidencia – nem indicia – a existência de uma situação possessória dessa natureza e muito menos pelo prazo necessário para a usucapião.
Sabemos que a Ré vem usando, desde que adquiriu o imóvel (em 2023) o espaço em questão (situado – conforme vimos repetindo – no subsolo ou por baixo do prédio da Autora) como se fosse parte da casa que adquiriu. Mas, além de ser, no mínimo, discutível a publicidade dessa posse (e, conforme resulta do disposto no art.º 1297.º do CC, só a posse pública releva para a usucapião), essa eventual posse nunca teria sido exercida pelo prazo necessário à usucapião e, portanto, só por via da acessão da posse (cfr. art.º 1256.º do CC), teria corrido o prazo da usucapião.
A verdade é que a posse dos antecessores da Ré não relevaria para os efeitos pretendidos.
Sabemos que, tendo constituído outrora um único prédio, os prédios – adquiridos pela Autora e pela Ré em 2023 – são prédios autónomos desde 1977, tendo, desde então, a sua actual configuração. Ou seja, a cave em questão existirá desde 1977 (ainda que esteja totalmente omissa nas descrições matriciais e prediais) e sempre esteve ligada ao prédio hoje da Ré e sem ligação directa ao prédio hoje da Autora. E sabemos – em função de documentos juntos aos autos – que os prédios pertenceram ao mesmo proprietário (sendo certo que, conforme resulta das referidas escrituras, ambos foram vendidos pelos herdeiros de DD falecido em 2008).
Mas, para além da circunstância de os prédios em causa pertencerem ao mesmo proprietário – que, nessa medida, não exercia nem opunha a ninguém uma qualquer posse exclusiva sobre a parcela em questão numa situação equivalente a uma propriedade horizontal – nem sequer sabemos (sendo certo que não foi alegado) quais os termos em que os prédios em causa – bem como a aludida cave – foram usados até hoje e, designadamente, se foram usados (ou não) como unidades independentes e por pessoas distintas como se fossem fracções de um edifício ou propriedade horizontal ou se foram usados como coisa única por quem, sendo proprietário comum de ambos os prédios, os usasse e fruísse de modo pleno como se estivesse em causa um único prédio.
É certo, portanto, que, para além da escassa alegação factual (que sempre seria insuficiente para concluir pela existência de uma posse relevante que a Ré pudesse invocar para efeitos de usucapião da área aqui em causa), a posse dos antecessores da Ré não relevaria para os efeitos pretendidos, na medida em que, ao que tudo indica, esses antecessores eram proprietários de ambos os prédios (o que foi vendido à Autora e à Ré), não podendo, por isso, falar-se em qualquer posse que exercessem sobre uma concreta parcela ou fracção do prédio/edifício hoje da Autora (a dita cave) enquanto proprietários exclusivos dessa parcela e em comunhão das partes comuns e que pudessem opor a outrem, mais concretamente, ao proprietário ou possuidor da parte restante do edifício (tendo em conta que a parte restante do edifício também lhes pertencia e também estava na sua posse). A posse assim exercida pelos antecessores da Ré é, portanto, uma posse diferente da sua (dela Ré) que se reportava aos prédios em si, na sua globalidade e não correspondia a posse exclusiva sobre determinadas fracções ou parcelas desses prédios que agora pudesse relevar e ser invocada e utilizada pela Ré – ao abrigo do art.º 1256.º – para fundamentar a aquisição por usucapião de um direito de propriedade sobre uma parcela/fracção de um desses prédios e a constituição, por usucapião, de uma propriedade horizontal.
Concluímos, portanto, em razão do exposto, que, independentemente da questão de saber se estariam (ou não) reunidos os pressupostos legais para a constituição de uma propriedade horizontal[5], não há bases factuais para concluir pela aquisição por usucapião – por parte da Ré – do espaço em questão (a cave referida) e para concluir, em consequência, que, por efeito dessa aquisição, esse espaço se tivesse desintegrado do domínio em relação ao prédio da Autora no qual estava naturalmente integrado, nos termos previstos no art.º 1344.º.
Essa cave – conforme resulta de tudo o que se disse – ocupa o espaço correspondente ao subsolo do prédio da Autora (estando, por isso e em principio, abrangido pelo direito de propriedade referente a esse imóvel nos termos do referido art.º 1344.º) e corresponde a parte do edifício correspondente ao prédio da Autora que, sem constituição da propriedade horizontal não tinha – e não tem – autonomia jurídica enquanto “coisa” susceptível de negócios jurídicos. Nessas circunstâncias, não tendo ocorrido – pelas razões que apontámos – qualquer negócio jurídico que tivesse aptidão para desintegrar esse espaço do domínio correspondente ao prédio da Autora e para o integrar no âmbito do direito de propriedade da Ré e não tendo ocorrido qualquer outro facto que, nos termos da lei, tivesse tal aptidão, resta concluir que o espaço em questão continua integrado e incluído no âmbito do direito de propriedade da Autora.
Impõe-se, portanto, em razão do exposto, reconhecer que o direito de propriedade da Autora abrange o subsolo do seu prédio (onde se encontra o espaço acima identificado) com a consequente condenação da Ré a reconhecer esse direito e a desocupar o aludido espaço, tapando a ligação existente entre esse espaço e o seu prédio mediante implantação de parede que divida os prédios.
A Autora pedia ainda que a Ré fosse “...condenada no pagamento à Autora de indemnização calculada na base de 20,00€ ao dia, pelo abuso de direito, a contar da data da citação, até à data que deixe de ocupar qualquer espaço pertencente à Autora no referido imóvel, nos termos do disposto no artigo 483º do CC”.
Esta pretensão não está em condições de merecer procedência.
Começamos por notar que, nos termos em que está formulada, nem sequer se percebe qual é o exacto fundamento desta pretensão, uma vez que, ao mesmo tempo que alude a um “abuso de direito”, a Autora alude também ao disposto no art.º 483.º do CC.
Admitindo que, quando alude a abuso de direito, a Autora pretenda reportar-se ao instituto previsto no art.º 334.º do CC, a verdade é que nada alegou na petição inicial que fosse susceptível de ser integrado nessa figura jurídica, até porque o abuso de direito pressupõe – como parece ser lógico – a existência de um direito[6] e a Autora não diz qual seria o pretenso direito da Ré que ela estivesse a exercer de modo a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito como é suposto acontecer para que se possa falar em abuso de direito. A Autora não reconhece à Ré qualquer direito (designadamente sobre o espaço em questão) e, não existindo direito, não se pode falar em abuso de direito.
Na pretensão que formula, a Autora alude também ao disposto no art.º 483.º do CC, o que nos remete para o regime da responsabilidade civil por actos ilícitos.
Dispõe a norma citada que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Essa responsabilidade pressupõe, portanto: um facto/acto ilícito de alguém, a culpa, o dano e um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Importa notar, em primeiro lugar, que nem sequer resultou provado que tenha sido a Ré a autora do facto que deu origem à situação que aqui se discute, resultando da matéria de facto provada que essa situação (a edificação daquela cave, no subsolo do prédio da Autora, com ligação ao prédio da Ré) foi criada pelos anteriores proprietários de ambos os prédios; a Ré limitou-se a comprar o prédio que lhe foi entregue nas circunstâncias descritas e, ao que tudo indica (tendo em conta a realidade física e material que se lhe apresentava), no pressuposto de que aquela área integrava o aludido prédio.
Por outro lado, sendo certo que recaía sobre a Autora o ónus de provar os factos constitutivos do seu direito e, designadamente, a existência dos danos cuja indemnização vem reclamar, a verdade é que nada consta da matéria de facto que permita concluir pela existência de qualquer dano/prejuízo da Autora, importando relembrar que não foi deduzida impugnação à decisão proferida sobre a matéria de facto.
Refira-se, aliás, que a Autora nem sequer alegou, de forma minimamente consistente, os danos em questão.
Além de alegar que foi a Ré que executou a obra em questão, derrubando o muro comum, procedendo a escavação, alterando a estrutura do edifício e pondo em risco a sustentabilidade da moradia da Autora (factos que não resultaram provados), a Autora alegou apenas que, por força dessa actuação, a Ré provocou a interrupção das obras que a Autora estava a realizar, causando “...prejuízos a atrasos nas obras que se traduzem em mais custos para a Autora”.
Parece, portanto, que o dano do qual a Autora pretendia ser indemnizada corresponderá àquele que se traduz nos maiores custos da obra que irá ter que suportar em consequência do atraso nessas obras, pois é certo que não invocou nem alegou qualquer outro. Mas, mesmo em relação a esse dano, a Autora não concretizou minimamente a sua existência, limitando-se a alegar, em termos perfeitamente genéricos, abstractos e conclusivos, que o atraso nas obras iria implicar mais custos sem nada mais alegar a esse propósito e sem qualquer alegação factual que permitisse fundamentar e sustentar a pretensão indemnizatória que formulou correspondente a 20,00€/dia a contar da citação. 20,00€/dia porquê? É esse o valor do aumento do custo das obras? Ou seja, a cada dia que passa, a obra vai ficar 20,00€ mais cara? Não sabemos. A Autora não fundamentou correctamente essa pretensão e não identificou, em termos precisos, o dano de que pretende ser indemnizada.
Acresce, além do mais, que nem sequer resultou provado que tenha existido algum atraso na obra que a Autora andava a realizar em resultado da ocupação do referido espaço por parte da Ré (cfr. alínea e) dos factos não provados).
Tal pretensão não poderá, portanto, merecer procedência.
SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):
(…).
V.
Pelo exposto, concedendo-se parcial provimento ao presente recurso e julgando-se procedente, nessa parte, a pretensão da Autora, decide-se:
Declarar o direito de propriedade pleno da Autora sobre o prédio urbano inscrito na matriz da freguesia de União de Freguesias de ... e ... sob o número ...07 e descrito na C.R.P. ... sob o número ...79, incluindo o respectivo subsolo, condenando-se a Ré a reconhecer esse direito, a abster-se de ocupar qualquer parte da construção existente nesse prédio (designadamente o espaço referido nos pontos 5 e 10 da matéria de facto) e a tapar a ligação existente entre esse espaço e o seu prédio mediante implantação de parede divisória.
Em tudo o mais, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Apelante e da Apelada, na proporção de 25% para a primeira e 75% para a segunda.
Notifique.
Coimbra,
(Maria Catarina Gonçalves)
(José Avelino Gonçalves)
(Anabela Marques Ferreira)
[1] Direitos Reais (Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967), Coimbra, 1967, pág. 270.
[2] Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª edição revista e actualizada, pág. 391.
[3] Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 07/04/2016 (processo n.º 421/13.9TBOHP.C1), Acórdão da Relação de Lisboa de 31/05/2012 (processo n.º 5747/07.8TMSNT.L1-2, Acórdão da Relação de Évora de 14/06/2007 (processo n.º 796/07-3), Acórdão da Relação de Guimarães de 15/04/2021 (processo n.º 1082/18.4T8PTL.G1), todos disponíveis em https://www.dgsi.pt. e ainda o Acórdão da Relação de Lisboa de 24/11/2015, na CJ, Ano XL – 2015, tomo V, pág. 93 e ainda Rui Pinto Duarte, Código Civil Anotado, Coord. Ana Prata, Vol. II, 2017, pág. 239 em anotação ao art.º 1417.º.
[4]Refira-se, aliás, que, segundo o disposto no art.º 1417.º do CC, a constituição da propriedade horizontal por decisão judicial está reservada à acção de divisão de coisa comum ou ao processo de inventário – pressupondo-se, portanto, a existência de uma situação prévia de compropriedade ou comunhão hereditária em relação ao edifício no qual se integram as diversas parcelas/fracções –, podendo ainda ser considerada admissível a constituição da propriedade horizontal por sentença no caso (que não se verifica na situação dos autos) de incumprimento de contrato-promessa de compra e venda de uma ou mais fracções quando seja possível a execução específica, conforme sustentam Pires de Lima e Antunes Varela (ob. cit., pág. 403) e M. Henrique Mesquita (“A propriedade horizontal no Código Civil Português”, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXIII – Janeiro-Dezembro 1976, págs. 89 e 90).
[5] Relevando notar que, para o efeito, é usual exigir-se certificação, por parte das entidades competentes, de que estão reunidos os requisitos legais e administrativos (cfr. designadamente, os Acórdãos da Relação de Coimbra de 23/10/2012 (processo n.º 16/11.1TBVZL.C2) e de 27/05/2025 (processo n.º 1575/19.6T8VIS.C2) e o Acórdão da Relação de Évora de 22/03/2018 (processo n.º 151/17.2T8ODM.E1), todos disponíveis em https://www.dgsi.pt.
[6] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., pág. 297.