I – A medida de acolhimento residencial, como da sua própria designação resulta e decorre da filosofia da mesma, não assume a menor vertente punitiva, não é uma medida de detenção, sendo antes, e claramente, uma solução / via de promoção de direitos e de proteção de perigo, destinada a salvaguardar a criança e / ou jovem de quadros que sejam e se revelem absolutamente intoleráveis / insustentáveis.
II - Nessa medida, por princípio, associar tal a retrato de prisão ilegal, de privação ostensivamente violadora da liberdade, é ideia a operar em casos de absoluta exceção, mostrando-se temerária a utilização deste expediente para demonstrar o mero desacordo / desalinho quanto ao decidido e como via de reação ante incúria / descuido / desatenção relativamente ao modo e tempestividade de manifestação processual.
III - O habeas corpus não é a via para sindicar o acerto de despachos / decisões e, muito menos, o caminho para ultrapassar / superar a não reação atempada relativamente àqueles.
Acordam em Audiência na 3ª Secção (criminal) do Supremo Tribunal de Justiça
I. Relatório
1. AA e BB (adiante Requerentes), pais dos menores CC e DD1 atualmente sujeitos a medida de acolhimento residencial na instituição 1, vêm requerer ao Exmo. Senhor Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, através de Ilustre Advogado constituído, a providência de habeas corpus, ao abrigo do estatuído no artigo 55º, alínea d) da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto2, invocando para tanto: (transcrição3)
1- Por despacho de 12.12.2024 foi declarada aberta a instrução no processo supre identificado.
2- Em 19.12.2024 foi obtido, em sede de conferência de pais, um acordo de promoção e proteção, devidamente homologado por sentença, de apoio junto dos pais. artigos 35º, nº 1 alínea a), 55º e 113º da Lai de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo ( LPCJP), aprovada pala lei 147/99, de 1 de Setembro.
3- Por, aliás, Douta promoção do Digníssimo Senhor Procurador da República de 14.02.2025, foi sugerida a alteração da medida em vigor, por outra, mais gravosa – de afastamento dos menores dos seus pais e demais família alargada –, de acolhimento residencial. (artigo 35º 1º f) da LPCJP)
4- Por, aliás, Douto despacho judicial da mesma data, do Exmo. Sr. Juiz 1 do Tribunal de Família e menores do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, foi, a medida que estava acordada, substituída pela de acolhimento residencial.
Em consequência,
5- as crianças foram retiradas da guarda dos seus pais, em Localização 1, e entregues à guarda de uma instituição de acolhimento em Localização 2, designada por “1”.
6- Em 26.02.2025, o digníssimo Sr. Procurador da Républica, promoveu o agendamento de uma conferência de pais em vista à atualização do acordo.
7- Até ao dia de hoje, 30.10.2025, essa conferência nunca se realizou, outrossim os pais nunca manifestaram concordar com a medida cautelar provisória.
8- Por despacho judicial de 28.02.2025, foi ordenado o seguinte: decorridos 2 meses solicite informações atualizadas
9- Por despacho de 11.06.2025, foi ordenada a notificação dos menores e dos pais para se pronunciarem nos termos do disposto dos artigos 84º e 85º da LPCJP
10- As crianças, não têm patronos nomeados, consequentemente não foram notificadas e não se pronunciaram; a mãe não tinha à data advogado constituído, desconhece-se se foi notificada e não consta que se tenha pronunciado, o pai tinha advogado constituído sendo que, desconhece-se se foi notificado, sendo certo que da consulta dos autos em suporte de papel não resulta essa informação, outrossim qualquer pronúncia do mesmo.
11- Em 13.06.2025 dá entrada nos autos um ( mais um) relatório da EMAT.
12- Em 03.07.2025, por aliás, douto despacho judicial, foi mantida a media provisória referida em n.4, supra.
13-Desde a sua implantação em 14.02.2025 já passaram 8 meses e 15 dias.
14-Oito meses e meio em que aos pais e filhos só é consentido estar juntos 1h/dia em 3 dias por semana.
(…)
21-O prazo legal de 4 meses de duração da instrução está, clara e largamente, ultrapassado ( ponto 1 e artigos 106ºm n.º 1 e 109º LPCJP).
22-As crianças, nunca foram ouvidas (art.º 109ºLPCJP)
23- Os princípios orientadores, previstos nas alíneas 1 a); e) f) g); h); i) e j), encontram-se claramente violados, bastando confrontá-los com os factos descritos nos pontos 3, 5, 6, 8, 11, 13, e 15.
24- A medida cautelar de acolhimento residencial dura à mais de 6 meses, em clara violação do disposto no artigo 37º, nº 3 e desde a sua revisão sem audição dos menores e dos pais, decorreram mais de e meses ( quase 4 a 03.11.2025, ou seja dentro de 3 dias, segunda-feira próxima ( factos alegados nos pontos 13 e 14).1
25-Não foram respeitadas, para além do sobredito, as estipulações do dispostas nos artigos 84º, porque as crianças não foram ouvidas e não têm patrono nomeado, 85º, porque desde o agravamento da medida a mãe ( que não tem advogado) não foi ouvida, nem foi possível comprovar a notificação formal dos pais para se pronunciarem, conforme alegado no ponto 11
26-O que claudica o direito de pais e crianças exercerem de foram cabal o genuíno de consagrado direito de contraditório, previsto no artigo 104º da LPCJP.
27-Apesar da promoção para tentativa de obtenção de acordo da medida que vigora e cujo prazo de duração está duplamente ultrapassado, esta nunca se realizou. ( artigo 104º LPCJP)
28- O que viola de facto, ostensiva e ilegalmente o direito de contraditório ( artigo 103, nº 3 da LPCJP)
29- Não há qualquer possibilidade de os pais e os menores recorrerem da medida ilegal, desde logo, porque ela vigora há mais tempo do que o legalmente permitido sem que o processo avence para debate. (artigo 123º da LPCJP).
(…)
30-Está ultrapassado o prazo legal de 4 meses para a manutenção da fase de instrução;
31- Está ultrapassado em, praticamente, um mês, op prazo legal da duração da medida de acolhimento residencial renovada em 03.07.2025.
32-Está ultrapassado o prazo máximo de seis meses de duração da medida provisória e cautelar, aliás,
33-Que, que depois de fixada sem contraditório e sem acordo, sem sequer ter sido assegurado a audição das crianças e dos pais,
34-Foi renovada, em Julho de 2025 nas mesmas condições, as quais se matem, até ao dia de apresentação deste articulado.
35- Está, por isso, o processo parado, sem possibilidade de contraditório e sem uma decisão judicial que possa permitir o legitimo direito de recurso.
36- A violação dos direitos fundamentais do CC e da DD, que se traduz pela limitação da liberdade de movimentos, da expetativa legitima de viverem com os pais naturais e demais família alargada, através do afastamento forçado dos progenitores, do que seria a normalidade de vida e a manifesta vontade de pais e filhos de estarem juntos, com base em procedimentos ( ou falta deles) em violação ostensiva e atual violação do princípio da legalidade,
37-Justificam a subsunção deste pedido à apreciação deste alto Tribunal.
2. Foi prestada informação, com base no que se consigna no artigo 223º, nº 1 – parte final – do CPPenal, notando sobre a situação relativa às crianças, filhas dos Requerentes, onde consta: (transcrição)
(…)
O douto requerimento é destituído de fundamento e sustentado em lapso de apreensão do conteúdo da causa.
Recorda-se:
a) Aberta a instrução a 11/12/2024, foi firmado acordo de protecção em 19 de Dezembro de 2024 e a medida foi a de apoio junto dos pais, com a duração de um ano.
b) A 14 de Fevereiro de 2025, recebida notícia de instabilidade emocional e violência, foi revista e alterada a medida, aplicando-se em substituição da [então] «actual, a medida de acolhimento residencial, mantendo-se os deveres e a Ex.a técnica”.
c) A medida de acolhimento, após interpelação para audição (art. 84ºe 85º LPPCJ) foi mantida, por despacho de 3 de Julho de 2025.
d) Até finais de Outubro de 2025 os progenitores omitiram pronunciar-se ou manifestar intenção de serem ouvidos.
Ao invés do que alegam os progenitores, não foi excedido prazo para instrução nem prazo de duração de medida cautelar provisória. Não foi aplicada, em momento algum, medida cautelar. Não existiu obstáculo a contraditório, os pais foram expressamente convocados a manifestar-se antes da decisão de 3 de Julho (manutenção da medida) e sempre o puderam fazer a qualquer momento.
3. O processo encontra-se instruído com a documentação pertinente4.
4. Convocada a secção criminal, notificado o Digno Mº Pº e o Ilustre Mandatário dos Requerentes, teve lugar a audiência, após o que o tribunal reuniu e deliberou, no respeito pelo consignado no artigo 223º, nºs 2 e 3 do CPPenal, o que fez nos termos que se seguem.
*
II. Fundamentação
A. Dos factos
Com relevância para a decisão do pedido de habeas corpus, extraem-se dos autos os seguintes factos:
i) Em 10 de dezembro de 2024, pelo Digno MºPº foi suscitada a intervenção judicial, relativamente às crianças CC e DD, ao abrigo do estipulado nos artigos 3º, nºs 1 e 2, alínea g) e 11º, alínea a) da LPCJP, por se considerar que aqueles estavam sujeitos a vivência que os afetava gravemente na sua formação pessoal, desenvolvimento, educação e estado emocional5;
ii) Sequentemente, e por despacho de 12 de dezembro de 2024, foi declarada aberta a instrução e designado o dia 19 de dezembro para audição dos progenitores das crianças6.
iii) Após tal diligência, foi proferida sentença, nos seguintes termos:
«Nos presentes autos de promoção e protecção relativos aos menores, CC e DD, nascidos a D-M-2016 e D-M-2021, respetivamente e filhos de AA e BB, nos termos do artº 113º nº2, 3º, 55º, 56º, 59º, nº 3, 35º, al. a) e 39º, todos da Lei 147/99, de 1 de Setembro, homologo o acordo de promoção e protecção que antecede, sendo que a medida terá a duração de 01 (um) ano e será revista ao final do 5.º e 11.º meses.
iv) Em 13 de fevereiro de 2025 foi trazido aos autos, pelo Instituto da Segurança Social, um relatório, dando nota de informações como (…) No decorrer da vista domiciliária foi possível aferir, junto da comunidade, que a progenitora não trabalhava, mas também era raro se encontrar na habitação (…) foi rececionado contacto telefónico para transmitirem situações ocorridas no seio familiar (…) a progenitora não trabalhava, frequentava cafés, ouviam-se muitas discussões ao início da manhã e ao final do dia, e em alguns dias, durante a madrugada (…) vizinhos já tinham falado com o casal derivado a não conseguirem descansar com o barulho, mas foram ameaçados de “porrada”. Ouvia-se o menino a chorar e que a menina era mais protegida (…) foi rececionado áudio gravado em que é notório o choro de desespero do menino e berros da progenitora, evidenciando possível situação de terror verbal e/ou físico (…) Em entrevista realizada à progenitora, no dia 13-02-2025, esta voltou a afirmar ser pessoa emocionalmente instável, desequilibrada, mas que “nunca me permiti ajudar”, por “medo de tocar na cicatriz” (sic.), pese embora tenha consciência que necessita de ajuda. Admitiu que o seu pai já lhe tinha dito que esta não tinha paciência para os filhos, tendo esta justificado que não é por falta de paciência, mas sim por irritabilidade. Questionou-se a mesma se, derivado à sua irritabilidade, já tinha sido agressiva com os filhos, tendo esta admitido que já foi agressiva verbalmente (…) Admitiu estar a ter “uma conduta errante” e ter “uma dinâmica familiar que me é negada”;
v) Nessa sequência, em 14 de fevereiro de 2025, o Digno Mº Pº, requereu (…) nos termos dos arts. 37º, nº 1, 91º, nº 1 e 92º, nº 1, da LPCJP: (…) Se aplique, a título cautelar, a medida de acolhimento residencial em benefício das crianças CC e DD, nascidas em D.M.2016 e D.M.2021 (…) se emitam mandados para condução à instituição disponível “Berço” (…)7;
vi) Por despacho proferido nesse mesmo dia foi decidido (…) A favor de CC e de DD foi aplicada a medida de apoio junto dos pais. Estes mantêm trato violento entre eles e junto das crianças, ameaçam os vizinhos que alertam para o exagero de barulho das discussões e choro dos filhos, os menores sofrem da proximidade da violência e são vítimas desta, sofrendo, sem tratamento, a progenitora de instabilidade emocional ostensiva. Revemos a medida, aplicando em substituição da actual a medida de acolhimento residencial (…)8.
vii) Através de ofício datado de 14 de fevereiro de 2025 foi notificada a progenitora das crianças do despacho em vi) referido9;
viii) Por ofício de notificação com a mesma data, foi notificado o Ilustre Mandatário do progenitor das crianças, ao tempo – Dr. EE -, do mesmo despacho10;
ix) Mediante ofício de notificação datado de 12 de junho de 2025, foi notificado o Ilustre Mandatário do progenitor das crianças, ao tempo – Dr. EE - (…) para, no prazo de 10 dias dizer o que tiver por conveniente, nos termos do art.º 84º/85º da Lei nº 147/99, sobre a aplicação de revisão ou cessação de medidas de promoção e proteção11;
x) Igualmente, e por ofício da mesma data e para as mesmas finalidades, foi notificada a progenitora das crianças12;
xi) Nada foi dito na sequência de todas estas notificações (vii, viii, ix e x);
xii) Por despacho proferido em 3 de julho de 2025, e na sequência de promoção do Digno Mº Pº foi decidido (…) Ausente justificação para encurtamento da duração da medida, mantemos esta nos termos já definidos, com o proposto alargamento de contactos13.
xiii) Este despacho foi notificado ao Ilustre Mandatário do progenitor das crianças, ao tempo – Dr. EE -, bem como à progenitora, por via de ofícios de notificação datados de 4 de julho de 202514;
xiv) Nada foi dito em sequência;
xv) Em 24 de outubro de 2025, vieram os Requerentes juntar procuração forense ao Ilustre Mandatário subscritor da presente providência15;
xvi) Por requerimento de 31 de outubro de 2025, e após consulta dos autos – (…) No dia de hoje, através de mandatário consultaram estes autos (…) -, através do seu novo Ilustre Mandatário vieram os Requerentes suscitar (…) incidente de suspeição e por provado declarar-se procedente, afastando-se a gestora do caso e a sua supervisora que com ela assina relatórios da gestão do processo na EMAT16;
xvii) Igualmente em 31 de outubro de 2025, vieram aos autos os avós e tia das crianças juntar procuração conferindo poderes forenses ao mesmo Ilustre Mandatário dos progenitores daquelas17;
xviii) Também nessa data, o Ilustre Mandatário dos progenitores das crianças veio requerer a nomeação de patrono às mesmas18;
xix) O presente pedido de Habeas Corpus também foi apresentado em 31 de outubro de 2025.
B. Questões a decidir
Versando sobre o requerimento apresentado, cumpre apurar sobre está aqui em causa algum quadro de prisão ilegal, como pretendem os Requerentes.
C. O direito
Visitando o artigo 31º, nº 1, da CRP19 de imediato se pode retirar a consagração do instituto do habeas corpus como via de reação ao abuso de poder advindo de um aprisionamento ilegal / aprisionamento sem respaldo na lei.
Este mecanismo, bebendo, ao que se pensa, do Habeas Corpus Act de 167920 aprovado pelo Rei Carlos II, destinado a acautelar / sufragar a proteção da liberdade pessoal perante detenções abusivas do rei, apelando à apreciação / ponderação da justeza / bondade da captura por um juiz, teve acolhimento claro no ordenamento jurídico português através da Constituição de 21 de agosto de 191121.
A providência de habeas corpus veste, assim, a ideia de remédio excecional, expedito e urgente22 em sede de proteção e salvaguarda da liberdade individual, destinando-se a superar / ultrapassar, de pronto, situações de prisão arbitrária ou ilegal ou de privação ilegítima da liberdade de um cidadão, não podendo nem devendo funcionar ou ser utilizada como meio de reapreciar / questionar / abalar / revogar decisões judiciais devidamente proferidas, exceto quando em evidência / clareza / irrefutável hipótese extrema de abuso de direito ou erro grosseiro e clamoroso na aplicação do direito23.
E, nessa senda, ao que se crê, lançar mão deste expediente só se assume como aceitável em casos de indiscutível ou flagrante ilegalidade que, por assim o serem, permitem e impõem uma tomada de decisão célere / imediata / lesta, sob pena de, não o sendo, haver o real perigo de tal decisão, apressada por imperativo legal, se volver, ela mesma, em fonte de ilegalidades grosseiras, com a agravante de serem portadoras da chancela / cobertura / aval do mais Alto Tribunal24.
Ou seja, no âmbito deste instituto, há apenas que determinar, se os atos do processo produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos legalmente enunciados, e como não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, não configura o meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão, porquanto está reservado para os casos indiscutíveis de exuberante desvio legal que impõem e permitem uma decisão tomada com a celeridade normativamente definida.
De outra banda, cabe reter que este mecanismo se encontra tratado, em termos infraconstitucionais, pela normação inserta nos artigos 220º e 221º do CPPenal, quando em causa recorte de detenção ilegal, e nos artigos 222º e 223º do mesmo compêndio legal, nos casos de prisão ilegal.
Com a presente providência, os requerentes pretendem reagir contra a medida de acolhimento residencial, aplicada aos seus filhos menores, nos termos dos artigos 35º, nº 1, alínea f), 49º, 50º, nºs 1 e 2, todos da LPCJP.
A medida de acolhimento residencial, como da sua própria designação resulta e decorre da filosofia da mesma - O acolhimento residencial tem como finalidade contribuir para a criação de condições que garantam a adequada satisfação de necessidades físicas, psíquicas, emocionais e sociais das crianças e jovens e o efetivo exercício dos seus direitos, favorecendo a sua integração em contexto sociofamiliar seguro e promovendo a sua educação, bem-estar e desenvolvimento integral25 - não assume a menor vertente punitiva, não é uma medida de detenção, sendo antes, e claramente, uma solução / via de promoção de direitos e de proteção de perigo, destinada a salvaguardar a criança e / ou jovem de quadros que sejam e se revelem absolutamente intoleráveis / insustentáveis.
Nessa medida, por princípio, tanto quanto se julga, associar tal a retrato de prisão ilegal, de privação ostensivamente violadora da liberdade, é ideia a operar em casos de absoluta exceção, mostrando-se temerária a utilização deste expediente para demonstrar o mero desacordo / desalinho quanto ao decidido e como via de reação ante incúria / descuido / desatenção relativamente ao modo e tempestividade de manifestação processual.
Todavia, este STJ tem entendido que verificados retratos em que a aplicação desta medida protetiva – reitere-se – se pode assumir como uma limitação da liberdade de movimentos, pode, ainda, estar abrangida pela providência de habeas corpus26.
De todo o modo, a concreta situação de restrição de direitos tem sempre de configurar uma das hipóteses taxativamente previstas no artigo 222º do CPPenal, sob pena de inêxito da providência.
In casu, como desponta do articulado apresentado, em alguns aspetos de pouca clareza, entendem os Requerentes que opera cenário de ilegalidade, basicamente porque foi excedido o prazo de instrução, o prazo da medida cautelar imposta, as crianças não têm patronos nomeados, não foi concedida a possibilidade de contraditório aos progenitores.
Ora consultando os autos, e tal como consta da informação prestada pelo tribunal a quo, ao que se crê, não assiste razão ao pretendido.
Quanto ao desrespeito do prazo de instrução, é exuberantemente cristalino que não há o menor fundamento quanto ao invocado.
Basta atentar na circunstância de que o processo teve o seu início em 10 de dezembro de 2024, por despacho de 12 de dezembro de 2024, foi declarada aberta a instrução e designado o dia 19 de dezembro para audição dos progenitores dos menores, momento após o qual, e nesta mesma data, foi proferida sentença.
Assim sendo, só por mero lapso se pode afirmar que o prazo de 4 meses – duração da instrução – inserto no artigo 109º da LPCJP, não foi observado.
Outro segmento que se aporta para sustentar a ilegalidade equivalente à prisão ilegal, prende-se com o facto de, no entendimento dos Requerentes, se mostrar excedido o prazo da medida cautelar imposta, face ao que impõe o artigo 37º, nº 3 do diploma que se vem citando.
Igualmente aqui, ao que se pensa, os Requerentes incorrem em novo lapso.
Na verdade, do exame do todo o processado, resulta com confortada evidência que o tribunal recorrido, ao decidir aplicar a medida em discussão, não o fez em termos cautelares – anteriormente designada por medida provisória - mas sim com caráter definitivo.
Basta atentar no despacho proferido em 14 de fevereiro de 2025 onde se afirma (…) Revemos a medida, aplicando em substituição da actual a medida de acolhimento residencial (…), e observar que em respeito ao que se havia decidido anteriormente, a nova medida foi reavaliada / revista em 3 de julho de 2025, ou seja, no 5º mês após a sua imposição.
É certo que neste vetor se poderia questionar a bondade do percurso traçado pelo tribunal a quo pois, como parece transcorrer do plasmado no artigo 114º, nº 5 da LPCJP, para efeitos da revisão de medidas antes do decurso do prazo fixado no acordo ou na decisão judicial, em caso de substituição da medida de promoção e proteção aplicada, há lugar a debate judicial27.
Todavia, a verdade é que os Requerentes, notificados do despacho de substituição da medida inicialmente imposta e, bem assim, daquele outro que a reavaliou – o progenitor pai através do seu Ilustre Mandatário e a progenitora mãe na sua pessoa -, nada disseram, pura e simplesmente não reagiram, o que demonstra a sua aceitação quanto ao decidido.
Mais, como amplamente se extrai do processado, ambos os progenitores foram notificados em 12 de junho de 2025, (…) para, no prazo de 10 dias dizer o que tiver por conveniente, nos termos do art.º 84º/85º da Lei nº 147/99, sobre a aplicação de revisão ou cessação de medidas de promoção e proteção.
Assim sendo, é claro que foi concedido o direito ao exercício do contraditório, contrariamente ao que se aduz, pois, nada exulta processualmente que ilustre que qualquer dos ofícios de notificação em causa tenham sido devolvidos, rejeitados e / ou não entregues.
Vir agora afirmar-se, como se pretende, (…) a mãe não tinha à data advogado constituído, desconhece-se se foi notificada e não consta que se tenha pronunciado, o pai tinha advogado constituído sendo que, desconhece-se se foi notificado (…), crê-se que se trata de alegação frágil / inconsequente e sem o menor arrimo no todo que conta o processado.
Desta feita, ainda que tenha operado alguma mácula – uma eventual nulidade relativa e / ou alguma questão de competência -, neste particular segmento, há muito que se encontra sanada porque nenhuma reação ao sucedido operou, no prazo de 10 dias após as notificações dos diversos despachos atrás mencionados – artigos 195º, 149º, nº 1 do CPCivil e 126º da LPCJP.
Por outra banda, se fora ideia reagir pela via do recurso, também há muito que o prazo de 10 dias ínsito no artigo 124º da LPCJP, se mostra ultrapassado.
E como se disse anteriormente o habeas corpus não é a via para sindicar o acerto de despachos / decisões e, muito menos, o caminho para ultrapassar / superar a não reação atempada relativamente àqueles.
Diga-se, assim, que a medida imposta e agora questionada está suficientemente sedimentada, sendo que ainda que reportando à decisão inicial – decisão de 19 de dezembro de 2024 - que fixou como tempo da sua duração o período de 1 ano, está a mesma absolutamente em respeito do que se decidiu, sendo claro que se mostra devidamente respeitado o que reza o artigo 61º da LPCJP28.
Por último uma breve nota relativamente à questão de os menores não terem patrono nomeado o que redundaria em ilegalidade equiparável a prisão ilegal.
Em uma leitura, ainda que distraída, do plasmado no artigo 103º, nº 2 da LPCJP, é obrigatória a nomeação de patrono à criança ou jovem quando os seus interesses e os dos pais sejam conflituantes, quando a criança ou jovem com maturidade adequada o solicitar ao tribunal e no debate judicial29.
Não se alega, nem demonstra a existência de algum destes matizes determinantes da obrigatoriedade de nomeação de patrono às crianças aqui em causa.
Por outro lado, ainda que operasse retrato factual enquadrável no inciso em referência, ao que se pensa, a sua inobservância não configuraria a ilegalidade da dimensão pretendida, mas, quanto muito, uma eventual nulidade a reclamar intervenção em devido tempo, o que não foi feito.
Do exposto resulta, contrariamente ao alegado, que a medida de acolhimento residencial se encontra legalmente prevista, que foi aplicada por decisão judicial, e que não se mostra excedido qualquer prazo legal, não deixando de se reiterar que o habeas corpus se distancia da figura dos recursos, modo de reação processual relativamente a decisões de que se discorde, que se encontra aliás previsto no artigo 123º da LPCJP.
*
Importa ainda avaliar se o retrato em exame, e perante todo o existente, aponta para situação enquadrável na ideia de pedido manifestamente infundado, reclamando que para além da sanção tributária – custas e taxa de justiça - a impor, se deva fixar a sanção processual, devida pelo mau e indevido uso deste instrumento reativo.
Aqui, ao que se pensa, não basta que o peticionante se tenha excedido ao utilizar este mecanismo; necessário se torna que o pedido formulado seja claramente / evidentemente / imediatamente e sem sombra de quaisquer dúvidas, incapaz de vingar30; quando através de uma mera e sumária avaliação dos fundamentos do pedido formulado, é possível concluir, sem margem para interrogações, que o mesmo está votado ao insucesso.
Em presença de todo o acima exposto, emergindo que os Requerentes mais não fizeram do que um evidente mau uso do instrumento em causa, bem sabendo que o caminho que deveriam ter seguido seria o de arguição de eventuais nulidades e / ou recorrendo dos despachos de que discordam, socorrendo-se de razões que não cabem como invocativas de habeas corpus, como meio de ultrapassar a sua inércia processual e a não reação tempestiva, entende-se que está patente quadro de pedido manifestamente infundado.
III. Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 3ª Secção Criminal, em:
a) indeferir o pedido de habeas corpus peticionado pelos Requerentes AA e BB, a coberto do disposto no artigo 223º, nº 4, alínea a) do CPPenal, por manifesta falta de fundamento bastante;
b) condenar os Requerente nas Custas do processo, fixando em 3 (três) UC a Taxa de Justiça (artigo 8º, nº 9, do Regulamento Custas Processuais e Tabela III, anexa);
c) condenar os Recorrentes no pagamento da quantia de 10 UC, nos termos do disposto no artigo 223º, nº 6 do CPPenal.
*
Comunique de IMEDIATO, enviando cópia deste Acórdão, ao tribunal de 1ª Instância.
*
O Acórdão foi processado em computador e elaborado e revisto integralmente pelo Relator (artigo 94º, nº 2, do CPPenal), sendo assinado pelo próprio, pela Senhora Juiz Conselheira Adjunta, pelo Senhor Juiz Conselheiro Adjunto e pelo Senhor Juiz Conselheiro Presidente da Secção.
*
Supremo Tribunal de Justiça, 5 de novembro de 2025
Carlos de Campos Lobo (Relator)
Maria da Graça Santos Silva (1ª Adjunta)
António Augusto Manso (2º Adjunto)
Nuno António Gonçalves (Presidente da secção)
________
1. O requerimento em presença apenas faz referência ao nome próprio dos menores, sendo que consultada a certidão remetida pelo Tribunal de 1ª Instância se pode retirar o nome completo dos mesmos.
2. Artigo 55.º
Competência das secções
Compete às secções, segundo a sua especialização:
a) (…)
b) (…)
c) (…)
d) Conhecer dos pedidos de habeas corpus, em virtude de prisão ilegal;
e) (…)
f) (…)
g) (…)
h) (…)
3. Consigna-se que apenas se reproduzem as efetivas razões do pedido, expurgando todas as citações jurisprudenciais, transcrições da lei e as referências a instrumentos normativos.
4. Regista-se que além dos elementos constantes destes autos, foram consultados outros relevantes através da plataforma Citius.
6. Referência Citius ......72.
7. Referência Citius ......22.
8. Referência Citius ......96.
9. Referência Citius ......26.
10. Referência Citius ......54.
11. Referência Citius ......92.
12. Referência Citius ......93.
13. Referência Citius ......97.
14. Referência Citius, respetivamente, ......69 e ......79.
15. Referência Citius ......22.
16. Referência Citius ......55.
17. Referência Citius ......82.
18. Referência Citius ......15.
19. Artigo 31.º
(Habeas corpus)
1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.
2. (…)
20. An Act for the better secureing the Liberty of the Subject and for Prevention of Imprisonments beyond the Seas.
21. Artigo 3º, ponto 31º - Dar-se-á o habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se encontrar em iminente perigo de sofrer violência, ou coacção, por ilegalidade, ou abuso de poder.
A garantia do habeas corpus só se suspende nos casos de estado de sítio por sedição, conspiração, rebelião ou invasão estrangeira.
Uma lei especial regulará a extensão desta garantia e o seu processo.
22. Neste sentido GOMES CANOTILHO, José Joaquim e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2007, Coimbra Editora, p. 508 - O habeas corpus consiste numa providência expedita e urgente de garantia do direito à liberdade (…) em caso de detenção ou prisão «contrários aos princípios da constitucionalidade e da legalidade das medidas restritivas da liberdade», «em que não haja outro meio legal de fazer cessar a ofensa ao direito à liberdade», sendo, por isso, uma garantia privilegiada deste direito (…).↩︎
23. Neste sentido, LEAL-HENRIQUES, Manuel, Anotação e Comentário ao Código de Processo Penal de Macau, Volume II (Artigos 176º a 361º), 2014, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, p.150.
Na mesma linha de pensamento, entre outros, os Acórdãos do STJ de 13/08/2024, proferido no Processo nº 268/24.7T8TVD-B.S1- 5ª secção - O habeas corpus é uma providência extraordinária e expedita, independente do sistema de recursos penais, que se destina exclusivamente a salvaguardar o direito à liberdade; e de 11/06/2024, proferido no Processo nº 1958/23.7T8EVR-B.S1-3ª secção O habeas corpus é uma providência com assento constitucional, destinada a reagir contra o abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal (…) tem os fundamentos previstos taxativamente no art. 222.º, n.º 2. do CPP, que consubstanciam “situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade ambulatória (…), a reposição da legalidade tem um carácter urgente”. O “carácter quase escandaloso” da situação de privação de liberdade “legitima a criação de um instituto com os contornos do habeas corpus” (…), disponíveis em www.dgsi.pt.↩︎
24. Neste sentido o Acórdão do STJ, de 01/02/2007, proferido no Processo nº 353/07-5ª, referenciado em LEAL-HENRIQUES, ibidem, p. 154.
25. Artigo 49º, nº 2 da LPCJP.
26. Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ, de 29/02/2024, proferido no Processo nº 14079/21.8T8SNT-D.S1 – (…) tratando-se de medida de promoção e proteção prevista no art. 35.º, n.º 1, al. f), da LPCJP, que visa o afastamento do perigo em que a criança se encontra e proporcionar-lhe as condições favoráveis ao seu bem-estar e desenvolvimento integral, esta não deixa de se traduzir numa restrição de liberdade e, nessa medida, mesmo que não caiba nos conceitos de “detenção” e de “prisão” a que aludem os arts. 220.º e 222.º do CPP, configura uma privação da liberdade merecedora da proteção legal concedida pela providência extraordinária de “habeas corpus”-, de 11/10/2023, proferido no Processo nº 244/23.7T8OHP-A.S1 – (…) A maioria dos Arestos deste Supremo Tribunal de Justiça têm alargado, através de uma interpretação extensiva ou de integração analógica do referido regime jurídico e das finalidades que o legislador constitucional e ordinário persegue com o mesmo, num Estado de Direito como o nosso, a aplicação da figura do HABEAS CORPUS às medidas de promoção e proteção de crianças e jovens em perigo que, embora não se possam qualificar juridicamente como «prisão» ou «detenção», são suscetíveis, ainda assim e de alguma forma, de a elas se equipararem, ao afetarem a liberdade pessoal dos cidadãos visados pelas mesmas, através da sua privação, limitação ou restrição (…) – e de 01/09/20222, proferido no Processo nº 14079/21.8T8SNT-D.S1 – (…) De acordo com a maior parte da jurisprudência do STJ é admissível alargar a providência do habeas corpus à medida de promoção e proteção de crianças e jovens de “acolhimento residencial”, atenta a sua natureza e finalidade, uma vez que não deixa de ser uma medida limitativa da liberdade e de direitos fundamentais (ainda que não tenha uma finalidade punitiva, como a medida tutelar educativa), tanto mais que (como se esclarece no ac. do STJ de 2.06.2021) constitui também uma medida que origina uma “compressão do direito à unidade familiar”(…)-, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
27. Artigo 114.º
Debate judicial
1 - Se não tiver sido possível obter o acordo de promoção e proteção, ou tutelar cível adequado, ou quando estes se mostrem manifestamente improváveis, o juiz notifica o Ministério Público, os pais, o representante legal, quem detiver a guarda de facto e a criança ou jovem com mais de 12 anos para alegarem, por escrito, querendo, e apresentarem prova no prazo de 10 dias.
2 - O Ministério Público deve alegar por escrito e apresentar provas sempre que considerar que a medida a aplicar é a prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 35.º
3 - Recebidas as alegações e apresentada a prova, o juiz designa dia para o debate judicial e ordena a notificação das pessoas que devam comparecer.
4 - Com a notificação da data para o debate judicial é dado conhecimento aos pais, ao representante legal ou a quem tenha a guarda de facto das alegações e prova apresentada pelo Ministério Público e a este das restantes alegações e prova apresentada.
5 - Para efeitos do disposto no artigo 62.º não há debate judicial, exceto se estiver em causa:
a) A substituição da medida de promoção e proteção aplicada; ou
b) A prorrogação da execução de medida de colocação.↩︎
28. Artigo 61.º
Duração das medidas de colocação
As medidas previstas nas alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 35.º têm a duração estabelecida no acordo ou na decisão judicial.↩︎
29. Neste sentido, RAMIÃO, Tomé D’Almeida, Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo – Anotada e Comentada, 2019, 9ª edição, Quid Juris, p. 226.