ARRESTO
JUSTO RECEIO DE PERDA DA GARANTIA PATRIMONIAL
Sumário

I - O ónus consagrado na alíneas a), do nº1, do art. 640º, do CPC, (de especificação de concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados), pressuposto do conhecimento do mérito da impugnação da decisão de facto, cuja função é delimitar o objeto do recurso, tem de se mostrar cumprido nas conclusões das alegações, impondo, desde logo, a falta de tal especificação (bem como a falta de especificação da al. b) e da al. c), do referido nº1 e da al. a), do nº2, na peça das alegações (mesmo no seu corpo)), a rejeição do recurso, na vertente de facto (cfr. nº1, do art. 639º e nº1 e 2, al. a), do art. 640º, daquele diploma legal).
II - O procedimento cautelar de arresto depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos: i)- probabilidade da existência do crédito; ii)- justo ou fundado receio de perda da garantia patrimonial.
III - Pressupõe o mesmo, para além da probabilidade de existência do crédito, a alegação e prova (sumária) de factos suscetíveis de densificar o perigo de se tornar difícil ou impossível a sua cobrança, assegurando-se, com o arresto, a sua efetiva execução. IV - E para que se verifique o requisito de “justo receio” da perda da garantia patrimonial de um crédito, necessária é a demonstração de razões objetivas que aconselhem uma decisão cautelar imediata como fator de eficácia da ação principal, sendo que na falta de alegação e prova, sumária, de tais razões se não mostra justificado o receio.

Texto Integral

Processo nº 11014/25.8T8PRT.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo Local Cível de Valongo - Juiz 1


Relatora: Des. Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Des. José Eusébio Almeida
2º Adjunto: Des. José Nuno Duarte

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):

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I. RELATÓRIO

Recorrente: AA

AA apresentou recurso de apelação da decisão que, sem contraditório prévio, julgou improcedente o procedimento cautelar de arresto, solicitado contra BB, solicitando a revogação da mesma e que se decrete o arresto nos termos dos artigos 391.º e seguintes do CPC, com base nas seguintes

CONCLUSÕES:

A) A sentença recorrida incorre em erro de julgamento de facto e de direito, ao exigir do Requerente prova (praticamente) plena em sede cautelar, tratando o juízo de verosimilhança como se de prova definitiva se tratasse, em clara violação do regime do artigo 391.º do Código de Processo Civil (CPC), que apenas impõe prova sumária e um juízo de probabilidade séria quanto ao direito invocado e ao perigo de perda da garantia patrimonial.

B) Em sede de procedimentos cautelares como o arresto, o julgador deve limitar-se a uma análise de summaria cognitio, bastando um juízo de verosimilhança quanto à existência do direito e de fundado receio quanto ao perigo da sua frustração.

C) O Tribunal a quo, ao exigir prova plena da titularidade da conta bancária e da intenção fraudulenta da Requerida, excedeu o padrão probatório legalmente admissível, configurando um erro de julgamento material.

D) A jurisprudência consolidada tem reiterado que, em sede cautelar, “o requisito da existência do direito se basta com um juízo de mera probabilidade ou verosimilhança” e “não se exige que o direito esteja plenamente comprovado, bastando o fumus boni iuris” — cfr. Ac. TRL 08.09.2019, proc. n.º 12428/18.5T8LSB.L1-7, e Ac. TRG 12.09.2019, proc. n.º 1378/18.5T8CHV.G1.

E) Esta orientação é também seguida pelo Ac. TRP 10.07.2025, proc. n.º 4078/24.3T8CSC.P1, que reafirma que basta probabilidade séria colhida por análise sumária da situação de facto (summaria cognitio).

F) O Recorrente logrou demonstrar a existência de crédito e o perigo da sua frustração, através de prova documental e factual:

- efetuou duas transferências no total de €20.000,00 para o IBAN indicado pela Requerida;

- interpelou-a formalmente, sem resposta;

- a Requerida recusou levantar as cartas e furtou-se às notificações judiciais e

- procedeu a alterar a estrutura societária da empresa de que é gerente e que até à data e desde sempre se mantinha no seu domínio patrimonial.

G) Tais factos bastam, com base na experiência comum, para afirmar a verosimilhança do direito e o receio fundado de dissipação.

H) A sentença recorrida incorre ainda em erro de direito ao afastar o instituto do enriquecimento sem causa, por entender existir “causa jurídica”.

I) Contudo, o próprio tribunal reconhece que o contrato de cessão de quota não chegou a ser celebrado, pelo que o pagamento foi efetuado em vista de um efeito que não se verificou, enquadrando-se no artigo 473.º, n.º 2 do Código Civil, que impõe a restituição do montante indevidamente retido.

J) No tocante ao periculum in mora, o Tribunal a quo desvalorizou factos objetivos que evidenciam um padrão de evasão, manipulação e risco concreto de frustração do crédito, designadamente:

– três notificações frustradas (setembro, outubro e dezembro de 2024);

– não levantamento de cartas com aviso de receção;

– alterações societárias relevantes após o início do litígio.

K) Estes indícios, tomados no seu conjunto, são suficientes para demonstrar o fundado receio de perda da garantia patrimonial.

L) A decisão recorrida, ao ignorar este conjunto de elementos e ao aplicar um critério de prova plena, violou o artigo 391.º do CPC, o artigo 473.º, n.º 2 do CC, e o artigo 607.º, n.º 5 do CPC, incorrendo em erro de julgamento e omissão de apreciação crítica da prova, o que justifica a reapreciação da matéria de facto ao abrigo do artigo 662.º, n.º 1 do CPC.

M) O juízo de verosimilhança, próprio da providência cautelar, não exige certeza mas apenas probabilidade séria.

N) Pelo que, a exigência de prova plena requerida pela sentença recorrida anula a função própria do arresto, que é prevenir a dissipação de bens enquanto se discute o direito em ação principal, e constitui uma violação do princípio da proporcionalidade da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º da Constituição e artigo 2.º do CPC).

O) Por conseguinte, demonstrados os requisitos do artigo 391.º do CPC — a probabilidade séria do crédito e o justo receio de perda da garantia — deve o arresto ser decretado, assegurando-se a efetividade do direito do Recorrente e prevenindo-se a frustração da futura execução.

P) Pelo exposto, impõe-se a procedência do presente recurso, com a consequente revogação da sentença proferida pelo Juízo Local Cível de Valongo e substituição por decisão que decrete o arresto preventivo requerido, sobre os bens móveis, imóveis e/ou saldos de contas bancárias da Requerida BB, até ao valor global de €21.435,62 acrescido dos juros vincendos, com todas as legais consequências.


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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.

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II. FUNDAMENTOS

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.

Assim, as questões a decidir são as seguintes:
1. Da inobservância dos ónus de impugnação da decisão de facto;
2. Da verificação dos requisitos de que depende o decretamento da providência de arresto (fumus boni iuris e periculum in mora).


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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1. FACTOS PROVADOS

Foram os seguintes os factos considerados indiciariamente provados com relevância para a decisão pelo Tribunal de 1ª instância (transcrição):

1. A sociedade A..., LDA., NIPC ..., foi constituída com o capital social de 5.000,00 € e com os seguintes sócios e quotas: uma quota no valor de 1.750,00 € titulada pela sociedade B..., LDA., uma quota no valor de 1.750,00 € titulada pela Requerida, uma quota no valor de 750,00 € titulada por CC e uma quota no valor de 750,00 € titulada por DD.

2. Pela AP. ... foi registada a alteração do contrato de sociedade, passando a ser os seguintes os titulares das quotas: uma quota no valor de 1.750,00 € titulada pela Requerida, uma quota no valor de 1.750,00 € titulada pela Requerida, uma quota no valor de 750,00 € titulada por EE e uma quota no valor de 750,00 € titulada por EE.

3. Pela AP. ... foi registada a alteração do contrato de sociedade, passando a sociedade unipessoal, com a seguinte quota: quota no valor de 5.000,00 € titulada pela sociedade C..., LDA.

4. A Requerida exerceu funções de gerente da sociedade desde a sua constituição e pela AP. ... foi registada a cessação das suas funções de membro de órgão social (gerência).

5. Em data não concretamente apurada, Requerente e Requerida, atuando esta na qualidade de sócia da sociedade A..., LDA. titular de duas quotas no valor de 1.750,00 € cada, estabeleceram conversações no sentido de a Requerida transmitir ao Requerente uma quota na referida sociedade, numa percentagem representativa de 5% do capital social.

6. No seguimento dessas conversações, Requerente e Requerido acordaram o valor de 50.000,00€ (cinquenta mil euros) para essa cessão da quota.

7. Na sequência desse acordo, o Requerente realizou no dia 21.08.2023 uma transferência bancária no valor de 10.000,00 € (dez mil euros) e realizou no dia 04.09.2023 outra transferência bancária no valor de 10.000,00 € (dez mil euros), ambas realizadas para a conta com o IBAN  ..., perfazendo o valor global de 20.000,00 € (vinte mil euros) como sinal de um acordo de cessão de quota.

8. O Requerente interpelou a Requerida para que lhe devolvesse o referido valor de 20.000,00 € através de comunicações postais enviadas remetidas em 11.12.2023 (com aviso de receção), 08.01.2024 (com aviso de receção), 10.01.2024 (com aviso de receção) e 01.02.2024,

9. As quais não foram levantadas pela Requerida.

10. Na sequência, o Requerente requereu a notificação judicial avulsa da Requerida, a qual foi promovida pela Agente de Execução FF e que se frustrou nas três tentativas realizadas nos dias 12.09.2024, 31.10.2024 e 12.12.2024, pela agente de execução FF (CP ...).

11. Na última das referidas tentativas de notificação, a Sr.ª Agente de Execução consignou o seguinte:


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2. FACTOS NÃO PROVADOS
Considerou o Tribunal de 1ª instância não terem resultado indiciariamente provados os seguintes factos (transcrição):
1. No âmbito das conversações estabelecidas entre Requerente e Requerido descritas nos factos provados, as partes acordaram que o valor de 50.000,00 € seria pago na data da assinatura do contrato de cessão da quota.
2. A conta com o IBAN ... era, à data da realização das transferências bancárias descritas nos factos provados, titulada pela Requerida.
3. Foi por razões alheias à vontade do Requerente e por iniciativa exclusiva da Requerida que não veio a ser celebrado o contrato de cessão de quotas.
4. O valor de 20.000,00 € (vinte mil euros) das duas transferências bancárias descritas nos factos provados reverteu, na sua totalidade, em proveito próprio da Requerida e da sua sociedade (para pagamento de salários, subsídios de férias e segurança social), valor que a Requerida usou em nome próprio e para despesas da sua sociedade.
5. Ao alterar o contrato de sociedade em 09.05.2025 (alteração ao contrato de sociedade registada através da AP. ...), a Requerida visou dissipar o seu património.
6. A Requerida age de modo livre e consciente com o propósito deliberado e concretizado de reter o referido valor de 20.000,00 € (vinte mil euros) bem sabendo que o mesmo não lhe era devido.

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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1. Da inobservância dos ónus de impugnação da decisão da matéria de facto.

Cabe analisar a questão da observância dos ónus impostos ao recorrente que impugne a matéria de facto, questão adjetiva prévia à análise da apreciação de mérito da impugnação, de conhecimento oficioso.
Encontram-se tais ónus enunciados nos nº1, do art. 639º e nos nº1 e 2, a), do art. 640º, do Código de Processo Civil, abreviadamente CPC, diploma a que nos reportamos na falta de outra referência, decorrendo eles dos princípios da cooperação, da lealdade e da boa-fé processuais, visando garantir a seriedade e a consistência do recurso e assegurar o exercício do contraditório.
Comecemos por referir que, na verdade, os ónus legalmente impostos em sede de impugnação da decisão da matéria de facto, constituem requisitos habilitadores a que o tribunal ad quem possa conhecer da impugnação e, consequentemente, da decisão de mérito que dela dependa.
Na verdade, a lei adjetiva, que no nº1, do art. 639º, consagra o ónus de alegar e de formular conclusões, estabelece que “o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”, sendo as conclusões das alegações de recurso que balizam a pronúncia do tribunal (art. 635º).
E o art. 640º consagra ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelecendo no nº1, que:
1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a)- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
O n.º 2, do referido artigo, acrescenta que:
“a) … quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (negrito nosso).
Ora, constata-se que o apelante não cumpriu as regras da impugnação da decisão da matéria de facto, sendo que, desde logo, não indica os pontos da matéria de facto que pretende sejam alterados nem especifica as alterações que pretende e as concretas razões que as impõem. Verifica-se, no caso, que o mesmo não cumpriu os ónus, que lhe estão cometidos pelo referido artigo 640º, sendo de rejeitar o recurso quanto à impugnação da matéria de facto, pois que o mesmo, desde logo, não especificou nas conclusões das alegações, a delimitar o objeto do recurso, os concretos pontos de facto, provados e/ou não provados, que considera incorretamente julgados (al. a), do referido nº1), não tendo cumprido, também, os demais.
E como analisou o STJ, na Decisão de 27/9/2023, proferida no proc. nº2702/15.8T8VNG-C.S1 que, por bem esclarecedora, se cita:
Com ampla sedimentação na jurisprudência deste tribunal, no funcionamento dos efeitos do disposto nos artigos 640º e 662º, nº1, do CPC, devemos distinguir, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da indicação dos concretos meios probatórios convocados e da decisão a proferir, a que aludem as alíneas a), b) e c) do nº1 do artigo 640º, que integram o denominado ónus primário, atenta a sua função de delimitação do objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto.
De outro lado, o requisito da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na alínea a) do nº 2 do mesmo artigo 640º, que integra um ónus secundário, para permitir que a Relação aceda de forma dirigida aos meios de prova gravados, que o recorrente entende necessários à reapreciação do sentido probatório dos factos impugnados.
Ora, perante alguma dificuldade na aplicação do dispositivo legal em certas casuísticas, na aferição do cumprimento dos aludidos ónus pelo recorrente, devem perseverar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, modelando na medida necessária, os requisitos de forma.
Tal como reiterado em diversos arestos deste Supremo Tribunal, v.g., «I. Constitui jurisprudência do STJ que a verificação do cumprimento do ónus de alegação regulado no art. 640.º do CPC deve ser compaginada com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, atribuindo-se maior relevo aos aspectos de ordem material em detrimento das questões formais.(…)»; « (…)III - De acordo com a orientação reiterada do STJ, a verificação do cumprimento do ónus de alegação do art. 640.º do CPC tem de ser realizada com respeito pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal.(...)» .[1]
No mesmo percurso, salienta o Acórdão do STJ de 19.01.2023 - «Entre os corolários do ónus de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, consagrado no n.º 1 do art. 640.º do CPC, está o de que o recorrente deve sempre indicar nas conclusões do recurso de apelação os concretos pontos de facto que julgou incorrectamente julgados
Por último, ainda na órbita do debate das exigências previstas no artigo 640º, nº1, do CPC, desenha-se como jurisprudência constante deste tribunal, o limite do cumprimento do ónus primário (al) a) nas conclusões de recurso, como pontifica, entre outros, o Acórdão do STJ de 22.09.2022 - « II -Nesta linha interpretativa, tem vindo a admitir-se que, no que se refere às exigências das alíneas b) e c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC, possam as mesmas ser cumpridas apenas no corpo das alegações. Já quanto ao ónus da alínea a) da mesma disposição legal, afigura-se que a jurisprudência não se encontra estabilizada, não obstante se admitir que tem vindo a prevalecer o sentido de que o incumprimento de tal ónus nas conclusões recursórias implica a rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto. »[2] (negrito e sublinhado nosso).
Pacífico vem a ser, como afirmamos já, na verdade, na Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que as conclusões, que balizam o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, têm de conter a indicação dos concretos pontos de facto cuja alteração se pretende, ónus este que permite circunscrever o objeto do recurso no que concerne à decisão de facto. Deste modo, mesmo na Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, vem a ser manifestada, reiteradamente, posição no sentido de, para cumprimento dos ónus impostos pelos art.s 639º e 640º, do CPC, o recorrente ter que indicar nas conclusões, com precisão, os pontos da matéria de facto que pretende que sejam alterados pelo tribunal de recurso, podendo os demais ónus impostos vir cumpridos apenas no corpo das alegações.
Com efeito, fixada foi, até, já, jurisprudência no sentido de “Nos termos da alínea c), do nº1, do artigo 640º, do Código de Processo Civil, o recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, nas alegações[3].
Ora, manifesto é que o Recorrente não cumpriu aqueles ónus, pois que não indicou nas conclusões do Recurso, a matéria de facto pretendida impugnar, como se pode verificar de uma leitura das conclusões, supra, e não indicou nas alegações, ao menos no seu corpo, a decisão alternativa pretendida para os concretos pontos que indicasse como impugnados (isto, que não efetuou, sequer, no corpo das alegações). Não circunscreveu o recorrente o objeto do recurso no que concerne à matéria de facto, nos termos exigidos pelo legislador e interpretados pelos Tribunais Superiores, em obediência ao imposto pela citada al. a), do nº1, do art. 640º, do CPC, nem observou os demais ónus exigidos.
Efetivamente, não indica o apelante concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, de modo especificado, para além de não referir as específicas alterações que considera deverem ser introduzidas (não mencionando, especificamente, a decisão alternativa por si proposta por contraponto à decisão proferida quanto a cada ponto impugnado) e não indica concretos meios probatórios que imponham decisão diversa.
Devendo ser rejeitada a impugnação da decisão de facto quando, nas conclusões e mesmo na motivação, a recorrente não concretize os pontos de facto que considera incorretamente julgados (cfr. artigo 640.º, nº 1 al. a))[4], não tendo o apelante cumprido os ónus que lhe estão cometidos pelo referido artigo, os requisitos habilitadores ao conhecimento impugnação, não estando preenchidos os pressupostos de ordem formal para se proceder à reapreciação da decisão de facto, não pode o recurso na vertente da impugnação da decisão de facto deixar de ser rejeitado, rejeitando-se, pois, o mesmo, nessa parte.


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2. Da verificação dos requisitos de que depende o decretamento da providência de arresto.

Insurge-se o recorrente contra a decisão que julgou improcedente o arresto, entendendo verificados os requisitos necessários ao seu decretamento.

Resulta que o recorrente fundou a procedência da sua pretensão recursória na procedência da impugnação da decisão da matéria de facto. Apreciada a questão da inobservância dos ónus de impugnação da matéria de facto, cumpre referir que dependendo a procedência do recurso em termos jurídicos, no que à interpretação e aplicação do direito respeita, da prévia procedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não tendo a apelante logrado impugnar, com sucesso, tal matéria, que, assim, se mantém inalterada, prejudicado ficaria, desde logo, o conhecimento daquela. Destarte, na falta de fundamentos aduzidos para revogação da decisão sob censura independentes da impugnação da decisão da matéria de facto e não se vislumbrando motivos para isso de conhecimento oficioso do tribunal, dada a vinculação deste tribunal na sua esfera de cognição à delimitação objetiva resultante das conclusões do recurso teria, desde logo, de se concluir pela total improcedência do recurso.

Não obstante, cumpre referir que entre os “procedimentos cautelares especificados”, figura, na Secção V o arresto (arts 391º a 396º), uma providência de garantia, pois constitui uma forma de assegurar que a delonga da tramitação processual da ação não se irá refletir negativamente no efeito útil da mesma, consistindo na apreensão judicial de bens do devedor - 391º, nº 2 e 392, nº 2 do CPC e 619º, nº 1 e 2 do CC - e constituindo um importante meio de defesa de direitos de natureza creditícia, atentas a efetiva conservação da garantia patrimonial do credor que com ela se alcança. No arresto, conforme estabelece o nº 1, do art. 391º, do CPC, que adjetiva o consagrado no nº 1, do art. 619º do Código Civil, “O credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor”, sendo que nele o perigo para o efeito útil da medida cautelar tem de resultar da própria conduta do requerido relativamente ao seu património, enquanto garantia geral das suas obrigações.
Destarte, o procedimento cautelar de arresto depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
i) - probabilidade da existência do crédito;
ii) - justo ou fundado receio de perda da garantia patrimonial[5].
Com efeito, e como vem a ser decidido: “Para o decretamento do arresto basta que sumariamente se conclua pela séria probabilidade da existência do crédito e pelo justificado receio de perda da garantia patrimonial devido à demora na resolução definitiva do litígio … Para o preenchimento do requisito atinente à séria probabilidade da existência do crédito, tem de estar em causa um crédito já constituído, actual, e não um crédito futuro, hipotético ou eventual”[6]. Na verdade, são requisitos do arresto, cumulativamente, a probabilidade da existência de um crédito do requerente, definido por um juízo sumário de verosimilhança, de aparência do crédito e o justo receio ou perigo de insatisfação do mesmo tendo de ser alegados factos a tornar provável a existência de crédito atual do requerente e justifiquem o receio da perda de garantia patrimonial. Quanto à existência do direito, apenas se exige um juízo de mera probabilidade ou verosimilhança, não sendo necessário que o direito esteja plenamente comprovado, mas apenas que exista um “fumus boni iuris, ou seja, que se apresente como verosímil, tendo, contudo de estar em causa um crédito já constituído do Requerente sobre o Requerido, atual e não de crédito futuro, hipotético, eventual e não definido. Para o preenchimento de justo receio de perda da garantia patrimonial exige-se um juízo de probabilidade muito forte, não bastando qualquer receio a traduzir um estado de espírito derivado de uma apreciação subjetiva e ligeira das circunstâncias. O critério de avaliação deste requisito não pode assentar em conjeturas subjetivas, devendo, ao invés, basear-se em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata, potenciadora da eficácia da ação a instaurar. Só existe justificado receio da perda da garantia patrimonial do crédito, quando as circunstâncias se apresentam de modo a convencer que está iminente a lesão do direito, a perspetivar, justificada e plausivelmente, o perigo de se vir a tornar inviável, ou altamente precária, a realização da garantia patrimonial do crédito do requerente[7].
Pressupõe a alegação e prova (sumária) de factos suscetíveis de revelar perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito, assegurando-se com o arresto a sua efetiva execução.
Revertendo para o caso, resulta das suas circunstâncias não se encontrar definido, mesmo em termos de verosimilhança, um direito de crédito do Requerente contra a Requerida nem resultam, sumariamente provados factos reveladores de justo receio de perda da garantia patrimonial, não sendo a matéria de facto indiciariamente demonstrada suficiente para preencher os referidos requisitos de que depende o arresto.
Com efeito, não se verifica probabilidade da existência do crédito, dado as transferências terem ocorrido na sequência de negociações com vista à celebração de um contrato de cessão de quotas, não resultando, sumariamente provadas circunstâncias que levaram à não celebração/incumprimento do contrato celebrado, não sendo de subsumir o caso, como refere o Tribunal a quo, ao instituto do enriquecimento sem causa, de aplicação subsidiária, quando está em causa responsabilidade contratual (artigo 474.º do Código Civil), alegando o próprio Requerente, como causa para a deslocação patrimonial, um quadro negocial e acordos de vontade. E não se verifica, também, fundado receio de perda da garantia patrimonial, dada a não prova, mesmo em termos sumários, de atitudes que permitam um juízo de sério risco de perda de tal garantia, sendo que a cessão de quotas a terceiros não é suscetível de revelar dissipação do património menos, ainda, o revelando as frustradas diligências de notificação.
Sendo de manter a decisão da matéria de facto, não validamente impugnada, nada veio o apelante concluir que justifique alteração da decisão de mérito, não estando, na verdade, preenchidos os referidos requisitos do procedimento de arresto, quer o da probabilidade de existência do crédito do requerente sobre a requerida, quer o do fundado receio de perda da garantia patrimonial, desconhecendo-se, mesmo, o património desta.
Não sendo necessária a prova de que o crédito é certo, bastando-se a lei com a probabilidade da sua existência, crédito esse, a ser definido e fixado na ação própria, não se mostra, no caso, verificada quer a probabilidade de existência do crédito quer o fundado o receio de o requerente ver frustrado o crédito que invoca, não sendo justo o receio de perda da garantia patrimonial. Tendo o receio de perda da garantia patrimonial de ser fundado em razões objetivas, no caso não se mostram estas demonstradas, não resultando indiciariamente provado o risco de os bens que existiam no património da Requerida serem ocultados, dissipados e de o requerido ver reduzida ou desaparecer a garantia do seu crédito. Nenhumas razões objetivas, convincentes aconselham uma decisão cautelar imediata, como fator potenciador da eficácia da ação declarativa.

Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pelo apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.


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III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.


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Custas pelo apelante, pois que ficou vencido – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.


Porto, 10 de novembro de 2025

Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
José Eusébio Almeida
José Nuno Duarte
________________
[1] De 07-11-2019 – Revista n.º 162867/15.0T8YIPRT.L1.S1; de 08-02-2018, Revista 8440/14.1T8PRT.P1.S1, ambos desta 2ª secção, in www.dgsipt
[2] Na Revista n.º 3160/16.5T8LRS-A.L1-A.S1 in www.dgsi.pt.
[3] AUJ de 17/10/2023, proc. 8344/17.6T8STB.E1-A.S1
[4] Ac. do TRP proferido no proc. 20881/22.6T8PRT.P1(Relator: Manuel Fernandes).
[5] Cfr Ac. RP de 16/6/2009, proc. 3994/08.4TBVNG-C.P1, in www.dgsi.net
[6] As. RL de 20/5/2010, proc. 52/10.5T2MFR.L1-2, acessível in dgsi.pt.
[7] Ac. RL de 8/1/2019, proc. 12428/18.5T8LSB.L1-7, acessível in dgsi.pt.