I – As servidões legais – que se definem e caracterizam pelo facto de os prédios envolvidos se encontrarem na situação de facto que, segundo a lei, permite impor a constituição da servidão de forma coerciva – têm como pressuposto a efectiva necessidade da utilidade ou proveito que elas proporcionam nos termos que estão definidos na lei.
II – Nessas circunstâncias, a desnecessidade que pode conduzir à extinção dessas servidões – nos termos previstos no art.º 1569º, n.º 3, do CC – tem que ser obrigatoriamente superveniente em relação ao momento em que elas se constituíram, porque, se essa necessidade já não existia, nenhuma servidão legal se poderia ter constituído que pudesse ser extinta por desnecessidade.
III – Estando em causa uma servidão para aproveitamento de águas para gastos domésticos constituída por contrato (uma transacção), tal servidão apenas poderia ser extinta por desnecessidade se e na medida em que correspondesse a uma servidão legal – ou seja, caso, à data da sua constituição, os prédios envolvidos se encontrassem na situação de facto a que se reporta o art.º 1557.º, n.º 1, do CC por se mostrar configurada a situação de necessidade do prédio dominante que aí se encontra prevista – e desde que se provasse que essa situação (de necessidade) havia cessado entretanto (ou seja, de forma superveniente).
IV – Se tal necessidade (do prédio dominante) já não existisse à data da sua constituição, a servidão em causa não seria uma servidão legal, mas sim uma servidão voluntária constituída por contrato (a transacção), caso em que a sua eventual desnecessidade seria irrelevante por não corresponder a causa legal de extinção desse tipo de servidão.
V – Recai sobre o proprietário do prédio serviente que se apresenta a requerer a extinção da servidão legal, o ónus de provar a sua desnecessidade (necessariamente superveniente), ou seja, que, após a sua constituição, cessou a situação de necessidade que esteve subjacente à sua constituição.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I.
AA, residente na rua ..., ..., ..., ... ..., instaurou acção, sob a forma de processo comum, contra BB e mulher CC, residentes na rua ..., ..., ..., ... ..., ..., pedindo – além de outros pedidos que agora não relevam por não estarem em causa no recurso – que os Réus sejam condenados a verem extinto o direito de servidão de aproveitamento de água referido na petição inicial que está constituído sobre o prédio da Autora ali identificado a favor do prédio identificado dos Réus.
Em fundamento dessa pretensão, alega, em resumo:
- Que, em acção que correu termos sob o n.º 973/09.... – onde foram demandantes os aqui demandados e demandados a aqui demandante e outros – foi celebrada transacção onde as partes reconheceram um direito de servidão das águas do furo (a onerar o prédio da Autora), para uso exclusivamente doméstico da casa edificada no prédio dos Réus;
- Que os Réus nada pagaram pela constituição da aludida servidão, pelo que a mesma foi constituída por doação;
- Que, depois da referida transacção, os Réus construíram um ramal a ligar a rede pública de água à sua casa de habitação, passando a consumir, na sua casa de habitação, água fornecida pelo município ... através da referia rede pública;
- Que, nessas circunstâncias, os Réus não necessitam da água do furo, pelo que a mesma deve ser extinta por desnecessidade, atento o disposto no art.º 1569.º, nºs 2 e 3 do CC;
- Que o abuso do direito também conduz à extinção da servidão (art.º 334.º do CC).
Os Réus contestaram, sustentando, em resumo, que necessitam da água do furo pelo que a servidão não pode ser extinta por desnecessidade.
Foi realizada a audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido o despacho saneador.
Após desistência e confissão – devidamente homologadas – em relação a alguns dos pedidos, o processo seguiu apenas para julgamento dos restantes pedidos: um pedido relacionado com uma servidão de passagem e o pedido referente à extinção por desnecessidade da aludida servidão.
Após realização do julgamento, foi proferida sentença que, condenando o Réu BB a remover a brita colocada sobre o espaço do trilho de passagem, num comprimento de cerca de 7 metros e largura de cerca de 3 metros, no limite nordeste do prédio identificado na alínea a) dos factos provados, junto à Rua ... e ao prédio identificado na alínea c) dos factos provados, decidiu absolver os Réus do restante pedido contra eles formulados pela Autora.
Inconformada com a decisão – no segmento em que julgou improcedente o pedido referente à extinção da servidão por desnecessidade – a Autora veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…).
Não foi apresentada resposta ao recurso.
II.
Questões a apreciar:
Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
i. Saber se, para efeitos de extinção de uma servidão predial (pretensamente legal), basta a sua desnecessidade actual e objectiva ou se tem que estar em causa uma desnecessidade superveniente (ocorrida, portanto, após a sua constituição);
ii. Apurar como se reparte o ónus de prova nessa matéria e sobre quem recai o ónus de provar a desnecessidade da servidão e a superveniência dessa desnecessidade;
iii. Saber se a alegada ilicitude o uso da água (por efeito do Dec. Lei 194/2009 e pelo facto de os Réus a usarem para outros fins), aliada à desnecessidade do seu uso, deve conduzir à extinção da servidão por força, designadamente, de abuso de direito
III.
Na 1.ª instância, julgou-se provada a seguinte matéria de facto:
a) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...10 um prédio rústico situado em ..., freguesia ..., composto por terra de semeadura e vinha, com a área de 1.407 m2, a confrontar do norte com BB, do sul com DD, do nascente com Rua ... e do poente com EE, estando inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...17.
b) A aquisição deste prédio encontra-se registada a favor da Autora AA, mediante a respectiva apresentação n.º 12 de 2006/10/10, por “usucapião”.
c) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...01 um prédio rústico situado em ..., freguesia ..., composto por terra de semeadura com videiras em corrimão, com a área de 500 m2, a confrontar do norte com FF, do sul com serventia, do nascente com caminho e do poente com GG, estando inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...00.
d) A aquisição deste prédio encontra-se registada a favor dos Réus BB e CC, mediante a respectiva apresentação n.º 30 de 2002/07/01, por “usucapião”.
e) Os ora Réus intentaram contra a aqui Autora e contra HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, DD, CC, EE e OO uma acção declarativa sob a forma de processo sumário, a qual correu termos no extinto 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Pombal sob o n.º 973/09...., pedindo a condenação da ora Autora e dos restantes réus daquela acção a reconhecer o seu direito de propriedade sobre o prédio identificado na alínea c), com a área e configuração apontadas, assim como o reconhecimento da nulidade da escritura de justificação notarial outorgada em 4 de Setembro de 2006, para além da condenação da ora Autora e de HH a reconhecer que haviam ocupado parte do seu arrogado prédio, a desocupar tal faixa de terreno e a suportar as despesas para tal desocupação.
f) As partes em tal acção celebraram transacção, reconhecendo na sua cláusula primeira, sob a alínea a), que “os AA são donos e legítimos possuidores do prédio que se encontra devidamente configurado e assinalado com a letra F no levantamento topográfico anexo à presente transacção” e que corresponde ao prédio mencionado na alínea c).
g) Consta também da cláusula primeira da referida transacção, sob a alínea b), que “a Ré AA é dona e legítima possuidora do prédio que se encontra devidamente configurado e assinalado com a letra E no levantamento topográfico em anexo” e que corresponde ao prédio mencionado na alínea a).
h) Da cláusula décima de tal transacção consta que “AA e RR reconhecem que nos prédios dos RR AA, PP, DD e MM e identificados, na cláusula primeira alínea b), c), d) e e) existe uma serventia, construída por estes”.
i) Da cláusula décima primeira de tal transacção consta que “esta serventia, com uma largura de 4 metros, tem o seu trilho no topo norte dos prédios RR AA, PP, DD e MM, nasce, na Rua ..., percorrendo os aludidos prédios, em toda a sua extensão, no sentido Nascente/Poente e confina a Norte com o prédio dos AA. Identificado na cláusula primeira, alínea a) e melhor retratada no levantamento topográfico ora anexo e já mencionado”.
j) Da cláusula décima segunda de tal transacção consta que “os RR AA, PP, DD e MM reconhecem o direito de servidão de passagem a pé e de carro, aos AA, no leito da serventia mencionada na cláusula anterior, mas tão só e apenas, podendo nela transitar até ao limite Poente do seu (AA) prédio, e só para ter acesso este”.
l) Da cláusula décima terceira de tal transacção consta que “os AA obrigam-se a deixar sempre desimpedido o leito da serventia, permitindo, assim, a circulação de pessoas e veículos naquela e, consequentemente, obrigam-se a não estacionar veículos naquele local e a obstruir o acesso à mesma de forma alguma”.
m) Da cláusula décima sexta de tal transacção consta que “AA e RR reconhecem que existe um furo artesiano, com uma cabine de tijolo com telhado em placa de cimento e abobadilhas, sito no prédio da Ré AA”.
n) Da cláusula décima sétima de tal transacção consta que “AA e RR reconhecem o direito de servidão das águas do furo, para uso exclusivamente doméstico da casa edificada no prédio daqueles”.
o) Da cláusula décima nona de tal transacção consta que “para utilização dessas águas, a Ré AA autoriza que os AA, passem a tubagem necessária de água e electricidade, indispensável a tal finalidade, através da sua propriedade, tubos esses que irão do furo até à casa daqueles (…), podendo os AA colocar uma bomba de água na cabine situada por cima do referido furo”.
p) Por sentença de 9 de Maio de 2011, proferida no âmbito da referida acção n.º 973/09.... (transitada em julgado em 27 de Maio de 2011), foi homologada a referida transacção, tendo as partes sido condenadas a cumpri-la nos seus precisos termos.
q) O prédio identificado na alínea a) confina pelo lado norte com o prédio identificado na alínea c).
r) O trilho referido nas alíneas h) e i) está localizado sobre o limite norte do prédio identificado na alínea a), na confinância com o prédio identificado na alínea c).
s) No final de Dezembro de 2022 ou princípios de Janeiro de 2023, o Réu BB colocou brita sobre o espaço do referido trilho, num comprimento de cerca de 7 metros e largura de cerca de 3 metros, no limite nordeste do prédio identificado na alínea a), junto à Rua ... e ao prédio identificado em c).
t) Tendo ficado no terreno um lastro ou enrocamento que serviu para estacionamento de viaturas.
u) Os Réus não pagaram à Autora qualquer compensação pelo acordo mencionado na alínea n).
v) Em data não concretamente apurada de 2022, próxima do Verão, os Réus regaram oliveiras implantadas num terreno localizado em frente ao prédio mencionado na alínea a), no outro lado da Rua ..., do lado nascente, com a água do furo identificado na alínea m).
x) Os Réus construíram um ramal de ligação eléctrica entre a sua casa de habitação e esse furo.
z) Os Réus construíram também um ramal a ligar a rede pública de água à sua casa de habitação.
aa) Tendo passado também a consumir, na sua casa de habitação, a água fornecida pelo município ... através da rede pública.
*
Não se julgou provado que o facto mencionado na alínea z) dos factos provados ocorreu depois da celebração do acordo aí enunciado nas alíneas f) a o).
IV.
Discute-se no presente recurso a extinção – por desnecessidade ou eventual abuso de direito – de uma servidão de aproveitamento de águas para gastos domésticos.
A sentença recorrida julgou improcedente o pedido de extinção da aludida servidão, considerando, fundamentalmente:
- Que a desnecessidade é uma causa de extinção privativa das servidões adquiridas por usucapião e das servidões legais;
- Que, para conduzir à respectiva extinção, essa desnecessidade tem que ser superveniente – ou seja, tem que ser posterior à constituição da servidão – cabendo à Autora o ónus de provar essa desnecessidade superveniente;
- Que, no caso, a Autora não logrou fazer essa prova, uma vez que não provou que o ramal de ligação da casa dos Réus à rede pública de abastecimento de água (facto invocado para fundamentar a desnecessidade da servidão) foi construído posteriormente à transacção onde a servidão se constituiu;
- Que a extinção da servidão também não pode ocorrer por força de qualquer abuso de direito porque esse instituto jurídico não pode servir para alcançar um resultado substantivo que é rejeitado pelo regime jurídico aplicável; ou seja, se, nos termos da lei, a alegada desnecessidade não serviu para determinar a sua extinção por desnecessidade, ela também não poderá servir para fundamentar a existência de abuso de direito.
Em desacordo com a decisão, contrapõe a Apelante:
- Que, para conduzir à extinção da servidão, a desnecessidade não tem que ser superveniente; apenas tem que ser actual e objectiva, o que ocorre, no caso, tendo em conta a matéria de facto constante das alíneas z) e aa);
- Que, caso se entenda que a desnecessidade deverá ser superveniente, competindo à demandante o ónus da prova quanto à desnecessidade, então competia aos demandados o ónus da prova quanto à anterioridade, por ser matéria de excepção, de acordo com o disposto no artigo 576º, nº 2 do CPC e no artigo 342º, nº 2 do CC, devendo a falta de prova dessa anterioridade conduzir à extinção da servidão, de acordo com o disposto no artigo 1569º, nºs 2 e 3 do CC.
- Que, face à matéria dada como provada em a) e ao usar a água para outros fins, os demandados estão a abusar do direito, de acordo com o disposto no artigo 334º do CC, o que torna ilícito o uso da água (ilicitude que também resulta do Dec. Lei 194/2009) e esse uso abusivo da água, aliado à sua desnecessidade, deve conduzir também à extinção da servidão para não se permitir o uso ilícito, de acordo com o disposto nos artigos 1569º, nºs 2 e 3, e 334º do CC.
Apreciemos.
Começamos por referir que, à luz do disposto no art.º 1569.º do CC, apenas poderão extinguir-se por desnecessidade as servidões legais e as servidões constituídas por usucapião. Não obstante continuem a existir algumas divergências na jurisprudência em relação à possibilidade de extinção por desnecessidade das servidões constituídas por destinação de pai de família[1], pensamos ser seguro afirmar que as servidões constituídas por contrato que não devam ser qualificadas como servidões legais não podem extinguir-se por desnecessidade.
No caso dos autos, nada se alegou que aponte para o facto de estar em causa uma servidão constituída por usucapião ou destinação de pai de família; a servidão foi reconhecida na transacção celebrada entre as partes no âmbito do processo n.º 973/09.... sem invocação de qualquer outro título constitutivo que não seja o contrato (transacção) onde ela foi reconhecida.
Assim, não estando em causa uma servidão constituída por usucapião – e nem sequer por destinação de pai de família – é certo que ela apenas poderia ser extinta por desnecessidade, nos termos da norma acima mencionada, se fosse uma servidão legal.
A sentença recorrida, no sentido de definir e caracterizar as servidões legais, escreveu (correctamente, em nosso entender) o seguinte:
“A expressão servidões legais serve para designar certas categorias de servidão que podem ser coactivamente impostas, de que são exemplo as servidões de passagem previstas nos artigos 1550.º a 1556.º do Código Civil ou de águas nos artigos 1557.º a 1563.º do mesmo Código.
“São legais porque, na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa (art.º 1547, n.º 2, do Cód. Civil) (…). Servidão coactiva não é a que foi coactivamente imposta, mas a que poderia ter sido (…). Se as partes, por contrato, por exemplo, regularem a sua situação, o legislador não deixa de considerar existente uma servidão legal (…). Com isto se quer dizer que, verificando-se os pressupostos que permitem impor uma servidão legal, a servidão que se constituir se deve sempre considerar legal, mesmo que não tenha sido coactivamente actuada” (José de Oliveira Ascensão, “Direito Civil – Reais”, 5.ª edição, págs. 259 e 260).
De resto, o legislador esclarece o verdadeiro âmbito das servidões legais, ao defini-las no art.º 1547.º, n.º 2 do Código Civil como as que, “na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa, conforme os casos”, sendo que as voluntárias podem constituir-se por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família (art.º 1547.º, n.º 1 do Código Civil).
Assim, “a distinção entre servidões legais e servidões voluntárias estabelece-se em função da modalidade do título constitutivo, mas não nos termos singelos que os correspondentes qualificativos sugerem. Assim, se as servidões voluntárias são as constituídas por negócio jurídico ou acto voluntário, já não é correcto ver as servidões legais como as constituídas por lei (…). Servidão legal, hoc sensu, é, pois, a que pode ser constituída coercivamente” (Luís A. Carvalho Fernandes, “Lições de Direitos Reais”, 3.ª edição, pág. 438).
“Se tais servidões…” legais “…fossem, na verdadeira acepção do termo, «legais» (…), resultariam ipso jure da lei e não estaríamos então perante verdadeiras servidões, mas perante restrições objectivas aos direitos reais. O que precisamente distingue as servidões das restrições é que aquelas têm origem num acto (negócio jurídico ou sentença) e estas resultam ipso jure de uma dada situação de facto em que ab origine se encontram os prédios por elas afectados” (Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Volume III, 2.ª edição revista e actualizada, 1987, pág. 627).
Em suma, o que verdadeiramente caracteriza a servidão legal é, pois, o facto de, para aqueles casos especialmente previstos na lei, o proprietário do prédio dominante poder impor ao dono do prédio que virá a ser o serviente, contra a vontade deste, a servidão que a lei previu. Não que não possam as partes acordar na sua constituição.
Em confronto com as demais servidões e quanto ao modo por que podem constituir-se, as servidões legais distinguem-se apenas pela possibilidade de, na falta de constituição voluntária, serem impostas coercivamente”.
Subscrevemos essas considerações.
Significa isso, portanto, que aquilo que define e caracteriza as servidões legais não é o título pelo qual elas se constituem, sendo certo que elas podem ser constituídas por qualquer um dos títulos admitidos pelo art.º 1547.º do CC; o que define e caracteriza tais servidões é o facto de os prédios envolvidos se encontrarem na situação de facto que, segundo a lei, permite impor a constituição da servidão de forma coerciva – por sentença ou decisão administrativa – caso ela não seja constituída de forma voluntária por qualquer um dos outros títulos admitidos na lei.
Concordando-se, conforme referimos, com as considerações efectuadas a propósito da definição e caracterização das servidões legais, já não acompanhamos a sentença recorrida quando concluiu que, no caso, estava em causa uma servidão legal, porque, em nosso entender, não existem elementos que permitam essa qualificação.
Tendo em conta os termos em que a servidão está caracterizada na transacção onde foi reconhecida e não havendo notícia de que os Réus sejam titulares de qualquer direito às águas existentes no prédio da Autora (onde se situa o furo), estará em causa – ao que tudo indica – uma servidão para aproveitamento de águas para gastos domésticos. Foi, aliás, nesses termos que a servidão foi qualificada pela Autora (na petição inicial) e na sentença, sem qualquer oposição ou objecção dos Réus.
Ora, a servidão legal de aproveitamento de águas para gastos domésticos encontra-se prevista no art.º 1557.º, n.º 1, do CC, onde se dispõe nos seguintes termos:
“Quando não seja possível ao proprietário, sem excessivo incómodo ou dispêndio, obter água para seus gastos domésticos pela forma indicada no artigo anterior, os proprietários vizinhos podem ser compelidos a permitir, mediante indemnização, o aproveitamento das águas sobrantes das suas nascentes ou reservatórios, na medida do indispensável para aqueles gastos”.
A situação de facto que, nos termos da lei, permite impor a constituição da aludida servidão de forma coerciva – e que, por isso corresponde a uma servidão legal – pressupõe, portanto, uma situação de necessidade (absoluta ou relativa) do prédio dominante; pressupõe que não seja possível ao respectivo proprietário, sem excessivo incómodo ou dispêndio, obter água para os seus gastos domésticos (nem mesmo através da constituição de servidões de passagem – nos termos previstos no art.º 1556º - que lhe permitam aceder a águas públicas). Fora dessa situação, não se pode falar em servidão legal e qualquer servidão que se tenha constituído para aproveitamento de águas existentes em prédio vizinho não é uma servidão legal.
Ora, no caso, não sabemos se, à data da sua constituição (por via da transacção onde ela foi reconhecida, tendo em conta que não foi invocado outro título), o prédio dos Réus (prédio dominante) se encontrava (ou não) na situação descrita, desde logo porque não sabemos – não resultou provado – se, à data dessa transacção, a casa de habitação dos Réus já tinha acesso e ligação à água da rede pública, como acontece actualmente (cfr. pontos z) e aa) da matéria de facto provada). Se a casa dos Réus já dispunha, à data, de abastecimento público, é certo que nenhuma servidão legal se poderia constituir, já que não se verificava a situação de facto (necessidade) que, nos termos previstos na lei, permitia impor a constituição da servidão de forma coerciva.
Significa isso, portanto, que nem sequer dispomos de elementos que nos permitam concluir que está em causa uma servidão legal que, como tal, pudesse extinguir-se por desnecessidade.
Intimamente relacionada com essa matéria, surge a questão – que é colocada pela Apelante em divergência com a sentença recorrida – relacionada com a “superveniência da desnecessidade” enquanto causa de extinção da servidão.
Sustenta a Apelante, em desacordo com a sentença recorrida, que, para os efeitos referidos (extinção da servidão), a desnecessidade não tem que ser superveniente, bastando que seja actual e objectiva, citando em abono da sua tese o Acórdão do STJ de 25/10/2011 (processo n.º 277/07.0TCGMR.G1.S1)[2].
Começamos por notar que o entendimento adoptado pelo Acórdão referido está muito longe de ser consensual e não corresponde àquele que é adoptado pela maioria da nossa jurisprudência, conforme se pode ver pelos vários Acórdãos que são citados na sentença recorrida e que aqui nos dispensamos de reproduzir.
Mas, de qualquer forma e salvo o devido respeito, não vislumbramos como isso possa ser sustentado em relação às servidões legais.
Ainda que a questão possa ser colocada noutros termos em relação às servidões constituídas por usucapião, pensamos que em relação às servidões legais não faz sentido discutir se a desnecessidade geradora da sua extinção tem (ou não) que ser superveniente. Pensamos ser óbvio que sim.
Na verdade, a constituição das servidões legais – nomeadamente a servidão para aproveitamento de águas de que estamos a falar – tem como pressuposto a efectiva necessidade da utilidade ou proveito que elas proporcionam nos termos que estão definidos na lei e, portanto, é evidente que a desnecessidade que pode conduzir à sua extinção tem que ser obrigatoriamente superveniente em relação ao momento em que elas se constituíram, porque, se essa necessidade já não existia nenhuma servidão legal se poderia ter constituído; a servidão que se tivesse constituído nessas circunstâncias não seria, portanto, uma servidão legal que, como tal, pudesse ser extinta por desnecessidade.
A extinção por desnecessidade das servidões legais basear-se-á precisamente na circunstância de ter desaparecido o pressuposto de facto em que assentou a sua constituição, ou seja, a necessidade do proveito em questão. A servidão legal constitui-se porque existe uma concreta necessidade do prédio dominante que a lei considera legitima ao ponto de impor a constituição da servidão e é a circunstância de essa necessidade deixar de existir (em momento posterior, naturalmente) que justifica a sua extinção.
Em suma, diremos que: ou o prédio dos Réus tinha necessidade da água nos termos previstos no citado art.º 1557.º em termos que permitiam a constituição de uma servidão legal e, nesse caso, a desnecessidade que poderia determinar a sua extinção teria que ser necessariamente superveniente (teria que ter ocorrido depois da sua constituição) ou o prédio dos Réus já não tinha essa necessidade e, nesse caso, nenhuma servidão legal se teria constituído; a servidão que existiria seria uma servidão voluntária constituída por contrato (a transacção) – sendo certo que nenhum outro título foi invocado – e, nessa medida, ainda que fosse efectivamente desnecessária, não poderia extinguir-se por desnecessidade em virtude de essa desnecessidade não ser causa de extinção dessas servidões.
Tais considerações remetem-nos agora para a questão – também suscitada pela Apelante – referente ao ónus de prova da desnecessidade.
Diz a Apelante que, caso se entenda que a desnecessidade deverá ser superveniente e que compete à demandante o ónus da prova quanto à desnecessidade, então competia aos demandados o ónus da prova quanto à anterioridade, por ser matéria de excepção, de acordo com o disposto no artigo 576º, nº 2 do CPC e no artigo 342º, nº 2 do CC, devendo a falta de prova dessa anterioridade conduzir à extinção da servidão, de acordo com o disposto no artigo 1569º, nºs 2 e 3 do CC.
Salvo o devido respeito, não vislumbramos aqui qualquer matéria de excepção cujo ónus probatório devesse ficar a cargo dos Réus.
Conforme disposto no n.º 1 do art.º 342.º do CC, àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
A Autora/Apelante veio invocar – e exercer – o direito de ver judicialmente declarada a extinção da servidão por desnecessidade nos termos do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 1569.º do CC e, portanto, tinha o ónus de alegar e provar os pressupostos de facto de que depende a existência desse direito (factos constitutivos), ou seja, tinha o ónus de provar que estava em causa um tipo de servidão que fosse susceptível de extinção por desnecessidade e tinha o ónus de provar que ela se havia tornado desnecessária[3]. E, estando aqui em causa uma servidão que, alegadamente, seria uma servidão legal, a Autora/Apelante não tinha apenas o ónus de provar a sua desnecessidade em termos actuais e objectivos; tinha também o ónus de provar que essa desnecessidade havia surgido após a sua constituição (era superveniente), até porque sem a prova desse facto nem sequer haveria fundamento para concluir que está em causa uma servidão legal que, como tal, fosse susceptível de extinção por desnecessidade.
Importa relembrar que, conforme consta da matéria de facto, a servidão em causa foi reconhecida no âmbito de uma transacção celebrada entre as partes. Ainda que a transacção apenas aluda ao “reconhecimento” da servidão, a verdade é que não é feita referência – nem na transacção, nem nos autos – a qualquer outro título por via da qual ela se tenha constituído, razão pela qual apenas podemos considerar estar em causa uma servidão constituída por contrato (a transacção) conforme previsto no art.º 1547.º, n.º 1, do CC. Nessas circunstâncias, e à luz do disposto no citado art.º 1569.º, a servidão em causa apenas se poderia extinguir por desnecessidade se e na medida em que correspondesse a uma servidão legal, o que, conforme se referiu, pressupunha a verificação, no momento da sua constituição, da situação prevista no art.º 1557.º, ou seja, da efectiva necessidade da água para os gastos domésticos do prédio dominante nas circunstâncias ali mencionadas, exigindo-se para a sua extinção que essa situação de facto se tivesse alterado e que essa necessidade tivesse, entretanto, deixado de existir. E era sobre a Autora que recaía o ónus de provar a efectiva verificação dessa situação porquanto é ela que traduz o conjunto de factos constitutivos do direito que vem invocar.
Ora, nada disso se provou.
Na verdade, apesar de sabermos que, neste momento, o prédio dos Réus tem ligação e é abastecido de água pela rede pública, não resultou provado se esse facto ocorreu antes ou depois da transacção e, portanto, não temos bases de facto para afirmar que estamos perante uma servidão legal que se tenha tornado desnecessária e que, por essa razão, possa ser declarada extinta, importando recordar que, se aquela ligação à rede pública já existia à data da constituição da servidão, a servidão assim constituída não seria uma servidão legal (por não existir a situação de necessidade que era pressuposto da sua constituição) que pudesse ser extinta por desnecessidade.
Não se mostram, portanto, verificados os pressupostos legais de que dependia a extinção da servidão em causa.
A Apelante suscita, por último, a questão da ilicitude do uso da água e do abuso de direito que, na sua perspectiva, deve conduzir à extinção da servidão.
Sustenta a Apelante que, face ao Dec. Lei 194/2009 (que, segundo diz, estabelece uma imposição legal de ligação à rede pública), o uso da água do furo é ilícito e que tal ilicitude deve conduzir à extinção da servidão. Mas, salvo o devido respeito, não vislumbramos em que a medida a alegada imposição legal de ligação à rede pública (que, é aliás, é cumprida pelo prédio dos Réus que dispõe – pelo menos neste momento – de ligação à rede pública) possa ser susceptível de tornar ilícito o uso da água do furo e muito menos vislumbramos como e em que medida esse facto seria susceptível de se integrar em alguma das causas de extinção das servidões que são enunciadas no art.º 1569.º do CC.
Também não merece procedência a pretensão da Apelante com fundamento no abuso de direito.
Tal abuso – que, na perspectiva da Apelante, deveria conduzir à extinção da servidão – assenta na circunstância de os Réus não terem necessidade da água e na circunstância de a usarem para outros fins.
Não lhe assiste razão.
O abuso de direito traduz, conforme resulta do disposto no art.º 334º do Código Civil uma ilegitimidade do exercício de um direito em determinadas circunstâncias; conforme disposto na norma citada, esse exercício é ilegítimo “...quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela[4], “o abuso de direito pressupõe logicamente a existência de um direito (direito subjectivo ou mero poder legal), embora o titular se exceda no exercício dos seus poderes” e excede-se nesse exercício quando extravasa, de forma manifesta, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
A boa-fé, enquanto princípio normativo e enquanto princípio geral de direito – subjacente ao conceito de abuso de direito –, significa que “…as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros”[5] e portanto, para efeitos de abuso de direito relevará saber se o exercício do direito corresponde ou não a uma conduta que, naquelas circunstâncias e, eventualmente, em função de comportamentos anteriores, não se pauta pela honestidade e lealdade para com a outra parte, defraudando, de algum modo, a confiança e a expectativa desta.
No que respeita ao fim social ou económico do direito, importará atender ao fim (seja ele social ou económico) a que o direito está subordinado e com vista ao qual foi concedido, sendo ilegítima a “…utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução do interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido”[6].
Pensamos ser claro que nada disso acontece na situação dos autos.
Quando a Apelante alude – para efeitos de abuso de direito – ao uso da água para outros fins (uso que entende ser ilícito e abusivo), estará a reportar-se ao facto constante da alínea v) onde se julgou provado que, em determinada ocasião (em 2022), os Réus usaram a água do furo para regar oliveiras existentes num outro prédio.
Mas, sendo indiscutível a ilicitude desse comportamento, na medida em que os Réus não têm direito ao uso da água para essa finalidade, pensamos não ser rigoroso falar em abuso do direito de servidão que efectivamente está constituído em benefício do seu prédio porque o que está em causa nesse comportamento não é, propriamente, o exercício desta servidão (que apenas se destina a gastos domésticos), mas sim um acto ilícito que traduz o uso de água alheia sem qualquer direito que legitime esse uso e que, obviamente, não torna ilícito o uso da água para as finalidades contidas na servidão (para gastos domésticos) e muito menos poderia determinar a extinção desta servidão.
O acto em questão legitimaria, naturalmente, um pedido de condenação dos Réus a absterem-se de tal conduta e, eventualmente, um pedido de indemnização pelos prejuízos daí emergentes (pretensões que não estão aqui em causa), mas não tem qualquer aptidão para determinar a extinção da servidão validamente constituída, conforme pretende a Apelante.
O mesmo se diga em relação ao facto de os Réus não terem necessidade de usar a água, uma vez que, conforme se disse na sentença recorrida – com citação de jurisprudência – o instituto jurídico do abuso de direito não pode servir para se alcançar um resultado substantivo que é negado pelo regime jurídico aplicável e, mais concretamente, para ditar a extinção de uma servidão numa situação em que a lei não consente essa extinção ou com base em factos que o legislador entendeu não serem suficientes para o efeito.
Importa notar que a lei prevê expressamente a extinção de servidões por desnecessidade, mas, prevendo essa possibilidade apenas em determinadas situações – para as servidões legais e para as servidões constituídas por usucapião –, é certo dever concluir-se que o legislador admitiu a existência e a permanência de servidões que não sejam necessárias. Nessas circunstâncias, ou existem factos bastantes para configurar a situação legal em que há lugar à extinção da servidão por desnecessidade e essa extinção é declarada ou não existem e, neste caso, não há lugar à extinção da servidão – porque o legislador assim o pretendeu – sem que seja legítimo recorrer ao abuso de direito para obter, de modo equivalente, a satisfação dessa pretensão. O abuso de direito não pode servir, naturalmente, para obter a extinção de toda e qualquer servidão que se mostre desnecessária, quando é certo que o legislador não pretendeu essa solução, tendo entendido – e consagrado na lei – que a desnecessidade apenas determinava a extinção de certas e determinadas servidões, relevando ainda acrescentar que o facto de os Réus não terem efectiva necessidade da água (na medida em que dispõem de ligação à rede pública) não significa – nem resultou provado – que não possam já retirar já qualquer benefício e proveito da servidão que está constituída em benefício do seu prédio.
Não existe, portanto, qualquer facto que nos permita concluir pela existência de qualquer abuso de direito.
A desnecessidade da servidão que se retira da matéria de facto provada não é suficiente, conforme dissemos, para declarar a extinção da servidão e, portanto, também não poderá ter aptidão para concluir que o exercício da servidão corresponda a abuso de direito.
Em face de tudo o exposto, improcede o recurso e confirma-se a decisão recorrida.
SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):
(…).
V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.
Coimbra,
(Maria Catarina Gonçalves)
(Anabela Marques Ferreira)
(José Avelino Gonçalves)
[1] Ainda que a doutrina e a maioria da jurisprudência entendam que estas servidões (constituídas por destinação de pai de família) não podem ser extintas por desnecessidade – Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª edição revista e actualizada, págs. 676 e 677 e Rui Pinto e Cláudia Trindade, Código Civil Anotado, Coord. Ana Prata, Vol. II, 2017, pág. 418, podendo ver-se na jurisprudência, designadamente, os Acórdãos do STJ de 10/04/2018 (processo n.º 3546/15.2T8LOU.P1.S1), de 14.05.2009 (processo n.º 09A0661), de 20.05.2010 (processo n.º 1671/05.7TBVCT.G1.S1) e de 31.01.2012 (277/05.5TBBCL.G1.S1); disponíveis em https://www.dgsi.pt. –, essa posição, apesar de maioritária, não é consensual na nossa jurisprudência, como se pode ver pelos Acórdãos da Relação de Coimbra de 25/02/2025 (processo n.º 135/19.6T8TND.C1) e de 13.11.2012 (processo n.º 472/10.5TBTND.C1), todos disponíveis em https://www.dgsi.pt.
[2] Disponível em https://www.dgsi.pt.
[3] Cfr. Acórdãos do STJ de 25/05/2021 (processo n.º 558/20.8T8GMR.G1.S1), de 07/11/2019 (processo n.º 279/16.6T8GRD.C2.S1), de 05/05/2015 (processo n.º 273/07.8TBENT.E1.S1), disponíveis em https://www.dgsi.pt.
[4] Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., pág. 297.
[5] Cfr. Coutinho de Abreu, “Do Abuso de Direito”, 1983, pág. 55.
[6] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civ. Anotado, Vol. I, 3ª ed. Revista e Actualizada, págs. 297.