INTERPRETAÇÃO DE CLÁUSULAS CONTRATUAIS
VONTADE REAL DO DECLARANTE
Sumário

I - A interpretação das cláusulas contratuais envolve matéria de facto quando importa a reconstituição da vontade real das partes, ou seja, quando se procura saber qual o sentido efectivamente atribuído pelo declarante (a sua vontade real) e o eventual conhecimento da mesma pelo declaratário. Mas a interpretação em si mesmo é uma operação jurídico-valorativa e, desse modo, uma questão de direito.
II - Na motivação da decisão de facto, deve o Tribunal expor a análise crítica dos meios de prova, nomeadamente a valoração dos depoimentos prestados e de outros meios de prova, por forma a permitir perceber qual a razão da preferência dada a determinado meio de prova em detrimento de outros e qual o raciocínio efectuado na formação da sua convicção quanto aos factos que se pronunciou.
III - Não se provando o sentido da vontade real do declarante, na data relevante, ou não se provando o seu conhecimento efectivo pelo declaratário, a interpretação da cláusula contratual deve ser efectuada, posteriormente, na apreciação de direito e de harmonia com as regras constantes dos artigos 236º a 238º do Código Civil.
IV - Na interpretação do clausulado, os princípios essenciais a ter em consideração são os seguintes:
- A declaração negocial valerá de acordo com a vontade real do declarante, se esta for conhecida do declaratário;
- Não o sendo, valerá com o sentido que possa ser deduzido por um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele;
- Nos negócios formais, o sentido atribuído pelo “declaratário normal” deverá estar expresso, ainda que de forma imperfeita, no próprio texto do documento;
- O sentido sem correspondência mínima no texto poderá ainda valer se traduzir a vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade - artigo 238º, nº2, do Código Civil.
V - Na interpretação do sentido da declaração, deve tomar-se em consideração as circunstâncias de tempo, lugar e outras que a precederam ou que da mesma são contemporâneas.

Texto Integral

Processo nº12866/23.1T8PRT.P1

Acordam os Juízes da 5ª Secção (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto, sendo

Relatora: Desembargadora Anabela Morais

Primeira Adjunta: Desembargadora Carla Jesus Costa Fraga Torres
Segundo Adjunto: Desembargador Manuel Fernandes

I_ Relatório

Os autores AA e BB intentaram contra CC e DD, a presente acção declarativa de condenação, pedindo que:
a) seja declarada verificada a condição resolutiva aposta no contrato-promessa de compra e venda celebrado entre os AA. e os RR. - impossibilidade de obtenção de uma avaliação do imóvel, pelo Banco 1..., no valor igual ou superior a €500.000,00 —, declarando-se tal contrato resolvido;
b) em consequência, sejam os RR condenados a restituir aos AA a quantia recebida a título de sinal, no valor de €20.000,00 (vinte mil euros), acrescida de juros legais desde a data da citação dos RR até efectivo e integral pagamento.

Alegaram, em síntese, que:

_ Em 30 de novembro de 2022, AA. e RR. assinaram um contrato denominando “Contrato-Promessa de Compra e Venda” no qual os segundos prometeram vender aos primeiros um prédio urbano, composto por casa de habitação que integra três corpos, tendo cada um deles cave e rés-do-chão, sito na Av. ..., freguesia e concelho de Valongo, descrito na C.R.P. de Valongo sob o n.º ... e inscrito na matriz predial sob o artigo ....

_ Nos termos da cláusula terceira do contrato, foi acordada a venda prometida no valor de €200.000,00 (duzentos mil euros).

_ A título de sinal e princípio de pagamento, foi entregue, no dia da celebração desse contrato, pelos AA aos RR., a quantia de €20.000,00 (vinte mil euros), tendo ficado estipulado que o restante valor – €180.000,00 - seria pago, no acto da escritura pública que se realizaria até ao dia 31 de Janeiro de 2023.

_ Os contraentes estabeleceram, no número dois da cláusula nona do contrato que “No caso da avaliação do imóvel, por parte da entidade bancária Banco 1..., ser inferior a €500.000,00 (quinhentos mil euros) e consequentemente a entidade bancária não conceder o empréstimo aos PROMITENTES COMPRADORES, este contrato será automaticamente rescindido, sem direito ao pagamento de qualquer indemnização aos PROMITENTES VENDEDORES.”.

_ A avaliação feita pelo Banco 1... ser no valor superior a €500.000,00 constitui condição essencial para a celebração do contrato de compra e venda definitivo.

_O prédio em crise foi prometido vender num estado em que carecia de uma total remodelação, como sabiam os RR e o negócio celebrado, a promessa de compra e venda, foi feito na premissa de que o imóvel era vendido pelo preço de €200.000,00 por estar em mau estado de conservação, necessitando os AA. de realizar obras de remodelação total que estavam orçamentadas em cerca de €189.161,00.

_ Para esse projecto, compra e realização de obras de remodelação, necessitavam os AA. de obterem empréstimo bancário no valor de €160.000,00, para aquisição, e no valor de €140.000,00, para obras de remodelação, no total de €300.000,00, o que dependia da obtenção de uma avaliação bancária do Banco 1... ao imóvel e condicionada à realização das obras, superior a €500.000,00 (quinhentos mil euros), o que era do conhecimento dos RR e sempre assim o expressaram os AA. Caso assim não fosse, não faria sentido inserir, no contrato promessa, a condição resolutiva estabelecida no número dois da cláusula nona.

_ A avaliação do imóvel, datada de 25/12/2022, feita pelo Banco 1... foi no valor de €451.065,13 (quatrocentos e cinquenta e um mil sessenta e cinco euros e treze cêntimos), e estava condicionada à realização das projectadas obras de remodelação.

_ Com a avaliação feita nestes termos, não seria concedido empréstimo bancário que permitisse, aos autores, a aquisição pelos €200.000,00 e, ainda, a remodelação total.

_ Tentando os AA ainda manter o negócio, informaram os RR. do resultado da avaliação e propuseram a redução do preço, com vista a ser possível concretizar o negócio, proposta que estes não aceitaram, respondendo, em 22/01/2023, que mantinham interesse na celebração do contrato prometido pelo preço de €200.000,00.

_ Ficou estabelecido na cláusula décima do contrato-promessa de compra e venda que “no caso de ocorrer rescisão, nos termos definidos na cláusula anterior, os PROMITENTES VENDEDORES, deverão devolver o sinal entretanto pago, no prazo de 5 dias úteis, para o IBAN  ...”.

_ Os AA., a 24 de Janeiro de 2023, comunicaram aos RR por carta registada com aviso de recepção que, fruto da avaliação bancária ter sido inferior a €500.000,00, perderam o interesse no negócio prometido, considerando resolvido o contrato, e solicitando a restituição dos €20.000,00 pagos a título de sinal.

_ Verificada a condição resolutiva acordada entre os AA. e os RR., constante da cláusula nona, legitimou a resolução do contrato, pelos AA, assistindo-lhes o direito à devolução do valor do sinal, o que deveria ter sido realizado, pelos RR., em 3 de Fevereiro de 2023.

_ Não tendo os RR procedido à devolução do valor do sinal, constituíram-se em mora, ficando obrigados ao pagamento de juros, contabilizados à taxa legal sobre o valor em causa e contados desde a data da resolução até integral e efectivo pagamento.

1.1_ Citados, os réus apresentaram contestação.

Nesse articulado, admitem a celebração com os autores do contrato-promessa de compra e venda junto com a petição inicial, como documento nº1, bem como o recebimento, a título de sinal, da quantia de €20.000,00.

Alegam, no entanto, que:

_ Pelo autor foi transmitido, em momento prévio à assinatura do aludido contrato-promessa, que não se preocupassem com o conteúdo do n.º 2 da cláusula 9ª pois “era algo que não iria afectar o negócio pois para efectivar a compra os AA não precisavam de uma avaliação tão elevada no valor de €500.000,00”, sendo este um valor meramente indicativo, sendo suficiente a quantia de €376.000,00, para a compra e obras, tendo este facto sido transmitido, aos RR, pelo autor e pelo seu intermediário.

_ A escritura pública de compra e venda do bem imóvel não se concretizou porque os AA decidiram desistir da compra, não tendo a desistência como fundamento o valor da avaliação do imóvel. Conforme resulta do email, enviado em Janeiro de 2023 e através do qual comunicaram a desistência da compra, os AA informaram que a mesma se deve a “uma degradação substantiva” no imóvel desde Setembro de 2022, sendo essa a razão invocada para a redução do preço que então propôs. O imóvel não se degradou entre a assinatura do contrato-promessa (Setembro de 2022) e 20 de Janeiro de 2023 e o preço de venda acordado (duzentos mil euros) foi por causa de o imóvel necessitar de obras. Os AA conheciam perfeitamente o estado do prédio urbano e tinham a noção clara de que o prédio necessitava de obras de remodelação, tanto que este não carecia de certificado energético, classificado como foi de edifício em ruínas - cfr. cláusula 1ª n.º 2, do contrato-promessa.

_ Caso, efectivamente, a avaliação tivesse sido um entrave à concretização do negócio, os AA:
(i) não teriam pedido aos RR, na data de 03 de Janeiro de 2023 – data posterior à avaliação bancária, datada de 25 de Dezembro de 2022-, por email e através do seu intermediário, EE, o envio de vários documentos, necessários à concretização da escritura, - entre eles, o pedido do anúncio do direito de preferência à Câmara Municipal ..., o que os RR fizeram, por duas vezes, nas datas de 02 de Janeiro (anúncio 243/2023) e de 08-01-2023 (anúncio 3234/2023) -, «no sentido de abreviarmos o processo de formalização e agendarmos a escritura, sou a reencaminhar um pedido de elementos que o Banco 1... necessita para avançarmos»;
(ii) não teriam pedido a chave do imóvel para o mostrar a alguns empreiteiros, chave que foi cedida a 07 de Janeiro de 2023.
(iii) Os AA não teriam trocado informações com os RR, nas datas de 08 e 09 de Janeiro de 2023, para estes pedirem – pedidos efectuados durante o mês de Janeiro, ou seja, depois da avaliação de Dezembro de 2022 - ao seu banco o distrate do ónus que impendia sobre o prédio, distrate que veio a ser emitido a 11 de Janeiro de 2023.

_ Com a ameaça da não concretização do negócio, sabendo os AA que os RR estavam em processo de divórcio e necessitados de dinheiro, aqueles, embora digam que desistem do negócio, tentaram que os RR baixassem o preço do imóvel em €40.000,00, o que estava fora de questão para estes pois, já haviam baixado, ao preço inicial de compra.

_ O que os AA pretendiam ou era uma descida do preço porque nem sequer tentaram diligenciar junto de outra instituição bancária pela concessão de um crédito mais alto que, aliás, não precisavam pois, o preço e as obras perfaziam o valor de €376.000,00, muito abaixo da avaliação de €451.065,13, ou mudaram de ideias e pretenderam adquirir outro imóvel.

_ Os RR enviaram, através da sua Mandatária, uma carta registada com aviso de recepção no dia 24 de Janeiro, concedendo o prazo de dez dias úteis aos AA para marcarem a escritura de compra e venda, com a advertência que, se não a marcassem, estariam em situação de incumprimento definitivo da obrigação e o contrato se tornaria resolvido por causa a eles imputável.

_ Os AA receberam a referida carta no dia 25 de Janeiro de 2023, às 10h03h, e só após a recepção desta carta é que enviaram uma carta, no mesmo dia 25, invocando, agora, outro motivo para a resolução do contrato, pese embora, tenham colocado na missiva a data de 24 de Janeiro, para dar a entender, falsamente, que foi enviada antes de receberem a carta dos RR.

_ Continuando os AA sem marcar a escritura, os RR enviaram nova carta registada com aviso de recepção, a 24 de Março de 2023 - recepcionada pelos AA, no dia 27 de Março, às 09h56 -, dando uma última oportunidade aos mesmos de marcarem a escritura, declarando o contrato resolvido por causa imputável aos compradores caso a mesma não fosse marcada por estes o que, efectivamente, veio a suceder, tendo ficado o contrato resolvido.

_ Foi, ainda, solicitado aos AA que caso não marcassem a escritura, devolvessem as chaves do prédio que tinham em sua posse, por forma a permitir a colocação do imóvel novamente à venda.

_ Os AA revelaram má-fé ao procurarem baixar o preço de venda do imóvel, incutindo receio na não concretização do negócio e só após a recepção do email de 22 de Janeiro de 2023 e da carta, no dia 25 de Janeiro, às 10h03, é que enviaram uma carta alegando perda de interesse no negócio motivada pela avaliação no valor de €451.065,13, avaliação feita um mês antes.

Concluem que não assiste aos AA “um motivo para a desistência do negócio que lhes faculte o direito a reaver o sinal” e pedem que a acção seja julgada improcedente.

I.3_ Por requerimento de 12/10/2023, os autores pronunciaram-se sobre os documentos juntos com a contestação, “impugna[ndo] o teor e [a] veracidade” dos mesmos e reiteraram o pedido deduzido na petição inicial.

I.4_ Com data de 7/11/2023, foi proferido despacho, concedendo aos autores, ao abrigo do disposto nos arts. 3º/3, 6º e 547º, do CPC, o prazo de 30 dias, para responderem à excepção de abuso do direito, invocada pelos réus, apesar de não a identificarem como tal.

I.5_ Na sequência do convite, os autores apresentaram requerimento - em 13/12/2023 -, alegando, em síntese, que não se verificam os requisitos de que depende a existência de abuso do direito. Acrescentam que as condições para o banco aprovar o empréstimo seria uma LTV de 60%, face ao capital próprio que os autores tinham disponível, correspondendo a LTV a um rácio entre o valor que o banco empresta para comprar casa e o valor do imóvel, sendo do conhecimento comum que nenhum Banco financia um imóvel a 100%. Assim, a avaliação teria de ser de €500.000,00, tendo o réu, aquando das negociações, assegurado que tal se verificaria.

I.6_ Dispensada a audiência prévia, foi elaborado despacho saneador, fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

I.7_ Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, constando do seu dispositivo:

“Assim, face ao exposto e ao abrigo das disposições legais citadas, julga-se a presente acção improcedente, absolvendo-se os réus do pedido.

As custas serão suportadas pelos autores (art. 527º, do CPC).

Registe e notifique”.

I.8 _Inconformados com a decisão, os autores AA e BB interpuseram recurso da mesma, formulando, a final, as seguintes conclusões:

(…)

I.9_ Notificados, os réus apresentaram resposta, formulando, a final, as seguintes conclusões:

(…)

I.9_ Foi admitido o recurso com regime de subida e efeito adequados.

I.10_ Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II_ Objecto do recurso

Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº. 4, e 639º, nºs1 e 2, do Código de Processo Civil são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.

Assim, são as seguintes as questões a apreciar:

1_ Impugnação da decisão da matéria de facto por referência aos seguintes factos:
i. Facto ínsito no ponto 24 dos factos não provados [“A avaliação feita pelo Banco 1... ser superior a €500.000,00 constituía condição essencial para a celebração do contrato de compra e venda definitivo.”]: deve ser eliminado dos factos não provados, aditando-se aos factos provados uma alínea com o seguinte teor: “A avaliação feita pelo Banco 1..., superior a €500.000,00, constituía condição essencial para a celebração do contrato de compra e venda, pois só assim é que os autores tinham capacidade económica para suportar as prestações do empréstimo bancário.”.
ii. Facto ínsito no ponto 19 dos factos provados [“Com a avaliação do Banco 1..., os autores obtinham empréstimo em valor suficiente para a realização do negócio.”]: deve ser eliminado dos factos provados.
2. Aditamento aos factos provados de uma alínea com o seguinte teor: “A avaliação do Banco 1... causou uma alteração significativa das condições do empréstimo, nomeadamente um aumento do spread, que tornou o financiamento bancário excessivamente oneroso para os autores.”.
3. Cláusula IX do contrato promessa e condição aí estipulada relacionada com o financiamento bancário.

III_ Fundamentação de facto

Pelo Tribunal a quo foram considerados os seguintes factos:

“Factos provados:

1. Em 30 de Novembro de 2022, autores e réus assinaram um documento que denominaram de “Contrato Promessa de Compra e Venda”, no qual os réus declararam prometer vender aos autores que declararam prometer comprar um prédio urbano, composto por casa de habitação composta por três corpos tendo, cada um deles, uma cave e rés-do-chão, sito na Av. ..., freguesia e concelho de Valongo, descrito na C.R.P. de Valongo sob o n.º ... e inscrito na matriz predial sob o artigo ... (…).

2. Nos termos da cláusula terceira do contrato, o valor da venda prometida é de €200.000,00 (duzentos mil euros).

3. A título de sinal e princípio de pagamento, foi entregue, no dia da celebração desse contrato, pelos autores aos réus, a quantia de €20.000,00 (vinte mil euros).

4. Sendo que o restante valor – €180.000,00 - seria pago, no acto da escritura pública, que se realizaria até ao dia 31 de Janeiro de 2023, em dia, hora e local a informar pelos promitentes compradores aos promitentes vendedores.

5. Nos termos do número dois da cláusula nona desse contrato: “No caso da avaliação do imóvel, por parte da entidade bancária Banco 1..., ser inferior a €500.000,00 (quinhentos mil euros) e consequentemente a entidade bancária não conceder o empréstimo aos PROMITENTES COMPRADORES, este contrato será automaticamente rescindido, sem direito ao pagamento de qualquer indemnização aos PROMITENTES VENDEDORES.”

6. Ficou estabelecido na cláusula décima que “no caso de ocorrer rescisão, nos termos definidos na cláusula anterior, os PROMITENTES VENDEDORES, deverão devolver o sinal entretanto pago, no prazo de 5 dias úteis, para o IBAN ...”.

7. O prédio foi prometido vender num estado em que carecia de uma total remodelação (…).

8. Como sabiam os réu, pois que a cobertura estava deformada, com telhas envelhecidas e/ou partidas ou em falta, os tectos-falsos em risco de queda, os revestimentos extremamente degradados, as guarnições de portas e janelas fracturados, os tectos em risco de queda, as caixilharias, portas e janelas partidas os wc’s inoperacionais, a cozinha inoperacional, a instalação de distribuição de água muito deficiente, a aparelhagem eléctrica muito deteriorada, a ventilação mecânica obstruída e/ou com anomalias e, em geral, com infiltrações.

9. O negócio celebrado, promessa de compra e venda, foi feito na premissa de que o imóvel era vendido pelo preço de €200.000,00 por estar em mau estado de conservação.

10. Necessitando os autores de realizar obras de remodelação total.

11. A avaliação feita pelo Banco 1..., ao imóvel, foi de €451.065,13 (quatrocentos e cinquenta e um mil sessenta e cinco euros e treze cêntimos), datada de 25.12.2022.

12. Aquela avaliação estava condicionada à realização das projectadas obras de remodelação.

13. Essas obras orçariam em cerca de €163.000,00, acrescido de IVA, à taxa legal aplicável.

14. Os autores, por carta datada de 24 de Janeiro de 2023, comunicaram aos réus por carta registada com aviso de recepção, que fruto da avaliação bancária ter sido inferior a €500.000,00, perderam o interesse no negócio prometido, considerando resolvido o contrato, e solicitando a restituição dos €20.000,00 pagos a título de sinal.

15. O acto de escritura pública de compra e venda do bem imóvel não se concretizou porque os autores decidiram desistir da compra.

16. O que não se deve a degradação substantiva do imóvel desde Setembro de 2022.

17. O estado do imóvel é o mesmo.

18. Os autores pretendiam que os réus baixassem o preço acordado no contrato-promessa.

19. Com a avaliação do Banco 1..., os autores obtinham empréstimo em valor suficiente para a realização do negócio.

20. Os réus enviaram, através da sua mandatária, uma carta registada com aviso de recepção, no dia 24 Janeiro, na qual dão um prazo de dez dias úteis para os autores marcarem a escritura de compra e venda, “sob pena de se considerarem em incumprimento e perderem o sinal nos termos da cláusula 8ª”.

21. Os autores receberam a referida carta no dia 25 de Janeiro de 2023 às 10h03h.

22. Continuando estes sem marcar a escritura, os réus enviaram nova carta registada com aviso de recepção aos autores, a 24 de Março de 2023, dando uma última oportunidade aos mesmos de marcarem a escritura, no prazo de 8 dias úteis, sob pena de “incumprimento definitivo da obrigação” ficando o contrato resolvido por causa imputável aos compradores caso a mesma não fosse marcada por estes o que, efectivamente, veio a suceder.

23. Esta carta foi recepcionada, pelos autores, no dia 27 de Março às 09h56.

Factos não provados:

24. A avaliação feita pelo Banco 1... ser superior a €500.000,00 constituía condição essencial para a celebração do contrato de compra e venda definitivo.

25. Sendo que para esse projecto, compra e realização de obras de remodelação, necessitavam os AA. de obtenção de empréstimo bancário no valor de €160.000,00 para aquisição e €140.000,00 para obras de remodelação, num total de €300.000,00, o que dependia da obtenção de uma avaliação bancária do Banco 1... ao imóvel e condicionada à realização das obras, superior a €500.000,00 (quinhentos mil euros).

26. Como sempre souberam os réus e sempre assim o expressaram os autores.

27. Com a avaliação feita nestes termos, não seria concedido aos autores empréstimo bancário que permitisse a aquisição pelos €200.000,00 e ainda a remodelação total.

28. O autor disse aos réus, aquando dos momentos prévios à assinatura do contrato-promessa, que não se preocupassem com o conteúdo do n.º 2 da cláusula nona pois era algo que não iria afectar o negócio pois para efectivar a compra os autores não precisavam de uma avaliação tão elevada no valor de 500.000,00€, sendo [este] um valor meramente indicativo.

29. O que foi dito aos réus é que o orçamento para obras estava orçado em 176.000,00 €.

30. Tendo sido transmitido aos réus, pelo autor e pelo seu intermediário, que os autores não necessitavam de uma avaliação tão elevada para obtenção do empréstimo já que lhes bastava ter apenas 376.000,00 € para a compra e obras.

31. A desistência não se deve ao valor da avaliação.

32. Os autores encontraram outro imóvel que lhes agradou mais.

33. Só após a recepção da carta referida em 20, é que os autores enviaram a carta referida em 14, tendo colocado na missiva a data de 24 de Janeiro para dar a entender, falsamente, que foi enviada antes de receberem a carta dos réus.

34. As condições para o banco aprovar o empréstimo seria uma LTV (rácio entre o valor que o banco empresta para comprar casa e o valor do imóvel) de 60%, face ao capital próprio que os autores tinham disponível.

35. Por via disso a avaliação teria de ser de €500.000,00.

36. Como os autores bem sabiam e, inclusive, aquando das negociações o réu CC assegurou que tal se verificaria.

Não se teve em consideração o articulado conclusivo (de facto ou de direito), repetido ou que nenhum interesse revestia para a decisão de acordo com as regras de repartição do ónus da prova e as soluções de direito consentidas pela causa.”.

IV_ Fundamentação de direito

1ª Questão

Dissentem os Recorrente da decisão proferida pelo Tribunal a quo quanto à matéria de facto por referência aos factos constantes do ponto 24 dos factos não provados [24. A avaliação feita pelo Banco 1... ser superior a €500.000,00 constituía condição essencial para a celebração do contrato de compra e venda definitivo.] e do ponto 19 dos factos provados [19. Com a avaliação do Banco 1..., os autores obtinham empréstimo em valor suficiente para a realização do negócio.].

Pretendem que o facto vertido no ponto 24 dos factos não provados seja eliminado da matéria de facto não provada e da matéria de facto provada passe a constar “A avaliação feita pelo Banco 1..., superior a €500.000,00, constituía condição essencial para a celebração do contrato de compra e venda, pois só assim é que os autores tinham capacidade económica para suportar as prestações do empréstimo bancário.”.

No que tange ao ponto 19 dos factos provados, pretendem que o mesmo seja eliminado.

Na sua resposta, os recorridos pugnam pela improcedência da impugnação da decisão da matéria de facto.

Cumpre apreciar e decidir.

Dispõe o nº1 do artigo 639º do Código de Processo Civil que “o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”.

Nos termos do artigo 640º, n.º 1, do Código de Processo Civil, “[q]uando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a. Os concretos pontos de factos que considera incorretamente julgados;

b. Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c. A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.

Dispõe o n.º 2 do artigo 640º do Código de Processo CivilNo caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]”.

De harmonia com o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 12/2023, publicado no DR 220, 1ª série, de 14 de Novembro de 2023), «Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa».

Pode ler-se, na fundamentação - que permitimo-nos respeitosamente transcrever - do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência citado:

«Da articulação dos vários elementos interpretativos, com cabimento na letra da lei, resulta que em termos de ónus a cumprir pelo recorrente quando pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, sempre terá de ser alegada e levada para as conclusões, a indicação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, na definição do objeto do recurso.

Quando aos dois outros itens, caso da decisão alternativa proposta, não podendo deixar de ser vertida no corpo das alegações, se o for de forma inequívoca, isto é, de maneira a que não haja dúvidas quanto ao seu sentido, para não ser só exercido cabalmente o contraditório, mas também apreendidos em termos claros pelo julgador, chamando à colação os princípios da proporcionalidade e razoabilidade instrumentais em relação a cada situação concreta, a sua não inclusão nas conclusões não determina a rejeição do recurso, conforme o n.º 1, alínea c) do artigo 640[…].

5 — Em síntese, decorre do artigo 640, n.º 1, que sobre o impugnante impende o dever de especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera julgados de modo incorreto, os concretos meios de probatórios constantes do processo, de registo ou de gravação nele realizado, que imponham decisão diversa da recorrida, bem como aludir a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Tais exigências, traduzidas num ónus tripartido sobre o recorrente, estribam-se nos princípios da cooperação, adequação, ónus de alegação e boa-fé processuais, garantindo a seriedade do recurso, num efetivo segundo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, necessariamente avaliado de modo rigoroso, mas sem deixar de ter em vista a adequada proporcionalidade e razoabilidade, de modo a que não seja sacrificado um direito das partes em função de um rigorismo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substância que se pretende arredada.».

Ensina António Abrantes Geraldes[1] que o sistema actual de apelação que envolva a impugnação sobre a matéria de facto exige ao impugnante, o seguinte:

“a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;

b) O recorrente deve especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;

c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considera oportunos; (…)

e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos e pendor genérico e inconsequente;…”.
Transpondo tais princípios para o caso dos autos, os recorrentes impugnaram a decisão proferida quanto à matéria de facto por referência à factualidade vertida nos pontos 24 dos factos não provados e no ponto 19 dos factos provados.
Indicaram expressamente que consideram incorrectamente julgado o facto vertido no ponto 19 dos factos provados e qual a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre o mesmo, ou seja, a sua eliminação dos factos provados. Indica como meio de prova o depoimento prestado pela testemunha EE enunciando com exactidão a passagem da gravação que entende relevante, procedendo, ainda, à transcrição do excerto que, na passagem indicada, considera oportuno.
Mostram-se, assim, cumpridos os pressupostos de ordem formal.
Situação diversa ocorre quanto à impugnação da decisão proferida quanto à matéria de facto por referência ao ponto 24 dos factos não provados. Os recorrentes não enunciam, quer no corpo das alegações, quer nas conclusões, qualquer meio de prova que imponha decisão diversa da proferida pelo Tribunal a quo, pelo que a impugnação da decisão da matéria, nesta parte, deve ser rejeitada.
Importa, então apreciar e decidir a impugnação quanto ao facto ínsito no ponto 19 dos factos provados.
Sustentam os recorrentes que o Tribunal a quo considerou demonstrada a factualidade constante do ponto 19 dos factos provados com suporte no depoimento prestado pela testemunha EE mas, contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, desse depoimento não resulta demonstrada essa matéria de facto, pelo que deve ser eliminado, dos factos provados, o ponto 19.
Consta da sentença que «[os] factos 15 e 17 a 19 [foram] dados como provados com base no depoimento de EE que para os autores tratou das questões necessárias à obtenção do financiamento bancário de que estes necessitavam para pagamento do preço do contrato prometido. Explicou, assim, de forma serena e coerente, que o problema não estava na não concessão do crédito. A avaliação feita permitiria que o banco o concedesse, só que com um spread maior, resultando numa prestação que os autores não se sentiam capazes de financeiramente suportar.».
Ouvida a gravação do depoimento prestado pela testemunha EE, concorda-se com a valoração do depoimento efectuada pelo Tribunal a quo. A testemunha EE declarou conhecer o autor, há mais de dez anos, da vida política; exerce actividade como intermediário de crédito, desde 2021, para A..., Lda. e a pedido do autor, interveio no pedido de concessão de crédito apresentado junto do Banco 1..., bem como nas conversações posteriores à apresentação do pedido. Sem qualquer hesitação, a testemunha esclareceu que não conhece o contrato-promessa celebrado entre autores e réus e sobre as premissas do financiamento, o seu conhecimento cinge-se ao que lhe foi transmitido pelo autor, ou seja, que este “tinha algum capital próprio, não seria muito” e “queria que o dinheiro que (…) ia pedir ao banco não excedesse os €300.000,00”.
Referiu a testemunha que o autor já sabia que ia precisar de trezentos mil euros e que a avaliação do imóvel teria de ser no valor mínimo de quinhentos mil euros por forma a perfazer “40% de desconto para dar os trezentos mil euros”, ou seja, para obter as melhores condições na negociação do empréstimo com a instituição bancária. Inquirida sobre o valor da prestação mensal, no caso de a avaliação ser igual ou superior a quinhentos mil euros e o valor da prestação, no caso de a avaliação do imóvel ser inferior a quinhentos mil euros, a testemunha disse não lhe ser possível responder por não ter presente a taxa de juro, tendo então indicado valores obtidos por cálculo mental, efectuado, no momento, sem conhecimento da taxa de juros aplicável. Sobre a capacidade económica dos autores para suportar o pagamento da prestação mensal, o conhecimento da testemunha advém do que lhe foi transmitido pelo próprio autor.

Descreveu quais os actos que praticou enquanto intermediário do autor, o que fez de forma clara, objectiva e coerente. De forma espontânea, a testemunha referiu «houve uma altura, depois de estar o ok do banco, de dizerem “isto é para avançar”, eu comecei a pedir directamente ao Sr. CC, a licença da casa, … a certidão, o certificado energético, aquelas coisas que o banco me vai pedindo para passar para a formalização”.

Perguntado “o negócio podia ser feito, o dinheiro era emprestado pelo banco? (…) O valor que o banco emprestaria chegaria perfeitamente para comprar a casa e pagar as obras?”, a testemunha EE respondeu “Claro. Os trezentos mil euros eram para comprar a casa. Ele estava a pedir para a casa … ele dava 20%... €160 … Ele entrava com €40.000,00 de capitais próprios. Portanto, era €200.000,00 mais o valor do orçamento... Extraindo os capitais próprios que eles iam suportar, iam precisar de €300.000,00. Se a casa custava €200.000,00, ele tinha €40.000 para dar de entrada … Era €160.000, mais €140.000, para chegar aos €300.000,00”.

No artigo 13º da petição inicial, alegam os autores que “para esse projeto, compra e realização de obras de remodelação, necessitavam os AA. da obtenção de empréstimo bancário no valor de €160.000,00 para aquisição e €140.000,00 para obras de remodelação, num total de €300.000,00”.

Poder-se-á questionar se a redacção conferida ao ponto 19 dos factos provados é a mais correcta, mas, do depoimento da referida testemunha decorre, efectivamente, que os autores necessitavam de obter empréstimo bancário no montante de €300.000,00 – como alegado no artigo 13º da petição - e que o Banco 1... aceitou conceder empréstimo nesse montante.

Como refere o Tribunal a quo, do depoimento prestado por esta testemunha encontra-se demonstrado que com o valor atribuído ao imóvel, pela instituição bancária, “os autores obteriam empréstimo em valor suficiente para a realização do negócio”.

Improcede, assim, nesta parte, a impugnação da matéria de facto.


*
Pese embora a rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto quanto ao ponto 24 dos factos não provados, impõe-se a sua eliminação da decisão da matéria de facto.
O ponto 24 respeita à vontade das partes com a inserção, no contrato-promessa, do ponto dois da cláusula nona.
Em rigor, a interpretação das cláusulas contratuais envolve matéria de facto quando importa a reconstituição da vontade real das partes, ou seja, quando se procura saber qual o sentido efectivamente atribuído pelo declarante (a sua vontade real) e o eventual conhecimento da mesma pelo declaratário. Mas a interpretação em si mesmo é uma operação jurídico-valorativa e, desse modo, uma questão de direito[2].
O ponto 24 dos factos não provados não contém mera factualidade, mas um juízo conclusivo. Para o apuramento da avaliação do prédio, pelo Banco 1..., em valor superior a €500.000,00, como factor essencial para a subsequente celebração do contrato definitivo, impunha-se aos autores o ónus de alegação e prova de factos que espelhassem essa realidade.
Não se provando o sentido da vontade real do declarante, na data relevante, ou não se provando o seu conhecimento efectivo pelo declaratário, a interpretação da cláusula contratual deverá ser efectuada, em momento posterior, na apreciação de direito e de harmonia com as regras constantes dos artigos 236º a 238º do Código Civil
Lendo a sentença, constata-se que o Tribunal a quo apelou à regra constante do nº1 do artigo 236º do Código Civil, na motivação da decisão da matéria de facto quanto ao ponto 24 dos factos não provados. A motivação da decisão de facto prende-se com a análise crítica das provas produzida e com a enunciação dos elementos de prova que permitiram considerar provados ou não provados, os factos alegados e pertinentes para a decisão de mérito a proferir. Na motivação da decisão de facto deve o Tribunal expor a análise crítica dos meios de prova, nomeadamente a valoração dos depoimentos prestados e de outros meios de prova, por forma a permitir perceber qual a razão da preferência dada a determinado meio de prova em detrimento de outros e qual o raciocínio efectuado na formação da sua convicção quanto aos factos que se pronunciou.
Escreveu o Tribunal a quo, na motivação da decisão de facto, “[n]enhuma prova se fez do facto 24, tanto mais que o que ali se alega não se retira do teor da cláusula 9ª, n.º 2 do contrato”. Transcrita a cláusula escreveu o Tribunal a quo «[a] tónica está na concessão, ou não, do empréstimo (Face ao uso do vocábulo “consequentemente”) e não essencialmente no valor da avaliação. A este respeito estipula o art. 236º/1, do Código Civil, que, desconhecendo o declaratário a vontade real do declarante, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se não puder razoavelmente contar com ele. Não se tendo feito qualquer prova de que, quanto a esta cláusula a vontade real dos declarantes divergisse do seu teor literal e que tal fosse do conhecimento dos declaratórios réus.».
De igual modo, os apelantes pretendem que o ponto 24 seja eliminado dos factos não provados, mas não indicaram qualquer meio de prova para justificar decisão diversa da proferida pelo Tribunal a quo. Apelaram às “regras da experiência” e à logica para a inserção da cláusula IX no contrato em causa, à circustância de o Tribunal a quo “ reconhec(ido) que as novas condições bancárias tornaram o negócio inviável economicamente para os autores e que estes “[…] não teriam capacidade económica para suportar as prestações que decorreriam do empréstimo […] face à avaliação feita [….]”, e à interpretação da cláusula IX “considerando o contexto em que a [mesma] foi estipulada e o sentido que um intérprete lhe atribuiria, colocando-se na posição das partes (cf. os artigos 236.º a 238.º do Código Civil).
Sendo assim, por envolver matéria de direito, deve ser eliminado, da decisão da matéria de facto, o ponto 24 dos factos não provados, sendo efectuada em sede própria a interpretação do ponto dois da cláusula nona do contrato-promessa que consta da factualidade provada.

2ª Questão

Pretendem os recorrentes que à matéria de facto provada sejam aditado um ponto com a seguinte redacção:

“A avaliação do Banco 1... causou uma alteração significativa das condições do empréstimo, nomeadamente um aumento do spread, que tornou o financiamento bancário excessivamente oneroso para os autores”.

Dissentem os autores/recorrentes da decisão proferida quanto à matéria de facto porquanto, na sua “perspectiva, [a prova] carreada aos autos criou a convicção segura que [a] avaliação do Banco 1... causou uma alteração significativa das condições do empréstimo, nomeadamente um aumento do spread, que tornou o financiamento bancário excessivamente oneroso para os autores”, pretendendo que essa “factualidade” seja aditada aos factos provados [conclusões J) e K)].

De acordo com o previsto no nº 1 do artigo 5º do Código de Processo Civil, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas.

O Tribunal ad quem deve proceder à ampliação da matéria de facto sempre que conclua que existe matéria de facto alegada pelas partes, essencial à luz das diversas soluções plausíveis das questões decidendas e que não foi conhecida pelo tribunal recorrido. Além de tais factos, articulados pelas partes, são ainda considerados pelo Tribunal os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes tenham alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar, os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por força do exercício das suas funções (artigo 5º, nº 2, do Código de Processo Civil).

Aferir se a “avaliação do Banco 1... causou uma alteração significativa das condições do empréstimo, nomeadamente um aumento do spread” e se essas condições tornaram “o financiamento bancário excessivamente oneroso para os autores” constitui matéria conclusiva.

Os autores nada alegaram, na petição inicial, quanto à sua capacidade económica e qual o valor da prestação mensal para amortização do empréstimo que, na sua perspectiva, podiam suportar; bem como quanto às condições do empréstimo que, na sua expectativa, seriam obtidas, caso a avaliação do imóvel fosse igual ou superior a quinhentos mil euros. Nada alegaram sobre as condições do empréstimo efectivamente propostas pelo Banco 1..., face à avaliação do imóvel em valor inferior a quinhentos mil escudos, nomeadamente o valor da prestação mensal para amortização do empréstimo. Nenhuma factualidade consta da petição inicial da qual se possa extrair a conclusão que as condições fixadas pela instituição bancária são excessivamente onerosas para os recorrentes.

Em suma, pretendem os recorrentes aditar, à decisão da matéria de facto, juízos conclusivos quando não se mostra alegada a factualidade pertinente que possibilitaria, uma vez demonstrada, alcançar tais conclusões, factualidade que devia ter sido alegada por se tratar de factos constitutivos do direito invocado. Ainda que resultassem da instrução da causa – o que não sucedeu -, e se considerassem factos complementares dos alegados pelas partes, não podiam os mesmos ser tomados em consideração pelo Tribunal ad quem por não se mostrar cumprido o exercício do contraditório (artigo 2º, alínea b) do artigo 5º).

Pelo exposto, improcede a pretensão recursória nesta parte.

Importa, ainda, fazer uma breve referência ao segmento final da redacção sugerida pelos recorrentes, do ponto que pretendiam ver incluído na matéria de facto provada [A avaliação feita pelo Banco 1... ser superior a €500.000,00 constituía condição essencial para a celebração do contrato de compra e venda definitivo] na sequência da eliminação do ponto 24 dos factos não provados.

Pelas razões já expostas que motivaram a eliminação da decisão da matéria de facto, do ponto 24 dos factos não provados, improcede a pretensão dos recorrentes quanto ao primeiro segmento.

O segmento “só assim é que os autores tinham capacidade económica para suportar as prestações do empréstimo bancário” não constitui mera factualidade mas facto conclusivo. Nenhum facto foi alegado, na petição inicial, quanto à capacidade económica dos autores/recorrentes. Tratando-se de factos constitutivos do direito, invocado, de resolução do contrato-promessa, sobre os autores recai o ónus da sua alegação e demonstração.

Aduzem os recorrentes que o Tribunal a quoapesar de reconhecer que as novas condições bancárias tornaram o negócio inviável economicamente para os autores e que estes “[…] não teriam capacidade económica para suportar as prestações que decorreriam do empréstimo […] face à avaliação feita [….]”, depois, não interpretou a redação da cláusula IX à luz do contexto em que foi estipulada e em conformidade com as regras da experiência e da hermenêutica, considerando o contexto em que a cláusula foi estipulada e o sentido que um intérprete lhe atribuiria, colocando-se na posição das partes (cf. os artigos 236.º a 238.º do Código Civil).” [conclusões B e C].

Salvo o devido respeito, da motivação não decorre que o Tribunal a quo considerou demonstrada a incapacidade económica dos autores/recorrentes para suportar o pagamento da prestação mensal à instituição bancária. Lida a sentença, o que resulta da motivação de facto é, apenas, que os autores “acharam que não teriam capacidade económica para suportar as prestações que decorreriam do empréstimo que face à avaliação feita viriam a conseguir”. Situação diferente seria se o Tribunal a quo tivesse considerado demonstrado que os autores não dispunham de capacidade económica para suportar essa prestação. No que tange ao quarto parágrafo da pág. 8 da sentença, conforme já se explicou, o conhecimento da EE sobre a capacidade ou incapacidade económica dos autores advém do que por estes lhe foi transmitido tanto assim é que, recebido o relatório do Banco 1..., com posição favorável à concessão do empréstimos aos autores, a testemunha encetou diligências com vista à marcação da escritura pública para outorga do contrato definitivo.

Pelo exposto, aplicando-se o direito a factos e não a meros juízos conclusivos, não há que aditar, à decisão da matéria de facto, o segmento acima enunciado.

3ª Questão
Dissentem os recorrentes da interpretação do ponto dois cláusula nona do contrato, sustentando que «[para] um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz a cláusula em questão deve ser interpretada de acordo com a finalidade económica e o espírito do contrato: a obtenção de financiamento pelos autores para a aquisição do imóvel, o que, necessariamente, implicava uma avaliação superior a €500.000,00.» [conclusões A), B), C), D) e)].
Aduzem os recorrentes que «as regras da experiência quotidiana, ou seja, as obtidas através da observação, ainda que não exclusivamente científica, de determinados fenómenos ou práticas e a respeito das quais se podem estabelecer consenso, parece-nos inquestionável que a cláusula IX foi inserida no contrato promessa de compra e venda para proteger os autores de um cenário em que uma

avaliação inferior a €500.000,00 tornasse o financiamento bancário inadequado ou insustentável (cf. o artigo 27.º da contestação). Ou seja, para garantir o equilíbrio entre as partes» e que «((só uma avaliação superior a €500.000,00 permitia aos autores pagar as prestações do financiamento bancário e, bem assim, concluir o negócio, daí a redação da cláusula. Esta é a explicação mais coerente com as regras da experiência e que constitui a conclusão lógica da inserção da cláusula IX no contrato em causa, sob pena de a mesma esvaziar-se de utilidade prática, tornando-se completamente inútil.».
Sobre o ponto dois da cláusula nona do contrato-promessa, escreveu o Tribunal a quo «o que claramente resulta de tal cláusula é que a mesma actuará caso a avaliação do imóvel, por parte da entidade bancária Banco 1..., seja inferior a quinhentos mil euros e em consequência desse mesmo valor da avaliação a entidade bancária não conceda o empréstimo bancário. A tónica está na concessão, ou não, do empréstimo (face ao uso do vocábulo “consequentemente”) e não no valor da avaliação (que apenas se torna relevante caso, por via da mesma, o empréstimo não seja concedido).
Não se tendo feito qualquer prova de que, quanto a esta cláusula a vontade real dos declarantes divergisse do seu teor literal e que tal fosse do conhecimento dos declaratórios réus.».
Vejamos se assiste razão aos autores/recorrentes.

Sob a epígrafe “Valor da Avaliação”, consta da cláusula nona do contrato-promessa que:

“1. Os promitentes compradores recorrerão a empréstimo bancário para a compra da fracção.

2 .No caso da avaliação do imóvel, por parte da entidade bancária Banco 1..., ser inferior a €500.000,00 (quinhentos mil euros) e consequentemente a entidade bancária não conceder o empréstimo aos PROMITENTES COMPRADORES, este contrato será automaticamente rescindido, sem direito ao pagamento de qualquer indemnização aos PROMITENTES VENDEDORES.”

Estabelece o nº1 do artigo 236º do Código Civil que “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”, estipulando o nº2 queSempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.

O citado preceito veio consagrar «uma doutrina objectivista da interpretação, em que o objectivismo é, no entanto, temperado por uma salutar restrição de inspiração subjectivista». Ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, «O sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Exceptuam-se apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (nº1), ou o de o declaratário conhecer a vontade real do declarante” (nº2)»[3].

Na interpretação do sentido da declaração, deve tomar-se em consideração as circunstâncias de tempo, lugar e outras que a precederam ou que da mesma são contemporâneas. Ensina Mota Pinto que, uma vez que o código não se pronuncia sobre o problema de saber quais as circunstâncias a considerar para a interpretação, “...serão atendíveis todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo teria tomado em conta” [4].

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela[5], a “normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante”.

Na interpretação do clausulado, importa ainda ter em conta o estabelecido no artigo 238º, nº1, do Código Civil, nos termos do qual “não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso”, excepto se “esse sentido (… ) corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade” (artigo 238º, nº2).

Assim, os princípios essenciais a ter em consideração nesta matéria são os seguintes:

- A declaração negocial valerá de acordo com a vontade real do declarante, se esta for conhecida do declaratário - artº 236, nº2, do Código Civil;

- Não o sendo, valerá com o sentido que possa ser deduzido por um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (teoria da impressão do destinatário) - artº 236, nº1, do Código Civil;

- Nos negócios formais, o sentido atribuído pelo “declaratário normal” deverá estar expresso, ainda que de forma imperfeita, no próprio texto do documento;

- O sentido sem correspondência mínima no texto poderá ainda valer se traduzir a vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade - artigo 238º, nº2, do Código Civil.

Por último, como ensina o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 16/4/2013, «[na] interpretação de um contrato, a efectuar de acordo com as normas previstas nos artigos 236.º a 238.º do CC, deve buscar-se não apenas o sentido das declarações negociais separadas e alheadas do seu contexto negocial global, mas procurar-se o sentido juridicamente relevante daquele contexto, atendendo, em especial, à letra do negócio, às circunstâncias de tempo, lugar e outras que antecederam a celebração do contrato ou são contemporâneas das mesmas, às negociações entabuladas pelas partes e às finalidades por elas prosseguidas, ao próprio tipo negocial, à lei, aos usos e costumes, e à posição assumida pelas partes na concretização do negócio.»[6]

No caso dos autos, não se conhece a vontade real de ambos os declarantes aquando da celebração do acordo.

Trata-se de um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, sendo o contrato prometido a compra e venda desse imóvel.

Decorre do texto do contrato-promessa que os promitentes vendedores sabiam que os promitentes compradores iam recorrer a empréstimo bancário para a aquisição do imóvel. Sabendo e aceitando que os promitente compradores (ora autores/recorrentes) iriam recorrer a financiamento bancário para adquirir o imóvel em causa – nº1 da cláusula IX -, previram, expressamente, que a celebração do contrato definitivo estava condicionada à obtenção desse financiamento bancário (n.º 2 da cláusula IX).

Neste contexto, acompanhamos a interpretação da cláusula feita pelo Tribunal a quo. «A tónica está na concessão, ou não, do empréstimo (face ao uso do vocábulo “consequentemente”) e não no valor da avaliação (que apenas se torna relevante caso, por via da mesma, o empréstimo não seja concedido).».

De harmonia com o teor da cláusula, as partes previram duas situações:
a. a entidade bancária não conceder o empréstimo aos autores;
b. a entidade bancária conceder o empréstimo aos autores.

Sendo o empréstimo concedido, o contrato definitivo seria celebrado até 60 dias a contar da data da celebração do contrato-promessa.

Para a hipótese de o financiamento não ser concedido, estipula o nº2 da cláusula IX que “o contrato será automaticamente rescindido, sem direito ao pagamento de qualquer indemnização aos promitentes vendedores”, ficando estes obrigados a “devolver o sinal entretanto pago, no prazo de cinco dias úteis….”(cláusula X).

Contrariamente ao pugnado pelos autores/recorrentes, na rescisão do contrato promessa prevista no ponto 2 da cláusula IX e na cláusula X, cabe, apenas, o cenário de não concessão do empréstimo. Não foi prevista a situação da avaliação do imóvel, por parte da entidade bancária, ser inferior a €500.000,00 (quinhentos mil euros) e ser concedido o empréstimo aos promitentes compradores, o que demonstra, de forma evidente, que o nº 2 da cláusula IX só tem aplicação «caso (…) a entidade bancária não conceda o empréstimo bancário», acompanhando-se o raciocínio do Tribunal a quo. Em suma, o que releva é a concessão, ou não, do empréstimo bancário, aos promitentes compradores. Esta é a única interpretação conforme à letra do contrato. Não existe qualquer referência, no texto do contrato promessa, ao valor da prestação ou às condições do empréstimo a obter junto de instituição bancária.

A análise do conteúdo dos documentos juntos pelos autores com a sua petição inicial corrobora o sentido da cláusula, atribuído pelo Tribunal a quo. O relatório de avaliação, elaborado pelo Banco 1... tem a data de 25/12/2022. Por email de 3 de Janeiro de 2023 – documento nº 15 junto com a contestação -, os autores solicitaram aos réus o envio de documentos, sendo a finalidade «no sentido de abreviarmos o processo de formalização e agendarmos a escritura». No email – documento 6 junto com a petição inicial -, datado de 20 de Janeiro de 2023, os autores nada mencionam sobre a circunstância de o valor atribuído ao imóvel, pela instituição bancária, ser inferior a quinhentos mil euros, bem como ao ponto 2 da cláusula IX. Nesse email, informam que «o valor que ((os promitentes vendedores)) propõem para a venda, 200.000€, está muito acima do valor que o imóvel representa no estado actual. Não estaremos portanto, disponíveis para realizar a aquisição por este valor. No nosso entender, o valor máximo de valorização do imóvel, no actual estado em que se encontra, são 160.000€.».

Argumentam os recorrentes «[s]ó uma avaliação superior a €500.000,00 permitia aos autores pagar as prestações do financiamento bancário e, bem assim, concluir o negócio, daí a redacção da cláusula”, sendo esta «[a explicação] mais coerente com as regras da experiência e que constitui a conclusão lógica da inserção da cláusula IX no contrato em causa, sob pena de a mesma esvaziar-se de utilidade prática, tornando-se completamente inútil.» [conclusões B) e c)].

Salvo o devido respeito, da leitura do texto do ponto 2 da cláusula XI e da sua articulação com as demais cláusulas que integram o contrato promessa, não se extrai tal conclusão. Caso a condição essencial incidisse sobre o valor da avaliação do imóvel, era totalmente despiciendo o segmento referente à concessão do empréstimo. Nessa hipótese, bastaria às partes terem convencionado que no “caso da avaliação do imóvel, por parte da entidade bancária Banco 1..., ser inferior a €500.000,00 (quinhentos mil euros), este contrato será automaticamente rescindido, sem direito ao pagamento de qualquer indemnização aos PROMITENTES VENDEDORES.”. Só na interpretação dada pelos recorrentes ao ponto 2 da cláusula IX é que se mostra completamente inútil a referência à concessão de empréstimo.

O padrão do declaratário normal é o de um declaratário razoável, que se pauta pelos ditames da boa fé, medianamente experiente e informado, inteligente e diligente, do mesmo tipo do declaratário real”[7].

Como ensina o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 12/6/2012[8], «[o] que basicamente se retira do artº 236º é que, em homenagem aos princípios da protecção da confiança e da segurança do tráfico jurídico dá-se prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário (receptor). A lei, no entanto, não se basta com o sentido compreendido realmente pelo declaratário (entendimento subjectivo deste) e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal, típico, colocado na posição do real declaratário, depreenderia (sentido objectivo para o declaratário) – acórdão deste Tribunal de 28.10.97, BMJ 470, 597. Há que imaginar - escreve o Prof. Paulo Mota Pinto em Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, 208 - uma pessoa com razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas figurando-a na posição do real declaratário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este efectivamente conheceu (mesmo que um declaratário normal delas não tivesse sabido - por exemplo, devido ao facto de o real declaratário ser portador de uma cultura invulgarmente vasta e superior à média) e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo. Ainda segundo este mesmo autor, “… a interpretação da declaração negocial não tem em vista apurar a vontade do declarante ou um sentido que este tenha querido declarar, estando antes em causa o sentido objectivo que se pode depreender do seu comportamento”. Importa por fim acrescentar que estando-se no caso sub judice em presença dum contrato, e dum contrato tipicamente sinalagmático, há que atender, simultaneamente, às declarações de ambas as partes porque ambas são, também simultaneamente, declarante e declaratário (neste sentido, Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, II, 2ª edição, pág. 435). Tudo isto significa em termos práticos que o intérprete deve, relativamente a ambos os contraentes, tentar definir a posição em que se encontram perante a declaração da contraparte, e colocar um declaratário ideal (normal) na posição de declaratário real.».

Perante as estipulações contratuais e tendo presente tudo quanto se expôs, a conclusão que retiramos é a de que, colocado na posição das partes, um declaratário normal extrairia do ponto 2 da cláusula IX o sentido negocial apurado pelo Tribunal a quo.

Este é também o sentido que se encontra vertido no artigo 27º da petição inicial, no qual os autores alegam que “O CPCV é muito claro quanto ao pressuposto essencial para a realização do mesmo, que corresponde à obtenção de uma avaliação do imóvel superior a €500.000,00 pelo Banco 1..., na medida em que tal facto determina que, efetivamente, será concedido aos AA um empréstimo bancário que i) permita aos AA oferecer o preço definido, e ii) realizar as obras de remodelação total necessárias e orçamentadas.”, completando que “[n]ão se verificando tal circunstância, os AA não pretendem adquirir o imóvel em questão e, muito menos, pelo valor que se propuseram pagar.”.

Neste artigo da petição inicial, utilizando a expressão do Tribunal a quo, a tónica reside na obtenção do empréstimo que “permita aos AA oferecer o preço definido, e ii) realizar as obras de remodelação total necessárias e orçamentadas.”.

Na peça de recurso, embora na conclusão A), os autores/recorrentes tenham sustentado que «a cláusula IX foi inserida no contrato promessa de compra e venda para proteger os autores de um cenário em que uma avaliação inferior a €500.000,00 tornasse o financiamento bancário inadequado ou insustentável», na conclusão E), advogam que «[para] um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz a cláusula em questão deve ser interpretada de acordo com a finalidade económica e o espírito do contrato: a obtenção de financiamento pelos autores para a aquisição do imóvel, o que, necessariamente, implicava uma avaliação superior a €500.000,00, conforme referido anteriormente.».

Em suma, na conclusão E), os recorrentes dão primazia à concessão do financiamento, surgindo a avaliação do imóvel em valor superior a quinhentos mil euros apenas como pressuposto da concessão do empréstimo (no caso dos autos, a instituição bancária aceitou conceder empréstimo aos recorrentes, pese embora a avaliação tenha sido de valor inferior a €500.000,00).

Considerando a finalidade do contrato celebrado entre as partes, o clausulado desse acordo, entende este Tribunal que os pontos 1 e 2 da cláusula IX foram, efectivamente, inseridos para proteger a posição dos autores, caso não lhes fosse possível obter financiamento bancário para celebrar o contrato definitivo. Contudo, à luz do crivo das regras da experiência comum e considerando a finalidade do contrato celebrado entre as partes e o clausulado desse acordo, um declaratário normal, colocado na posição dos declaratários reais, seguramente que não atribuiria às cláusulas constantes dos pontos 1 e 2 da cláusula IX, sentido diverso do conferido pelo Tribunal a quo.

Improcede, assim, o recurso nesta parte.


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Os autores recorrentes fundamentaram a revogação da decisão recorrida na impugnação da decisão da matéria de facto, no aditamento de factos à matéria de facto e na fixação, como condição essencial para a celebração do contrato de compra e venda, da avaliação feita pelo Banco 1..., ao imóvel, de valor não inferior a €500.000,00.

Improcedendo a impugnação da decisão da matéria de facto, bem como a pretensão recursória de aditamento de factualidade à matéria de facto provada e acompanhando este Tribunal a interpretação feita pelo Tribunal a quo do ponto 2 da cláusula XI do contrato, não resulta demonstrado que a avaliação do imóvel, pela instituição bancária, em valor superior a quinhentos mil euros, constituía condição essencial para a celebração do contrato de compra e venda; e que a avaliação feita pelo Banco 1... ao imóvel, no valor de €451.065,13 (quatrocentos e cinquenta e um mil sessenta e cinco euros e treze cêntimos), datada de 25/12/2022, tenha tornado “o financiamento bancário excessivamente oneroso para os autores”.

Nenhuma outra questão tendo sido suscitada, mantendo-se incólume o quadro factual julgado provado pelo Tribunal “a quo”, improcede, assim, sem necessidade de outros considerações, o recurso.


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Custas

Sendo improcedente a apelação, os recorrentes/autores são responsáveis pelas custas do recurso (artigo 527.º, n.º1, do Código de Processo Civil).


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V_ Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto pelos autores, confirmando-se a decisão recorrida, sem prejuízo da eliminação do ponto 24 dos factos não provados, nos termos enunciados.

Custas do recurso a cargo dos recorrentes/autores- cfr. artigo 527.º, n.º1, do Código de Processo Civil.


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Sumário:

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Porto, 10/11/2025
Anabela Morais
Carla Fraga Torres
Manuel Domingos Fernandes
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[1] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed. actualizada, Almedina, 2022, págs. 197 e 198.
[2] Evaristo Mendes e Fernando Oliveira e Sá, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Obra colectiva, 2ª edição, Universidade Católica Editora, 2023 pág. 641.
[3] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição – revista e actualizada, Coimbra Editora, 1987, pág. 223.
[4] Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição actualizada, Coimbra Editora, 1994, pág. 450.
[5] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª edição – revista e actualizada, Coimbra Editora, 1987, pág. 223.
[6] Acórdão proferido no processo nº2449/08.1TBFAF.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/3bb66fafcf8ae9fa80257b50004724f0?OpenDocument.
[7] Evaristo Mendes e Fernando Oliveira e Sá, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Obra colectiva, 2ª edição, Universidade Católica Editora, 2023 pág. 641 a 646.
[8] Acórdão proferido no processo nº14/06.7TBCMG.G1.S1, acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/df85e5e08f19a09980257a1d004f0dc4?OpenDocument.