DEPOIMENTO INDIRECTO
OUVIR DIZER AO ARGUIDO APÓS A PRÁTICA DOS FACTOS
PROVA PROIBIDA
NULIDADE DA SENTENÇA
Sumário


1. Do disposto nos artigos 128.º, n.º 1, e 145., n.º 3, do Código de Processo Penal resulta como regra geral a exigência do caráter direto do conhecimento do depoimento testemunhal e das declarações de assistente e parte civil - com isto se pretende significar que a testemunha ou “declarante” deporá ou declarará sobre o que viu ou ouviu de modo coevo com os factos em julgamento.
2. Todavia, a lei prevê a exceção constante do artigo 129.º do Código de Processo Penal. Por depoimento indireto pretende significar-se que o depoimento testemunhal reproduz outro meio de prova de que teve conhecimento em momento posterior à prática dos factos.
3. O legislador, conhecendo a problemática histórica e interpretativa sobre o testemunho por ouvir dizer, e atentos os termos e categorias por si usadas na lei processual penal, restringiu este mecanismo à outiva de prova testemunhal, única que admite depoimentos e inquirições, sendo, portanto, proibido, o testemunho do que se ouviu dizer a qualquer dos sujeitos do processo – assistente, demandante civil e arguido.
4. O que se ouviu dizer ao arguido durante a prática dos factos não constitui depoimento indireto.
5. O princípio nemo tenetur se ipsum accusare, é, juntamente com a estrutura acusatória do processo e o princípio do contraditório, o motivo fundamental para que a lei não autorize o depoimento por ouvir dizer ao arguido.
6. A valoração das declarações do assistente na parte em que referiu o que ouviu ao arguido, em momento posterior aos factos, implica nulidade da sentença por utilização prova proibida.

Texto Integral


I RELATÓRIO

1
No processo n.º 1352/19.4JABRG, do Juízo Central Criminal de Viana do Castelo – Juiz ..., do Tribunal Judicial de Viana do Castelo, teve lugar a audiência de julgamento durante a qual foi proferido acórdão com o seguinte dispositivo:

1. Absolver a arguida AA da prática de um crime de burla qualificada, infração prevista e punida, pelas disposições conjugadas dos arts.º 217.º, nº 1, 218.º, nsº 1 e 2, al. a) e 202.º, al. b) do Cód. Penal.
2. Condenar AA a arguida pela prática, em autoria material do crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205º, n.º 1 e 4 alínea a), do Código Penal na pena de pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
3. Declarar perdoada a pena de 1 ano de prisão aplicada à arguida nos termos nos termos do art. 8.º, n.º 1 da supra citada Lei e do art. 128.º, n.º 3 do Código Penal.
4. Condenar a arguida no pagamento das custas, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça - art. 513º, n.º 1 do CPP e art. 3º, nº 1, 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa.
5. Julgar parcialmente procedente o pedido de condenação ao Estado formulado pelo Ministério Público a título de perda de vantagem obtida com a prática do crime de abuso de confiança, por provado, e, em consequência, condenar a arguida AA, ao abrigo do disposto pelo artigo 110º, nº 1, al. b), nº 4 e nº 6 do Código Penal a pagar ao Estado a quantia de € de €48.198,24€ ( quarenta e oito mil cento e noventa e oito euros e vinte e quatro cêntimos ).
6. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pela demandante EMP01... Unipessoal, Lda e condenar a demandada AA no pagamento da importância global de €48.198,24€ (quarenta e oito mil cento e noventa e oito euros e vinte e quatro cêntimos), acrescida de juros legais a contar da presente decisão, absolvendo-a da parte restante.

2
Não se tendo conformado com a decisão, a arguida apresentou recurso, formulando as seguintes conclusões:

1. A recorrente foi condenada pela prática, em autoria material do crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art.º 205º, n.º 1 e 4 alínea a), do Código Penal na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, tendo-lhe sido perdoado um ano de prisão ao abrigo da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto.
2. Foi, ainda, condenada a entregar ao Estado a quantia de 48.198,24€ nos termos do art.º 110º, n.º 1, al. b), n.º 4 e 6 do Código Penal e condenada a pagar à demandante EMP01... Unipessoal, Lda, a título de indemnização cível, o montante global de 48.198,24€, acrescida de juros legais a contar da decisão proferida.
3. Do referido acórdão resulta que o Tribunal a quo formou a sua convicção nos elementos juntos de prova juntos aos autos, conjugados com as declarações do arguido (sendo certo que a arguida atento o seu estado de saúde não esteve presente em nenhuma sessão de julgamento) e os depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência de discussão e julgamento.
4. Os presentes autos tiveram início com o auto de notícia NUIPC 1352/19.4JABRG no qual pode ler-se na descrição dos factos e informação complementar para além do mais que “…compareceu perante mim o Sr. BB…O mesmo informou que ainda que a referida funcionária desde à cerca de dois meses o alicia oferecendo-lhe práticas sexuais, tendo o mesmo informado que que por cerca de três vezes, teve relações com a mesma, sendo que à altura desses factos não tinha conhecimento da burla. Afirmando que neste momento está a ser vitima de coação por parte da sua funcionária que ameaça contar à sua família que o mesmo possuia relações sexuais com ela e que seria por isso que o dinheiro era transferido para a sua conta…” (negrito nosso).
5. O Sr. BB, gerente da empresa à data da alegada prática dos factos e que assumiu ter com a arguida uma relação de cariz sexual para além da relação profissional, faleceu em 2021, ou seja, antes do início da audiência de julgamento, sendo o seu filho CC, o actual gerente da empresa, assistente nestes autos.
6. A testemunha CC, legal representante da assistente, nada sabe quanto aos factos relatados e participados criminalmente pelo seu falecido pai, pois à data não trabalhada na empresa.
7. O Tribunal firma a sua convicção na premissa de que o legal representante da assistente havia confirmado que presenciou a arguida nas instalações da GNR (nunca referiu que foi nas instalações da GNR mas perante a GNR) a admitir a prática dos factos constantes da acusação, estribando-se no art.º 129º do CPP.
8. Em termos objectivos, para que o depoimento indirecto do gerente CC pudesse ser valorado a lei apenas exige que o tribunal diligencie no sentido de obter o depoimento da fonte, o que não sucedeu.
9. A proibição de valoração inerente ao artigo 129.º cessa de imediato com o chamamento a depor da fonte originária, mesmo que posteriormente a mesma se recuse legitimamente a depor, pois a valoração não depende do conteúdo do depoimento da mesma.
10. Apesar da ausência da arguida nas sessões de julgamento o Tribunal tem à sua disposição a faculdade de tomar as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência …” (negrito nosso), conforme resulta do art.º 333º do CPP.
11. Para poder recorrer ao previsto no art.º 129º do CPP o Tribunal deveria ter assegurado a presença da arguida na audiência de julgamento e confrontá-la com o depoimento do assistente e dar-lhe a possibilidade de exercer o contraditório, e tal não pode ser colmatado com a presença do defensor oficioso (art.º 63º do CPP) por estarmos perante matéria de facto.
12. E, por isso, o Tribunal a quo não pode valorar, em sede da motivação da matéria de facto, o depoimento da testemunha CC, naquela parte e servir como meio de prova.
13. Acresce que, o actual gerente, à data dos factos, não trabalhava na empresa e por isso não sabe nem pode saber se foi com o consentimento/indicação do seu pai que a arguida transferiu para a sua conta vários valores e da forma como foram feitos (com a indicação de pagamentos a fornecedores).
14. Ou até se o Sr. BB usava deste expediente (colocar o nome dos fornecedores) no descritivo das transferências bancárias (ainda que não soubesse utilizar a internet se deu essas instruções) a fim de transferir dinheiro que entendesse e não passar assim no crivo da contabilidade da empresa, e, por conseguinte, ficar dispensado de dar satisfações aos seus familiares directos.
15. E por isso o Sr. CC não sabe se a arguida utilizou os códigos de acesso ao correio eletrónico da sociedade e os códigos de homebanking da conta bancária titulada por aquela empresa, com consentimento, assim como não sabe se a arguida fez várias transferências, entre junho de 2018 a agosto de 2019 autorizada para tal…
16. Só o Sr. BB poderia esclarecer o Tribunal quanto a esta matéria e apenas com as suas declarações o Tribunal poderia ter formado a sua convicção.
17. O Sr. BB gerente de uma empresa há vários anos e por isso um homem experiente recebeu durante mais de um ano os extractos da conta titulada em nome da empresa e não foi ao banco após esse período por livre iniciativa, mas instigado pela sua filha emigrada em ....
18. Isto significa que o Sr. BB, antigo sócio-gerente da assistente, conhecia o saldo da conta bancária da sua empresa e sabia das transferências de vários montantes para a conta da arguida que seria por causa das relações sexuais que “…o dinheiro era transferido para a sua conta…”, conforme consta do auto de denúncia.
19. Da prova produzida resulta de forma inequívoca que o Sr. BB tinha conhecimento das transferências efectuadas para a conta da arguida e qual o saldo da conta da empresa e por isso o Tribunal a quo não podia ter dado como provados os factos 5 a 15.
20. O actual gerente CC refere no seu depoimento que o seu pai vivia da sua reforma e que nunca retirava dinheiro da empresa, dando a entender que não precisava, porém, a relação íntima com a sua funcionária revela precisamente o contrário e certamente precisou de fazer pagamentos que extravasavam a sua reforma e ainda as receitas/lucros da empresa não tendo forma de os justificar contabilisticamente.
21. O Tribunal não conseguiu, através da prova produzida, apurar que não houve o consentimento do Sr. BB.
22. Quanto a esta matéria o Sr. Inspector da Polícia Judiciária Dr. DD refere no seu depoimento que não houve análise à contabilidade da empresa e que só se cingiram à documentação e aos esclarecimentos do Sr. Contabilista.
23. Mais refere que não há raciocínio lógico para as transferências para a conta da arguida, no entanto, tal não significa que a mesma o tenha feito sem o consentimento/autorização do gerente da empresa à data dos factos.
24. Sendo certo que se não houve análise à contabilidade da empresa não temos forma de saber se o Sr. BB também retirou dinheiro da empresa através do mesmo método...
25. Havendo razoável, após a produção de prova, o Tribunal tem, sempre, de actuar em sentido favorável à arguida e, por conseguinte, conduzir à sua absolvição, o que não se sucedeu no caso dos presentes autos, violando, assim, o princípio base da ordem jurídica penal in dubio pro reo.
26. Atenta a falta de prova produzida em sede audiência de julgamento não podia ter sido dado como provados os factos 5 a 15 do acórdão proferido, pois ao fazê-lo a douta decisão extravasou a prova produzida em julgamento.
27. O facto 16 também não pode ser dado como provado, pois, como resulta do relatório social elaborado em 04.04.2024 e junto aos autos o filho mais novo da arguida tinha 5 meses de idade e não 5 anos de idade e por isso aquando da prolação do Acórdão, em 11.02.2025, o menor jamais poderia ter 5 anos de idade, sendo um facto contrário à prova produzida, devendo ser rectifiado com todas as consequências legais.
28. Acresce que, à arguida foi-lhe perdoado um ano de prisão ao abrigo da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto e por isso a pena aplicada é de 1 ano e 6 meses de pena efectiva (art.º 128º, n.º 3 CP).
29. O Tribunal a quo não equacionou e nem se pronunciou quanto à aplicação de uma pena de substituição, nos termos dos art.sº 58º, n.º 1 e 43º, n.º 1 al. a) ambos do CP incorrendo, assim, a nosso ver em omissão de pronúncia.
30. Esta forma de cumprimento da pena, prevista no nosso ordenamento jurídico, permite ao arguido a preservação da liberdade e a manutenção dos seus laços familiares e sociais, cruciais à ressocialização do arguido ao invés do efeito das prisões, não eliminando da equação o efeito devastador no seu agregado familiar, composto pela arguida e pelos seus dois filhos menores (12 anos e 17 meses).
31. Entendemos que, a pena de prisão aplicada à arguida deverá ser substituída dentro do leque das penas de substituição.
32. Do acórdão resulta uma contradição entre a fundamentação e a decisão de condenação, respectivamente entre a al. b) e a) do art.º 205 do CP e ainda que possamos admitir tratar-se de um lapso de escrita (na fundamentação ou na decisão), à cautela pronunciar-nos-emos quanto às duas molduras penais abstratas a considerar no caso em apreço.
33. A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (art.º 40º do CP).
34. Sucede que, como supra se referiu o gerente actual da sociedade assistente nestes autos nada sabe quanto aos factos (sem prejuízo do que supra se alegou quanto ao depoimento indirecto), pois à data não trabalhava na empresa e nada foi apurado quanto ao consentimento do anterior gerente quanto às transferências apuradas para a conta da arguida a título de compensação pela relação sexual existente entre ele e a arguida.
35. O agente da Polícia judiciária admitiu que não foi feita uma análise à contabilidade e que apenas se baseou na prova documental e nos esclarecimentos do contabilista.
36. Atenta a prova produzida não existe um grau elevado de ilicitude dos factos bastante elevado, ao contrário do que se pretende fazer crer, para não falar que atentos os contornos da relação entre o Sr. BB (gerente da empresa à data da alegada prática dos factos) e a arguida, até poder-se-á dar o caso de não haver ilicitude.
37. O Tribunal não se debruçou nem investigou como a isso estava obrigado (art.º 340º CPP).
38. Entendemos que a pena aplicada à arguida extravasa e muito a culpa (a existir) da arguida, devendo a mesma ser menor e suspensa na sua execução, devendo ainda ser levada em consideração as condições pessoais da arguida (art.º 71º CP).
39. Para além do mais, o Tribunal atenua especialmente a pena, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena (art.º 72º do CP).
40. No caso em apreço e por desnecessidade de repetição diremos apenas que o gerente da assistente à
41. Consideramos que as relações sexuais entre o anterior gerente e arguida (contemporâneas do eventual crime) as transferências bancárias para a sua conta autorizadas e/ou com o consentimento daquele diminuem de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena e que devia ter sido tomada em consideração, aplicando-se o estipulado no art.º 73º do CP, o que não sucedeu.
42. Nos termos da referida alínea b) do art.º 205º do CP (que consta da fundamentação do Acórdão) o agente é punido com a pena de prisão de um a oito anos.
43. Atento o disposto no art.º 73º do CP e para efeitos da atenuação prevista no artigo 23º, n.º 2, do CP, havendo lugar à atenuação especial da pena, reduz-se o limite máximo da pena de prisão de um terço (al. a) do art.º 73), o limite mínimo da pena de prisão é reduzido ao mínimo legal se for inferior a três anos (al. b).
44. Assim, atentos os referidos critérios de atenuação especial da pena, no caso dos autos temos uma moldura abstracta de pena de 8 anos de prisão, deduzida de um terço e um limite mínimo igual ao mínimo legal: 5 anos e 4 meses, no limite máximo e 1 mês (art.º 41, n.º 1 do CP) no limite mínimo.
45. Caso estejamos perante uma condenação nos termos da al. a) do art.º 205º do CP (pág. 27), encontramo-nos perante uma moldura abstracta de pena de 5 anos de prisão, deduzida de um terço e um limite mínimo igual ao mínimo legal: 3 anos e 4 meses, no limite máximo e 1 mês (art.º 41, n.º 1 do CP) no limite mínimo.
46. Encontrada a moldura penal abstracta (de 8 ou de 5 anos) julgou-se justa a aplicação de uma pena de 2 anos e 6 meses de prisão efectiva para o crime de abuso de confiança.
47. Atenta a prova produzida e os factos dados como provados (sem prejuízo do que aqui já se disse quanto à produção de prova), a mesma parece-nos excessiva tendo em conta as circunstâncias apuradas em sede de audiência de julgamento quanto à sua situação familiar social e profissional da arguida e às circunstâncias não apuradas e que deviam ter sido apuradas em sede de audiência de julgamento(consentimento nas transferências de vários montantes para a conta da arguida).
48. Quando excessiva - a pena - poderá ocorrer um excesso de prevenção geral e especial que poderá ser contraproducente quanto à ressocialização da arguida.
49. Quando a pena é excessiva e extravasa o limite da culpa pode ter um efeito oposto ao pretendido por ser considerada injusta.
50. Não nos parece, por isso, que as circunstâncias descritas revelem intenso grau de culpa, conforme decorre da douta sentença.
51. Nem e percebe como é que o julgador chegou à pena fixada, não só quanto à pena de prisão de 2 anos de 6 meses, como, também, quanto ao juízo de prognose desfavorável à suspensão, uma vez que da fundamentação nada resulta que sustente tal decisão.
52. Resulta do n.º 2 do art.º 374º do CPP, o Juiz tem de motivar a apreciação que fez do caso submetido a julgamento, expondo fundamentos suficientes de facto e de direito que expliquem o processo lógico e racional que seguiu, nomeadamente, no que respeita à escolha e à medida da sanção aplicada, o que não se verificou.
53. Por fim, atenta a prova produzida, a utilização indevida do depoimento indirecto, a fragilidade da prova, nos termos aqui aduzidos, a medida de 2 anos e 6 meses de pena de prisão efectiva é excessiva, sendo certo que atendendo ao grau médio da culpa e às pouco relevantes exigências de prevenção geral positiva e especial, seria adequada uma pena de prisão de 1 ano e 6 meses, suspensa na sua execução e ou dentro das possibilidades das penas de substituição, sem prejuízo de que caso assim não se entenda se aplique o disposto na al. d) do n.º 1, do art.º 73 do Código Penal (aplicação de multa).
54. O Tribunal não interpretou, nem aplicou, correctamente as normas ínsitas nos art.ºs 129º CPP, 32º CRP, 40º, 70º, 71º, 72º, 73º, 205º do Código Penal e 340º e 374º do Código Processo Penal, as quais se mostram violadas.
Nestes termos e nos demais de direito aplicáveis V. Exas. mui doutamente suprirão, deve ser concedido integral provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogada a douta sentença recorrida, com as consequências legais, designadamente:
a) absolver a Arguida do crime em que foi condenada, bem como dos valores a que foi condenada a pagar à demandante e ao Estado;
b) caso assim não se entenda a pena aplicada à arguida deve substituída por trabalho a favor da comunidade ou regime de permanência na habitação ou,
c) ainda para o caso de tal não se entender deverá ser aplicada à arguida uma pena inferior à que foi fixada, atentos os motivos supra aduzidos, por se entender que a pena aplicada pelo Tribunal a quo extravasa a culpa da arguida e a prova produzida, assim se fazendo a devida JUSTIÇA!

3
Igualmente inconformado com a decisão, dela recorreu o Ministério Público, apresentando a seguinte síntese conclusiva:

1. O presente recurso versa apenas a medida da pena, na qual se entende, salvo o devido respeito, ter havido manifesta desproporção no quantum da pena de prisão.
2. A arguida foi condenada pela prática, em autoria material, de um crime de Abuso de confiança, p. e p. pelo art. 205º, n.º 1 e 4 do C. Penal, numa moldura entre 1 e 8 anos de prisão, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão.
3. Ora, a arguida não compareceu em julgamento em nenhuma das sessões, não demonstrou arrependimento, e não fez qualquer pagamento, ainda que parcial.
4. A arguida apropriou-se entre Junho de 2018 e Agosto de 2019 de 48.198,24€ (quarenta e oito mil cento e noventa e oito euros e vinte e quatro cêntimos) da sua Entidade Patronal.
5. Em processo anterior, Processo 107/15.0T9VLN (certidão junta a 03/03/2023 – referência ...75) foi aplicada uma pena parcelar de 3 anos de prisão, quanto ao mesmo crime e também em relação à entidade patronal, não tendo aquela à data antecedentes criminais, pena que foi suspensa na execução (pena única de 4 anos, a que acresciam os crimes de Procuradoria ilícita e Falsificação).
6. A arguida praticou os factos agora em apreço em pleno período de suspensão da execução da pena no processo supra referido, no qual pelo mesmo crime foi condenada em 3 anos de prisão, e agora, 2 anos e 6 meses de prisão.
7. Daqui a manifesta desproporção, para a qual não é indicada qualquer fundamentação no acórdão recorrido que a justifique.
8. Pelo contrário, ali se refere:
a. O grau de ilicitude dos factos bastante elevado;
b. graves consequências deles decorrentes para a assistente, sendo certo que já decorreram cerca de 5/6 anos sem que esta haja ainda devolvido a quantia de que se apropriou;
c. elevada a censurabilidade – dolo direto, forma mais grave da culpa;
d. as exigências de prevenção geral – confiança das pessoas no estabelecimento de relações laborais – o Direito Criminal não pode pactuar com esta situação e acabar também ele por sancionar levemente estas atuações, deixando a ideia de que são toleradas pela sociedade;
e. exigências acrescidas – as decisões dos tribunais, a propósito de tais casos, não devem deixar que subsista a menor hesitação sobre a proibição de tais comportamentos, sobre a validade da norma violada, isto é, devendo as decisões dos tribunais ser pacificadoras e estabilizadoras;
f. a favor da arguida, apenas o facto de se encontrar inserida na sociedade, bem como as suas condições pessoais;
g. contudo são elevadas as exigências de prevenção especial uma vez que a arguida já foi condenada pela pratica do mesmo tipo de ilícito criminal do analisado nos autos e a prática dos factos em causa nos autos ocorreu no decurso da suspensão da execução da pena daquele outro processo.
9. Pelo que salvo melhor entendimento, a única medida da pena que se mostra adequada e suficiente para assegurar as finalidades da punição é a pena não inferior a 4 anos e 6 meses de prisão.
10. Foram violados os arts. 40º, n.º 1 e 2, 70º e 71º do C. Penal.
Nesta medida, revogando o douto acórdão recorrido nesta parte e proferindo outro que substitua a medida concreta, em quantum não inferior a 4 anos e 6 meses de prisão, farão V. Exas., a costumada e esperada justiça.

4
O Ministério Público respondeu ao recurso apresentado pela arguida, pugnando pela sua improcedência.

5
Também a arguida respondeu ao recurso interposto pelo Ministério Público, propondo a sua improcedência.

6
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação de Guimarães, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso apresentado pela arguida e da procedência do recurso apresentado pelo Ministério Público.

7
Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nada mais foi acrescentado.

8
Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

II FUNDAMENTAÇÃO

1
Objeto dos recursos:

A
Recurso da arguida:

1
As declarações de CC são parcialmente inatendíveis, por força do disposto no artigo 129.º do Código de Processo Penal?

2
A decisão recorrida é nula por não ter ponderado a aplicação de punição não privativa da liberdade?

3
Ocorre erro de julgamento em relação aos factos dados como provados nos pontos 5 a 15 da decisão recorrida?

4
A decisão recorrida viola o princípio in dubio pro reo?

5
A pena aplicada deve ser reduzida, por força da atenuação especial, e deve decretar-se a suspensão da sua execução?

B
Recurso do Ministério Público:

A pena a aplicar à arguida deve ser de prisão de 4 anos e 6 meses?

*
*
2 Decisão recorrida (excertos relevantes):

II. Fundamentação de facto

Factos provados
Com interesse para a decisão da causa, mostram-se provados os seguintes factos:
1 - A arguida exerceu as funções de funcionária de escritório prestando serviços para a sociedade “EMP01... Unipessoal Ldª, com sede na ..., ..., no período compreendido entre maio de 2018 e agosto de 2019.
2 - À altura dos factos, era sócio gerente daquela sociedade EMP01....
3 - No exercício das suas funções a arguida era a única responsável por todo o trabalho administrativo, controlo de faturação, contacto com os clientes e fornecedores, respetivos pagamentos e ainda o pagamento de impostos.
4 - Para tanto, tinha total acesso à conta bancária da sociedade, ao correio eletrónico da mesma através do qual contactava com os clientes e fornecedores bem como aos códigos de acesso ao homebanking da conta bancária com o IBAN  ...50, titulada pela sociedade e sediada no Banco 1..., sendo que o acesso ao homebanking passou a ser só usado desde que a arguida iniciou funções.
5 - A arguida utilizou os códigos de acesso ao correio eletrónico da sociedade e os códigos do homebanking da conta bancária titulada por aquela, os quais acabou por alterar, sem qualquer consentimento, tendo efetuado várias transferências bancárias e depósito de cheques da conta da empresa para conta bancária titulada por si, com o IBAN  ...56 da Banco 2....
6 - Assim, a arguida, efetuou, sem para tal estar autorizada, entre junho de 2018 a agosto de 2019, várias transferências bancárias, depósito de cheques e levantamento destes ao balcão, com origem na conta da EMP01..., Unipessoal, Lda.
7 – A arguida depositou e levantou ao balcão sete cheques, tendo-os creditado na sua conta bancária nº ...20, do Banco 1..., onde figurava o nome da arguida no espaço destinado “à ordem”, a saber:
a) - nº ...46, no valor de 772,00€ que foi levantado ao balcão pela arguida a 08/01/2019;
b) - nº ...80, no valor de 800,00€ creditado na conta da arguida com o nº nº...20, em 08/02/2019;
c) - nº ...91, no valor de 800,00€ creditado na conta da arguida nº...20 em 11/03/2019;
d) - nº ...21, no valor de 850,00€ creditado na conta da arguida nº ...20, a 08/04/2019;
e) - nº ...76 no valor de 850,00€, que foi levantado ao balcão pela arguida a 07/06/2019;
f) - nº ...06, no valor de 1.000,00€, que foi levantado ao balcão pela arguida, a 12/07/2019;
g) - n.º ...42, no valor de 65,53€ creditado na conta da arguida nº ...20 em 29/04/2019;
h) - nº ...29, no valor de 718,08€ creditado na conta da arguida nº ...20 em 19/06/2018.
Totalizando os cheques o valor de 5.855,61€.
8 - Entre 07 de junho de 2018 a 05 de agosto de 2019, a arguida efetuou, pelo menos, 48 (quarenta e oito) transferências bancárias no valor total de 48.198,24€ com origem na conta da EMP01..., Unipessoal, Lda., para a sua conta bancária particular da Banco 2... com IBAN  ...56, cujos valores oscilaram entre os € 350 euros e os € 1.371,55, movimentos esses efetuados  no mesmo dia ou em dias subsequentes.
9 - Para criar a aparência de que estava a pagar fornecedores quando na realidade transferia os valores para a sua conta particular, a arguida apunha na parte destinada ao descritivo/nome das transferências dos destinatários descrições como:
“Liquidação da Fatura” “ EE” “FF”, “EMP02...”, “...”, “...”, “AC ...”, “ EMP02...”, “...”,
“...”.
10 - Os valores mencionados no ponto 8) que a arguida se apropriou tinham a sua origem em pagamentos efetivos devidos a fornecedores ou ao Estado que, no momento dos pagamentos, transferia para a sua conta bancária.
11 - A arguida, com os descritos comportamentos fez sua a quantia de 48.198,24€ (quarenta e oito mil cento e noventa e oito euros e vinte e quatro cêntimos), bem sabendo que não lhe era devida nas ditas circunstâncias e que apenas a podia utilizar para os fins
aludidos em 10.
13 - Atuou à revelia da ofendida bem sabendo que esta, se conhecedora da verdade, jamais permitiria à arguida as suas condutas, o que só o fez atenta a relação de confiança criada entre esta e a sua entidade patronal e o desconhecimento funcional, contabilístico e informático por parte de BB, que confiava na arguida, conseguindo, assim, obter um enriquecimento patrimonial não permitido por lei.
14 - Como consequência direta e necessária da descrita conduta, a arguida causou à “EMP01..., Unipessoal Ld.ª” um prejuízo no valor de 48.198,24€ (quarenta e oito mil cento e noventa e oito euros e vinte e quatro cêntimos), o qual ainda não foi pago.
15 - A arguida agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida por lei.

Mais se provou que:
16 - A arguida, atualmente vive com os dois filhos menores de 12 e 5 anos de idade, numa habitação arrendada, em ..., concelho ..., contando com o apoio dos pais.
Completou o 12º ano de escolaridade e, após um percurso profissional em diferentes áreas, perspetiva integração a curto prazo numa empresa de transportes em ...,
como assistente administrativa.
Vive, atualmente, dos rendimentos da licença parental de 450€, do abono de família 550€ e da pensão de alimentos do filho mais velho 135€, num total de 1.135€.
As despesas mensais, prendem-se com o valor da renda (330€), consumos domésticos (100€) e comunicações (14,00€), num total de 444,00€.
17 – A arguida foi em tempos acompanhada pelo serviço de psiquiatria da ULS..., por comportamento suicidário, tendo ultrapassado a situação. Atualmente, tem consultas de psicologia de forma irregular, por ausência de liquidez financeira para assegurar consultas frequentes.
18 - Na comunidade de pertença, a arguida beneficia de uma imagem social de pessoa integrada, nada constando a seu desfavor.
19 - Por decisão datada de 03.05.2018, transitada em julgado em 04.06.2018, proferida no proc. N.º 107/15.0T9VLN, do Tribunal Judicial de Viana do Castelo, Juízo Central Criminal – J..., foi condenada pela prática, em 2011, de um crime de falsificação de boletins , atas ou documentos, abuso de confiança na forma continuada e um crime de procuradoria ilícita na pena única de 4 anos de prisão, suspensa por igual período sujeita a regime de prova.
*
Factos não provados
Com interesse para a decisão da causa, não se provaram os seguintes factos:
a) Os sete cheques mencionados no ponto 7) deveriam ter sido depositados na conta da sociedade ofendida.
b) O total das transferências mencionadas em 8) foi de € 48.916,32.
c) A arguida causou à assistente um prejuízo de € 54.053.85.
d) Para evitar que o BB se apercebesse dos movimentos bancários, a arguida começou por fazer movimentos de pequenas quantias, que rapidamente passaram a ser em valores superiores a mil euros.
e) A demandante encontra-se no mercado há vários anos, sentiu-se vexada, humilhada e ofendida no seu bom nome e reputação.
f) A demandante ficou com receio de contratar novos funcionários, temendo que pudessem suceder os mesmos factos.
g) Nos moldes descritos no ponto 5), a arguida efetuou transferências para a conta bancaria com o IBAN  ...42 do Banco 1....
*
Convicção do tribunal

O Tribunal formou a sua convicção nos elementos juntos de prova juntos aos autos, conjugados com as declarações do arguido e os depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência de discussão e julgamento, designadamente:
A testemunha  CC, legal representante da assistente, relatou que teve conhecimento dos factos em causa nos autos, quando foi  com a irmã ao banco e aí detetou a falta de dinheiro na conta bancária da sociedade; confirmou que a arguida foi funcionária da empresa entre maio de 2018 a agosto 2019; quando a arguida foi prestar declarações na GNR ouviu a mesma a confessar que tinha desviado dinheiro em falta da empresa; à data dos factos não trabalhava na empresa era o seu pai que se encontrava a gerir a empresa de transportes; sabe que a arguida AA era funcionária, que comprava as cargas, vendia e fazia os pagamentos; era a única pessoa a fazer esse tipo de trabalho e ela tinha acesso às contas bancarias; referiu ainda que os códigos acesso à conta bancária da sociedade foram reencaminhados para o telemóvel dela; era a arguida que detinha os códigos de acesso ao homebanking; desconhece se arguida alterou os códigos de homebanking; à data dos factos no escritório da empresa só estava o seu pai e a arguida; a arguida para se apropriar do dinheiro da sociedade colocava nos descritivos da conta bancária “ pagamentos para a EMP02... “  “ adiantamentos “, e em vez de colocar os o N.I.B. da EMP02... ou outros colocava  o seu próprio N.I.B da Banco 2...; relativamente aos cheques que se destinavam a efetuar pagamentos aos fornecedores e motoristas a arguida não os entregava, depositando-os na sua conta bancária; confrontado com os cheques juntos, admitiu que os cheques de fls. 70, 117, 118 dos autos, correspondem ao salário auferido e devido à arguida e os cheques de fls. 110, 120, 123 e 124 seriam valores devidos à arguida; explicou que o seu pai não sabia usar a internet; após a descoberta dos factos em causa nos autos, a arguida só esteve mais 2 dias na empresa; após estes factos foi o próprio trabalhar para a empresa, tendo constatado que não havia dinheiro, encontrou a empresa só com dividas; teve de despedir funcionários e perderam alguns clientes e fornecedores.
O legal representante da assistente confirmou que presenciou a arguida nas instalações da GNR a admitir a prática dos factos constantes da acusação.
O artigo 128º, nº 1, do Código de Processo Penal, dispõe que "a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto de prova". E, no artigo 129º, nº 1, do mesmo Código, acrescenta-se: "Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas".
A questão a decidir prende-se com saber se o dito depoimento constitui, ou não, depoimento indireto ou de ouvir dizer.
Como se diz no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 24/9/08, consultável em www.dgsi.pt/jtrp, que, pela sua clareza, nos permitimos seguir de perto, “a melhor interpretação da formulação legal conduz a que só se considere depoimento indirecto, v.g. se a pessoa que faz o relato, não assistiu ou presenciou a ocorrência. Assim se entre A e B se desenvolve uma conversa, a que C pessoalmente assiste, mas na qual não intervém, apesar de o seu depoimento «resultar do que ouviu dizer a pessoas determinadas» temos como indiscutível que não estamos perante depoimento indirecto, ele esteve presente, viveu a realidade, ouviu as conversas de A e B.”
No caso vertente, temos, pois que quanto à declaração confessória por parte da arguida no posto da GNR não há depoimento indireto, porque ela foi diretamente ouvida pelo representante legal da assistente.
No entanto, a prova dos factos constituintes do crime, realizada apenas pela declaração da testemunha que ouviu a sua confissão, e apenas com base nela, é indiscutivelmente face ao nosso actual regime normativo uma prova indirecta, uma «prova em segunda mão».
Porém, dos art. 128º, 129º e 130º do Código de Processo Penal resulta que, embora o testemunho direto seja a regra, o depoimento indireto não é, em absoluto, proibido.
Sendo certo, por outro lado, que a disciplina do artigo 129º, nº 1, ao permitir a valoração do depoimento indireto não viola o princípio da estrutura acusatória do processo, nem o da imediação, nem a regra do contraditório se o tribunal ao mesmo tempo que admite o testemunho de ouvir dizer, impõe que as pessoas referenciadas nesse depoimento sejam, elas próprias, chamadas a depor, assegurando o contraditório. Assim, só é admissível que as pessoas referidas não sejam chamadas a depor, se a sua inquirição não for possível, "por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas". Nessa hipótese, tornando-se impossível interrogar as pessoas que as testemunhas indicaram como fonte, tem de se considerar razoável e proporcionada a limitação introduzida à proibição do depoimento indireto.
E, como se diz no citado aresto, “esta impossibilidade, constituindo uma limitação do contraditório, aumenta a possibilidade de manipulação da prova esperando-se do tribunal um especial cuidado na apreciação da prova, que decorre segundo as regras da experiência e o princípio da livre convicção, artigo 127º do Código de Processo Penal”.
No caso vertente não foi possível ouvir a pessoa «fonte» do depoimento, que é a arguida, porque a mesma não esteve presente em nenhuma das audiências de discussão e julgamento, apesar de convocada, e não foi possível, pese embora os adiamentos e as diligências encetadas com vista à sua presença.
Donde resulta que, não foi possível chamar a arguida a depor, ou seja, verificou-se a impossibilidade de ouvir a pessoa indicada como fonte.
Todavia, como se escreveu no Acórdão a que vimos fazendo referência, essa testemunha pôde ser contraditada pela arguida, através do seu defensor, pelo que é razoável e proporcionado que esse depoimento possa ser valorado como meio de prova, sendo apreciado pelo tribunal com a prudência que a «impossibilidade» de ouvir a fonte impõe e de acordo com as regras da lógica e da experiência.
Assim, e considerando o teor do depoimento da supra referida testemunha, conjugado com toda a restante materialidade apurada, designadamente toda a documentação que comprova as transferências monetárias efetuadas para a conta da arguida, sendo que apenas a arguida se encontrava na posse de todos os elementos que permitiam a realização de tais transferências, não restaram quaisquer dúvidas ao tribunal concluir pela prática pela arguida dos factos dados como provados.
A testemunha GG, contabilista certificado, realizava a contabilidade da assistente; referiu conhecer a arguida por ter sido funcionária da EMP01... Unipessoal; recorda que constatou que a empresa estava a pagar mais do que era devido, questionou a arguida e aquela referiu que se tratavam de adiantamentos à EMP02...; recorda ter constatado que os cheques eram levantados, mas não se destinavam ao pagamento de fornecedores, bem como os cheques dirigidos à Autoridade Tributaria, os valores não apareciam no site da Autoridade Tributária; referiu que a arguida recebia o salário por cheque ou transferência; alguns cheques seriam pagamento de salário, o salário que a arguida auferia nem sempre era o mesmo valor; por regra, era que a arguida entregava os documentos para a contabilidade, houve vezes que vinha acompanhada pelo sr. BB; referiu ainda que “ o sr. BB, ele não era dado às tecnologias “
A testemunha DD, inspetor da PJ, referiu que a assistente  se trata de  uma empresa unipessoal, em que o sócio gerente se encontrava arredado das questões informáticas, tendo contratado a arguida que passou a tratar de fornecedores, pagamentos tudo através dos sistemas informáticos e dessa forma tinha acesso à conta bancária da empresa; confirmou as transferências bancárias para a conta da arguida em causa nos autos, onde se encontrava no descritivo nomes de fornecedores da empresa, mas o destino era a conta da arguida.
A testemunha HH, chefe de tráfego, funcionária da empresa desde março de 2021, conhece a arguida de vista, a sua função é gerir os camiões, motoristas, fornecedores e clientes, faz o trabalho administrativo; referiu que em março de 2021 não havia dinheiro para pagar gasóleo, nos programas informáticos estava tudo dado como liquidado, mas constatamos que não estava pago; nessa altura recorda que houve fornecedores que não queriam trabalhar com a empresa, não havia confiança na empresa; ainda trabalhou com o sr. BB; atualmente a empresa já está muito melhor, tendo pago as suas dívidas.
O depoimento das mencionadas testemunhas foi coerente e conhecedor dos factos em discussão nos autos, que conjugado com a demais prova produzida designadamente documental mereceu a credibilidade do tribunal.
O ponto 7 alínea h), resulta do documento de fls. 166 dos autos, no qual expressamente se encontra inscrito no motivo da operação – pagamento de salário, conjugado com as declarações do assistente que admitiu que houve cheques e transferências que tinham necessariamente de se considerar como o pagamento do salário da arguida.
O ponto 8 dos factos provados resulta da análise do teor do documento junto a fls. 38.
A testemunha II, motorista de pesados, trabalhou na empresa no ano de 2019, apenas no mês de maio; confirmou que a arguida era a funcionária do escritório e recebeu € 450 de salário, foi através transferência; foi a arguida que a contratou, tendo-lhe sido referido que ia auferir o SMN e subsídio alimentação, no entanto só lhe foram pagos € 450.
A testemunha JJ, empresário, da empresa “ EMP03... “, recorda da arguida ter estado com o sr. BB para a reparação de uma carroçaria, prestou 2 ou 3 serviços à empresa; os pagamentos eram feitos por transferência; existe uma fatura em divida, mas acha que já é da altura da gerência  do filho e nada mais sabia quanto aos factos em discussão nos autos.
A testemunha KK, administrativa, referiu ter ido a uma entrevista de emprego na empresa do sr. BB e nada mais sabia quanto aos factos em discussão nos autos.
A testemunha LL, conhece a arguida através do sr. BB que lhe alugou um armazém e a AA deixava a renda e nada mais sabia quanto aos factos em discussão nos autos.
A testemunha MM, apenas conhece a arguida por serem da mesma terra e nada mais sabia quantos aos factos em discussão nos autos.
A situação pessoal e económica do arguido, o tribunal fundou-se no relatório social e os antecedentes criminais, no CRC juntos aos autos.
Os factos dados como não provados resultaram da ausência de prova respetiva.
*
Os restantes factos que não se deram como demonstrados, resultaram não provados, por falta de prova sobre os mesmos nos termos acima assinalados, e/ou são inócuos e outros, ainda, versam sobre matéria conclusiva e/ou de direito.
***
(…)
*
Determinação da Medida da pena:
Uma vez feita a qualificação jurídica dos factos, é chegado o momento de determinar a medida concreta da pena aplicável aos arguidos.
São as seguintes as molduras penais abstratas a considerar:
- ao abuso de confiança simples corresponde a moldura pena abstrata de prisão 1 mês a 3 anos ou multa de 10 a 360 dias [cfr. arts. 47.º, n.º 1 e 205.º, n.º 1 do C.P.].
- ao crime de abuso de confiança qualificado corresponde a moldura pena abstrata de prisão 1 ano a 8 anos [cfr. art. 205.º, n.º 4, al. b) do C.P.].
Nos termos do disposto pelo artigo 40º do Código Penal a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (nº 1), em caso algum podendo a pena ultrapassar a medida da culpa (nº 2).
A determinação da medida concreta da pena terá que ser feita, nos termos do artigo 71º, nº 1 e 2 do Código Penal, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção de futuros crimes, servindo como fatores de doseamento da pena as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham contra ou a seu favor considerando, nomeadamente: o grau de ilicitude do facto, o seu modo de execução e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior e posterior ao facto e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto.
Passemos então à determinação da medida concreta da pena a aplicar à arguida, atendendo às circunstâncias referidas no art. 71.º, n.º 2 do Código Penal.
Assim, há que relevar especialmente o seguinte:
- o grau de ilicitude dos factos foi bastante elevado, tendo em conta o seu modo de execução usou, de forma, lamentável a confiança em si depositada pela entidade patronal, e as graves consequências deles decorrentes para a assistente, sendo certo que já decorreram cerca de 5/6 anos sem que esta haja ainda devolvido a quantia de que se apropriou.
Mostra-se igualmente elevada a censurabilidade evidenciada do conjunto dos factos, porquanto a arguida agiu com dolo direto, forma mais grave da culpa.
As consequências que advieram para a assistente, como resulta da matéria de facto assente, já que nada lhe foi devolvido.
As exigências de prevenção geral, na medida em que este tipo de situações reflete-se negativamente na confiança das pessoas no estabelecimento de relações laborais, confiança esta que é essencial para que se estabeleçam relações jurídicas que possa prosseguir normalmente. E fazendo jus à sua função de direito de primeira proteção dos bens jurídicos essenciais ao viver em sociedade, o Direito Criminal não pode pactuar com esta situação e acabar também ele por sancionar levemente estas atuações, deixando a ideia de que são toleradas pela sociedade. Com efeito, como o caso dos autos não é infelizmente singular, o que coloca exigências acrescidas, devem as decisões dos tribunais, a propósito de tais casos, não deixar que subsista a menor hesitação sobre a proibição de tais comportamentos, sobre a validade da norma violada, isto é, devendo as decisões dos tribunais ser pacificadoras e estabilizadoras.
A favor da arguida, apenas o facto de se encontrar inserida na sociedade, bem como as suas condições pessoais; contudo são elevadas as exigências de prevenção especial uma vez que a arguida já foi condenada pela pratica do mesmo tipo de ilícito criminal do analisado nos autos e a prática dos factos em causa nos autos ocorreu no decurso da suspensão da execução da pena daquele outro processo.
Sopesando todos os fatores enunciados, considera-se adequado, crendo que assim se satisfazem as finalidades de tutela dos bens jurídicos, sem desatender ao máximo que nos é fornecido pela culpa da arguida, aplicar-lhe a pena de 2 (dois )  anos e 6 ( seis ) meses  de prisão.
Aqui chegados, a pena aplicada, porque não superior a 5 anos, pode ser suspensa na sua execução.
A pena única de prisão aplicada ao arguido, porque superior a 2 anos e não superior a 5 anos, pode ser suspensa na sua execução, sendo esta a única alternativa possível.
Importa, então, saber se se mostra aconselhável a suspensão da execução da pena
única de prisão imposta à arguida.
Pressuposto formal de aplicação do instituto da suspensão da execução da pena é,
como já se disse, que a pena seja de prisão em medida não superior cinco anos, o que, in
casu, se verifica.
Pressuposto material de aplicação do instituto da suspensão da execução da pena é que o tribunal conclua que “a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” – cfr. art. 50º, nº 1.
Ora, quanto ao primeiro pressuposto, diremos que, como se lê no Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães proferido a 19.09.2023, referente ao processo n.º 2071/22.0JABRG.G1 do JCC de Guimarães, Juiz ... «não podemos olvidar, que a pena de prisão suspensa, sujeita ou não a certas condições ou obrigações, é a reação penal por excelência que exprime um juízo de desvalor ético – social e que não só antevê, como propicia ao condenado, a sua reintegração na sociedade, que é um dos vetores dos fins das penas.
Porém, um dos seus vetores é a proteção dos bens jurídicos violados e, naturalmente, a proteção da própria vítima e da sociedade em relação aos agentes do crime, de modo que, responsabilizando suficientemente estes últimos, se possa esperar que os mesmos não venham a adotar novas condutas desviantes.
Nesta sede não estão em causa “quaisquer considerações relativas à culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigência mínimas e irrenunciáveis do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas por elas limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto em análise”, cfr. F. Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, p. 344.
Na mesma linha, no Acórdão RE, de 24.04.2007, CJ, Ano XXXII, Volume 1, p. 258 e segs., pode ler-se “Desde que as exigências de prevenção especial fiquem asseguradas, a pena de prisão só não deve ser suspensa na sua execução se a esta decisão se opuserem as exigências mínimas de prevenção geral constituído pela defesa irrenunciável do ordenamento jurídico”.»
Ou ainda, como se diz no Ac. do Relação de Guimarães proferido naquela mesma data, mas agora referente ao processo n.º 167/22.7GAMNC, deste Juízo Central Criminal de Viana do Castelo, Juiz ... onde se diz que «O objectivo de política criminal do instituto é “(…) o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção», «melhora» ou – ainda menos – «metanóia» das concepções daquele sobre a vida e o mundo. (…). Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência» (Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 333).
São finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção geral e de prevenção especial [a proteção dos bens jurídicos e, na medida do possível, a reintegração do agente na comunidade (artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal)], e não considerações relativas à culpa – aspeto comum a todas as operações de escolha das penas de substituição – que fundam a opção pela aplicação da suspensão da execução da pena de prisão. Porém, os objetivos de prevenção especial, de reinserção social do agente, têm sempre como limite o conteúdo mínimo da prevenção geral de integração.
A prevenção geral “deve surgir aqui unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz das exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.” (Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 343). Vale isto por dizer, o que não raras vezes é esquecido, que não basta a formulação de um juízo de prognose favorável para que seja decretada a suspensão da execução da prisão.
A prognose favorável radica exclusivamente em considerações de prevenção especial de socialização e a lei, para além dela, exige ainda que ao decretamento da suspensão se não oponham as necessidades de prevenção e reprovação do crime.
O juízo de prognose a realizar pelo tribunal parte da análise conjugada das circunstâncias do caso concreto, das condições de vida e conduta anterior e posterior do agente e da sua revelada personalidade, análise da qual resultará como provável, ou não, que o agente irá sentir a condenação como uma solene advertência, ficando a sua eventual reincidência prevenida com a simples ameaça da prisão (com ou sem imposição de deveres, regras de conduta ou regime de prova), para concluir ou não, pela viabilidade da sua socialização em liberdade.»
Assim, a prognose exige uma valoração total de todas as circunstâncias que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido. Estas circunstâncias são a sua personalidade (por ex., inteligência e carácter), a sua vida anterior (por exemplo, outros delitos anteriormente cometidos da mesma ou de outra natureza), as circunstâncias do delito (por exemplo motivações e fins), o seu comportamento depois de ter cometido o crime (por exemplo reparação do dano, arrependimento), as circunstâncias da sua vida (por exemplo, profissão, casamento e família) e os efeitos que se esperam da suspensão.
Porém, ainda que centrada na pessoa da arguida no momento atual e na avaliação da respetiva capacidade de socialização em liberdade, ou seja, em considerações radicadas na prevenção especial, a decisão que aprecie a propriedade de escolha por esta, ou outra, pena de substituição, deve atender igualmente às exigências de ponderação geral positiva, para que a reação penal responda adequadamente às expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada e assegure a proteção do bem jurídico afetado, como imposto pela parte final do n.º 1 do art. 50.º do Código Penal.
Esse necessário balanceamento entre as finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial de socialização, em que a primeira exerce função limitadora da segunda, encontra relação direta com a gravidade da pena e a proximidade do limite de admissibilidade da pena de substituição.
Neste ponto, as questões que se colocam passam por aquilatar se existem condições para confiar que a arguida será capaz de se ressocializar em liberdade, sem voltar a práticas similares à aqui censurada, e, mesmo que esse risco fundado possa ser afirmado, se a pena de substituição não coloca em causa o limite mínimo de prevenção geral constituído pela defesa irrenunciável do ordenamento jurídico.
Pois bem, no caso concreto, não obstante a medida concreta da pena o permitir, não há lugar à suspensão da execução da pena de prisão, uma vez que tal se não afigura adequado e suficiente a assegurar as finalidades da punição, nomeadamente as atinentes à prevenção do cometimento de futuros crimes, e, ainda, considerando que as exigências
de prevenção especial (tendo em conta a pessoa do agente que se quer que ganhe consciência do dever ser da vida em sociedade e do valor dos bens jurídicos pessoais) são elevadas dado que a arguida não demonstrou qualquer colaboração com o tribunal, não  comparecendo em audiência de discussão de julgamento, voltou a delinquir, praticando o mesmo tipo de crime que anteriormente havia sido condenada em pena de prisão cuja execução foi suspensa e a prática dos factos em análise nos autos foram-no no período daquela suspensão, o que como denota uma falta de juízo auto-crítico e consciencialização dos seus comportamentos e possíveis consequências daí advenientes.
Dito isto, antevêem-se dificuldades no seu processo de reinserção social e capacidade de mudança para adequar comportamentos aos valores e regras de convivência em sociedade, pelo é necessário que a arguida dê provas de pretender efetivamente infletir o seu percurso de vida, existindo grande incerteza quanto ao seu posicionamento futuro em face da vida em sociedade e das suas normas de conduta e nomeadamente perante o direito. Ou seja, a sua personalidade não dá garantias de que estas situações não voltem a ocorrer e não permite aqui um juízo de prognose favorável, indispensável para a aplicação da suspensão da execução da pena.
Isto significa que num caso como o dos autos, a substituição da pena de prisão pela suspensão da respetiva execução não realizaria, o fim visado pelo seu decretamento – a prevenção geral e especial –, pois que se nos suscitarem manifestas dúvidas sobre a capacidade da arguida para alcançar o significado que a oportunidade de ressocialização aportaria, que a suspensão significa, a verdade é que neste tipo de crimes o decretamento da suspensão exige que a tal se não oponham as necessidades de prevenção e reprovação do crime, o que in casu não se verifica de todo.
Assim, o juízo de prognose a realizar no caso vertente, tomando em devida conta a concatenação das circunstâncias do caso concreto, das condições de vida da arguida e da sua revelada personalidade, não nos confere como provável que venha a sentir a condenação como uma solene advertência, e que daí resulte prevenida uma eventual reincidência com a simples ameaça da prisão (com ou sem imposição de deveres, regras de conduta ou regime de prova), o que inviabiliza a conclusão pela viabilidade da sua socialização em liberdade.
Conclui-se, pois, que a suspensão da execução da pena se mostra inadequada ao caso concreto pelo que inviabilizada fica a formulação de um juízo de prognose favorável, no sentido de que o sancionamento da arguida com uma pena de prisão suspensa na respetiva execução, bastaria para o afastar da prática de novos crimes e, portanto, realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Donde se conclui que a pena de prisão aplicada deve ser efetiva.
(…)
**
Da aplicação da Lei nº 38-A/2023 de 2 de agosto  
Os factos pelos quais a arguida vai condenada foram praticados entre maio de 2018 e agosto de 2019.
Em 1 de Setembro de 2023 entrou em vigor a Lei nº 38-A/2023 de 2 de agosto que estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, abrangendo as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto.
Ora, segundo dispõe o nº 1 do seu art. 3º “Sem prejuízo do disposto no artigo 4º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos”.
Resulta, portanto, da letra da Lei que os requisitos para a aplicação do perdão são os seguintes:
- O crime ter sido praticado até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023;
- O seu autor ter entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto;
- A pena imposta não ser superior a 8 anos de prisão;
- O crime não estar abrangido por alguma das exceções enunciadas no art. 7º, que elenca os casos em que os condenados não beneficiam de perdão e/ou de amnistia.
Vistos os autos verificamos que à data da prática dos factos, a arguida preenche os requisitos acima transcritos.
Assim, declaro perdoada a pena de 1 ano de prisão aplicada à arguida pela prática como autora de um crime de abuso de confiança de confiança previsto e punido pelo artigo 205º, n.º 1 e 4 alínea a), do Código Penal, verificado que do CRC daquela não consta a prática de infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor da mencionada lei, nos termos do art. 8.º, n.º 1 da supra citada Lei e do art. 128.º, n.º 3 do Código Penal.

3 O direito.

A Recurso da arguida:

1
As declarações de CC são parcialmente inatendíveis, por força do disposto no artigo 129.º do Código de Processo Penal?

Nesta parte, conclui-se do seguinte modo:

6. A testemunha CC, legal representante da assistente, nada sabe quanto aos factos relatados e participados criminalmente pelo seu falecido pai, pois à data não trabalhada na empresa.
7. O Tribunal firma a sua convicção na premissa de que o legal representante da assistente havia confirmado que presenciou a arguida nas instalações da GNR (nunca referiu que foi nas instalações da GNR mas perante a GNR) a admitir a prática dos factos constantes da acusação, estribando-se no art.º 129º do CPP.
8. Em termos objectivos, para que o depoimento indirecto do gerente CC pudesse ser valorado a lei apenas exige que o tribunal diligencie no sentido de obter o depoimento da fonte, o que não sucedeu.
9. A proibição de valoração inerente ao artigo 129.º cessa de imediato com o chamamento a depor da fonte originária, mesmo que posteriormente a mesma se recuse legitimamente a depor, pois a valoração não depende do conteúdo do depoimento da mesma.
10. Apesar da ausência da arguida nas sessões de julgamento o Tribunal tem à sua disposição a faculdade de tomar as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência …” (negrito nosso), conforme resulta do art.º 333º do CPP.
11. Para poder recorrer ao previsto no art.º 129º do CPP o Tribunal deveria ter assegurado a presença da arguida na audiência de julgamento e confrontá-la com o depoimento do assistente e dar-lhe a possibilidade de exercer o contraditório, e tal não pode ser colmatado com a presença do defensor oficioso (art.º 63º do CPP) por estarmos perante matéria de facto.
12. E, por isso, o Tribunal a quo não pode valorar, em sede da motivação da matéria de facto, o depoimento da testemunha CC, naquela parte e servir como meio de prova.

Vejamos o que consta da decisão recorrida:

A testemunha  CC, legal representante da assistente, relatou que (…) quando a arguida foi prestar declarações na GNR ouviu a mesma a confessar que tinha desviado dinheiro em falta da empresa;(…).
O legal representante da assistente confirmou que presenciou a arguida nas instalações da GNR a admitir a prática dos factos constantes da acusação.
O artigo 128º, nº 1, do Código de Processo Penal, dispõe que "a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto de prova". E, no artigo 129º, nº 1, do mesmo Código, acrescenta-se: "Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas".
A questão a decidir prende-se com saber se o dito depoimento constitui, ou não, depoimento indireto ou de ouvir dizer.
Como se diz no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 24/9/08, consultável em www.dgsi.pt/jtrp, que, pela sua clareza, nos permitimos seguir de perto, “a melhor interpretação da formulação legal conduz a que só se considere depoimento indirecto, v.g. se a pessoa que faz o relato, não assistiu ou presenciou a ocorrência. Assim se entre A e B se desenvolve uma conversa, a que C pessoalmente assiste, mas na qual não intervém, apesar de o seu depoimento «resultar do que ouviu dizer a pessoas determinadas» temos como indiscutível que não estamos perante depoimento indirecto, ele esteve presente, viveu a realidade, ouviu as conversas de A e B.”
No caso vertente, temos, pois que quanto à declaração confessória por parte da arguida no posto da GNR não há depoimento indireto, porque ela foi diretamente ouvida pelo representante legal da assistente.
No entanto, a prova dos factos constituintes do crime, realizada apenas pela declaração da testemunha que ouviu a sua confissão, e apenas com base nela, é indiscutivelmente face ao nosso actual regime normativo uma prova indirecta, uma «prova em segunda mão».
Porém, dos art. 128º, 129º e 130º do Código de Processo Penal resulta que, embora o testemunho direto seja a regra, o depoimento indireto não é, em absoluto, proibido.
Sendo certo, por outro lado, que a disciplina do artigo 129º, nº 1, ao permitir a valoração do depoimento indireto não viola o princípio da estrutura acusatória do processo, nem o da imediação, nem a regra do contraditório se o tribunal ao mesmo tempo que admite o testemunho de ouvir dizer, impõe que as pessoas referenciadas nesse depoimento sejam, elas próprias, chamadas a depor, assegurando o contraditório. Assim, só é admissível que as pessoas referidas não sejam chamadas a depor, se a sua inquirição não for possível, "por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas". Nessa hipótese, tornando-se impossível interrogar as pessoas que as testemunhas indicaram como fonte, tem de se considerar razoável e proporcionada a limitação introduzida à proibição do depoimento indireto.
E, como se diz no citado aresto, “esta impossibilidade, constituindo uma limitação do contraditório, aumenta a possibilidade de manipulação da prova esperando-se do tribunal um especial cuidado na apreciação da prova, que decorre segundo as regras da experiência e o princípio da livre convicção, artigo 127º do Código de Processo Penal”.
No caso vertente não foi possível ouvir a pessoa «fonte» do depoimento, que é a arguida, porque a mesma não esteve presente em nenhuma das audiências de discussão e julgamento, apesar de convocada, e não foi possível, pese embora os adiamentos e as diligências encetadas com vista à sua presença.
Donde resulta que, não foi possível chamar a arguida a depor, ou seja, verificou-se a impossibilidade de ouvir a pessoa indicada como fonte.
Todavia, como se escreveu no Acórdão a que vimos fazendo referência, essa testemunha pôde ser contraditada pela arguida, através do seu defensor, pelo que é razoável e proporcionado que esse depoimento possa ser valorado como meio de prova, sendo apreciado pelo tribunal com a prudência que a «impossibilidade» de ouvir a fonte impõe e de acordo com as regras da lógica e da experiência.
Assim, e considerando o teor do depoimento da supra referida testemunha, conjugado com toda a restante materialidade apurada, designadamente toda a documentação que comprova as transferências monetárias efetuadas para a conta da arguida, sendo que apenas a arguida se encontrava na posse de todos os elementos que permitiam a realização de tais transferências, não restaram quaisquer dúvidas ao tribunal concluir pela prática pela arguida dos factos dados como provados.
O problema que, em geral, aqui se coloca é o seguinte: o artigo 129.º do Código de Processo Penal é aplicável ao caso da testemunha que no seu depoimento relata o que ouviu dizer ao arguido, designadamente a sua confissão? Em rigor, para além da formulação da questão tal como é colocada, cumpre ter presente que CC é representante legal da assistente BB, Lda., e, portanto, não tem estatuto de testemunha, mas sim assistente, e que, nessa qualidade, presta declarações e não depoimento.
Comecemos por analisar o n.º 1 do artigo 128.º do Código de Processo Penal:

A testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento direto e que constituam objeto da prova.
Esta é a disposição que institui como regra geral a exigência do caráter direto do conhecimento do depoimento testemunhal (e de toda as outras declarações de assistente e parte civil, tal como decorre do artigo 145.º, n. 3, do Código de Processo Penal) – com isto se pretende significar que a testemunha deporá sobre o que viu ou ouviu de modo coevo com os factos em julgamento.
Todavia, a lei contém a seguinte exceção:
Artigo 129.º
Depoimento indireto
1 - Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.
2 - O disposto no número anterior aplica-se ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documento de autoria de pessoa diversa da testemunha.
3 - Não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos.
Por depoimento indireto pretende significar-se que o depoimento testemunhal reproduz outro meio de prova de que teve conhecimento em momento posterior à prática dos factos.
Mas não deve confundir-se depoimento direto com prova direta.
Prova direta é aquela em que o julgador verifica com os seus próprios sentidos o facto a averiguar, quando nada se interpõe ente o juiz e o facto a apurar, o juiz é posto em contacto imediato com objeto da prova – Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pag. 210; Castro Mendes, Do Conceito de prova em processo Civil, pag. 176, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 3.º, pag. 241. Exemplos deste tipo de prova é a inspeção ao local ou a observação de objetos apreendidos que constituam tema da prova.
Prova indireta é aquela em que se interpõem entre o facto e a sua representação mental pelo juiz fenómenos de transmissão do conhecimento, como, por exemplo, documentos ou testemunhas, tendo o juiz que usar agora, para além dos sentidos, outros instrumentos, como o raciocínio e as regras da experiência – Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, III, 209, nota 2; Alberto dos reis, Código de Processo Civil Anotado, 3., pag. 242.
Provas críticas ou indiciárias, constituem uma subclassificação das provas indiretas, e nelas o facto, ou objeto, posto ao alcance da perceção do juiz, sem representar o outro, permite induzir, argumentar, tirar ilações – segundo as máximas da experiência – no sentido da realidade desse outro facto. Constitui índice dele, suscita a respetiva ideia atuando sobre o raciocínio, e não sobre os sentidos e sobre a imaginação – Manuel de Andrade, ob. cit., pag. 210.
Assim, não raras vezes se afirma, em evidente equívoco, que se o facto foi dado como provado com base no depoimento de uma testemunha, que o afirmou, esteve em causa prova direta, e se foi resultado de inferência ou ilação, esteve em causa a prova indireta. Como se vê, não é assim, pois, rigorosamente, a ilação ou inferência é uma forma de julgar como provado um facto com base em prova crítica ou indiciária, a qual é uma subespécie da prova indireta. Não se deve confundir o conhecimento direto que o meio de prova tenha do facto sobre que depõe ou declara com o caráter direto da prova, pois, como se viu, estão em causa categorias dogmáticas diversas e não sobreponíveis
Portanto, o depoimento direto e o depoimento indireto são, ambos, provas indiretas.
O chamado depoimento indireto está agora expressa e minuciosamente regulamentado na lei processual penal, não obstante já se admitir também na vigência do Código de Processo Penal de 1929, aprovado pelo Decerto n.º 16:489, de 15/02/1929. Na verdade, o artigo 233.º daquele diploma previa, na secção relativa à prova testemunhal e por declarações, sob a epígrafe razão de ciência, que “às testemunhas será perguntado o modo por que souberam o que depõem. Se disserem que o sabem de vista, serão perguntadas em que tempo e lugar o viram, se estavam outras pessoas que também vissem e quais eram. Se disserem que sabem de ouvido, serão perguntadas a quem o ouviram, em que tempo e lugar, e se estavam aí outras pessoas que o ouvissem também e quais eram, escrevendo-se todas as respostas que interessarem á instrução.” Todavia, como se vê com clareza, no domínio daquela legislação, não existiam os constrangimentos de procedimento hoje plasmados no preceito acima transcrito, para a validade e valoração da testemunha de outiva.

De igual modo se passam as coisas no processo civil, tal como resulta do preceito que regula o objeto do depoimento das testemunhas:
Artigo 516.º (art.º 638.º CPC 1961)
Regime do depoimento
1 - A testemunha depõe com precisão sobre a matéria dos temas da prova, indicando a razão da ciência e quaisquer circunstâncias que possam justificar o conhecimento; a razão da ciência invocada é, quando possível, especificada e fundamentada.
(…)
E se consultarmos Códigos de Processo Civil anteriormente em vigor, constataremos regimes semelhantes, se não iguais, embora com diferentes textos.
Ou seja, o depoimento indireto era, no Código de Processo Penal anterior, e é, no Código de Processo Civil atual, livremente apreciado pelo tribunal, sem amarras de procedimento suplementares obrigatórias, sendo certo que tais cuidados e precauções não estão subtraídas ao poder do tribunal, que as pode (eventualmente, deve, dir-se-ia) levar a cabo, a bem do cabal esclarecimento das questões a julgar.
E não podemos desconsiderar que quer a Doutrina, quer a Jurisprudência, quer o legislador estavam, aquando da publicação do Código de Processo Penal em vigor, perfeitamente a par da origem e da evolução do tratamento dado à questão da testemunha -de-ouvir-dizer em vários ordenamentos jurídicos – para uma visão abrangente do tema, cfr. Costa Andrade, in Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra Editora, Reimpressão, pag. 159 e segs.
“É sobre o pano de fundo da experiência adquirida pelo exercício comparatístico que ensaiaremos a aproximação e caracterização geral do sistema português das proibições de prova. Um exercício em que começaremos por referenciar e pôr a descoberto tanto as linhas mais expostas de continuidade com os direitos alemão e americano, como os momentos onde mais avulta a singularidade própria do ordenamento jurídico processual português.
(…)
c) Considerações idênticas poderia, em terceiro lugar, fazer-se a propósito de um preceito como o constante do artigo 129.º (Depoimento indireto). Através do qual o legislador português se propôs dar resposta, inter alia, aos problemas suscitados pelas testemunhas -de-ouvir-dizer. E também aqui o confronto com o direito alemão ganha relevo já pela existência do preceito em si (a lei alemã é omissa) já pelo teor da disciplina normativa que neles e consagra. Isto na medida em que se preveem e regulamentam diretamente questões que continuam a alimentar as controvérsias mais empenhadas da dogmática e da praxis alemãs.” – cfr. ob. cit. pag. 188/191.
A respeito da transição legislativa referida, é esclarecedor o seguinte texto:
“Em toda esta matéria, e na relativa aos meios de obtenção da prova, que no Título seguinte se regula, mas que com ela está estreitamente relacionada, conforme já foi exposto, salientam-se os seguintes parâmetros gerais que traduzem desvios do regime anterior e sentidos de orientação fixados pela Lei n.º 23/86, de 26 de setembro, que, como é consabido, concedeu ao Governo autorização para aprovar o novo Código de Processo Penal:
a) Abolição da diferença estatutária entre testemunhas e declarantes e proibição, em princípio, do testemunho que não verse sobre factos concretos e de conhecimento direto, em particular do testemunho de «ouvir dizer» e da consagração do privilégio da não autoincriminação;
(…)
De notar que prioritariamente o Código suprimiu a distinção entre testemunhas e declarantes, que já era de difícil justificação no domínio do Código de Processo Penal de 1929, face à livre apreciação da prova fornecida por uns e outros. No entanto, para o caso particular das partes intervenientes no processo – arguido, assistente e partes civis – continua o Código a usar o termo declarações, encontrando-se esta reguladas no Capítulo II, artigos 140.º a 145.º.
(…)
No artigo 129.º, e também de algum modo no artigo 130.º, estabelecem-se regras sobre o chamado depoimento indireto.
Os depoimentos valem conforme a razão de ciência de quem os presta; por isso, os depoimentos sem essa razão não merecem crédito, nem há que levá-los em conta ou mesmo escrevê-los.
Na estruturação dos dois artigos que acabam de ser mencionados seguiram-se de perto os ensinamentos da doutrina – cfr. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, II; pag. 338-339, e Costa Andrade, Coletânea de Jurisprudência, Ano VI, Tomo I, pag. 6 e segs. Este último autor, cujo estudo influenciou manifestamente a estruturação dos artigos 129.º e 130.º, formulou as seguintes conclusões no domínio do Código de 1929, mas inteiramente válidas perante o novo diploma:
a) A utilização e valoração de testemunhos de ouvir dizer é incompatível com um processo de estrutura acusatória, por ser contrária aos princípios da imediação e de contrainterrogatório na fase de julgamento;
b) Ora a Constituição da República Portuguesa (artigo 32.º, n.º 5) dispõe que que o processo penal tem estrutura acusatória. Devem, assim, considerar-se incompatíveis com a Constituição e, por isso, inderrogavelmente excluídos, os testemunhos por ouvir dizer.” – cfr. Maia Gonçalves, Meios de Prova, obra coletiva, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, pag. 196/198.

Ainda na mesma obra, in Meios de Prova, pag. 235, escreve Marques Ferreira:
“A segunda e mais importante proibição específica deste meio de prova respeita à obrigatoriedade de conhecimento direito dos factos inquiridos e justifica-se plenamente em razão de exigências da contraditoriedade e do princípio da imediação que caracteriza um processo de sistema acusatório.
A possibilidade efetiva de contrainterrogatório implica que os depoimentos indicam sobre factos concretos e não sobre o que se diz, e exige, simultaneamente, a presença física de quem o diz para que o tribunal possa aferir da sua credibilidade.
 O princípio da imediação «determina que o juiz deverá tomar contacto com os elementos de prova, ou seja, através de uma perceção direta ou pessoal», só possível quando o depoimento da testemunha se reporta ao contacto direto que teve com os factos objeto de prova e não quando se lhes refira vaga e abstratamente tipo «fama est».
Ao proibir-se o depoimento indireto abrange-se o testemunho do que se ouviu narra ou de outiva (art.º 129.º, n.º 1), e, por maioria da razão, atenta a sua fragilidade, o testemunho que se limite a reproduzir vozes ou rumores públicos que os antigos chamavam de «psicatio anguillarum» (art.º 130.º, n.º 1).
Nesta última situação é absoluto enquanto na primeira o juiz pode – preferíamos deve atento o princípio da investigação – chamar a depor as pessoas a quem se referir a testemunha”
Por tudo isto se constata, portanto, o caráter vincadamente excecional da admissibilidade do depoimento indireto, plasmado no procedimento exigido pela lei para poder ser valorado.
É, portanto, este o contexto em que surge a norma que aqui se procura interpretar.
Nesta sequência, não podemos alijar do nosso pensamento os preceitos fundamentais que regulam a interpretação das leis, designadamente os que constam do Código Civil:

Artigo 9.º
(Interpretação da lei)
1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Assim, em primeiro lugar, devemos ter presente que a pessoa de quem a testemunha diz ter ouvido deve ser chamada a depor.
Em segundo lugar, a lei qualifica o ato processual em causa como inquirição.
Ora, depoimento e inquirição são termos reservados pela lei para as testemunhas – cfr. artigos 128.º, 129.º, 134.º, 138.º, 348.º, 349.º, ao passo que para os arguidos, assistentes e demandantes se reserva o termo declarações, como já acima se referiu, sendo certo que em relação ao arguido se usa o termo interrogatório, sem embrago de a respeito da prova testemunhal se usar, ocasionalmente, a expressão contrainterrogatório (cfr. artigo 348.º, n.º 2), mas, dir-se-ia, apenas para não se repetir de modo excessivo o termo inquirição.
Daqui resulta, desde logo, que não é possível chamar arguido, assistente ou demandante civil a depor, nem proceder à sua inquirição.
Isto significa que o legislador, conhecendo a problemática acima enunciada, e os termos e categorias por si usadas na lei, restringiu este mecanismo à outiva de prova testemunhal, única que admite depoimentos e inquirições, sendo, portanto, proibido, o testemunho do que se ouviu dizer a qualquer daqueles sujeitos do processo.
E, no dizer expressivo de Costa Andrade, “mais do que a modalidade do seu enunciado, o que define a proibição de prova é a prescrição de um limite à descoberta da verdade” – ob. cit., pag. 83.
A este respeito, não esqueçamos nunca o pregnante ensinamento de Figueiredo Dias:
” Por fim – mas não por último -, cumpre salientar como, surpreendentemente, o dogma (errado, por mal-entendido) da dita «verdade material» continua a fazer caminho em alguns expoentes da doutrina democrática dos processos penais europeus continentais; mesmo depois dos resultados lamentáveis – e, às vezes, trágicos – a que deu lugar na práxis judiciária de alguns países. Talvez seja já tempo de nos entendermos. Naturalmente que não será necessário perseguir a velhíssima pergunta metafísica sobre «o que é a Verdade» para podermos operar tranquila e racionalmente, no quadro das finalidades do processo penal democrático – e mesmo de um direito penal substantivo ancorado numa conceção basicamente geral-preventiva da pena -, na determinação do que seja a verdade que no processo penal se pretende alcançar. Naturalmente que essa verdade não é a narrativa construída pela acusação e a defesa, dita «verdade formal». Mas também não é integralmente a factualidade (a «facticidade») histórica do real acontecido, mesmo que na sua relevância para as exigências normativas do caso: é sim esta facticidade combinada com as – e por consequência condicionada e limitada pelas – exigências impreteríveis de garantia dos diretos das pessoas face ao Estado. O resultado desta combinação pode, assim, ser algo de substancialmente diferente, ou mesmo oposto ao real acontecido. (…) é irrisório (e ainda bem!) pretender que a reconstituição da «verdade material» constitui a finalidade essencial, última e inarredável, do julgamento penal. A verdade que se procura, mesmo através da atuação do princípio da investigação oficial, é, não decerto, como no processo penal anglo-americano, a verdade formalmente construída, mas a verdade processualmente válida, hoc sensu, a verdade judicial” – in Acordos Sobre a Sentença em Processo Penal, Coleção Virar de Página, Edição do CDOA do Porto, pag. 48/49.
E a forma de interpretar a lei por nós proposta está, em nosso entender, rigorosamente de acordo com a sua letra.
Mas também está de acordo com o seu espírito, e, ainda em nosso entender, representa a consagração da solução mais acertada.
Independentemente de não ser possível chamar o arguido a depor, quer porque ele está, em regra, presente, quer porque não depõe, o seu chamamento, para o caso de não estar presente, será absolutamente inútil para o fim pretendido pela lei com esse procedimento, quer porque não é obrigado a prestar declarações, quer porque se as prestar, sem embargo de lhe não assistir o direito de mentir, não está sequer obrigado a dizer a verdade. Só a título de exemplo, como compaginar o chamamento (seja ele qual for) do arguido e a eventual recusa em prestar declarações sobre o que dizem que disse com o direito ao silêncio, sendo certo que este nunca o pode desfavorecer em sede de julgamento da matéria de facto constante da acusação? Não se compagina, certamente. O chamamento a depor de uma pessoa de quem dizem que disse terá utilidade porque essa pessoa passará a ser (se ainda o não é) testemunha, prestará juramento, estará obrigada a responder e a fazê-lo com verdade, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal – e isso faz toda a diferença.
A este respeito, cumpre também exarar uma singela observação discordante do teor da seguinte conclusão da resposta do Ministério Público ao recurso da arguida:
10) Ao arguido assiste, até, o direito de ser julgado na ausência, não podendo valer-se da sua falta para inquinar a prova produzida, sendo que, no caso em apreço, e porque regularmente assistida por defensor oficioso, poderia a recorrente, sempre contraditar as declarações prestadas, ou requerer as diligências de prova, que entendesse por pertinentes.
Por um lado, dir-se-ia que na fase elocutória do exercício retórico em causa, tudo no sentido aristotélico, note-se bem, a escolha do vocábulo até, salvo erro de interpretação da nossa parte, soa a uma certa ideia de excesso. Todavia, tal não é consentâneo com a lei porque arguido não tem o direito de ser julgado na ausência, incindindo sobre si, pelo contrário, o dever (que também é um direito) de estar presente em julgamento (artigo 61.º, n.º 1, alínea a), e 6, alínea a), do Código de Processo Penal), podendo o julgamento, perante a sua falta, ser realizado na sua ausência se o tribunal assim o entender possível (art.º 333.º do Código de Processo Penal), podendo, ainda, em determinados casos o arguido requerer ou consentir o julgamento na sua ausência, sendo tal pretensão apreciada e decidida pelo tribunal (art.º 334.º do Código de Processo Penal). Por outro lado, considerar que a ausência do arguido ao julgamento inquina a prova apresentada pela acusação, equivale a afirmar que o valor desta prova depende de um comportamento daquele, o que constitui uma clara afronta ao princípio nemo tenetur se ipsum accusare. Pobre da acusação, diríamos nós, que carece do arguido para ser acolhida pelo tribunal – nesse caso, só um arguido mal assistido tecnicamente ou invadido por uma incontrolável necessidade de redenção impediria o total soçobro da pretensão punitiva do Estado. Acusação robusta, como devem ser todas num Estado de Direito, é aquela que, sem hesitação, até dispensa presença do arguido em julgamento. Finalmente, não pode a presença do defensor do arguido em julgamento, que constitui imposição legal absolutamente inarredável em qualquer circunstância, como é consabido, convalidar algo que seja ou possa ser originariamente inválido; essa presença tem muitas consequências, como é evidente, mas não tem qualquer potencialidade salvífica de uma prova que lei tenha inquinado com a sanção da proibição.
O preceito em causa, ao inserir no texto o segmento chamar estas a depor pressupõe que se trata de pessoas que nem sequer foram indicadas nos autos como testemunhas (e por isso está em causa a estrutura acusatória do processo, e daí, também, a excecionalidade da situação), pois parte do princípio de que se já figurassem como tal nos requerimentos probatórios teriam dito tudo o que sabiam, caso já tivessem sido inquiridas, ou seriam posteriormente ouvidas também sobre o que alguém disse que disseram, no momento em que viessem a prestar o seu depoimento.
E, no caso que nos ocupa, ouvir dizer ao arguido, interessará certamente a declaração confessória, seja ela qua tale, ou descritiva/narrativa dos factos alegadamente praticados, o que briga frontalmente com o princípio nemo tenetur se ipsum acusare. Veja-se o cuidado, a esmerada cautela, dir-se-ia, com que a lei processual regula as declarações e a confissão do arguido – no artigo 141.º, n.º 4, línea b), do Código de Processo Penal, é advertido de que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova; no artigo 344.º do Código de Processo Penal, se pretender confessar, o presidente, sob pena de nulidade, perguntar-lhe se o faz de livre vontade e fora de qualquer coação, bem como se se propõe fazer uma confissão integral e sem reservas, e o tribunal pode, ainda assim, não aceitar a confissão, se, em sua convicção, suspeitar do carácter livre da confissão, nomeadamente por dúvidas sobre a imputabilidade plena do arguido ou da veracidade dos factos confessados.
Por outro lado, no Código Civil existe uma norma que regula o valor da confissão extrajudicial (que no fundo, é o que aqui está em causa):

Artigo 358.º
(Força probatória da confissão)
1. A confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente.
2. A confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena.
3. A confissão extrajudicial não constante de documento não pode ser provada por testemunhas nos casos em que não é admitida a prova testemunhal; quando esta seja admitida, a força probatória da confissão é livremente apreciada pelo tribunal.
4. A confissão judicial que não seja escrita e a confissão extrajudicial feita a terceiro ou contida em testamento são apreciadas livremente pelo tribunal.

Sendo seguro que este preceito se não aplica ao processo penal nem ao direito penal, é igualmente seguro que nenhuma norma há neste ramo do direito que regule a confissão feita fora de juízo, ou, pelo menos, fora do processo. E, como é consabido, ensina o velho brocardo, que no direito público, ao qual pertence o direito processual (todo ele) e o direito penal, apenas se pode fazer o que é permitido, ao passo que no direito privado se pode fazer tudo o que não é proibido. Ora, em local nenhum permitem a lei penal substantiva ou a lei pena adjetiva valorar a confissão feita fora do processo, pelo que também por aqui se afigura, no mínimo, paradoxal admitir o testemunho por ouvir dizer ao arguido.
É verdade que as alterações efetuadas no regime das escutas telefónicas vieram abalar estes princípios, disso nos dando conta, avisadamente, a Doutrina:
“A distinção entre meios de obtenção da prova e meios de prova já foi, porém, mais clara, em face da redação dada aos n.ºs 9.º e 12.º do artigo 188.º do Código de Processo Penal, em 2007. O primeiro dispõe que só podem valer como prova as conversações ou comunicações transcritas nos termos aí previstos; e o segundo determina que o destino a dar aos suportes técnicos referentes a conversações ou comunicações que não forem transcritas para servirem como meio de prova. Tem agora a lei o entendimento censurável, que se apoiava indevidamente no artigo 167.º do Código de Processo Penal, no sentido de a transcrição fazer de um meio de obtenção da prova um  meio de prova que, nesta qualidade, valerá em julgamento para o efeito da formação da convicção do tribunal.” – cfr. Maria João Antunes, ob. cit., pag. 139.
Note-se que a este respeito, a redação original do Código de Processo Penal, constava do n.º 2 deste preceito, cujo teor era o seguinte:
2 - Se o juiz considerar os elementos recolhidos, ou alguns deles, relevantes para a prova, fá-los juntar ao processo; caso contrário, ordena a sua destruição, ficando todos os participantes nas operações ligados por dever de segredo relativamente àquilo de que tenham tomado conhecimento.
Uma redação algo dúbia, é certo, mas bem distante da concessão expressa do estatuto de meio de prova a uma conversação ou comunicação intercetada – curiosamente, o legislador não fez constar dos meios de prova previstos no Título II do Livro III do Código de Processo Penal as ditas conversações; ter-se-á esquecido.
Assim, uma conversação prévia ou coeva do crime que constitua, materialmente, uma confissão, constitui, agora, na prática, um meio de prova, sendo certo que o legislador não lhe fixou valor nem condicionantes. Aqui, e só aqui, a confissão feita fora do processo terá valor, mas a prudentiae dos tribunais não se tem bastado com isso. O que já será muito mais discutível é o valor dessa confissão depois da imputada prática dos factos, especialmente se tivermos em conta as interseções telefónicas ordenadas nesse contexto, as “conversas entre presentes “e outros modos ocultos de obtenção de prova hoje em dia tão em voga.
Cristalino se afigura, por outro lado, que com isto se não deve confundir o que se ouviu dizer ao arguido durante a prática dos factos, pois isso é depoimento direto, e, portanto, aceitável. Por outro lado, cumpre precisar que o que o Ministério Público refere no seu parecer, com citação de Jurisprudência deste Tribunal da Relação de Guimarães, designadamente o acórdão de 25/05/2009, não briga com o que se tem dito, porque o que a lei impede no depoimento de outiva é a reprodução de conversas com o arguido que incidam sobre o objeto da prova (ou seja que o incriminem) e este é constituído, no caso, pelo furto e sua autoria, não sobre o local onde se encontram os objetos furtados e quem indicou tal local. Poder-se-á entender, de modo algo imediatista, que se sabe onde estão os objetos é porque foi ele, mas nada garante que assim seja, nem isso é incriminador do arguido, porque podem ser inúmeros os motivos pelos quais ele sabe isso e o disse sem ser o autor dos factos. Um arguido que sabe onde estão os objetos, apenas sabe onde estão os objetos, não resultando daí qualquer autoincriminação pelo crime de furto, e, percute-se, a teleologia legal é, neste caso, principalmente, impedir a involuntária e desinformada autoincriminação.
Como acima se disse, o depoimento indireto é um depoimento sobre meios de prova e não sobre factos. Por isso, não se pode subscrever o teor da decisão recorrida quando afirma que no caso vertente, temos, pois que quanto à declaração confessória por parte da arguida no posto da GNR não há depoimento indireto, porque ela foi diretamente ouvida pelo representante legal da assistente – se assim fosse, todos os depoimentos indiretos eram diretos, porque todos foram diretamente ouvidos pelo depoente. Efetivamente, não se pode esquecer que o artigo 128 n.º 1 do Código de Processo Penal estatui que a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento direto e que constituam objeto da prova. Ora, a declaração confessória não integra o objeto da prova, que é constituído pelo teor da acusação e da contestação, e é incontornável que em lado algum desses articulados consta, nem poderia constar, note-se bem, que a arguida confessou os factos no posto da GNR, sendo ainda evidente, portanto, que não se trata de facto não alegado que cumpra investigar e cujo conhecimento seja indispensável para a boa decisão da causa. O depoimento em causa é um depoimento indireto, porque reproduz o que disse uma pessoa num determinado local a respeito dos factos constantes da acusação, seja essa pessoa quem for – a questão que cumpre decidir é se pode depor-se sobre o que se ouviu a qualquer pessoa, incluindo o arguido, ou não.
E depois disto afirma ainda algo que também está dessincronizado com os parâmetros dogmáticos que acima enunciámos, apoiados com citação da mais autorizada Doutrina:
No entanto, a prova dos factos constituintes do crime, realizada apenas pela declaração da testemunha que ouviu a sua confissão, e apenas com base nela, é indiscutivelmente face ao nosso actual regime normativo uma prova indirecta, uma «prova em segunda mão».
Ora, rememorando, ainda que de modo meramente reminiscente, o que acima se disse, toda a prova testemunhal é prova indireta, e o depoimento indireto também o é, naturalmente, porque é prova testemunhal.  A aceitar a categorização posicional da prova em causa, haveríamos de a considerar prova em terceira mão. Trata-se de uma prova indireta que consubstancia um depoimento indireto.
O princípio, já acima enunciado, de nemo tenetur se ipsum accusare, é, juntamente com a estrutura acusatória do processo e o princípio do contraditório, o motivo fundamental para que a lei não autorize o depoimento por ouvir dizer ao arguido, que, como também já se disse, só terá interesse para os autos se for auto incriminador.
“O princípio nemo tenetur se ipsum accusare teve a sua origem no Reino Unido, no sec. XVII, como reação às práticas inquisitoriais dos tribunais eclesiásticos. Estes costumavam inquirir pessoas regularmente sobre as suas crenças e práticas religiosas, sem que houvesse quaisquer indícios ou uma acusação formal contra estas. Exigiam o ajuramento de todos perante o tribunal (juramento ex officio), tendo que responder a todos os quesitos do tribunal com honestidade, sob pena de serem severamente punidos. Usavam-se assim procedimentos «excessivamente» inquisitoriais para obter confissões dos acusados. Note-se que o objetivo do ajuramento era a obtenção de numa confissão, caso fosse descoberto algum facto que pudesse fundamentar a condenação do visado. Esta prática teve lugar até ao desfecho do caso John Liburn. Em 1637, John Liburn recusou-se a fazer o juramento ex officio, sendo punido na sequência dessa recursa.  Os protestos nas ruas contra este caso repetiram-se até 1641, data em que o Parlamento Inglês aboliu o uso do juramento ex officio pelos tribunais e estabeleceu o princípio contra a autoincriminação.
(…)
Este princípio foi posteriormente recebido na Bill of Rigths dos EUA (1791).
(…)
Deve ainda notar-se    no facto de que a Bill of Rights pretendeu funcionar como um limite ao poder legislativo, sendo que apenas se colocou no papel a expressão que designava esse direito (no person (…) shall bem compelled in any criminal case to be a witness against himsel”), mas remetia-se para toda uma teorização já solidamente fixada na Common Law.” (traduzindo a expressão acima mencionada, ninguém dever ser compelido em nenhum processo criminal a ser testemunha contra si próprio) -  cfr. Lara Sofia Pinto, Privilégio Contra a Autoincriminação Versus Colaboração do Arguido, obra coletiva, coordenação de Teresa Pizarro Beleza e Frederico Costa Pinto, Almedina, pag. 100/101.
Ora, o depoimento indireto sobre o que se ouviu ao arguido é, na prática, uma afronta a este princípio, e no caso presente é-o também, pois se fosse dado cumprimento ao procedimento previsto na lei a respeito deste singularíssimo tipo de prova, e se fosse chamada a arguida a depor (eventualmente com mandados de detenção, interrogamo-nos, uma vez que não esteve presente no julgamento), seria confrontada com um convite a falar, sendo certo que como já se disse, só isso, feriria outros princípio processuais penais, como o direito ao silêncio.
E, já agora, numa perspetiva esgotante, atento o vocábulo depoimento com que a lei inicia o n.º 1 do artigo 129.º do Código de Processo Penal, é ainda muito duvidoso que aqueles que prestem declarações e não depoimento, como os assistentes e as partes civis, possam declarar de outiva – esta opção não parece absurda, atenta a posição, na prática, de partes destes sujeitos processuais, o seu empenhado interesse no destino dos autos, e o claro intuito da lei em evitar que os julgamentos se possam transformar em segundos inquéritos, sob orientação e controle, afinal, do julgador, metamorfoseando este nobilíssimo ato processual numa nova demanda instrutória, abalando, assim, de modo irreparável o estruturante princípio do acusatório.
Temos noção que a questão é muito discutida, e que, para além do enfoque de depoimento direto do caso que nos ocupa adotado na decisão recorrida, que também tem apoio Jurisprudencial, como ali se refere, são descortináveis várias posições a este respeito.
Pereira Cabral, in Código de Processo Penal Comentado, obra coletiva, Almedina 2104, pag. 491:
“Há, assim, que concluir que o artigo 129.º, n.º 1, (conjugado com o artigo 128.º, n.º1) do Código de Processo Penal , deve ser interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indiretos de testemunhas que relatem conversas tidas com um arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio e, ainda, que tal interpretação não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido.”
Paulo Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, UCE Editora, 2.º Edição atualizada, pag. 345:
“Portanto, não vale como prova o depoimento indireto de uma testemunha sobre o que ouviu dizer ao arguido, assistente ou partes civis, porque as «pessoas» a que a ressalva do n.º 1 do artigo 129.º se refere são apenas as testemunhas. E sendo o artigo 129.º uma norma excecional, ela não pode ser em prejuízo do princípio constitucional da imediação, ser aplicada analogicamente ao depoimento de uma testemunha que ouviu dizer ao arguido, ao assistente ou ás partes civis (também assim, Damião da Cunha, 1997, 438 (…)”.
No sentido do decidido no presente acórdão,  veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28/10/2009, Processo n.º 26/03.2TASJP.P1, disponível em www.dgsi.pt.
Assim sendo, conclui-se que que a valoração das declarações do legal representante CC na parte em que referiu o que ouviu ao arguido constitui prova proibida.
A invalidade correspondente é a da nulidade da sentença, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), parte final, do Código de Processo Penal.
Tal nulidade implica a reelaboração da sentença pelo tribunal recorrido, sem a parte inválida ou proibida, esclarecendo-se que, atendendo ao teor da letra da lei (não pode, naquela parte, servir como meio de prova), apenas se considera proibido o segmento das declarações de CC em que se refere ao que ouviu dizer à arguida, mantendo-se a restante parte inteiramente válida e atendível pelo tribunal na decisão a proferir.
Nestes termos fica prejudicada, por ora, a apreciação das restantes questões suscitadas nos recursos.

III DISPOSITIVO:

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em declarar a nulidade da decisão recorrida, por integrar a valoração de prova proibida, e ordenar a devolução dos autos à primeira instância, para a sua reformulação, desta vez sem a parte viciada, nos termos expostos na fundamentação deste acórdão.

Sem tributação.
Guimarães, 16 de setembro de 2025,

Os Juízes Desembargadores           

Bráulio Martins
António Teixeira
Pedro Freitas Pinto