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ESCUSA
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
MASSAGEM
CLIENTELA
IMPARCIALIDADE
Sumário
I. O motivo invocado como fundamentador da escusa deve, pois, ser de tal modo relevante que, objetivamente, pelo lado não apenas do destinatário da decisão, mas também, do homem médio, possa ser entendido como suscetível de afetar, na aparência, a garantia da boa justiça, por poder ser visto externamente e adequado a afetar – gerar desconfiança – sobre a imparcialidade. II. Só circunstâncias de facto, concretas e definidas, que evidenciem que os valores da imparcialidade e da isenção do julgador correm perigo, é que justificam que se abra mão da regra do juiz natural, por tais factos se revelarem, objetivamente, denunciadores de que aquele juiz natural deixou de oferecer claras garantias de imparcialidade e de isenção. III. A circunstância de a Sra. Juíza de Direito ter frequentado – como cliente – tal como seu companheiro – o estabelecimento comercial em que o autor tem morada, não constitui motivo bastante para se poder considerar colocar-se, de forma séria e grave, em causa a imparcialidade do julgador, se nenhuma circunstância particular ou diferenciadora existe na relação havida entre a Sra. Juíza (ou entre o seu companheiro) e o estabelecimento, daquela que se reconduz à relação de qualquer frequentador ou cliente do espaço. IV. Tal como um qualquer Juiz acede à generalidade dos serviços prestados pelas mais diversas entidades (pense-se, por exemplo, em compras de supermercado, lojas, oficinas, etc.), não é essa circunstância que, por si só – e sem outro carater diferenciador – determinará alguma dúvida, séria e fundada, sobre a imparcialidade do julgador do processo em que vier a ter intervenção a entidade prestadora do correspondente serviço.
Texto Integral
Pedido de escusa
Processo nº. 1129/25.8YRLSB
4.ª Secção
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I. A Sra. Juíza de DireitoAA, a exercer funções no Juízo do Trabalho do Funchal, veio apresentar pedido de escusa de intervenção no processo n.º 3189/24.0T8FNC, ao abrigo do disposto no artigo 119.º do CPC, invocando, em suma, que:
- Foi autuado e distribuído ao Juízo onde exerce funções, o referido processo, instaurado por BB contra Chemistry, Unipessoal, Lda.;
- Os mencionados autos encontram-se conclusos para elaboração de despacho saneador;
- No decurso da elaboração deste verificou que o local de trabalho do Autor situa- se de frente à casa dos seus pais, com a denominação comercial “Fitcryology Center”, o qual, pelo menos em duas ocasiões, já frequentou para fazer uma massagem, julgando, inclusive, ter sido capaz de já ter sido atendida pelo Autor e acrescendo que, o seu companheiro, já frequentou o estabelecimento;
- Aquando da prolação do despacho para agendamento da audiência de partes e durante a mesma não se apercebeu da localização do estabelecimento, nem reconheceu o Autor, o que apenas verificou quando, em sede de saneador, analisou os articulados.
Considera que “a relação existente é susceptível de gerar (…) no cidadão para quem a justiça é dirigida, um sentimento de desconfiança” sobre a sua imparcialidade.
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II. Visa a requerente ser dispensada de intervir nos autos identificados, através do presente pedido de escusa.
Nos termos plasmados no n.º. 1 do artigo 119.º do CPC, o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos, no artigo 120.º do CPC e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.
O artigo 32.º, n.º 9, da Constituição da República proclama que “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”. Assim se consagra, como uma das garantias do processo, o princípio do juiz natural ou legal, cujo alcance é o de proibir a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para decidir um caso submetido a juízo, em ordem a assegurar uma decisão imparcial e justa.
Num Estado de Direito, a decisão jurídica de conflitos deve sempre fazer-se com observância de regras de independência e de imparcialidade, o que é uma exigência do direito de acesso aos tribunais, consignado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.
De todo o modo, podendo ocorrer situações desvirtuosas da observância de tais princípios, o legislador previu instrumentos ou mecanismos que garantem a imparcialidade e a isenção do juiz, também tutelados pela Constituição (cfr. artigos 203.º e 216.º), como pressuposto objetivo da sua perceção externa pela comunidade, onde se incluem os impedimentos, as suspeições, as recusas e as escusas.
A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.
Tal é sublinhado em inúmeros textos internacionais.
O TEDH – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de ..-..-.. (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de ..-..-.., (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).
Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.
O pedido de escusa terá por finalidade prevenir e excluir situações em que possa ser colocada em causa a imparcialidade do julgador, bem como, a sua honra e considerações profissionais.
Efetivamente, não se discute se o juiz irá ou não manter a sua imparcialidade, mas, visa-se, antes, a defesa de uma suspeita, ou seja, o de evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida sobre a sua imparcialidade.
Nesta linha, a Comissão para os Direitos Humanos das Nações Unidas, em abril de 2003, adotou a resolução 2003/43, com vista à observância pelos Estados-Membros dos Princípios de Bangalore para a Conduta Judicial.
Entre esses Princípios conta-se o da Imparcialidade, aí enunciado do seguinte modo: “A imparcialidade é essencial para o bom desempenho da função judicial. Aplica-se não apenas à própria decisão, mas também ao processo de decisão.”.
Na concretização de tal princípio tem sido considerado, em particular, que: “(…) 66. Um juiz deve estar disponível para decidir as questões submetidas ao tribunal. No entanto, para proteger os direitos dos litigantes e preservar a confiança do público na integridade do judiciário, haverá ocasiões em que o impedimento/escusa será necessário/a. Por outro lado, o impedimento/escusa frequente pode trazer desfavor público ao tribunal e ao juiz pessoalmente, e impor cargas excessivas aos colegas do juiz. Os litigantes podem ter a impressão de que podem escolher o juiz que decidirá o seu caso, o que seria indesejável. Um juiz deve, portanto, organizar seus assuntos pessoais e comerciais de forma a minimizar o potencial de conflito com os deveres judiciais. 67. O potencial para conflito de interesses surge quando os interesses pessoais do juiz (ou daqueles que lhe são próximos) conflituem com o seu dever de julgar imparcialmente. A imparcialidade judicial diz respeito à imparcialidade de facto e à imparcialidade na perceção de um observador razoável. Em questões judiciais o teste do conflito de interesses deve incluir tanto os conflitos reais entre os próprios interesses do juiz e o dever de julgamento imparcial, quanto às circunstâncias em que um observador razoável possa razoavelmente apreender um conflito (…)” (cfr. Comentário aos referidos Princípios de Bangalore para a Conduta Judicial, consultado em A Vida Privada do Magistrado – Contributos para uma Reflexão; CEJ, Lisboa, Março 2021, p. 29 e ss.).
Também, no Compromisso Ético dos Juízes Portugueses de 2009 (texto consultado em Ética e Deontologia Judiciária, Tomo I, CEJ, Lisboa, 2014, p. 403 e ss.), a imparcialidade é aí enunciada como “o atributo fundamental dos juízes e da função judicial, que visa garantir o direito de todos os cidadãos ao julgamento justo e equitativo”, implicando os seguintes princípios, também aí estabelecidos: “1. No exercício da função judicial, os juízes são imparciais, accionando os mecanismos de escusa nas situações que possam gerar dúvidas sobre a sua imparcialidade, observando as regras do processo que garantem a igualdade e o contraditório e repudiando todas as formas de discriminação. 2. Os juízes rejeitam a participação em actividades extrajudiciais que ponham em causa a sua imparcialidade e que contendam ou possam vir a contender com o exercício da função ou que condicionem a confiança do cidadão na sua independência e na imparcialidade da sua decisão.”.
No Comentário aí desenvolvido quanto a tal princípio é expendido, nomeadamente, que: “3. O juiz é livre de participar em qualquer actividade cívica desde que a mesma não seja susceptível de comprometer a sua imparcialidade ou de prejudicar o exercício da actividade jurisdicional. Em especial, o juiz abstém-se de aderir a organizações colectivas e de participar em debates públicos, sempre que, segundo a apreciação de uma pessoa razoável, bem informada, objectiva e de boa fé, isso possa perturbar a imagem de imparcialidade ou independência relativamente a questões susceptíveis de vir a ser submetidas aos tribunais. O juiz não integra organizações que exijam aos aderentes a prestação de promessas de fidelidade ou que, pelo seu secretismo, não assegurem a plena transparência sobre a participação dos associados”. O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de Justiça.
Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.
Todavia, o juiz natural, consagrado na Constituição da República Portuguesa, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves. E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da concreta avaliação das circunstâncias invocadas. “Devem ser criteriosas as possibilidades de afastar o juiz natural, quer como judex inhabilis, quer como judex suspectus conquanto, pela sua importância e dignidade, a regra do juiz natural está expressamente consagrada no art.º 6.º, § 1.º, da C.E.D.H., enquanto elemento central da noção de fair trail, e só pode ser derrogada, em casos excecionais, para dar satisfação bastante e adequada, em conformação de direitos, a outros princípios de relevo semelhante, como sejam os da independência dos tribunais e da imparcialidade dos juízes. Impõe-se, pela sua solenidade, importância e valor basilar, que a derrogação do princípio do juiz natural e o questionamento da sua idoneidade ou imparcialidade apenas possam ser postos em crise – como a lei exige – ante motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, não podendo, por isso, ser usado de forma desadequada, enviesada ou como expediente processual de retardamento ou entorpecimento do processo, ou como forma de diminuição da posição do julgador” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20-03-2024, Pº 2897/19.1T9VFR-A.P1, rel. JOSÉ QUARESMA).
Com efeito, os motivos sérios e válidos atinentes à imparcialidade de um juiz terão de ser apreciados de um ponto de vista subjetivo e objetivo.
No n.º 1 do artigo 120.º do CPC consagram-se diversas situações em que ocorre motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, nomeadamente:
a) Se existir parentesco ou afinidade, não compreendidos no artigo 115.º, em linha reta ou até ao 4.º grau da linha colateral, entre o juiz ou o seu cônjuge e alguma das partes ou pessoa que tenha, em relação ao objeto da causa, interesse que lhe permitisse ser nela parte principal;
b) Se houver causa em que seja parte o juiz ou o seu cônjuge ou unido de facto ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta e alguma das partes for juiz nessa causa;
c) Se houver, ou tiver havido nos três anos antecedentes, qualquer causa, não compreendida na alínea g) do n.º 1 do artigo 115.º, entre alguma das partes ou o seu cônjuge e o juiz ou seu cônjuge ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta;
d) Se o juiz ou o seu cônjuge, ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta, for credor ou devedor de alguma das partes, ou tiver interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a uma das partes;
e) Se o juiz for protutor, herdeiro presumido, donatário ou patrão de alguma das partes, ou membro da direção ou administração de qualquer pessoa coletiva parte na causa;
f) Se o juiz tiver recebido dádivas antes ou depois de instaurado o processo e por causa dele, ou se tiver fornecido meios para as despesas do processo;
g) Se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários.
De todo o modo, o magistrado tem de traduzir os escrúpulos ou as razões de consciência em factos concretos e positivos, cujo peso e procedência possam ser apreciados pelo presidente do tribunal (assim, Alberto dos Reis; Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I, p. 436).
O pedido será apresentado antes de proferido o primeiro despacho ou antes da primeira intervenção no processo, se esta for anterior a qualquer despacho.
Quando forem supervenientes os factos que justificam o pedido ou o conhecimento deles pelo juiz, a escusa será solicitada antes do primeiro despacho ou intervenção no processo, posterior a esse conhecimento (n.º 2 do artigo 119.º do CPC).
Definindo a lei que o Juiz não é livre de, espontaneamente e sem motivo, declarar a sua potencial desconfiança em relação ao conflito de interesses a dirimir na ação, o legislador logo se preocupou em identificar os casos em que razões de ética jurídica impõem que ele não deva intervir em determinada causa e condensadas no princípio de que não pode ser levantada contra o Juiz da causa a mais ténue desconfiança orientada no sentido de que, o juízo que vai fazer sobre a questão posta pelas partes, poderá estar envolto em interesses sombrios e difusos e, por isso, passível de estar eivado de imperfeições que condicionem a sua liberdade de decisão.
Ou seja: Para que o julgador seja dispensado de intervir no processo – do qual é o natural juiz – é imperioso que se verifique um conjunto de circunstâncias, concretamente aferidas, que, ante a sua gravidade e seriedade, sejam perentórias no sentido de se mostrarem adequadas e gerar desconfiança sobre a imparcialidade e isenção do julgador, só neste caso se podendo temer que, a manutenção da sua intervenção no processo, corra o risco de se considerar suspeita. “Para tanto, foi preciso estabelecer um regime legal que fizesse o necessário equilíbrio entre um possível posicionamento de puro absentismo - declarar a sua parcialidade para se eximir ao julgamento de um intrincado litígio (era este um sistema possível nas Ordenações, porquanto permitia que o juiz fosse afastado do pleito desde que, mesmo sem adiantar qualquer razão, mediante juramento asseverasse a sua suspeição) - e a situação, deveras desprestigiante, de o Juiz ter de esperar que algum dos litigantes viesse trazer este dado ao Tribunal, circunstancialismo que ele já havia conjecturado e ao qual nunca poderia deixar de dar o seu assentimento” (assim, a decisão do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2004, Pº 329/04-1, em http://www.dgsi.pt).
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III. Importa referir que, no caso em apreço, a Sra. Juíza vem consignar que constatou que o local de trabalho do autor do processo que tem a seu cargo se situa à frente da casa dos seus pais, morada comercial que já frequentou, em pelo menos 2 ocasiões para fazer massagens, sendo que, o seu companheiro, já frequentou o estabelecimento;
A jurisprudência tem assinalado, de forma constante e consistente, que para sustentar a escusa do juiz é necessário verificar:
- Se a intervenção do juiz no processo em causa corre o risco de ser considerada suspeita;
- Se essa suspeita ocorre por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, “para o que deverão ser indicados factos objetivos suscetíveis de preencher tais requisitos, a analisar e ponderar segundo as circunstâncias de cada caso concreto, de acordo com as regras da experiência comum e com “bom senso”” (assim, o Acórdão do STJ de 13-04-2023, Pº 16/23.9YFLSB-A, rel. MARIA DO CARMO SILVA DIAS).
E, tem-se também assinalado que “a dimensão subjetiva não basta à afirmação da garantia. Releva, também, e cada vez mais com acrescido reforço, uma perspectiva objetiva, que é consequencial à intervenção no direito processual, com o suporte de um direito fundamental, de um conceito que não era, por tradição, muito chegado à cultura continental: a aparência” (cfr. Acórdão do STJ de 13-04-2005, Pº 05P1138, rel. HENRIQUES GASPAR).
Conforme se concluiu neste aresto: “A gravidade e a seriedade do motivo hão-de revelar-se, assim, por modo prospectivo e externo, e de tal sorte que num interessado - ou, mais rigorosamente, num homem médio colocado na posição do destinatário da decisão possam razoavelmente suscitar-se dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão. As aparências são, neste contexto, inteiramente de considerar, quando o motivo invocado possa, em juízo de razoabilidade, ser considerado fortemente consistente («sério» e grave») para impor a prevenção.”. O motivo invocado como fundamentador da escusa deve, pois, ser de tal modo relevante que, objetivamente, pelo lado não apenas do destinatário da decisão, mas também, do homem médio, possa ser entendido como suscetível de afetar, na aparência, a garantia da boa justiça, por poder ser visto externamente e adequado a afetar – gerar desconfiança – sobre a imparcialidade. “O prisma a que se tem de atender para escusa do juiz não é o particular ponto de vista do requerente, mas à situação objectiva que possa derivar de uma determinada posição do juiz em relação ao caso concreto ou a determinado sujeito ou interveniente processual, em termos de existir um risco real de não reconhecimento público da sua imparcialidade”.
Em suma: “O critério essencial a apreciar no pedido de escusa, “na perspetiva da “imparcialidade objetiva” em que as aparências são de considerar, é o de que haja um motivo que, a avaliar de forma exigente e em função das circunstâncias objetivas do caso, em juízo de razoabilidade na consideração do “homem médio” que se revê num poder judicial imparcial e independente, seja tido como sério e grave para impor a prevenção do perigo de que a intervenção do juiz seja encarada com desconfiança e suspeita, pelo público em geral e, particularmente, pelos destinatários das decisões” (assim, o Acórdão do STJ de 23-11-2023, Pº 16017/21.9T8LSB-C.L1-A.S1, rel. JORGE GONÇALVES). Só circunstâncias de facto, concretas e definidas, que evidenciem que os valores da imparcialidade e da isenção do julgador correm perigo, é que justificam que se abra mão da regra do juiz natural, por tais factos se revelarem, objetivamente, denunciadores de que aquele juiz natural deixou de oferecer claras garantias de imparcialidade e deisenção (nesta linha, sem preocupações de exaustão, são de referenciar os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20-10-2010, Pº 140/10.8YFLSB, rel. SANTOS CABRAL, de 28-11-2019, Pº 186/17.5GCTVD.L1-A.S1, rel. FRANCISCO CAETANO, de 15-02-2023, Pº 16/20.0GALLE.E1-A.S1, rel. ANA BARATA BRITO, de 01-03-2023, Pº 122/13.8TELSB-BQ.L1-A.S1, rel. ERNESTO VAZ PEREIRA e de 04-05-2023, Pº 13/23.4YFLSB-A, rel. ERNESTO VAZ PEREIRA, do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-01-2018, Pº 66/16.1T9ACB-A.C1, rel. VASQUES OSÓRIO, do Tribunal da Relação de Évora de 07-02-2017, Pº 175/16.7YREVR, rel. MARIA LEONOR BOTELHO, do Tribunal da Relação de Guimarães de 16-03-2009, Pº 438/07.2PBVCT-L.G1, rel. CRUZ BUCHO, de 19-11-2018, Pº 690/17.5PAVNF.G1, rel. JORGE BISPO e de 27-01-2020, Pº 39/08.8PBBRG-K.G1, rel. PAULO SERAFIM).
Pouco importa a impressão subjectiva das partes sobre se o juiz é, ou se tornou, parcial; o que importa averiguar é se tal se extrai com objectividade de factos concretos, inequívocos e concludentes, pois que, conforme se disse no Acórdão do TRE de 13-08-2014, Pº 874/12.2TBSLV-E.E1, rel. CANELAS BRÁS) “impressões e opiniões, todos as podem ter, e cada um fica com as suas”.
Conforme se referiu na decisão individual do Presidente do Tribunal da Relação do Porto de 23-01-2020 (Pº 9452/18.1T8PRT-A, rel. ATAÍDE DAS NEVES, inédito): “Não bastará para tanto a verificação de uma circunstância subjectivamente impressiva para o julgador ou para o destinatário da decisão, assim como não bastará a existência de qualquer preconceito, em si vazio de sentido atendível, que de alguma forma possa induzir àquele perigo. Importará, pois, que os motivos sejam em si inequivocamente susceptíveis de, aos olhos do cidadão médio, que representa o tipo medianamente instruído e não preconceituoso, assim como dotado de um nível médio de capacidade crítica, serem interpretados e entendidos como susceptíveis de afectar, na aparência, a garantia de saudável distanciamento, isenção e imparcialidade do julgador e, assim, afectar a boa imagem dos tribunais e da administração da justiça, numa ideia simples - que tais factos possam obiectivamente gerar perigo de parcialidade e desconfiança”.
Ora, neste sentido, nenhuma das circunstâncias referidas pela Sra. Juíza releva para afastar a regra da determinação – aleatória – do juiz natural.
Por um lado, a circunstância de a Sra. Juíza ter frequentado, por 2 vezes, o estabelecimento onde se encontra o domicílio do autor não constitui motivo, sério e grave, de se poder suspeitar, objetivamente, de falta de imparcialidade da Sra. Juíza, relativamente à lide do processo que lhe foi distribuído.
Em situação muito semelhante àquela que se mostra apresentada pensamos serem inteiramente válidas as considerações expostas no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-04-2023 (Pº 832/23.1YRLSB-9, rel. BRÁULIO MARTINS). Conforme aí se expendeu: “(…) Estamos (…), essencialmente, no âmbito das “circunstâncias ou contingências de relação” com o interessado (arguido) B, do qual a requerente é adepta (…). Antes de mais, devemos afirmar com clareza e de forma assertiva que as prosaicas e comezinhas paixões do “ludopédio” (que também assaltam o ora relator, reconhece-se) não se alcandoram, nem podem alcandorar, ao elevado patamar da consciência ética em que se insere a decisão jurisdicional (…). Além disso, se esta inclinação afetiva clubística tivesse a potencialidade de abalar a primordial imagem de imparcialidade de que goza o julgador perante os intervenientes no processo e perante a comunidade em geral, então, também a preferência afetiva clubística rival em relação aos intervenientes no processo levaria ao mesmo desfecho: ou seja, até um simpatizante (nem necessita de ser sócio) do C ou do D, por exemplo, não teria condições objetivas de imparcialidade para julgar os autos em que se deduziu o incidente, no qual o arguido é o B, uma vez que, muito provavelmente, nutre forte antipatia pelo clube rival. E sendo o gosto pelo futebol e a paixão clubística algo de tão disseminado entre nós, mesmo entre os juízes, seria, provavelmente, difícil encontrar um julgador futebolisticamente assético. Igualmente, se assim fosse, um juiz que perfilhe uma ideologia política de direita não estaria em condições de julgar uma causa em que interviesse, um partido do quadrante político de esquerda, ou um outro que fosse cristão católico não estaria em condições de julgar um conflito entre a igreja de Roma e a comunidade muçulmana ou entre aquela igreja e um particular ateu. (…)”.
Igualmente, na já citada decisão individual do Presidente do Tribunal da Relação do Porto de 23-01-2020 (Pº 9452/18.1T8PRT-A, rel. ATAÍDE DAS NEVES) se enfrentou, de forma magistral, a temática em apreço, tecendo-se, então, as seguintes considerações que, em tudo, se mostram de aplicar à situação invocada pelo escusante e com as quais concordamos, pelo que, as perfilhamos (sendo de realçar os trechos infra evidenciados e sublinhados): “(…) A integridade de um Magistrado não se pode considerar abalada por circunstâncias desta natureza, não pode resultar da uma mera aparência, uma aparência epidérmica, de superfície, que apenas num longinquamente formal e puramente teórico e preconceituoso, quiçá amedrontado, pode ter alguma leitura. O Magistrado é por natureza e por vocação um cumpridor de um múnus muito próprio, sendo por princípio e também por experiência, detentor de uma capacidade muito específica, a de dirimir os conflitos sociais, de forma distanciada sem ser fria, de forma serena sem deixar de ser viva, de forma discreta sem deixar de ser atenta, e de forma isenta e imparcial, como equidistância, com prudência e com bom senso. São todos estes atributos aqueles que o Senhor Desembargador (…), embora pedindo escusa - e bem o fazendo porque adepto da absoluta transparência, proclama para a sua carreira, como Juiz íntegro e imparcial que sempre foi e que (…) e estamos nós certos de que assim será, também neste pleito não corre perigo de deixar de ser. (…) É isto que o cidadão médio, atento, crítico, inteligente e informado, sem preconceitos espúrios, seguramente compreende, a especificidade ético-funcional de um Juiz, a sua capacidade e profundidade de carácter, estruturante da sua missão, a limpeza de alma que lhe confere o são distanciamento pessoal dos interesses cuja ponderação lhe é solicitada, uma postura que, mais do que uma forma de estar, é uma forma de ser. É neste modo de ser da Magistratura e neste modo de estar dos Magistrados que o cidadão médio acredita, não se deixando impregnar e inquinar na sua sensibilidade e na sua cidadania por fenómenos absolutamente excepcionais, que eventualmente - e sublinhamos eventualmente - possa tocar cada uma das classes profissionais, sem excluir, por princípio, a Magistratura. (…) Ou seja, de todo o circunstancialismo objectivo exposto não é possível concluir, de minimis, a verificação de motivo ponderoso, sério e grave, que de alguma forma possa inquinar a imagem de imparcialidade e isenção do Senhor Juiz, também não resultando minimamente evidenciado qualquer estado de dúvida aceitável, que possa criar mácula e forte verosimilhança de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz. (…) O Juiz é por natureza um decisor íntegro, imparcial e isento, só existindo perigo de o deixar de ser quando se verificar motivo ponderoso, sério e grave que coloque em perigo tal carapaça ou robustez. E esse motivo não se verifica pelas circunstâncias aduzidas, estamos disso seguros, assim no-lo informam os ditames e as regras da experiência comum e o sentido de transparência da administração da justiça, inexistindo o perigo de favorecimento de uma das partes em detrimento da outra. Diremos, a Imparcialidade do juiz, mais do que um seu dever ético-funcional, é um direito do cidadão, garantido, como acima referimos, pela lei, pela Constituição e pala Convenção Europeia do Direitos Humanos. Assim como a independência do poder judicial também é um direito dos cidadãos e não uma mera prerrogativa dos Juízes, assim o afirmou Montesquieu aquando da concepção do princípio ou Teoria da Separação de Poderes. E se não pode existir Estado de Direito sem separação de poderes e independência do Poder Judicial, também o mesmo se pode afirmar se não existir um poder Judicial estruturalmente isento e imparcial. O Juiz só é independente porque é por natureza imparcial, nunca podendo descurar destes atributos que constituem o seu ADN e a sua missão tão importante nas sociedades actuais em que tantos interesses difusos se movem, quantas vezes de forma sibilina, a que o Juiz não pode deixar de estar atento e preparado para dar a resposta legalmente adequada. Concluimos, pois, que as circunstâncias objectivas acima identificadas não constituem, repetimos, motivo ponderoso, sério e grave, para que se possa entender que existe qualquer verosimilhança de quebra de imparcialidade ou isenção do Senhor Desembargador para julgar a causa que lhe foi “naturalmente” distribuída (…)”.
Transpondo estas considerações para a situação em apreço, verifica-se que, a circunstância de a Sra. Juíza de Direito ter frequentado – como cliente – tal como seu companheiro – o estabelecimento comercial em que o autor tem morada, não constitui motivo bastante para se poder considerar colocar-se, de forma séria e grave, em causa a imparcialidade do julgador.
De facto, importa evidenciar que, nenhuma circunstância particular ou diferenciadora existe na relação havida entre a Sra. Juíza (ou entre o seu companheiro) e o estabelecimento, daquela que se reconduz à relação de qualquer frequentador ou cliente do espaço.
Por outro lado, a referida frequência ou utilização, circunstanciada ou pontual, foi determinada, certamente, pela necessidade de obter o serviço de massagem ali executado.
Tal como um qualquer Juiz acede à generalidade dos serviços prestados pelas mais diversas entidades (pense-se, por exemplo, em compras de supermercado, lojas, oficinas, etc.), não é essa circunstância que, por si só – e sem outro carater diferenciador – determinará alguma dúvida, séria e fundada, sobre a imparcialidade do julgador do processo em que vier a ter intervenção a entidade prestadora do correspondente serviço.
As circunstâncias aludidas pela Sra. Juíza não se afiguram, pois, de molde a constituir, sob qualquer ponto de vista, um motivo sério e grave, que possa fazer perigar a imparcialidade do julgador.
Os pedidos de escusa pressupõem situações excecionais em que pode questionar-se sobre a imparcialidade devida ao julgador, o que, em face do referido, entendemos não se patentear no caso.
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IV. Pelo exposto, desatende-se a pretensão de escusa em apreço formulada pela Sra. Juíza de Direito AA.
Sem custas.
Notifique.