ESCUSA
JUÍZ DESEMBARGADOR
PARENTESCO
DEFENSOR
IMPARCIALIDADE
DEFERIMENTO
Sumário


I. A relação de parentesco entre o Senhor Juiz Desembargador e o defensor de um dos arguidos, ainda que na qualidade de 1º Adjunto, é suficiente para potenciar o risco de não reconhecimento público da sua imparcialidade, por força da quebra da equidistância que o mesmo deve ter em relação a todos os intervenientes processuais, o que causaria danos reputacionais à sua própria pessoa e à justiça no seu todo.
II. Em matéria de administração da justiça, não basta ser imparcial é também preciso parecer, de modo a não quebrar a relação de confiança dos cidadãos com a justiça e os juízes que a administram em nome dos mesmos.
III. Esta perspectiva e preocupação com a salvaguarda da imagem do Juiz aos olhos da comunidade, assente numa ideia de equidistância em relação aos intervenientes processuais, é uma das pedras basilares da imparcialidade e do julgamento justo e equitativo a que todo o cidadão tem direito e que a Constituição e a lei exigem e asseguram.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça,

1. O Exmo. Juiz Desembargador AA, em exercício de funções na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães, solicitou escusa, nos termos do disposto no artigo 43º e 45º do Código de Processo Penal, para intervir como ... Adjunto no processo nº 2529/15.7T9BRG.G1 daquela Relação.

2. Fundamenta tal pedido nos seguintes termos:

«Em razão de distribuição oportunamente levada a cabo neste Tribunal da Relação, compete ao signatário intervir nos presentes autos na qualidade de 1º adjunto.

Tal processo emanou do Juízo Central Criminal de Braga, Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca da Braga, em cujo âmbito foram submetidos a julgamento vários arguidos, parte dos quais acabaram por ser condenados pelo acórdão ali proferido no dia 28/03/2025, competindo a este TRG a apreciação de diversos recursos visando essa decisão condenatória.

Entre esses condenados e recorrentes, figura o arguido BB.

Sucede que o mencionado arguido [pessoa que o signatário não conhece, à semelhança, aliás, do que sucede com os demais co-arguidos] é patrocinado pelo Dr. CC, advogado, com escritório na cidade de ..., que é irmão do requerente, resultando dos autos que o mesmo teve [e tem tido] intervenção no processo desde a fase de Inquérito.

Ora, muito embora essa relação de parentesco, subjectivamente considerada, não seja susceptível de, minimamente, abalar a isenção e equidistância do requerente na apreciação e decisão do(s) recurso(s), e mau grado a mesma não constitua nenhum dos motivos de impedimento a que aludem os Artºs. 39º e/ou 40º do C.P.Penal, o certo é que, aos olhos dos intervenientes processuais, ou até de terceiros, tal circunstância pode gerar apreensão, dúvidas e desconfiança sobre a sua imparcialidade, o que, na perspectiva do signatário, se impõe acautelar.

Neste conspecto, solicita o signatário a V. Exas., ao abrigo do disposto no Artº 43º, nº 4, do C.P.Penal, o escusem de intervir nos presentes autos.»

3. Com base no teor da petição de escusa do Venerando Desembargador e ainda das certidões constantes dos autos, na qual se comprova o alegado, consideram-se assentes os factos constantes da mesma.

Inexiste, pois, necessidade de ordenar quaisquer diligências para produção de prova com vista à prolação da decisão.

4. Colhidos os Vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.

5. O artigo 203.º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe “Independência”, estatui que “Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei”, a qual é assegurada, além do mais, pela sujeição dos juízes à lei, a sua inamovibilidade e imparcialidade. Esta mesma independência e imparcialidade é também uma exigência da Convenção Europeia dos Direitos do Homem para a materialização de “um processo equitativo” (artigo 6º, nº1).

As garantias de imparcialidade do juiz, em matéria criminal, estão densificadas no artigo 39º e seguintes do Código de Processo Penal, através de - impedimentos, tipificados na lei (artigos 39 e 40º); - recusa desencadeada pelo Ministério Público, assistente, arguido ou partes civis (artigo 43º) - escusa, desencadeada pelo próprio juiz (artigo 43º, nº 4).

O artigo 43º, nº 4 do Código Processo Penal estatui que o juiz não pode, “(...) declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.os 1 e 2”, isto é, desde que se verifiquem os pressupostos de recusa.

Em relação à recusa, o n.º 1 do mesmo preceito dispõe que, “a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.

O que está em causa nos incidentes de recusa ou escusa são questões de “desconfiança” sobre a “imparcialidade” do juiz, as quais devem ser sérias e graves para poderem levar o decisor a postergar o preceito constitucional do “juiz natural”, consagrado no n.º 9 do artigo 32.º, segundo o qual “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”.

Na verdade, sendo o princípio do “juiz natural” uma garantia fundamental do processo criminal, estritamente conexa com os direitos de defesa1 e com um julgamento justo e equitativo, dificilmente se perceberia que uma qualquer suspeita de imparcialidade,2 pudesse desencadear o deferimento de um pedido de recusa ou escusa os quais, em tais circunstâncias, poderiam traduzir-se numa fraude à lei e ao afastamento do referido princípio. É neste contexto que o legislador exige que o motivo invocado seja “sério e grave” e ao mesmo tempo adequado a gerar a desconfiança.

Exige-se assim, para além da gravidade e seriedade, um nexo causal entre o motivo invocado e desconfiança que o mesmo gera sobre a imparcialidade do juiz.

É tendo por base esta matriz fundadora e estruturante do princípio do “juiz natural” em matéria e garantias de processo criminal, que o seu afastamento apenas se concebe em situações de excepção, garantindo assim que o juiz do processo está pré-determinado segundo as regras de competência anteriormente estabelecidas nas leis do processo e nas leis de organização judiciária. Visa-se evitar os juízes “à la carte” ou tribunais “ad hoc”, historicamente vistos como parciais e típicos de um Estado não democrático.3

A imparcialidade exigida ao titular do poder judicial, pode ser encarada em duas dimensões: - objectiva (apreciação de terceiros/comunidade sobre a situação concreta) e/ou - subjectiva (interesse pessoal do juiz no processo).

A este propósito, Germano Marques da Silva, considera que a imparcialidade “pode apreciar-se de maneira subjectiva e objectiva. Naquela perspectiva, significa que o juiz deve actuar com serenidade, sem paixão, pré-juízo ou interesse pessoal; nesta, na perspectiva objectiva, que nenhuma suspeita legítima exista no espírito dos que estão sujeitos ao poder judicial”, ou seja, “à imparcialidade íntima das pessoas deve juntar-se a imparcialidade aparente do sistema”.4

Inexistindo critério legal para se aferir do que é um “motivo sério e grave” e sendo a norma, uma norma em branco, a necessitar de densificação jurisprudencial, a mesma deve ser feita e aferida em função do conceito de “cidadão médio”, das regras de senso e experiência comum.

Estamos, pois, em presença de uma questão, não de natureza subjectiva relacionada com o pensamento, convicção, preconceito ou pré-juízo do Juiz perante a situação concreta em análise, mas, antes, perante uma questão de natureza objectiva, isto é, uma situação que aos olhos da comunidade e tendo em atenção os critérios anteriormente referidos, não pode deixar qualquer dúvida, sobre a imparcialidade do Juiz na sua actuação processual.

No presente pedido de escusa o Venerando Desembargador invoca a condição de irmão do advogado de um dos arguidos.

Esta circunstância familiar, não pode deixar de ser vista aos olhos dos demais sujeitos processuais e também de um cidadão médio, como causadora de sérias dúvidas sobre a imparcialidade do Venerando Desembargador.

Na verdade, a relação de parentesco entre o julgador e o defensor de um dos arguidos, ainda que na qualidade de 1º Adjunto, é suficiente para potenciar o risco de não reconhecimento público da sua imparcialidade, por força da quebra da equidistância que o mesmo deve ter em relação a todos os intervenientes processuais, o que causaria danos reputacionais à sua própria pessoa e à justiça no seu todo.5

Não está em causa a capacidade de o requerente actuar dentro da legalidade, objetividade e independência, mas, antes, a defesa de todo o sistema de justiça da suspeita de a não ter conservado e não dar azo a qualquer dúvida, reforçando, por esta via, a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados. Em matéria de administração da justiça, não basta ser imparcial é também preciso parecer, de modo a não quebrar a relação de confiança dos cidadãos com a justiça e os juízes que a administram em nome dos mesmos.

Como se refere no acórdão do Tribunal Constitucional de 10 de Julho de 1996, citando o acórdão nº 135/88 do mesmo Tribunal, a independência do juiz “é acima de tudo, um dever - um dever ético-social. A "independência vocacional", ou seja, a decisão de cada juiz de, ao "dizer o Direito", o fazer sempre esforçando‑se por se manter alheio - e acima - de influências exteriores é, assim, o seu punctum saliens. A independência, nessa perspectiva, é, sobretudo, uma responsabilidade que terá a "dimensão" ou a "densidade" da fortaleza de ânimo, do carácter e da personalidade moral de cada juiz" por assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição. É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de “administrar a justiça”. (…) Importa, pois, que o juiz que julga o faça com independência. E importa, bem assim, que o seu julgamento surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial. É que a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados é essencial para que os tribunais ao “administrar a justiça”, actuem, de facto, “em nome do povo” (cfr. art. 205 nº 1 da Constituição)”.6

Esta perspectiva e preocupação com a salvaguarda da imagem do Juiz aos olhos da comunidade, assente numa ideia de equidistância em relação aos intervenientes processuais, é uma das pedras basilares da imparcialidade e do julgamento justo e equitativo a que todo o cidadão tem direito e que a Constituição e a lei exigem e asseguram.

Existe, pois, do ponto de vista objectivo, apreciado pelo cidadão médio, motivo sério e grave, conforme exige o artigo 43.º n.º 1 do Código de Processo Penal, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do requerente, que justifica o seu afastamento do processo, afigurando-se-nos por adequado ser de conceder o solicitado pedido de escusa.

Nesta conformidade, outra conclusão se não impõe que não seja a de considerar como

justificada e legítima a escusa apresentada.

6. Termos em que se acorda em deferir o pedido de escusa apresentado.

7. Sem tributação.

Supremo Tribunal de Justiça, 05 de Novembro de 2025.

Antero Luís (Relator)

Maria da Graça Silva (1ª Adjunta)

Maria Margarida Almeida (2ª Adjunta)

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1. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Abril de 2003, proc. nº 1075/03.

2. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-01-2015, Proc. 1969/10.2TDLSB.L1-A.S1, in www.dgsi.pt

3. Neste sentido Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª edição, pág. 207; Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, 1º vol., pág. 322 e segs.e ainda, por todos acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-12-2004, Processo n.º 4540/2004 in www.verbojuridico.net

4. Curso de Processo Penal, Vol. I, Edição de 2000, página 233.

5. Neste sentido, em situação similar, veja-se acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Abril de 2025, Proc. nº 2720/24.5JAPRT-A.P1-A.S1, disponível em www.dgsi.pt

6. Acórdão nº 935/96 disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19960935.html