HABEAS CORPUS
PRISÃO ILEGAL
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
CONTAGEM DE PRAZOS
Sumário


I. O habeas corpus constitui providência autónoma e específica, distinta do recurso ou de outras formas de impugnação, porquanto o seu objeto não é uma decisão judicial, antes o próprio estado de prisão ou detenção ilegal, em situações extremas de abuso de poder ou erro grosseiro, patente, grave, palmar, na aplicação do direito, taxativamente previstas pelo legislador.
II. O crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º do Código Penal, integra a categoria jurídico-penal dos crimes contra a autoridade pública a que corresponde pena de prisão de máximo superior a 5 anos, preenchendo o conceito de criminalidade violenta, definido na alínea j) do artigo 1.º do Código de Processo Penal.
III. Os prazos de duração máxima da medida de prisão preventiva imposta com esse fundamento são elevados nos termos prescritos no n.º 2 do artigo 215.º do Código de Processo Penal, designadamente, para o máximo de 6 meses sem que tenha sido deduzida acusação.
IV. A inserção de determinação dirigida à secretaria em despacho judicial de reexame da medida de prisão preventiva, no sentido de inscrever alerta em data indicada na plataforma informática de tramitação eletrónica, é irrelevante para a contagem de prazos. 

Texto Integral

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I. PETIÇÃO

1. AA veio, em 31 de outubro de 2025, dirigir a este Tribunal petição de habeas corpus, subscrita pelo seu advogado, ao abrigo do disposto no artigo 222.º, n.ºs 1 e 2, alínea c) do Código de Processo Penal (CPP), com referência ao artigo 215.º do mesmo Código, enunciando os fundamentos que seguem1:

«1.º O ora recorrente foi detido e indiciado em sede de 1º Interrogatório por haver indícios de vários crimes: 2 (dois) crimes de resistência e coacção sobre funcionário, na forma consumada, previsto e punido pelo artigo 347.º n.º 1 do Código Penal; 2 (dois) crimes de ofensas à integridade física qualificada na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22º, 23º, 143º nº1, 145º nº1 al. a) do CP; 1 (um) crime de dano qualificado, previsto e punido pelo artigo 212º, 213º nº1 al. c) do Código Penal, e de 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artigo 291.º, n.º 1 al b) do CP, conforme resulta do despacho que ordenou a sua prisão preventiva, para o qual se remete e se dá por reproduzido para os devidos efeitos.

2. º Encontrando-se detido, em situação de prisão preventiva, à ordem do Processo supra, desde 30 de Junho de 2025, sendo que se encontra privado da sua liberdade desde o dia 28 de Junho/30. [sic]

Ora,

3. º tendo em conta o Princípio da Unidade dos prazos e, os crimes que lhe são imputados, a fase em que o processo se encontra – investigação - a prisão preventiva pode prolongar-se até aos quatro meses, conforme o estatuído no artigo 215.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal.

Mais,

4.º O processo supra não se enquadra nos crimes expostos no nº 2 do referido artº215 do CPP, pelo que o seu prazo não é elevado para 6 meses.

5.º Igualmente, o processo supra não se revelou de excepcional complexidade, pelo que não foi elevado esse prazo de prisão preventiva para um ano, conforme previsto no nº3 do artº215 do CPP.

6.º Até à presente data, o ora arguido não foi ainda notificado da sua acusação. Ou seja,

no caso vertente o ora requerente atingiu em 30.10.2024 - e isto em obediência ao Princípio da Unidade dos prazos processuais - o prazo de quatro meses, nos termos da norma anteriormente invocada, prazo máximo permitido por lei para que um arguido esteja sujeito a prisão preventiva sem que tenha sido deduzida acusação. Aliás,

8º no último despacho, datado de 18.09.25, o Meritíssimo JIC, no final, ordena que se “Agende alarme para 30.10.25”, de modo a evitar-se ultrapassar este prazo.

Donde,

[sic] se encontra, presentemente, em situação de prisão para além do prazo fixado pela lei, pelo que deve ser restituído à liberdade nos termos do artº217 do CPP.»

II. INSTRUÇÃO DA PROVIDÊNCIA E INFORMAÇÃO SOBRE A PRISÃO (ARTIGO 223.º DO CPP)

2. Nos termos da parte final do n.º 1 do artigo 223.º, a petição de habeas corpus deve ser enviada de imediato ao Presidente deste Tribunal e acompanhada de informação sobre as condições em que foi efetuada ou se mantém a prisão.

No caso vertente, a providência encontra-se, como devido, instruída por certidão, a qual inclui, para além de despacho judicial sobre a providência, auto de primeiro interrogatório judicial de arguido, relativo ao ora peticionante; despacho de reexame dessa medida; despacho judicial proferido em 29 de outubro de 2025; e parecer do magistrado do Ministério Público titular do inquérito, no sentido do indeferimento da providência, por inverificação dos seus pressupostos.

O despacho judicial a pronunciar-se sobre as condições da privação da liberdade em curso tem o seguinte teor:

«(...) Na sequência de interrogatório judicial realizado no dia 30/06/2025, foi julgado fortemente indiciado a prática pelo arguido, em autoria material, (...) de 2 (dois) crimes de resistência e coação sobre funcionário na forma consumada, p. e p. nos art.º 347º, nº 1, do Código Penal; 2 (dois) crime de ofensas à integridade física qualificada na forma tentada, p. e p., nos termos do disposto nos art.s 22º, 23º, 143º, nº 1, 145º, nº 1, al. a), do Código Penal, ex vi art. 132º, nº 2, al. l), do mesmo diploma; 1 (um) crime de dano qualificado, p. e p., nos termos dos artigos 212º, 213º, nº 1, al. c), do Código Penal; 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291°, nº 1, alínea b), do Código Penal e 69º, nº 1, al. a), do mesmo código.

Mais foi considerado fortemente indiciado o perigo de continuação da actividade criminosa.

Nesse mesmo dia foi decretada medida de coação privativa da liberdade nos seguintes termos e em síntese: “Pelo exposto, determino que o arguido AA aguarde os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coação de prisão preventiva – artºs 191º, 193º, 202º, nº 1, als. a), b), d) e e) e 204º, al. c) e 1º, al. j), todos do CPP.”

Face ao que acima fica exposto, nomeadamente pela expressa indicação do disposto do artº 1º, al, j), do CPP,

que é aplicável o disposto no nº 2, do artº 215º, do CPP, por força da forte indiciação da prática de crime violento, pelo que não assiste razão ao arguido, que injustificadamente desencadeou o presente procedimento, sendo de manter a prisão preventiva nos seus exactos termos e, por isso mesmo a mantenho, não ordenando, nesta instância a imediata libertação do arguido, sem prejuízo, naturalmente, de superior decisão, em melhor critério de Sua Exª o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, para onde os autos, em cumprimento do disposto no artº 223º, do CPP, serão, de imediato, remetidos.

O alarme electrónico foi agendado por mero lapso do signatário o que também foi esclarecido em despacho já proferido nos autos.»

III. Fundamentos de facto

3. Relevam para a decisão da presente providência os seguintes factos, todos documentados na certidão referida supra:

a. No dia 30 de junho de 2025, foi o peticionante AA sujeito a primeiro interrogatório de arguido detido, ato que culminou pela prolação de despacho judicial, nos termos do qual foi julgada fortemente indiciada a prática pelo mesmo, no dia 29 de julho de 2025, de dois crimes de resistência e coação sobre funcionário na forma consumada, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1 do CP; dois crimes de ofensas à integridade física qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 143.º, n.º 1, al. a) do CP ex vi artigo 132.º, n.º 2, al. l), do mesmo diploma; um crime de dano qualificado, p. e p. pelos artigos 212.º, 213.º, n.º 1, al. c) do Código Penal; e um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos artigos 291.º, n.º 1, alínea b) e 69.º, n.º 1, alínea a) do CP;

b. Na parte final, dispositiva, em sede de escolha e fundamentação da medida de coação, lê-se no mesmo despacho:

«Pelo exposto, determino que o arguido AA aguarde os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coação de prisão preventiva – artigos 191º, 193º, 202º, n.º 1, als. a), b), d) e e) e 204º, al. c) e 1º, al. j), todos do CPP»;

c. A medida de prisão preventiva foi reapreciada e mantida por despacho judicial proferido em 18 de setembro de 2025. Nos termos do mesmo, após a determinação de notificação e devolução, consta a expressão «Agende alarme para 30/10/2025»;

d. Em 29 de outubro de 2025, foi proferido despacho judicial, na sequência de impulso do Ministério Público, onde, depois de notar que «a imputação de “criminalidade violenta” foi desde logo notada na minha decisão proferida com a decretação da prisão preventiva», é consignado «que apenas por lapso terei determinado o agendamento de alarme eletrónico para esta data

IV. FUNDAMENTOS DE DIREITO

4. Conforme repetidamente salientado por este Tribunal, a providência de habeas corpus encontra entre nós sede constitucional, a qual remonta ao primeiro texto constitucional republicano, de 21 de agosto de 1911, enquanto garantia privilegiada do direito à liberdade pessoal, inscrevendo-se num movimento reconhecidamente influenciado pela Constituição Brasileira Republicana de 1891, por seu turno tributária do tratamento conferido à figura pelo constitucionalismo norte americano, mais protetor e atuante contra o abuso de poder privativo da liberdade do que o direito inglês, génese do instituto na dimensão procedimental hodierna, fundamentalmente a partir do Habeas Corpus Act, de maio de 1679. A sua consagração na Constituição Democrática de 1976, através do artigo 31.º, que lhe é inteiramente dedicado, denota o valor objetivo e a importância jusfundamental que a norma normarum atribui ao direito à liberdade pessoal com sede no artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa, assumindo-se como mecanismo específico e expedito de garantia desse direito subjetivo.

Porém, como também salientado pela jurisprudência deste Supremo Tribunal, a importância do instituto e a sua consagração constitucional, densificada e concretizada por via dos artigos 220.º a 224.º do CPP, não significam que a sua mobilização seja desprovida de pressupostos e requisitos, mormente na sua articulação com o sistema de recursos. Trata-se de uma providência autónoma e específica, distinta do recurso ou de outras formas de impugnação, porquanto o seu objeto não é uma decisão judicial, antes o próprio estado de prisão ou detenção ilegal, em situações extremas de abuso de poder ou erro grosseiro, patente, grave, palmar, na aplicação do direito, taxativamente previstas pelo legislador. Compreende-se nestes termos a estipulação de um prazo curto de decisão judicial (oito dias) pelo próprio legislador constituinte, o qual leva subjacente uma injunção dirigida ao legislador penal, no sentido de instituir um regime procedimental congruente.

5. Deixadas estas breves considerações sobre a natureza do habeas corpus, sendo a prisão efetiva e atual o pressuposto de facto da providência e a ilegalidade da prisão o seu fundamento jurídico, verifica-se que a pretensão em análise funda a sua admissibilidade na alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP: manter-se o requerente em situação de prisão preventiva para além do prazo fixado pela lei.

Prazo esse que o peticionante considera ser de quatro meses, por referência unicamente à alínea a) do n.º 1 do artigo 215.º do CPP, juízo que suporta inteiramente no segmento do despacho proferido que contém o juízo indiciário, obnubilando que na parte final da decisão judicial são mobilizadas outras normas legais, entre as quais a norma contida na alínea j) do artigo 1.º do CPP, com relevo decisivo para a definição do prazo máximo da prisão.

Com efeito, esse preceito contém a definição do conceito normativo de «criminalidade violenta», o qual opera em variados domínios adjetivos regulados no Código de Processo Penal, com destaque justamente para o regime da duração máxima da prisão preventiva. Assim decorre do proémio n.º 2 do artigo 215.º do CPP, onde se estatui que os prazos referidos no número anterior são elevados «em casos de criminalidade violenta».

Dúvidas não subsistem quanto ao preenchimento desse conceito no caso vertente e, por decorrência, à elevação do prazo de prisão preventiva. Novamente, a esse propósito, a petição de habeas corpus nada diz.

A referida alínea j) considera «”criminalidade violenta” as condutas que dolosamente se dirigem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos», estatuindo desse modo dois requisitos cumulativos, a saber, (i) a subsunção da conduta a um tipo de ilícito que integre uma das grandes categorias penais elencadas e (ii) o tipo sancionatório correspondente revista gravidade significativa (na ótica dos efeitos jurídicos associados ao conceito), i.e. pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos.

Ora, entre os ilícitos penais que fundaram in casu a imposição da medida de prisão preventiva, encontram-se dois crimes de resistência e coação sobre funcionário na forma consumada, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1 do Código Penal. Esse tipo penal, por um lado, tem inserção sistemática em secção intitulada «Dos crimes contra a autoridade pública», subsumindo-se, pois, a uma das grandes categorias de ilícitos criminais referidas no aludido preceito processual penal e, por outro lado, supera o limiar de gravidade estabelecido na alínea j) do artigo 1.º do CPP. Nos termos enunciados no auto de 1.º interrogatório judicial de arguido detido, a conduta indiciada ocorreu pelas 01h30 do dia 29 de junho de 20252, ou seja, na vigência da redação do artigo 347.º do Código Penal introduzida pelo artigo 2.º da Lei n.º 26/2025, de 19 de março, a qual elevou a moldura penal do crime para prisão de 1 a 8 anos.

Assim sendo, por força das normas conjugadas da alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 (proémio) do artigo 215.º do CPP, com referência à alínea j) do artigo 1.º do mesmo código, o prazo de duração de prisão preventiva na atual fase processual é de 6 (seis) meses, contado a partir da data da decisão judicial que a impôs, o qual não se mostra ultrapassado. Apenas será atingido no dia 30 de dezembro de 2025, com a ressalva de que poderá vir a ser elevado para 10 (dez) meses caso, entretanto, seja deduzida acusação [cf. alínea b) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 215.º do CPP, com referência à alínea j) do mesmo código].

6. A esta conclusão não se opõe a alusão à parte final do despacho de reexame da prisão preventiva, lavrado em 18 de setembro de 2025. Esse segmento mais não é do a determinação de um ato de secretaria (inscrição de alerta na plataforma informática, com vista à abertura de conclusão na data indicada), inidónea a afastar a vinculação legal de interpretação e aplicação do regime do artigo 215.º do CPP. Não alterou por qualquer modo a posição do arguido.

7. Temos, assim, que não foi ultrapassado o prazo de previsão preventiva, mostrando-se inverificado o invocado fundamento da alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, ou qualquer outro, decaindo a providência por manifesta falta de fundamento.

Com efeito, a petição mostra-se, em boa verdade, construída a partir de uma ficção, gerada pela desconsideração dos segmentos da decisão judicial que fundamentaram juridicamente a prisão preventiva, mormente aqueles que relevam para a elevação do prazo de prisão preventiva para seis meses; o requerente limita-se a avançar com uma negativa genérica relativamente ao que bem sabia ajuizado em contrário pela decisão judicial, como se esse fundamento não existisse.

A que se junta a tentativa de aproveitamento de um lapso manifesto numa determinação endereçada à secretaria num outro despacho, ademais retificado em momento anterior à apresentação da petição, configurando conduta temerária e merecedora de sanção processual, nos termos do n.º 6 do artigo 223.º do CPP, em montante que se entende fixar no mínimo legal (6 UC).

Decisão

Pelo exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a presente providência de habeas corpus, relativa a AA, por manifesta falta de fundamento bastante.

Pelo decaimento, condena-se o requerente nas custas, fixando em 3 (três) unidade de conta a taxa de justiça, a que acresce, nos termos do n.º 6 do artigo 223.º do Código de Processo Penal, a taxa sancionatória de 6 (seis) unidades de conta.

Certifica-se que o presente acórdão foi processado em computador, revisto pelo relator e assinado eletronicamente (artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP).

Supremo Tribunal de Justiça, 12 de novembro de 2025

Fernando Ventura (relator)

Carlos de Campos Lobo (1.º adjunto)

José Carreto (2.º Adjunto)

Nuno António Gonçalves (Presidente da Secção)

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1 Transcrição, sem destaques a negrito e sublinhado, para melhor compreensão.

2 E não no dia 28 de junho de 2025, como referido implicitamente na petição de habeas corpus, ao reportar a essa data a detenção do arguido (cf. artigo 2.º da peça).