1) Sustentando a Recorrente que o presente procedimento cautelar deveria ter sido instaurado por apenso ao processo n.º ..., do Juiz 4, do Juízo Central Cível do Porto, por evidente dependência e instrumentalidade, face à identidade de sujeitos processuais, de causas de pedir e de pedidos, a questão suscitada não é de (in)competência em razão da matéria, mas antes de (in)competência por conexão.
2) Estando em causa dois juízos cíveis, a questão em apreço não tem a ver com a matéria, pois ambos têm a mesma competência material, estando integrados no mesmo Juízo Central de competência especializada, sendo os dois juízos cíveis igualmente competentes, em razão da matéria, para a providência em causa, importando apenas saber se o procedimento cautelar requerido é (ou não), pelo seu objeto (pedido e causa de pedir), instrumental / dependente em relação àquela ação nº ..., de modo a ser determinada a apensação àquela, ou se deve esperar pela ação que venha a ser intentada.
3) Limitando-se a Recorrente a convocar um conjunto de provas documentais e testemunhais (excertos de depoimentos de duas testemunhas que ofereceu e foram inquiridas), para alcançar a demonstração, em bloco, de todos os factos que na decisão recorrida se deram como não provados e, daí concluir que a prova desses factos colide, contraria e destrói a factualidade dada como provada sob os pontos impugnados, que, por isso, devem ser dados como não provados, deve tal impugnação da decisão da matéria de facto ser rejeitada por incumprimento dos ónus previstos no artigo 640º, do Código de Processo Civil.
4) A possibilidade de impugnação da matéria de facto por blocos de factos e blocos de meios de prova apenas deverá ser admitida quando o recorrente alegue ou seja manifesto que esse conjunto de factos (v.g. pelo seu número e natureza) e de meios de prova correspondem a uma mesma realidade factual que deverá ser julgada com os mesmos meios de prova (os mesmos segmentos sinalizados dos depoimentos das várias testemunhas e os mesmos documentos).
5) A presunção registral prevista no artigo 7º do Código do Registo Predial apenas se estende ao facto registado (existência do direito) e à sua titularidade, não abrangendo os elementos meramente descritivos do prédio, designadamente a área, composição e confrontações.
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Central Cível do Porto – Juiz 3
Relatora: Des. Teresa Pinto da Silva
1º Adjunto: Des. Filipe César Osório
2ª Adjunta: Des. M. Fátima Andrade
I – RELATÓRIO
Em 23 de dezembro de 2024, AA intentou procedimento cautelar de restituição provisória de posse contra BB, I.M.E. Imóveis e A... S.A., requerendo:
I) Que seja decretada a restituição do Autor à posse do prédio urbano sito na Rua ..., Porto, freguesia ..., concelho do Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto, com o nº .../... e inscrito na respetiva matriz predial sob o art. ..., com a configuração e limites constantes do documento 6, em específico:
a) do solo correspondente (em que se mostrava edificado) ao muro derrubado no limite/confrontação Norte/Sul (dito em 19 da petição inicial) do prédio do Requerente com o da Requerida (identificado em 4 da petição inicial);
b) do solo na porção que se estende para sul do muro dito em 19 da petição inicial até aos armazéns ditos em 9 da petição inicial;
c) do solo correspondente (em que se mostrava edificado) ao muro derrubado no limite/confrontação Nascente/Poente do prédio do Requerente com o da Requerida (identificado em 4 da petição inicial);
d) do solo correspondente ao caminho dito em 10 supra, que se estende desde a Rua ..., até ao portão interno do prédio do Requerente, também melhor alegado em 10 da petição inicial.
II) A notificação da Requerida para, por qualquer forma ou meio, se abster de esbulhar ou turbar a posse do Requerente sobre o prédio e as suas partes objeto de restituição através da presente ao Requerente.
Procedeu-se a à produção das provas oferecidas, sem prévia audição da Requerida.
Por decisão de 21 de janeiro de 2025, veio a ser proferida decisão, que julgou a providência requerida procedente, dela constando o seguinte dispositivo:
«Assim, face ao exposto e ao abrigo das disposições legais citadas determina-se a restituição do requerente à posse do prédio melhor identificado em 1, 7 e 8 dos factos provados, com a configuração e limites constantes do documento 6, em específico: a) do solo correspondente (em que se mostrava edificado) ao muro derrubado no limite/confrontação Norte/Sul do prédio do Requerente com o da Requerida; b) do solo na porção que se estende para sul do muro dito em 20 dos factos provados até aos armazéns ditos em 10 dos factos provados; c) do solo correspondente (em que se mostrava edificado) ao muro derrubado no limite/confrontação Nascente/Poente do prédio do Requerente com o da Requerida; d) do solo correspondente ao caminho dito em 11 dos factos provados, que se estende desde a Rua ... até ao portão interno do prédio do Requerente.
As custas serão decididas a final, fixando-se o valor do procedimento em €113.606,98.»
Devidamente citada a Requerida, veio a mesma, em 5 de março de 2025, deduzir oposição, requerendo, a final:
1º O indeferimento liminar da presente providência cautelar, em virtude de a mesma estar conexionada e ser dependente da ação tramitada no Processo nº..., do Juízo Central Cível do Porto, Juiz 4, que é a ação principal;
2º Caso assim não se entenda, que se declare materialmente incompetente o Juízo Central Cível do Porto, Juiz 3, para apreciar e decidir esta providência, em virtude dessa competência pertencer ao Juízo Central Cível do Porto, Juiz 4, Processo nº ..., incompetência que por ser absoluta determina a absolvição da instância da Requerida e a extinção desta providência;
3º Que se julgue provada e procedente a presente oposição, e, em consequência, que seja revogada a decretada providência cautelar de restituição provisória da posse, com as legais consequências.
4º Caso assim não de entenda, que se ordene a substituição da presente providência cautelar de restituição provisória da posse pela prestação de caução mediante garantia bancária no valor de € 113.606,92.
Produzida prova em sede de audiência final, veio, em 25 de julho de 2025, a ser proferida sentença, da qual consta o seguinte dispositivo:
«Nestes termos declara-se improcedente a oposição, mantendo-se a providência decretada nos presentes autos.
Mais se indefere o pedido de substituição desta providência, mediante a prestação de caução.
As custas serão suportadas pela requerida (art. 527º, do Código de Processo Civil), já se mostrando fixado o valor da acção.»
CONCLUSÕES:
(…)
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões vertidas pela Recorrente nas suas alegações (arts. 635º, nºs 4 e 5 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do Código de Processo Civil).
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais prévias, destinando-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não à prolação de decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo Tribunal recorrido.
Mercê do exposto, da análise das conclusões vertidas pela Recorrente nas suas alegações decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:
1ª Da incompetência material do Tribunal.
2ª Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
3ª Da repercussão da eventual alteração da decisão da matéria de facto na solução jurídica do caso e, independentemente disso, se ocorreu erro de julgamento do Tribunal a quo.
1ª Da incompetência material do Tribunal
Sob as conclusões A. a F., a Recorrente sustenta que o presente procedimento cautelar deveria ter sido instaurado por apenso ao processo n.º ..., do Juiz 4, do Juízo Central Cível do Porto, por evidente dependência e instrumentalidade, face à identidade de sujeitos processuais, de causas de pedir e de pedidos, concluindo pela incompetência material do Juízo Central Cível do Porto – Juiz 3 para apreciar e decidir esta providência, defendendo que a competência pertenceria ao Juízo Central Cível do Porto – Juiz 4, onde corre termos a identificada ação.
Antes de mais, importa esclarecer que, diferentemente do sustentado pela Recorrente, a questão suscitada não é de (in)competência em razão da matéria, mas antes de (in)competência por conexão.
Estando em causa dois juízos cíveis, a questão em apreço não tem a ver com a matéria, pois ambos têm a mesma competência material, estando integrados no mesmo Juízo Central de competência especializada, sendo os dois juízos cíveis igualmente competentes, em razão da matéria, para a providência em causa, importando apenas saber se o procedimento cautelar requerido é (ou não), pelo seu objeto (pedido e causa de pedir), instrumental / dependente em relação àquela ação nº ..., de modo a ser determinada a apensação àquela, ou se deve esperar pela ação que venha a ser intentada.
Tal “competência” para proceder à tramitação não radica na consideração de que se verifique, por parte de um juízo em face do outro, incompetência em razão da matéria, mas antes no cotejo entre pedidos e causas de pedir, no sentido de aferir da existência de dependência e da consequente apensação, o que coloca a questão suscitada ao nível da competência por conexão.
Como bem clarifica o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/03/2022, Proc. n.º 359/20.3YHLSB.L1.A.S1 (disponível em www.dgsi.pt):
“O art. 364º, nº 3, do CPC refere-se à chamada competência por conexão, tal como sucede com o nº 2, nestes números se preceituando o seguinte:
«2 - Requerido antes de proposta a ação, é o procedimento apensado aos autos desta, logo que a ação seja instaurada e se a ação vier a correr noutro tribunal, para aí é remetido o apenso, ficando o juiz da ação com exclusiva competência para os termos subsequentes à remessa.
3 - Requerido no decurso da ação, deve o procedimento ser instaurado no tribunal onde esta corre e processado por apenso, a não ser que a ação esteja pendente de recurso; neste caso a apensação só se faz quando o procedimento estiver findo ou quando os autos da ação principal baixem à 1.ª instância.»
Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, em anotação ao art. 383º do CPC-61 (equivalente àquele art. 364º, apenas com uma ressalva atinente à novidade da inversão do contencioso), no Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pp. 16 e 17, identificam a situação, precisamente, como de competência por conexão, devendo, no caso de o procedimento cautelar ser preliminar, ocorrer a apensação ao processo de que depende, quando seja intentado, «o que implica a remessa para o tribunal em que a acção é proposta» (destaque nosso). Já no caso de ser o procedimento proposto na pendência da acção, a competência por conexão afirma-se desde o princípio do procedimento, correndo este por apenso à acção já intentada.
Igualmente Abrantes Geraldes entende tratar-se de uma situação de competência por conexão, que se sobrepõe aos restantes critérios, devendo a providência requerida na pendência da causa correr, necessariamente, por apenso ao processo principal (Temas da Reforma do Processo Civil, III Vol., 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2000, 134).”
Do n.º 3 do artigo 364º, do Código de Processo Civil, resulta que, verificando-se a instrumentalidade entre a providência cautelar e a ação principal, aquela deve correr por apenso a esta, perante o tribunal (e, naturalmente, o juiz) da ação principal, que fica competente para conhecer da providência.
Os requisitos da instrumentalidade são subjetivos e objetivos:
- Subjetivamente, exige-se identidade de partes sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica;
- Objetivamente, exige-se que a ação principal tenha por fundamento o direito acautelado, isto é, que exista uma relação de interdependência concreta entre a providência e a causa principal, por forma a que a providência requerida seja adequada a assegurar provisoriamente os efeitos da decisão definitiva a proferir na ação principal.
Sucede, porém, que no caso sub judice não se verifica tal identidade objetiva.
Com efeito, como resulta dos factos provados n.ºs 58 a 60, na ação n.º ..., instaurada em 03/03/2023, o Recorrido peticionou:
a) O reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio n.º .../..., descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º .../..., inscrito na matriz predial sob o art. ..., com configuração, composição e delimitação que resulta do documento 6 junto à petição inicial;
b) A condenação da Requerida a abster-se de praticar qualquer ato que viole o direito de propriedade e, por qualquer meio ou forma, perturbe e/ou impeça a posse do Autor sobre o prédio;
c) A condenação no pagamento de indemnização de € 12.440,15 por danos patrimoniais e não patrimoniais causados ao Autor.
A Recorrente, em reconvenção, ali peticionou:
1. O reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio n.º .../..., com área de 1.250 m², com a implantação constante de planta junta;
2. A condenação do Requerente a remover do prédio da ré/reconvinte as pedras e muro que colocou no seu interior;
3. A condenação a abster-se de praticar qualquer ato que perturbe o gozo e fruição do imóvel e direito de propriedade;
4. A condenação a indemnizar mediante sanção pecuniária compulsória de € 500,00 por cada dia de incumprimento da sentença que reconheça o direito de propriedade sobre o identificado imóvel.
Tais pedidos foram julgados totalmente improcedentes, por não provados, por sentença de 16/09/2024, tendo ambas as partes interposto recurso de apelação.
No presente procedimento cautelar, instaurado em 23 de dezembro de 2024, o Recorrido peticiona a restituição provisória da posse de partes específicas do seu prédio, de que alega ter sido esbulhado violentamente pela Recorrente mediante atos materiais concretos praticados em Novembro e Dezembro de 2024.
A questão que se coloca é a seguinte: existe uma relação de instrumentalidade concreta entre este procedimento cautelar e a ação n.º ..., de modo que a decisão final desta consuma e satisfaça a situação provisória estabelecida pela providência cautelar?
Entendemos que não, pelos fundamentos que a seguir passamos a expor.
Desde logo, na ação principal o Recorrido não formulou qualquer pedido de restituição de posse.
Como resulta dos factos provados e da própria descrição dos pedidos formulados naquela ação, o que o Recorrido aí pretende é o reconhecimento (declaração) do direito de propriedade sobre o seu prédio com determinada configuração; uma prestação de facto negativo (abstenção de atos perturbadores), com natureza preventiva/inibitória; uma indemnização por danos já causados. Nenhum destes pedidos se confunde com a restituição de posse.
É certo que o Recorrido pediu a condenação da Requerida “a abster-se de praticar qualquer ato que (...) perturbe e/ou impeça a posse”, mas este pedido tem natureza preventiva (tutela inibitória pro futuro), não restitutória (recuperação da posse perdida).
Por outro lado, os fundamentos são estruturalmente diversos.
Na ação n.º ..., o thema decidendum é a titularidade do direito de propriedade, discutindo-se:
- A interpretação e eficácia da demarcação efetuada na escritura de 2012;
- A composição, configuração e limites dos prédios enquanto objetos do direito de propriedade;
- A aquisição originária por usucapião (fundada na posse);
- A extensão do direito de propriedade de cada uma das partes.
No presente procedimento cautelar, o que está em causa é a posse e factos concretos de esbulho violento ocorridos em momento temporal específico (Novembro/Dezembro de 2024), tendo o Recorrido invocado, para tanto, a sua posse exercida sobre o prédio, e, em concreto, sobre determinadas áreas (independentemente de ser ou não proprietário); o esbulho dessa posse pela Recorrente e a violência com que o esbulho foi praticado.
A posse relevante para a restituição provisória é apenas a do ano e dia anterior ao esbulho (artigo 1278.º, n.º 2, do Código Civil), ao passo que a posse relevante para a usucapião invocada na ação n.º ... exige prazos muito superiores (10, 15 ou 20 anos, conforme os casos).
Como se decidiu no Acórdão da Relação de Coimbra de 22/01/2008, Proc. n.º 2792/06.4TBVIS.C1, disponível em www.dgsi.pt,: «nas acções de reivindicação e nas acções de restituição de posse as respectivas causas de pedir e os respectivos pedidos não são (rigorosamente) coincidentes, muito embora possam, por vezes, na prática confundir-se, nomeadamente quando na acção de reivindicação se invoca a posse conducente à aquisição originária do direito de propriedade (cujo reconhecimento é ali reclamado) por via do titulo da usucapião (sendo que tal posse é, como vimos, um dos dois elementos ou fundamentos causais em que assentam aquelas outras acções possessórias) e quando nas acções restituição de posse se pede a final a efectiva entrega do bem de cuja posse se foi esbulhado ou privado (sendo certo que, como é sabido, pode-se exercer a posse sem se ter o domínio de facto sobre o respectivo bem – cfr. artº 1254 do CC), entrega ou restituição essa que, como vimos, constitui precisamente um dos pedidos que integram e caracterizam as acções de reivindicação.»
Acresce que a decisão da ação n.º ... não consome nem satisfaz a situação provisória criada pela providência cautelar, porquanto ainda que na ação principal viesse a ser reconhecido ao Recorrido o direito de propriedade sobre o prédio com a configuração que defende (o que não aconteceu, pois a ação foi julgada improcedente), tal não implicaria automaticamente, nem necessariamente, a restituição da posse da qual o Recorrido alega ter sido esbulhado em Novembro/Dezembro de 2024.
O reconhecimento do direito de propriedade é uma declaração (sentença meramente declarativa), ou no máximo a condenação na abstenção de atos futuros (sentença condenatória em prestação de facto negativo com eficácia pro futuro).
Já a restituição da posse pressupõe uma condenação específica do esbulhador a restituir a posse, repondo a situação anterior ao esbulho (sentença condenatória em prestação de facto positivo com eficácia retroativa à data do esbulho).
Ora, uma sentença que declare que o Recorrido é proprietário do prédio e condene a Recorrente a abster-se de atos futuros não restitui, por si só, a posse de que o Recorrido alega ter sido esbulhado em Novembro/Dezembro de 2024.
Para obter essa restituição, o Recorrido teria que ou ter formulado expressamente pedido de restituição de posse naquela ação (o que não fez) ou instaurar autonomamente ação possessória de restituição de posse (que é precisamente o que declarou que vai fazer, sendo o presente procedimento cautelar instrumental dessa futura ação).
Concluímos, assim, na linha do entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo, que o presente procedimento cautelar reveste autonomia em relação à ação nº ..., não tendo caráter instrumental e dependente em relação ao direito discutido naquela ação, porquanto naquela ação discutiu-se o direito de propriedade, enquanto no procedimento cautelar pretende-se acautelar o direito à posse.
Face ao exposto, conclui-se que não existe relação de instrumentalidade concreta entre o presente procedimento cautelar de restituição provisória da posse e a ação n.º ..., sendo antes esta providência cautelar instrumental de ação possessória futura a instaurar.
Por conseguinte, o Juízo Central Cível do Porto – Juiz 3 é competente para conhecer do presente procedimento cautelar, improcedendo, assim, a questão da incompetência material suscitada pela Recorrente.
A Recorrente impugna os pontos 96 a 112 dos factos não provados, bem como os pontos 18, 19, 20, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 55, 57, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88 e 89 dos factos provados, pretendendo que sejam julgados não provados os factos provados impugnados e, ao invés, provados os factos não provados impugnados.
Os pontos de facto impugnados têm o seguinte conteúdo, seguindo a ordem indicada pela Recorrente na impugnação em causa:
* Factos não provados:
96. Os prédios de Requerente e Requerida têm as delimitações que constam da planta da Câmara Municipal junta como documento 2 da oposição.
97. A planta que, além do mais apresenta o seguinte erro: a linha devia ser perpendicular à Rua ... e não paralela.
98. Somente correndo na perpendicular à Rua ... a linha de demarcação referida na escritura de compra e venda ao Requerente permite que o prédio da IME tivesse 1.250 m2, o barracão continuasse a integrar o seu prédio e que o muro de pedra que autonomiza o prédio da IME fosse reconstruído em toda a sua extensão.
99. Somente correndo a linha vermelha de demarcação para leste, o prédio do Requerente teria 2.300 m2.
100. O prédio do Requerente tem a área de 2.300 metros quadrados e um barracão a nascente e o prédio da IME tem a área de 1.250 metros quadrados e um barracão a poente (que o Requerente designa por três armazéns) e a área possuída pelo Requerente engloba 380 metros quadrados do prédio da IME.
101. A execução dos trabalhos de construção em nada afeta o direito do Requerente porque eles se contêm nos 870 metros quadrados que se situam a norte do solo cuja posse é alegada pelo Requerente
102. O propósito do Requerente é impedir a execução da obra, tentando pela via desta providência cautelar de restituição de posse alcançar o mesmo efeito do embargo de obra nova.
103. O muro referido sul é um amontoado de pedras que não tinha fundações e foram depositadas em solo de aterro, não tinham qualquer solidez e, aquando das escavações levadas a cabo pela Requerida, por falta de solidez, as referidas pedras desmoronaram-se.
104. O solo onde essas pedras estavam depositadas está fora do perímetro da construção do edifício da IME.
105. A fachada do prédio da IME é composta por pilares de granito com a mesma configuração e altura incluindo o que constitui estrutura de suporte, na sua metade interior, ao muro que veda o prédio da IME na fachada virada para a Rua ... - o muro e o solo onde está implantado na delimitação a leste do prédio da IME, integrando este prédio.
106. O caminho referido em trata-se de um caminho aberto ao público.
107. O prédio do Requerente é composto por barracão destinado a indústria e quintal com a área de 2.300 metros quadrados, que correspondem à área implantada a vermelho nas fotografias juntas sob os nºs 17 e 18.
108. Sendo o limite norte do prédio do Requerente o portão interior que lhe dá acesso.
109. A execução da obra envolve especial complexidade técnica e risco, porque: a) As condições do terreno obrigam a recorrer a estacaria, ancoragem e tirantes provisórios; b) Impõem uma contenção dos solos tipo Muro de Berlim definitiva e ancorada, o que requer: i. A execução de perfis verticais/microestacas; ii. Execução de uma viga de cimento em betão armado para encabeçamento dos perfis/microestacas; iii. Perfuração específica e instalação de ancoragens; iv. Execução de painéis de betão armado constituintes da contenção; v. Aplicação de pré-esforço no conjunto das ancoragens; vi. Realização de fundações definitivas de muros em sapata corrida, após escavação até ao final da cota.
110. Aquando do decretamento da providência a obra estava numa fase crucial do seu desenvolvimento – a fase de contenção, decorrendo os trabalhos ao nível das fundações do prédio e recalcamento das paredes em profundidades superiores a sete metros.
111. Os muros de contenção do terreno somente estavam parcialmente concluídos, carecendo de serem concluídos e consolidados, sob pena de ser posta em risco a segurança da obra, podendo então ocorrer derrocada.
112. Há manifesta urgência em terminar as fundações e concluir vários trabalhos urgentes sob pena de pôr em risco a segurança da obra, dos trabalhadores e dos edifícios adjacentes.
* Factos provados
18. Imediatamente após a celebração da escritura de compra e venda o Requerente passou a, em exclusivo, utilizar todo o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial com o nº .../..., com a configuração e limites e constantes do documento 6, junto com o requerimento inicial, que aqui se dá por reproduzido.
19. Assim o Requerente passou a utilizar um prédio com os seguintes limites:
a. a poente, com o muro do logradouro do prédio em que está instalado o Colégio ... e numa faixa que se dirigia até ao nº ... da Rua ... (formando um caminho), com o prédio descrito na CR Predial com o nº .../...; estando os prédios separados por muro que se desenvolve desde o nº ... da Rua ... até ao portão.
b. a norte, e, desde o final do portão interior existente nesse prédio, (que dá acesso ao caminho referido em a)) até ao muro do Colégio sobredito, com o prédio descrito sob o nº .../..., efetuando-se a confrontação por uma linha reta, paralela à Rua ..., até alcançar o prédio vizinho (o do dito Colégio ...) e, no final do dito caminho, com a Rua ... (onde o prédio tem o número de polícia ...).
20. Inclusive, no que respeita aos seus limites poente e norte, aqui até à linha divisória constante da planta anexa à escritura de compra e venda conforme referido em 19 b).
25. No interior do prédio referido em 1, delimitado nos termos do documento 6, inexistia qualquer obstáculo físico que impedisse a livre circulação por entre todo o prédio, designadamente inexistindo qualquer obstáculo entre os armazéns e a linha divisória dita em 19 b) supra e a restante área do prédio, formando assim um conjunto unitário, exceção feita ao portão também referido em 19 b.
26. A partir de então, de Janeiro de 2012, e até hoje, foi o Requerente quem em exclusivo limpou e cuidou de todo o prédio, descrito na Conservatória do Registo Predial com o nº .../..., com a configuração e limites acima melhor alegados e constantes do documento 6 supra junto e da planta que ficou anexa à escritura.
27. Procedendo ou autorizando a limpeza dos pavimentos e solo (incluindo o arranque e remoção de ervas e arbustos), a limpeza, conservação e arranjo das construções nele existentes, bem como de tudo quanto se mostrou necessário à segurança e isolamento do seu prédio e construções, custeando os custos desses trabalhos, quando os mesmos não eram efetuados gratuitamente.
28. Foi, também, o Requerente quem passou até hoje a deter, quer o comando do portão que existe no final desse caminho junto à Rua ..., bem como as chaves das portas de acesso aos armazéns edificados no limite poente do prédio.
29. Tal como foi o Requerente quem concedeu a terceiros o gozo e possibilidade de utilização, quer graciosamente e a título precário, quer onerosamente (através da celebração de contratos de arrendamento), seja dos armazéns edificados no limite poente do seu prédio (entre o mais para armazenagem e depósito de bens pessoais), seja do próprio terreno/solo em si mesmo, designadamente da porção situada no limite poente do seu prédio, máxime a que se situa entre o limite norte dos referidos armazéns e a delimitação com o prédio descrito com o nº ... (para efeito de aparcamento de automóveis).
30. Recebendo o Requerente e fazendo suas as contrapartidas acordadas no âmbito dos contratos de arrendamento celebrados.
31. Tal como cedeu e permitiu a terceiros a utilização do aludido caminho, designadamente para efeito de aparcamento de viaturas automóveis, seja para acesso a outros prédios e edificações que se situam a nascente do referido caminho, facultando-lhes até comandos para abertura do portão existente no limite e confrontação com a Rua ....
32. O Requerente colocou no local da linha delimitadora do prédio referido em 1 com o descrito sob o nº ... (limite norte/sul), uma vedação efetuada com rede e cordas.
33. E depois, procedeu, o Requerente, à construção, no local em se situa a dita linha delimitadora dos prédios, de um muro, em pedra, com uma largura de cerca de 30 cm e uma altura de cerca de 2m, tal como estava autorizado e havia sido acordado na escritura de compra e venda, e que se manteve intacto e intocado até ao dia 11 de Fevereiro de 2023.
34. Tendo sido o Requerente quem também e em exclusivo procedeu à edificação desses vedação e muro, suportando em exclusivo os custos a tanto necessários, bem como quem procedeu, a expensas suas, ao que se mostrou necessário à sua conservação e limpeza.
43. Sendo que, em relação ao caminho que permite o acesso do nº ... da Rua ... até ao portão interno, incluindo o seu leito (em paralelo/empedrado) e o muro que, pelo poente o divide do prédio da Requerida, o Requerente manteve durante esse mesmo período temporal, a prática de atos idênticos aos descritos supra.
44. É o Requerente quem faculta e fornece, a quem bem entende, o comando que permite a abertura do portão (de abertura automática) existente junto à Rua ...).
45. É o Requerente quem autoriza, gratuita ou onerosamente, vizinhos e inquilinos seus e quem bem entende, a aparcarem os seus veículos automóveis nesse caminho e logradouro, bem como a utilizaram-no para aceder à parte do seu prédio a sul do portão interno e limite ditos em 10 e 19 supra e a outros prédios e construções localizadas a nascente desse caminho e, até, a, em parte dele, plantarem árvores, ervas aromáticas e outos vegetais de pequena dimensão.
46. Tal como é o Requerente quem providencia ou autoriza a limpeza, arranjo e conservação desse portão, do caminho e logradouro e do muro que o ladeia, removendo ervas, plantas e silvas, quer do seu solo, quer do muro, quer da vedação em ferros e arames nele aposta, reparando essa vedação, pagando ou providenciado, em exclusivo o que a tal se mostra necessário.
47. Tudo o que o Requerente efetua desde que adquiriu o seu prédio é à vista de toda a gente.
48. Com exceção do referido em 37 e 38 e da atuação da requerida a que infra se fará menção e à propositura da ação também infra mencionada, jamais alguém se opôs à prática de tais atos.
49. Não tendo consciência de com tais atos lesar os interesses ou direitos de quem quer que seja.
50. A Requerida, jamais se arrogou qualquer direito sobre ou em relação ao dito caminho, incluindo o muro que o ladeia acima já mencionado, e muito menos praticou, ou pretendeu praticar, qualquer ato ou sequer utilizar os mesmos.
51. Muro que é usado pelo Requerente, por nele se apoiarem os portões, que existiu e existem junto à Rua ....
52. E por nele existir há décadas um espaço para instalação de contadores, tudo do lado interior (nascente) do muro, isto é, voltado para prédio do Requerente.
53. Tal muro, há mais de 30 anos, e sempre desde 2012 em diante, é contínuo, sem interrupção, abertura ou qualquer passagem entre o dito caminho e logradouro do prédio do Requerente e o prédio da Requerida.
55. Sendo certo que, quando no prédio do Requerente esteve instalado e funcionou um estabelecimento fabril de armazenagem, tratamento e corte de madeiras (denominado B...), esse caminho e logradouro sempre foi tido e utilizado como pertença do prédio do Requerente.
57. O Requerente praticou, e pratica, os atos supra descritos na convicção de ser proprietário desse caminho e muro delimitador.
63. No dia 6/11/2024 e seguintes, a Requerida derrubou a quase totalidade (num segmento compreendido entre 2/3 metros a sul da Rua ... m a norte do portão interior) do muro que, desde a Rua ..., ladeia, pelo poente, o prédio do Requerente, e que termina no local em que está instalado o sobredito portão interior do seu prédio.
64. Muro que se encontrava em regular estado de conservação, sem qualquer risco de ruína ou tombamento e que a Requerida se permitiu derrubar, sem autorização, consentimento ou, sequer, conhecimento do Requerente.
65. O que a Requerida efetuou com recurso a máquinas pesadas, (escavadoras e retroescavadoras), derrubando o muro e fazendo tombar as pedras de granito que o compunham, a vedação em arames e rede que sobre ele existia e escavando, quer a parte do solo em que assentava, quer parte do solo integrante do prédio do Requerente e que era já leito do referido caminho.
66. A Requerida ao proceder ao derrube do muro e escavações danificou, quer um veículo automóvel propriedade de um arrendatário do Requerente, quer um outro, propriedade do Requerente (de marca VW, modelo...), em ambos lhes partindo vidros, amolgando portas e danificando a sua pintura.
67. Para além de danificar o segmento do muro que não derrubou próximo à Rua ..., provocando-lhe fendas e deslocamento.
68. E se inicialmente a Requerida invocou que o derrube do muro (então parcial) havia sido acidental e não propositado.
69. Depois, não só o veio a derrubar todo da mesma forma (com exceção do pilar junto à Rua ... e de uma pequena parte onde se situa o sobredito espaço para instalação de contadores de abastecimento) com os mesmos meios, acima descritos, como iniciou, a Requerida, trabalhos de construção de um muro ou parede, abarcando, quer a área antes ocupada pelo muro derrubado, quer uma área do próprio caminho.
70. A Requerida está a executar uma cofragem de ferro e madeira na referida área e, sobre isso, perfurou o subsolo do prédio do Requerente, na zona em que situa o referido logradouro e caminho de acesso ao nº ... da Rua ..., introduzindo nos orifícios elementos em ferro numa extensão que invade o prédio do Requerente (no subsolo) não inferior a 2 m.
71. Pretendendo, não só utilizar toda a área de terreno antes ocupada pelo muro que derrubou, como parte do solo do prédio do Requerente que passou a ocupar (assim estreitando esse caminho/logradouro), em dimensão variável, chegando a atingir 10/15 cm, conforme retratado no documento 31 junto com o requerimento inicial, bem como utilizar o subsolo prédio do Requerente para nele fundear ancoragens dessa parede ou muro, à revelia, sem o consentimento ou autorização do Requerente.
72. Para além disso, a Requerida colocou no leito do caminho e em toda a extensão que vai desde a Rua ... até ao portão interior do prédio do Requerente acima alegado, uma vedação, em rede de arame e postes, que assim impede o Requerente de poder aceder e usar do muro derrubado e da faixa de terreno ocupada pela Requerida.
73. Mantendo-se indiferente a interpelações que o Requerente lhe tem vindo a efetuar para que cesse os sobreditos atos e respeite a sua propriedade e posse desse muro e caminho/logradouro.
74. No passado dia 6 de Dezembro de 2024 a Requerida, diretamente, e com recurso a trabalhadores seus e/ou pessoas por si contratadas, voltou a derrubar o muro que o Requerente reconstruira totalmente entre os dias 11 e o dia 25 de Fevereiro de 2023.
75. Para tal efeito, no dia 6/12/2024, e com recurso a máquinas pesadas (escavadoras e outras) a Requerida procedeu ao derrube desse muro e das pedras que o compunham.
76. O que efetuou, mesmo estando estacionado e aparcado no interior do prédio do Requerente e contiguo a tal muro, um veículo automóvel.
77. Para além disso, tendo iniciado escavações no interior do seu prédio, passou também a Requerida a escavar o solo, quer no local em que o muro em apreço estava implantado, quer numa extensão de cerca de 3 metros para o interior do prédio do Requerente (para sul) e em direção aos armazéns supra mencionados, destruindo, até, uma pequena horta que um dos ocupantes e utilizadores do prédio nessa zona mantinha.
78. O que efetuou na extensão de terreno do prédio do Requerente mais a poente e que se encontrava livre de coisas, em especial a que não estava ocupada pelo veículo automóvel sobredito.
79. Escavando e retirando terra do terreno do prédio do Requerente numa altura/profundidade de cerca de 2 m em relação à cota ou nível do terreno/solo do prédio do Requerente.
80. Apenas se detendo a Requerida porque o Requerente, alertado da destruição do seu muro e da ocupação e escavação do seu prédio, se deslocou ao local e se colocou pessoalmente defronte das máquinas escavadoras que realizam tais operações intimando o seu operador a cessar esses atos.
81. Para além disso, e como forma de tentar impedir essa ação da Requerida, o Requerente promoveu a colocação de viaturas automóveis e outros bens no limite do seu terreno que não foram objeto de escavação por parte da Requerida.
82. A Requerida, através do administrador, continua a dar instruções aos trabalhadores de construção civil por si contratados para continuarem os trabalhos, mesmo quando o Requerente se interpõe no percurso das máquinas para o interior do seu prédio ou no seu caminho se encontram bens e pessoas.
83. O administrador da Requerida ordenou a continuação dos trabalhos e escavações, mesmo sabendo e vendo que os mesmos teriam que ser realizados nos locais em que o Requerente fisicamente se encontrava.
84. Os trabalhadores da Requerida ou pessoas por si contratadas opõem-se e resistem às interpelações do Requerente para que o abandonem, tendo inclusive, já ameaçado agredir o Requerente.
85. O Requerente, no início da prática pela Requerida dos atos sobreditos deslocou-se desde a sua residência em Madrid, Espanha, ao Porto, e desde 06 de Dezembro de 2024 está nesta cidade, tendo cessado toda a sua atividade profissional, por forma a poder vigiar durante todo o período diurno os atos da Requerida, poder opor-se-lhes rapidamente, ou evitar danos em bens causados pelos trabalhadores da Requerida.
86. Tendo já recorrido às forças policiais, por forma a tentar que a Requerida cesse as suas condutas.
87. Tudo o que tem trazido constantemente inquieto, ansioso, nervoso e perturbado.
88. E durante o dia mantém-se na proximidade do prédio.
89. Os utilizadores do seu prédio sobreditos, não só alguns pagam contrapartida em dinheiro (pelo arrendamento de um dos armazéns e garagens), como mantêm objetos e materiais seus nas edificações nele existentes (máxime os armazéns), nele aparcam os seus veículos, plantam e colhem produtos, por ele passam e deambulam e nele permanecem.
O Tribunal recorrido motivou os pontos de facto impugnados nos seguintes termos:
«Quanto aos factos 18 a 20 e 22 a 49, 50 (tendo-se em conta o período temporal anterior/contemporâneo à propositura da providência, como se impõe), 51 a 56 e 89, considera-se que os meios de prova arrolados pela requerida não chegaram para infirmar a convicção que sobre eles se tinha formado.
Estão em causa (em síntese) os atos de posse praticados pelo requerente na área e portão em causa, nos períodos temporais aí descritos.
Como se referiu em tal decisão (para a qual aqui se remete) foram tidos em conta os depoimentos testemunhais de pessoas que (há mais ou menos tempo) frequentavam e usavam o lugar em causa e que, de forma circunstanciada e sincera, se pronunciaram sobre tal factualidade, com o conhecimento de causa advindo de tal razão de ciência.
Ora a testemunha LL acaba por reconduzir a quase totalidade do seu depoimento à questão da propriedade do Requerente sobre a área aqui em causa, nada referindo sobre os invocados atos de posse.
No que toca ao caminho que conduz ao prédio onde antes funcionava a B..., acaba por revelar não perceber muito bem qual a natureza do mesmo (tanto o considerando como caminho público como caminho de servidão, mas ainda assim, confirmando que o mesmo era usado pelos camiões que se dirigiam e saiam da fábrica).
Não chega, assim, este depoimento para afastar a convicção que, com base nos elementos de prova produzidos pelo Requerente, se formou designadamente quanto ao facto 55.
A testemunha NN, quanto à inexistência desses atos de posse do Requerente antes do início da construção, apenas refere que o prédio em causa “é uma ruína” desde que o conhece, não tendo edificação, mas apenas paredes.
Esta afirmação é desmentida pelas fotos aéreas mais recentes juntas aos autos, onde se vê o telhado de tais construções (por exemplo o documento 12 do requerimento inicial ou o documento 34 da oposição).
Mais se releva que tal testemunha é filho do Presidente do Conselho de Administração da Requerida e gerente de sociedade que presta serviços à Requerida, com o consequente risco de perda de objetividade.
Tendo o seu depoimento (particularmente no que diz respeito às quedas dos muros e área ocupada com a construção), demonstrado incongruências, que adiante serão referidas.
Razão pela qual não conseguiu o tribunal com base nesta referência prestada neste depoimento afastar (total ou parcialmente) a convicção que formou quanto a esta factualidade.
As testemunhas OO e PP quanto a esta matéria nada adiantaram.
A testemunha QQ a este respeito apenas refere que os armazéns a sul do muro, terão começado a ser utilizados quando começou a obra.
Mas o seu conhecimento é de passar pela rua, antes de vez em quando, e de ter ido ao terreno 4/5 vezes, antes da obra começar.
Trata-se de razão de ciência muito ténue (da rua não conseguiria, com certeza, ver se os armazéns estariam a ser utilizados e das poucas vezes que antes foi ao prédio da Requerida, pode ter deparado com alturas de maior inatividade na área dos armazéns), que parece sustentar mais uma conclusão do que uma constatação de factos e que não abala a convicção que pelos motivos apontados o tribunal, com base na prova produzida pelo Requerente, formou sobre tais factos.
Nem há documentos nos autos que impliquem conclusão diversa. Diga-se que as fotografias juntas como documentos 26 e ss, até parecem demonstrar um terreno razoavelmente tratado na parte em que o Requerente alega possui-lo.(…)
Os factos 58 a 61 como já se disse resultam da consulta de tal ação feita no âmbito destes autos, não os tendo a Requerida colocado em causa.
Quanto aos factos 62 a 88 também se julga que a prova da Requerida não foi suscetível de abalar a convicção que o tribunal formou sobre os mesmos, aquando da prolação da decisão de 21-01-2025.
Recorde-se que quanto a estes factos foram tidas em conta as fotografias e videogramas que os retratam, bem com o depoimento de testemunhas que ou assistiram aos mesmos ou se deslocaram ao local logo depois das quedas dos muros, alertadas pelo tumulto, remetendo-se aqui para o que em tal decisão se deixou escrito.
Ora a respeito desta factualidade a testemunha LL nada testemunhou.
A testemunha NN refere que o muro ao lado do caminho cedeu por ser antigo e não ter fundações. No entanto se tal aconteceu é porque nas escavações a Requerida não tomou os cuidados devidos, tendo sido ela a assim provocar a queda do muro.
Mais se estranha tal depoimento (de que a queda desse muro não foi propositada) quando logo a seguir tal testemunha afirma que a intenção da Requerida é e era de erigir parte da sua construção nessa mesma exata zona onde estava o muro. E onde confirma já haver construção, não se percebendo assim como é que a rede de proteção que alegam ter colocado não se situa dentro do próprio caminho.
Mais refere que, segundo o planeamento dos trabalhos, haveria escavações para lá do muro sul, uma vez que a construção não se cinge à área de escavação, e que essa área a sul seria ainda para colocarem estaleiro e grua e depois para servir como jardim da construção, estando prevista a demolição dos barracões.
Quanto à queda deste muro (não obstante, do que relata quanto à construção e suas características, resultar estar previsto o seu desaparecimento) mais uma vez defende que só caiu por força da sua inerente fragilidade.
Mais descreveu um clima de tensão permanente entre Requerente e Requerida, embora culpabilizando esta última por mobilizar pessoas, tendas e automóveis para as zonas aqui em disputa.
A testemunha QQ (que pertence à fiscalização da obra) confirmou o desmoronamento dos muros, que é para ocupar com a construção o lugar onde estava o muro do caminho e a existência de ancoragens por debaixo do caminho que, concede-se, da forma como foram explicadas não contenderam com a posse do mesmo, por serem no subsolo e provisórias, a descartar a final.
Mais refere que a área em que a obra se desenvolve é dentro da zona de terreno não controvertida (o que desde logo se revela inexata uma vez que o Requerente alega a posse do muro que ladeia o caminho).
E que viu nas traseiras pessoas tendas e carros, o que consubstanciava uma situação de perigo.
A testemunha RR (técnico de obra na Requerida) sustenta que a Requerida apenas está, neste momento, a intervir em área na qual o Requerente não invoca a prática de atos de posse. Espontaneamente e antes de se retratar referindo que no futuro a Requerida irá usar a área a sul do muro paralelo à Rua ....
Também refere que não era intenção deitar abaixo o muro do caminho, apesar de ser nessa área que vai crescer, e já cresce, o muro da construção da Requerida. Mas que este muro caiu e danificou carros.
Refere que não foi derrubado, que apenas caiu aquando das escavações, mas também refere não ter estado presente quando tal ocorreu.
Repetindo tais declarações quanto ao muro a sul.
E que quando tal muro caiu não praticaram mais qualquer ato para além do sítio onde este se encontrava.
Refere que não foram os trabalhadores e colaboradores da Requerida a ameaçar terceiros, sendo antes estes as vitimas de tais ameaças.
Mas que nada ouviu, porque das vezes em que presenciou tais factos, não se aproximou o suficiente.
Confirmando a presença de pessoas e carros no cimo do talude que se formou nessa parte sul da escavação, com os inerentes riscos de segurança.
A testemunha PP (administrador da empresa com a qual a Requerida contratou a empreitada de betão armado) refere a queda dos muros, mais uma vez se ouvindo que a mesma não foi propositada, mas devida à fragilidade dos mesmo.
Confirma também que a queda de muro perpendicular à Rua ... atingiu um ou dois carros e que o caminho ficou diminuído com a rede de proteção que colocaram.
Também se referiu à ancoragem sob o caminho.
E que no alinhamento do muro aí existente foi feito o muro da construção.
Que lhe falaram de discussões mas que com ele as conversas foram pacíficas.
E que a construção da Requerida não chegava ao muro a sul (parecendo desconhecer o projeto de construção da própria Requerida).
O legal representante da Requerida nas suas declarações nada mais acrescentou ou referiu em sentido diferente.
Face às fragilidades que decorrem do supra exposto quanto a estes depoimentos, considera o tribunal não ficar prejudicada a convicção que sobre estes factos formou com base nos depoimentos das testemunhas ouvidas na fase inicial do procedimento, nas fotografias e vídeos juntos nessa mesma fase (que retratam esta factualidade) e nas cópias do projeto da Requerida, onde se vê distintamente umas escadas que se prolongam para sul do muro horizontal à Rua ... e um alçado no lugar do muro perpendicular a esta via.
Manteve-se, assim, esta factualidade como provada e deu-se como não provada a factualidade descrita em 101, 103 e 104.(…)
Quanto ao facto 96 não se sabe qual o grau de fiabilidade de tal planta, ou se a mesma tem vindo a ser atualizada de acordo com a situação jurídica atual dos terrenos. Mais se refere que tal documento não faz fé pública ou prova plena quanto à adequação à realidade do seu conteúdo.
Na ausência de plantas e medições topográficas e prova testemunhal que a sustentasse, não conseguiu o tribunal dar como provados os factos 97 a 99.
Com os factos 100 e 105 a 108, pretendia a Requerente provar que o caminho em causa era público e os limites que defende para a sua propriedade.
Começa-se por referir que do registo predial apenas resulta uma presunção (e ainda assim ilidível) de propriedade e/ou outros direitos nele inscritos (art. 7º do CRPr), presunção que como têm vindo a entender unanimemente doutrina e jurisprudência, não se estende às áreas, composições e confrontações descritas.
Sendo que a matriz predial não permite presumir, nem faz fé ou prova plena da realidade das inscrições matriciais delas constantes, já que esses elementos são os que são relatados aos funcionários da AT, não tendo estes percecionado os mesmos.
Da mesma forma as plantas municipais apenas provam que foram elaboradas nesses termos, mas não têm especial valor probatório que permita concluir que o que nelas se desenhou corresponda à realidade existente (quer na data em que foram elaboradas, quer em datas posteriores).
Para provar o que entende serem as reais dimensões e área do seu prédio, a Requerente arrolou como testemunha uma das vendedoras do prédio LL.
O depoimento desta testemunha pareceu claramente defensivo e especulativo (por exemplo quando diz que, para eles o muro era do n.º 137 porque “só podia ser, porque o caminho era de servidão”).
Como já se disse demonstrou esta testemunha uma grande confusão de conceitos entre servidão e caminho público. Mas tendo em conta que uma servidão é um encargo imposto num prédio em benefício do outro, a conclusão a que esta testemunha chega não faz qualquer sentido.
Não havendo qualquer precisão ou razão de ciência objetiva para que consiga, de forma a persuadir o tribunal, afirmar a pertença de tal muro ao terreno que foi vendido à Requerente.
De tal depoimento também resultou que os dois prédios aqui em causa eram pertença das mesmas pessoas, que quando necessário ou conveniente utilizavam (designadamente para a laboração da fábrica que existia no prédio atualmente do Requerente) os dois terrenos.
Defende que o que se procurou vender a uma e outra das partes foram os prédios com a configuração e área defendidos pela Requerida.
Mas tal esbarra com o PIP pedido por outro dos vendedores que, em 2016, servindo-se de uma planta de localização simples da direção municipal do urbanismo de 2011, em relação ao prédio atualmente pertença da Requerida o indica com configuração e área que coincidem com a posição defendida pelo Requerente quanto aos limites e configuração do seu prédio (documento 9 da resposta).
A carta que, em seu nome e da sua família, a testemunha LL enviou ao Requerente (documento junto de forma legível com a resposta sob o n.º 8) apresenta-se confusa, ela própria com um lapso, ao mencionar que na planta anexa à escritura de 20-01-2012 foi “estabelecido um traço longitudinal, limitador entre os dois imóveis, no sentido norte/sul, paralelo à Rua ..., quando deveria tal traço ser perpendicular a essa rua”.
A planta tem, de facto um traço paralelo à Rua ..., que, como tal não pode ser no sentido norte sul.
Não se diz em tal carta em que local deveria então o traço perpendicular a essa rua passar e contende de forma flagrante com o já referido PIP (documento 9 da resposta).
Não há também que esquecer que um dos prédios aqui em causa foi desanexado do outro.
Não parece, assim, que tal testemunha possa afirmar com qualquer tipo de conhecimento objetivo os limites de cada um dos prédios.
Quanto às demais testemunhas da Requerida as mesmas limitaram-se a referir que achavam que o muro pertence ao prédio desta, porque se desenvolvia na parte inferir do pilar (chegando a testemunha QQ a dizer que foi em reunião de obra e confrontando o proprietário que decidiram que o muro fazia parte do prédio).
Quanto à natureza pública do caminho, a mesma apenas foi afirmada pela testemunha LL e nos moldes confuso e pouco informados já supra descritos.
O legal representante da Requerida acabou por sustentar a sua convicção sobre a área e configuração do seu prédio nas plantas que viu, no que constava da matriz e na Conservatória do Registo Predial, bem como na Câmara Municipal, nas conversas que teve com os vendedores e com um empregado da fábrica (que não se percebe bem o que poderia saber sobre a atual delimitação dos terrenos) e na interpretação que faz do lapso da planta que integra a escritura de venda ao Requerente.
Adiantando que quando foi ver o prédio não o mediu, nem existiam barreiras físicas visíveis.
Mais referindo que o caminho é público porque os vizinhos estacionam lá, sendo utilizado pelos moradores (não estacionando ele lá porque o caminho era para os moradores). O que não é razão de ciência nem suficiente nem sequer convincente.
Da sua convicção de que o caminho tem carácter público e do facto do muro se desenvolver a partir da parte de dentro do pilar existente à entrada, retirando que este também pertence ao seu prédio, por o pilar em causa delimitar o terreno (a que parece fazer assentar apenas nas características e desenho do mesmo).
Não há um conhecimento sustentado, mas apenas análise de documentos, das estruturas subsistentes e conversas com terceiros, que não se revelam suficientes para que pudesse considerar os defendidos limites da propriedade como assentes.
Foi referido em audiência que tal pilar integrava o alçado da moradia que em tal prédio em tempos terá existido, mas nenhuma fotografia de época permite visualizar a mesma e como, na sua confrontação com a rua, se distinguiria do prédio vizinho (designadamente se por efeito do pilar existente à esquerda de quem está de frente para os terrenos aqui em causa).
Assim, não formou o tribunal, sobre esta factualidade, convicção que lhe permitisse dá-la como provada.
Nenhuma prova se fez sobre os factos 102 (tanto mais que só no decurso desta providência começou a haver construção), 109 (não foram juntos projetos e cadernos de encargos suscetíveis de o comprovar) e 110 a 112 (dos depoimentos ouvidos não se apurou em que fase estava a construção aquando do decretamento/execução da providência e ninguém testemunhou que estivessem em risco obra, ou edifícios adjacentes, sendo que, se a obra tem fiscalização e controle de segurança, com certeza que os trabalhadores não seriam autorizados por esta a exercerem as suas funções caso houvesse risco para a sua segurança).»
Cumpre apreciar e decidir.
O artigo 662.º, nº1, do Código de Processo Civil, dispõe que: “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Ao assim dispor pretendeu o legislador, como evidencia Abrantes Geraldes[1], deixar claro que “(…) a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia (…); sem embargo das modificações que podem ser oficiosamente operadas relativamente a determinados factos cuja decisão esteja eivada de erro de direito, por violação de regras imperativas, à Relação não é exigido, nem lhe é permitido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos a livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio foram valorados pelo Tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão da matéria de facto, indicou nas respetivas alegações que circunscrevem o objeto de recurso”.
Por sua vez, o artigo 640.º, do Código de Processo Civil, impõe à Recorrente, na impugnação da matéria de facto, a obrigação de especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, especificação que também deve ser feita nas conclusões do recurso, indicando clara e inequivocamente os segmentos da decisão da matéria de facto que pretende impugnar. Essa indicação tem que ser de molde a não implicar uma atividade de interpretação e integração das alegações da Recorrente, tendo o Tribunal que encontrar na matéria de facto provada e não provada aquela que o mesmo pretenderia impugnar, o que, aliás, está vedado ao Tribunal, face ao princípio do dispositivo.
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que sustentem a sua pretensão de alteração da decisão da matéria de facto quanto aos pontos impugnados diversa da recorrida, concretizando e apreciando criticamente os meios de prova produzidos, especificação que não tem de constar das conclusões do recurso.
c) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, como sucede in casu, deve indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
d) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, especificação que se vem entendendo, dominantemente, que não tem que constar das conclusões das alegações.
O citado artigo 640.º impõe à Recorrente, por conseguinte, um conjunto de rigorosos ónus processuais, cujo incumprimento implica a rejeição imediata do recurso, importando, por conseguinte, determinar se a mesma os observou.
O Recorrido sustenta, nas suas contra-alegações, que a impugnação da decisão da matéria de facto deve ser rejeitada por inobservância daqueles ónus previstos nos nºs 1 e 2, do artigo 640º do Código de Processo Civil.
Isto porque a Recorrente limita-se a convocar um conjunto de provas documentais e testemunhais (excertos de depoimentos de duas testemunhas que ofereceu e foram inquiridas), para alcançar a demonstração, em bloco, de todos os factos que na decisão recorrida se deram como não provados e, daí limita-se, depois, a concluir que a prova desses factos - 96 a 112 dos factos não provados - colide, contraria e destrói a factualidade dada como provada sob os pontos impugnados, que, por isso, devem ser dados como não provados.
Diga-se, desde já, que concordamos com o Recorrido.
De facto, como resulta das considerações que antecedem, resulta do disposto no artigo 640º, nº1 e 2, do Código de Processo Civil, que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto deve especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, devendo o Recorrente indicar as razões da sua discordância e, quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda a impugnação.
Para se terem por cumpridos estes ónus, não basta, como fez a Recorrente, indicar globalmente os meios de prova, limitando-se a remeter para documentos ou transcrições de depoimentos, sem que, contudo, aí estabeleça concretamente qualquer ligação entre cada um dos documentos e cada uma das passagens transcritas com cada um dos factos impugnados.
É necessário especificar, para cada facto concreto impugnado, ou pelo menos, para cada bloco de factos, na eventualidade de estes terem afinidades entre si, quais os meios probatórios que impunham decisão diversa e as razões pelas quais o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, o que a Recorrente manifestamente não fez.
Note-se que a possibilidade de impugnação da matéria de facto por blocos de factos e blocos de meios de prova apenas deverá ser admitida quando o recorrente alegue ou seja manifesto que esse conjunto de factos (v.g. pelo seu número e natureza) e de meios de prova correspondem a uma mesma realidade factual que deverá ser julgada com os mesmos meios de prova (os mesmos segmentos sinalizados dos depoimentos das várias testemunhas e os mesmos documentos).
No caso sub judice, a Recorrente pretende a alteração de 17 factos não provados (n.ºs 96 a 112) para provados e de 53 factos provados (n.ºs 18 a 20, 26 a 34, 43 a 55, 57, 63 a 89) para não provados.
Compulsadas as alegações de recurso e respetivas conclusões, verifica-se que a Recorrente:
- Não indica, facto a facto, as razões concretas da sua discordância quanto à decisão proferida pelo Tribunal a quo;
- Limita-se a invocar, em bloco, um conjunto heterogéneo de documentos e excertos de depoimentos (designadamente das testemunhas LL e QQ), sem especificar, para cada facto concreto, qual a prova que impunha decisão diversa.
Ora, os factos em causa respeitam a realidades factuais completamente distintas:
- Delimitação e áreas dos prédios;
- Composição dos prédios e existência de construções;
- Natureza pública ou privada do caminho;
- Propriedade do muro nascente/poente;
- Atos de posse praticados pelo Recorrido;
- Circunstâncias do derrube dos muros;
- Características técnicas e fase da obra da Recorrente;
- Riscos e urgência na conclusão da obra.
Não existe qualquer unidade ou conexão intrínseca entre estes múltiplos factos que justifique a sua impugnação "em bloco", nem a Recorrente demonstra que os mesmos correspondam a uma mesma realidade factual passível de ser julgada com os mesmos meios de prova.
Acresce que, relativamente aos 53 factos provados cuja alteração pretende, a Recorrente nem sequer identifica ou questiona a prova que foi produzida e que, segundo a sentença recorrida, determinou a sua demonstração, limitando-se a alegar que "tal decorre, apenas e tão só, da demonstração dos factos que na mesma decisão se deram como não provados”.
Ou seja, a Recorrente não questiona a valoração que o Tribunal a quo fez da prova produzida pelo Recorrido que sustentou tais factos provados, limitando-se a pretender que, demonstrando-se os factos não provados que invoca, automaticamente se demonstra o contrário daqueles.
Na realidade, o que a Recorrente pretende, com tal postura, é que o Tribunal da Relação proceda a um segundo julgamento da matéria de facto, substituindo-se ao julgador de primeira instância na apreciação da prova, sem demonstrar efetivamente erro de julgamento, pretensão que não pode proceder.
A impugnação da decisão de facto não se destina a obter um segundo julgamento, mas antes a reapreciação da prova nos pontos que em concreto as partes considerem incorretamente julgados perante os concretos meios probatórios produzidos e que lhes incumbe especificar, sob pena de rejeição da pretendida reapreciação.
Ora, não incumbe ao Tribunal ad quem selecionar dentro dos documentos invocados e das passagens das gravações dos depoimentos assinaladas pela Recorrente nas alegações de recurso quais daqueles meios de prova importam para cada um dos factos impugnados.
Pelo exposto, conclui-se que a Recorrente não observou os ónus previstos nas alíneas a) e b) e nº 2, artigo 640º do Código de Processo Civil, pelo que se rejeita a impugnação da decisão da matéria de facto.
Em sede de enquadramento jurídico, confirmada a matéria de facto enunciada na sentença recorrida, afastado fica desde logo o conhecimento da questão da repercussão da alteração da decisão da matéria de facto na solução jurídica do caso.
Não obstante, a Recorrente sustenta ainda que a sentença recorrida incorreu em erro quanto à decisão de mérito, invocando, para tanto:
A) Que, sendo proprietária do prédio n.º .../..., com a área de 1.250 m² constante do registo predial e matriz, beneficiando da presunção registral do artigo 7.º do Código do Registo Predial, tal direito prevalece sobre a mera posse invocada pelo Recorrido.
Quanto a este argumento da alegada prevalência do seu direito de propriedade, alega ainda que a demarcação efetuada na escritura de 2012 não é válida ou contém erros, pelo que os prédios em causa mantêm as áreas e confrontações constantes do registo e matriz.
B) Que não se verificam os pressupostos para o decretamento da restituição provisória da posse.
Começando pelos argumentos relativos à presunção registral, convém ter presente que nos termos do artigo 7.º do Código do Registo Predial, «O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define».
Todavia, tal como é afirmado na decisão de 1ª instância, esta presunção apenas se estende ao facto registado (existência do direito) e à sua titularidade, não abrangendo os elementos meramente descritivos do prédio, designadamente a área, composição e confrontações.
Como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/12/2019, Proc. n.º 1808/03.0TBLLE.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt:
«VI - As inscrições matriciais não fazem prova plena da localização, da área, da composição, dos limites e das confrontações dos prédios a que se referem, pois que nenhum desses elementos concernentes à identificação física destes é atestado pela autoridade ou funcionários competentes com base nas suas perceções.
VII - Os levantamentos topográficos, as declarações dos municípios e as cartas e plantas cadastrais apenas provam que foram feitas as declarações aí documentadas ou que constam das cartas o que nelas está assinalado, mas já não que corresponda à verdade o seu conteúdo, constituindo documentos sujeitos, nessa parte, à livre apreciação do julgador.»
No mesmo sentido, pode ler-se no ponto III do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18/03/2024, Proc. 12141/21.6T8PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt.:
«III -«A área, composição e confrontações do prédio, portanto, a apresentação física do prédio não são atos que o conservador, munido do seu poder de autoridade, possa atestar ou certificar, já que o seu conhecimento dos factos limita-se à apreciação e análise dos documentos que instruem o pedido de registo, os quais podem não expressar a situação real dos prédios.»
Assim, a presunção registral não abrange as áreas, limites ou confrontações, cingindo-se apenas à existência do direito e à sua pertença às pessoas em cujo nome se encontra inscrito.
No caso sub judice, a Recorrente beneficia da presunção de ser proprietária do prédio n.º .../..., mas não beneficia de qualquer presunção quanto à área de 1.250 m² ou quanto aos concretos limites e confrontações do mesmo.
A Recorrente alega também que a demarcação efetuada na escritura de 2012 não é válida, contém erros (linha paralela em vez de perpendicular, direção oeste em vez de este), e que nunca foi executada porque o muro previsto não foi construído com as características acordadas.
Sem razão, uma vez mais.
A demarcação de prédios confinantes pode ser efetuada judicial ou extrajudicialmente, não constituindo um meio de aquisição do direito de propriedade, mas antes um ato de reconhecimento e fixação dos limites entre prédios contíguos.
Ora, no caso sub judice, resulta provado (facto n.º 10) que, na escritura de 20 de Janeiro de 2012, Recorrido e vendedores (que eram então também proprietários do prédio que viria a ser vendido à Recorrente) demarcaram de maneira definitiva o limite de separação entre os dois prédios mediante uma linha reta que arranca desde o portão interior e corre para leste em paralelo à Rua ..., constando tal linha de planta anexa à escritura.
Este acordo de demarcação, face aos factos provados, conclui-se que foi celebrado por escrito e por documento autêntico (escritura pública), conferindo-lhe especial força probatória; foi celebrado entre os proprietários de ambos os prédios na data (Janeiro de 2012), sendo oponível aos seus sucessores, definindo os limites entre os prédios confinantes; produziu efeitos imediatos, tendo o Recorrido passado a exercer posse sobre o prédio com a configuração assim demarcada (factos provados n.ºs 18 a 57).
A circunstância de não ter sido construído o muro com exatamente 3,50 metros de altura não invalida a demarcação efetuada, pois esta resultou da linha aposta na planta e não da construção do muro, sendo este apenas um sinal físico destinado a materializá-la.
Aliás, como resulta dos factos provados n.ºs 32 a 34, o Recorrido construiu efetivamente um muro no local da linha delimitadora, com cerca de 30 cm de largura e cerca de 2 metros de altura, que se manteve até ser derrubado pela Recorrente em Fevereiro de 2023 e posteriormente reconstruído.
Quanto aos alegados "erros" na planta (linha paralela em vez de perpendicular, direção oeste em vez de este), os mesmos estão por demonstrar, nada resultando a este respeito nos factos provados, tendo a factualidade alegada pela Recorrente quanto a esta questão resultado como não provada.
Conclui-se, por conseguinte, pela improcedência do recurso quanto às questão em apreço.
Mas a Recorrente sustenta ainda que não se verificam os pressupostos legais da restituição provisória da posse: posse, esbulho e violência (artigo 377º e ss. do Código de Processo Civil).
Vejamos.
Preceitua o art.º 1279º, do Código Civil, que o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador.
Nos termos do artigo 1251.º do Código Civil, «Posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real», acrescentando o nº 2, do artigo 1252.º, do citado diploma, que «Em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 1257.º».
No caso sub judice, resulta demonstrado (factos provados n.ºs 18 a 57, 89) que o Recorrido, desde a aquisição do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial com o nº .../..., em Janeiro de 2012, vem exercendo sobre o mesmo atos materiais de posse, designadamente, utilizando em exclusivo todo o prédio, com a configuração e limites e constantes do documento 6, junto com o requerimento inicial, designadamente com os limites descritos no ponto 19 dos factos provados, limpando e cuidando de todo o prédio; procedendo ou autorizando a limpeza dos pavimentos, remoção de ervas, conservação das construções e do muro; detendo o comando do portão de acesso junto à Rua ... e as chaves das portas dos armazéns edificados no limite poente do prédio, cedendo a terceiros, gratuita ou onerosamente, o uso das diversas partes do prédio (armazéns, terreno, caminho), recebendo contrapartidas nos casos onerosos; construindo vedação e muro no local da linha delimitadora constante da escritura de 2012; procedendo à manutenção e conservação do portão, do caminho, do muro e das construções, suportando os respetivos custos.
Todos estes atos foram praticados de forma pública, pacífica, contínua e com a convicção de que o Recorrido agia no exercício de direito próprio, sem oposição de terceiros (factos provados n.ºs 48 e 57), à exceção dos atos praticados pela Recorrente em 2023 e 2024.
Verifica-se, pois, inequivocamente o pressuposto da posse por parte do Requerente/Recorrido.
Quanto ao esbulho, entendendo-se este como o ato (ou conjunto de atos) por via do (s) qual (quais) o possuidor é privado total ou parcialmente da posse que detinha e da possibilidade de a continuar, também logrou o Requerente demonstrar tal pressuposto, face aos factos provados constantes dos pontos 62 a 97.
Como escreveu o Tribunal a quo na decisão que decretou a providência, «o esbulho também é de se considerar violento. Segue-se, neste ponto, a tese de que a violência para este efeito tanto pode ser exercida sobre a pessoa do possuidor como sobre a própria coisa, embora neste caso com a precisão que abaixo se mencionará.
Sendo o esbulho uma das formas através da quais se pode adquirir a posse, a sua qualificação como violento não pode deixar de resultar da aplicação do art. 1261º, do CC, pelo que há que ter em conta o disposto no art. 255º, do CCivil que integra na atuação violenta tanto aquela que se dirige diretamente à pessoa do declaratário (possuidor), como aquela que é feita através do ataque aos seus bens (cfr. António Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, IV Volume, 2001, pág. 45), embora neste último caso, a violência só releve se com ela se pretende intimidar, direta, ou indiretamente, o primitivo possuidor, limitando a sua capacidade de determinação.
No caso dos autos, o esbulho é feito na pendência de ação judicial em que se discute a propriedade de um dos limites atingidos, revelando assim uma completa indiferença para com os mecanismos de resolução de conflitos legalmente previstos num Estado de Direito como o nosso.
Há uma clara violência psicológica. Com a sua conduta a requerida claramente dá a entender que não lhe pesa uma eventual improcedência da sua pretensão em sede de recurso.
Violência acrescida pela natureza dos processos utilizados, derrube com máquinas de muros, em que nem sequer se evitou a destruição de veículos próximos, ou da horta existente.
Também a este propósito de relevante se tendo provado que a requerida apenas se deteve, porque o requerente, alertado da destruição do seu muro e da ocupação e escavação do seu prédio, se deslocou ao local e se colocou pessoalmente defronte das máquinas escavadoras que realizam tais operações intimando o seu operador a cessar esses atos.
E porque, para além disso, e como forma de tentar impedir essa ação da requerida, o requerente promoveu a colocação de viaturas automóveis e outros bens no limite do seu terreno que não foi objeto de escavação por parte da requerida.
Sendo que a requerida, através do administrador, continua a dar instruções aos trabalhadores de construção civil por si contratados para continuarem os trabalhos, mesmo quando o requerente se interpõe no percurso das máquinas para o interior do seu prédio ou no seu caminho se encontram bens e pessoas.
Tendo ordenado a continuação dos trabalhos e escavações, mesmo sabendo e vendo que os mesmos teriam que ser realizados nos locais em que o requerente fisicamente se encontrava.
Mais ainda se provando que os trabalhadores da requerida ou pessoas por si contratadas opõem-se e resistem às interpelações do requerente para que o abandonem, tendo inclusive, já ameaçado agredir o requerente.
Que se mantém constantemente no terreno, tendo já recorrido às forças policiais, por forma a tentar que a requerida cesse as suas condutas.
Tudo o que tem trazido constantemente inquieto, ansioso, nervoso e perturbado.
Considerando-se que, de tudo isto resulta claramente este intuito de intimidar direta, ou indiretamente, o primitivo possuidor, limitando a sua capacidade de determinação.»
Concluímos, assim, pela verificação de todos os pressupostos da restituição provisória de posse, coexistindo uma situação possessória, o esbulho e a violência.
Finalmente, importa ainda referir que a Recorrente, na conclusão EEE, sustenta que há manifesta desproporção entre a pretensão do recorrido e os danos que essa pretensão lhe causa a ela.
Com tal afirmação, parece pretender invocar o disposto no artigo 368º, nº2, do Código de Processo Civil, para evitar o decretamento da providência, norma nos termos da qual “a providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar”.
No entanto, tal alegação mostra-se inócua no caso, porquanto resulta do disposto no artigo 376º, nº1, do Código de Processo Civil, que o preceituado no nº2, do artigo 368º, daquele diploma, não é aplicável aos procedimentos nominados, como é o caso do presente procedimento cautelar de restituição provisória de posse.
Impõe-se, pois, negar provimento ao presente recurso, com a consequente manutenção da sentença recorrida.
Como a apelação foi julgada improcedente, mercê do princípio da causalidade, as custas serão da responsabilidade da Recorrente.