Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
DIREITO AO SILÊNCIO
VALORAÇÃO DA CONTESTAÇÃO ESCRITA
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
DESNECESSIDADE DE CONTRADITÓRIO
EXCESSO DE LEGÍTIMA DEFESA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
DEVER DE PAGAMENTO DE INDEMNIZAÇÃO
Sumário
1. O princípio da proibição de autoincriminação e do direito ao silêncio do arguido impõem que as afirmações constantes da contestação apenas podem ser valoradas pelo tribunal se forem repetidas pelo arguido nas declarações que entenda dever prestar em audiência de julgamento, ou se, tendo decidido prestar declarações, for sobre elas interrogado e as confirmar. 2. Assim, se o arguido não prestar declarações, o que foi afirmado na contestação escrita pelo seu defensor constitui uma inexistência probatória, pois não há razão para se lhe não aplicar o conjunto de restrições que se aplica a todas as outras suas declarações em sede de aproveitabilidade probatória. 3. Para a sentença ser considerada nula por omissão em relação à matéria de facto, necessário é que esteja obliterada nessa parte, não bastando para tal que tenha havido falta de decisão de alguns dos factos alegados na acusação ou na pronúncia. 4. Todavia, quando está em causa o exame crítico da prova, não obstante poder até haver na decisão um texto submetido a esse tópico, se ele não for percetível, se os motivos do tribunal não forem apreensíveis, tudo se passa como se não existisse, apesar de formalmente lá se encontrar, e por isso se pode considerar nula tal sentença. 5. Alteração não substancial de factos será toda a modificação ou alteração da matéria de facto constante da acusação ou da pronúncia, com relevo para a decisão da causa, que se contenha dentro dos limites do objeto do processo ou que apenas se traduza numa diferente qualificação jurídica do acervo factual apurado no âmbito das balizas assim definidas. 6. Quando a alteração consubstancia factualidade configuradora de resultado diferente, v.g. de tentativa de homicídio para ofensa à integridade física, porque o tribunal não ficou convencido que os arguidos pretendiam matar o ofendido, mas tão só que o pretendiam magoar, passo prévio indispensável para matar e, por natureza, compreendido na conduta inicialmente imputada, não é necessário proceder à comunicação prevista no artigo 358.º, n.º s 1 e 3 do Código de Processo Penal, uma vez que isso em nada briga com os princípios processuais que estão na base de tal regime legal - contraditório (direito à informação, possibilidade de pronúncia, direito de impugnação) e acusatório, e, em geral, a plenitude das garantias de defesa. 7. O animus deffendendi e a proporcionalidade não constituem pressupostos ou requisitos de verificação da causa de justificação da legítima defesa. 8. Condicionar a suspensão de execução da pena de prisão ao pagamento da indemnização, total ou parcialmente, ou a outros deveres adjacentes, justifica-se principalmente nos casos em que a certeza prognóstica do tribunal em relação ao comportamento futuro do arguido/condenado não é plena, sentindo-se a prudente necessidade de o adstringir de modo suplementar ao alinhamento com a norma. Estes deveres não devem intervir de forma automática, nem como uma espécie de punição acrescida, nem de modo acrítico, mas antes justificar-se por aquela necessidade suplementar de condicionamento do condenado, atendendo ao seu passado e presente criminal, ao seu comportamento social geral, às suas condições gerais de vida e hábitos, cumprindo ao tribunal confiar que, em regra, os cidadãos cumprem as suas ordens, salvo se os autos demonstrarem circunstâncias referentes aos aludidos parâmetros que autorizem alguma hesitação a esse respeito, a qual, contudo, não é, por seu turno, de tal forma grave que aconselhe a denegação da pena de substituição.
Texto Integral
I RELATÓRIO
1
No processo n.º 977/19.2T9GMR, do Juízo Central Criminal de Guimarães – J ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, teve lugar a audiência de julgamento durante a qual foi proferido acórdão com o seguinte dispositivo:
I. Declarar EXTINTO, por prescrição, o procedimento criminal contra AA e BB quanto aos crimes de injúria, previstos e punidos pelo artigo 181º do Código Penal, pelos quais se encontram acusados e pronunciados. II. ABSOLVER o arguido AA da prática de um crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido nos termos das disposições conjugadas dos artigos 26º e 131º, do Código Penal, sem prejuízo da sua condenação pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade qualificada, previsto e punido pelo artigo 145º, n.º 1, alínea d), do Código Penal; III. ABSOLVER o arguido BB da prática de um crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido nos termos das disposições conjugadas dos artigos 26º e 131º, do Código Penal, sem prejuízo da sua condenação pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade qualificada, previsto e punido pelo artigo 145º, n.º 1, alínea d), do Código Penal; IV. CONDENAR o arguido AA pela prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 145º, n.º 1, alínea d), por referência ao artigo 132º, n.ºs 1 e 2, alínea h), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão; V. SUSPENDER a execução da pena de prisão aplicada ao arguido AA pelo período de 2 (dois) anos, nos termos conjugados dos artigos 50.º, nºs 1 a 5, 51.º, nº1, al. a), do Código Penal, com a condição de pagar ao ofendido, CC, metade da indemnização que lhe vai fixada, no prazo de seis meses, a contar do trânsito da presente decisão. VI. CONDENAR o arguido BB pela prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 145º, n.º 1, alínea d), por referência ao artigo 132º, n.ºs 1 e 2, alínea c), do Código Penal, na pena de 15 (quinze) meses de prisão; VII. SUSPENDER a execução da pena de prisão aplicada ao arguido BB pelo período de 15 (quinze) meses, nos termos conjugados dos artigos 50.º, nºs 1 a 5, 51.º, nº1, al. a), do Código Penal, com a condição de pagar ao ofendido, CC, metade da indemnização que lhe vai fixada, no prazo de seis meses, a contar do trânsito da presente decisão. VIII. Absolver da instância cível os demandados AA e BB por ilegitimidade passiva quanto ao pedido de indemnização formulado pelo demandante Hospital ..., E.P.E. IX. Julgar parcialmente procedentes, por parcialmente provados, os pedidos de indemnização cível formulados pelo demandante CC e, em conformidade, condenar os arguidos AA e BB a pagar-lhe, solidariamente, as quantias de € 500,00 (quinhentos euros) e de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) para ressarcimento dos danos morais causados, respetivamente, pelas ofensas atentatórias da sua honra e da sua integridade física (estas, ocorridas depois do atropelamento).
2
Não se tendo conformado com a decisão, os arguidos AA e BB, apresentaram recurso, formulando as seguintes conclusões:
1ª Vem o presente recurso interposto do acórdão que condenou os recorrentes, respectivamente, nas penas de 2 anos de prisão pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada previsto e punido pelos artºs 145º nº1 al. d) por referência ao artº 132º nº1 e 2 al. h) e de 1 ano e 3 meses de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada previsto e punido pelo artº 145º nº1 al. d) por referência ao artº 132º nº1 e 2 al. c) do Código Penal suspensas na sua execução pelo mesmo período com a condição de pagar ao ofendido metade da indemnização que lhe foi fixada, no prazo de 6 meses a contar do trânsito em julgado do acórdão, 2ª No ponto 12) da matéria de facto dá-se como provado que o arguido AA pretendia alcançar o ofendido; no ponto 19 diz-se que o arguido AA agiu com a intenção de molestar fisicamente o ofendido; no ponto 49 já se diz que o arguido pretendia reter o ofendido e recuperar os bens que este havia furtado e no facto índice referido volta-se à mesma fórmula. 3. Ora, não se pode dar como assente ao mesmo tempo que o arguido pretendia alcançar ou reter o ofendido e que este agiu com intenção de molestar fisicamente o ofendido. 4. Na verdade, as duas conclusões não são compagináveis. A menos que se concluísse que o arguido queria efectivamente apenas reter o ofendido e que este restituísse o que furtou, mas que não conseguindo tal desiderato sem molestar a integridade física deste, se tenha determinado a fazê-lo. 5. Tratava-se de uma consequência necessária da sua conduta. Mas se fosse assim não se podia concluir como se concluiu pelo cometimento do crime com dolo directo, mas tão-só com dolo necessário. 6º Existe contradição entre os pontos 9, 14 e 44, porquanto não é compaginável que uma pessoa que tenha dificuldades em caminhar por ter dores e que, portanto, tenha dificuldades em estar de pé, possa “desatar” aos pontapés a alguém. 7ª Nos artºs 49º a 52º da contestação descreve-se qual o tipo de lesão que o arguido AA tinha e a evolução da mesma, mas o acórdão recorrido não deu como provada ou não provada a factualidade que aí constava, bastando-se com aquela que consta no artº 52º e que aponta o dia 18/3, como sendo aquele em que o arguido deixou de usar canadianas. 8ª A prova das agressões após o embate – pontos 14, 15 e 20 da matéria de facto – baseou-se, segundo o acórdão recorrido no depoimento do arguido AA, no depoimento do ofendido, da testemunha DD e parcialmente no depoimento do arguido BB. 9ª Sucede é que, o arguido AA nada disse quanto a tal matéria, o depoimento do ofendido não coonesta o facto 14, nem o da testemunha inquirida é credível, nem o depoimento arguido BB tem o alcance que o acórdão recorrido lhe empresta. 10ª A testemunha DD tanto diz que eram 3 como 4 os indivíduos que estavam de volta do ofendido, como não sabe dizer quem deu “chutos” no ofendido. 11ª Parece certo que o ofendido após o embate caiu numa valeta do lado esquerdo do veículo, pelo que os arguidos não podiam estar a chutar o ofendido enquanto lhe tentavam puxar as calças, como se afirma no acórdão, porquanto para tal necessário que os arguidos se baixassem por forma a ficarem ao nível do ofendido e o pontapeassem. Ora, baixando-se os arguidos era fisicamente impossível pontapear o ofendido ao mesmo tempo. 12ª Trata-se de erro notório na apreciação da prova que deve ser decretado (artº 410º nº2 al. c) do Código de Processo Penal). 13ª Da descrição feita no acórdão recorrido do depoimento do ofendido não decorre que este tenha afirmado que foi pontapeado nas pernas pelo arguido AA, mas apenas que lhe tentou tirar as calças, sendo que, para além disso, afirma ter sido agredido por 3 pessoas e não apenas por duas. 14ª Por outro lado, decorre claramente do requerimento do arguido de 11/10/24, da resposta da EMP01... de 24/10 e da resposta do ofendido (requerimento de 17/10) que o arguido mentiu em audiência quanto ao pagamento ao arguido AA da indemnização no processo de furto, tal como mentiu quando afirmou que restituiu 10.000 € à EMP01.... 15. Aliás, a propensão deste para mentir está demonstrada nos autos no ponto 51, quando se deu como provado que quando os arguidos chegaram à beira dele este, apesar das dores que dizia sentir, foi capaz de dizer por mais do que uma vez que nada tinha furtado…. 16. Se a isto juntarmos que no acórdão recorrido não se fez o exame crítico do seu depoimento; que, ao contrário do que se deu como provado, não consta do acórdão que o recorrente AA tivesse pontapeado o ofendido nas pernas, temos que, pelo menos, o acórdão é nulo por falta de fundamentação (cfr. o artº 374º nº2 e 379º nº1 al. a) do Código de Processo Penal e, por certo, o seu depoimento não foi credível, tendo-se violado o princípio da livre apreciação da prova, uma vez que esta foi apreciada de forma arbitrária. 17. O ofendido afirmou em audiência que após ter chegado à sua beira o arguido AA chegaram duas pessoas (homens) que logo lhe bateram, “não tanto”, mas também com socos e “chapadas na cabeça e no corpo”, não se recordando se estes lhe chamaram nomes. 18. Ora, essas chapadas na cabeça e no corpo que o ofendido diz que foi vítima terão dado margem a que fosse dado como provado o ponto 15 da matéria de facto. Contudo, o exame pericial realizado nos presentes autos não aponta a existência de qualquer lesão na cabeça e no corpo, com excepção daquelas que o ofendido tinha nas pernas. 19. Ou seja, por um lado, nenhuma das testemunhas afirma o que foi dado com o provado, designadamente nos pontos 14 e 20 dos factos dados como provados, sendo que dar-se como o provado que o ofendido foi alvo de agressões de duas (!!) pessoas na cabeça e no corpo, sem qualquer respaldo no relatório medico legal dado aos autos é, no mínimo temerário. 20. Daí que deva ser dado como não provado o ponto 15 da matéria de facto. 21. O tribunal a quo errou mais uma vez ao fixar a matéria de facto, dando a um tempo a mesma matéria como provada e não provada, designadamente no ponto 4 que o arguido AA estava com receio e na al. l) dando como não provado que o arguido tivesse, em consequência da conduta do ofendido, ficado com medo, inseguro, perturbado, ansioso, deprimido, angustiado e com medo de permanecer na própria habitação, pelo que não deixa as filhas ali ficarem sozinhas e está a pensar em vender a casa. 22. Sucede que, a falta de prova da factualidade da al. l) foi determinante, ainda, para afastar o excesso de legítima defesa, com argumentos que, como se verá não podem colher. 23. O acórdão, ao mesmo tempo, apesar de anotar a ausência de medo e trauma de família, na descrição do depoimento da mulher do arguido AA – EE – constante da pag. 27 - afirma que esta “relatou o dia em que a sua casa foi assaltada: por volta do meio dia ouviu um barulho de portas e gavetas no andar de cima; na sala viu uma janela aberta, o que a assustou (…)”. De acordo com a testemunha, dez minutos depois, o marido chegou e apercebeu-se de um vulto na cozinha, gritou e nessa altura viu uma pessoa (…).E mais à frente “Confirmou que o marido estava nervoso (…) não aludindo a qualquer receio dele ou trauma de família” 24. Ou seja, a esposa do arguido assustou-se e gritou, tendo em conta as condutas do ofendido, mas ainda assim a família não demonstrou trauma ou medo. 25ª Também aqui sobressai a contradição insanável da fundamentação, mas, ainda que assim não se entendesse, certo é que o Tribunal concluiu pela ausência de trauma ou medo, mas não colocou a pergunta, apenas se limitando a constatar que assim não ocorreu. 26ª Ou seja, o Tribunal buscou activamente a “verdade” que havia preconcebido para os factos da acusação, mas assim já não o fez relativamente aos outros factos, designadamente aqueles que podiam excluir ou atenuar a culpa dos arguidos. 27ª Quer isto dizer que o Tribunal não esgotou os seus poderes investigatórios, o que determinaria sempre a ocorrência do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto (artº 410º nº2 al. a) do Código de Processo Penal). 28ª Se a tudo isto juntarmos que se deu como provado nos pontos 42 e 43 que a casa do arguido foi assaltada 5 vezes, só faltaria na fundamentação do acórdão dizer que o arguido fomentava os assaltos a sua casa, só para depois poder fazer-se de polícia e correr atrás dos meliantes. 29ª E tudo isto demonstra que também houve erro notório na apreciação da prova (artº 410º nº2 al. c) do Código de Processo Penal). 29ª Ao contrário do que se diz no acórdão não é pressuposto de aplicação da norma que prevê o excesso de legítima defesa que o arguido haja com medo, perturbação ou susto não censuráveis, como decorre de uma leitura, ainda que desatenta da norma em causa. 30ª Ora, o tribunal nem atenuou especialmente a pena, nem a excluiu, apenas e tão-só porque fez uma errada leitura da norma, considerando que o medo, a perturbação e o susto, constituem pressuposto de aplicação também da atenuação especial. 31ª O Tribunal quis também incluir na fundamentação a premeditação do arguido ao afirmar que provou-se que o arguido teve vários minutos para pensar na sua reação ao intruso/assaltante, durante a viagem que fez (sozinho) desde a chamada da esposa até chegar a casa e aí o ver (…)” 32ª No entanto, provou-se que o arguido demorou 5/10 minutos depois do telefonema da sua esposa a chegar a casa – cfr. o ponto 1 e 46 da matéria de facto – e o acórdão quer-nos fazer crer que durante essa viagem o arguido reflectiu ponderadamente o que havia de fazer ao assaltante, como se o arguido fosse uma vítima de assaltos profissional!!! 33ª É evidente que o arguido se estava a pensar em alguma coisa nessa viagem era em chegar o mais depressa possível e no risco que a sua mulher estava a correr! 34ª A preocupação com a mulher é a única pista que a matéria de facto nos dá para as preocupações imediatas do arguido, uma vez que lhe terá dito para se manter fora da casa – ponto 2 da matéria de facto. 35ª É também evidente que durante o curtíssimo espaço que o arguido percorreu de carro – que apesar de o Tribunal ter estado no local não entendeu como importante medir, embora se abalance a tirar várias conclusões dessa distância – também não estava a pensar no que ia fazer ao ofendido, mas sim pensava em reaver o que lhe foi furtado, pois que, se ao invés de correr, o arguido tivesse entregue o que havia furtado, nada lhe teria acontecido com certeza. 36ª Daqui decorre que, nesta parte o acórdão recorrido incorre em erro notório na apreciação da prova (artº 410º nº2 al. c) do Código de Processo Penal). 37ª O ponto 16 da matéria de facto entra em contradição consigo próprio quando diz que Como consequência direta e necessária da conduta perpetrada, o ofendido sofreu (…) Cicatriz localizada no terço superior da face anterior da perna, com 3cm de comprimento, relativamente à qual o examinado não sabe se terá resultado do evento. 38ª Na verdade, se o próprio ofendido não sabe se a cicatriz em causa derivou do “evento” e o perito não o afirma, não se pode considerar que essa cicatriz surgiu Como consequência direta e necessária da conduta perpetrada. 39ª Depois, como está bom de ver, As condutas perpetradas pelos arguidos não podiam causar as consequências permanentes supra descritas, designadamente a referida cicatriz, pelo que o ponto 17 também se encontra em contradição com o ponto 16. 40ª Os pontos 14, 15, 16, 17 e G) dos factos não provados são também contraditórios. 41. No ponto 17 diz-se que as condutas dos arguidos causaram as consequências permanentes supra descritas, ou seja, no ponto 16. Mas se é assim, quais foram as consequências não permanentes? 42ª Por outro lado, se não resultou da prova quais as queixas e sequelas que resultaram dos pontos 14) e 15) da matéria de facto, quais foram as consequências que advieram para o ofendido da conduta do recorrente BB e que determinaram a fixação da medida da pena? 43ª É que lida a restante matéria de facto não se concretiza qualquer dano ou dor causada pela conduta do recorrente BB, nem, aliás, a mesma constava da acusação. 44ª Constata-se, assim, que ocorre, nesta parte contradição insanável da fundamentação prevista no artº 410º nº2 al. b) do CPP. 45ª Por fim, dir-se-á que a perícia médico-legal junta aos autos pelo ofendido no seu pedido de indemnização civil afasta a possibilidade de dar como provado o ponto 17 relativamente ao arguido BB. 46ª Na verdade, é o próprio relatório pericial que junta que afirma que “não é provável que a agressão descrita tenha causado as lesões descritas, nem haverá força suficiente associada para que se agravassem as já existentes decorrentes do embate”. 47ª Daí que, ao dar como provado o facto nº 17 relativamente ao arguido BB o acórdão recorrido está a violar prova tarifada – artº 163º do CPP -, não justificando a sua dissensão da mesma. 48ª Pelo exposto e neste caso, o acórdão recorrido incorreu no vício de erro notório na apreciação da prova (artº 410º nº2 al. c) do CPP). 49ª Pelo menos os artºs 42º, 44º, 45º, 55º, 57º, 72º, 75º, 76º, 82º e 83º não mereceram qualquer análise do acórdão recorrido, designadamente no rol de factos provados e não provados que deveriam ter merecido, independentemente de se poderem considerar circunstanciais. 50ª A alegação constante dos artigos 42º a 45º é referente ao assalto de 2016, aos posteriores e àqueles que assolaram os vizinhos, sendo que os artºs 75º, 76º e 82º referem-se ao assalto anterior aos factos constantes da acusação, sendo que o artº 83º tem que ver com os antecedentes criminais do arguido. 51ª Ora, no acórdão recorrido deu-se como provado que o arguido AA estava convencido de que o arguido tinha sido o autor de outros assaltos à sua casa e na vizinhança (ponto 55 da matéria de facto assente), mas deu como não provado de que existem fortes indícios de que o ofendido tenha sido o autor de mais do que um furto na casa do arguido – al. m) dos factos não provados. 52ª A alegação dos factos supra referidos tem que ver exactamente com a similitude do modus actuandi nos dois assaltos de que o ofendido deu notícia nos autos e com a prova que se pretendia fazer relativamente a essa matéria. 53ª Era importante perceber quando é que se gerou o convencimento por parte do arguido AA de que teria sido o ofendido que tinha assaltado a casa deste por mais do que uma vez, porquanto o acórdão recorrido usa esse convencimento para consubstanciar a “fúria” que o levou a atingir a integridade física do ofendido e, portanto, a afastar a possibilidade de legítima defesa. 54ª Só faria sentido tirar a conclusão que o arguido atropelou o ofendido porque estava convencido que tinha sido ele a assaltar de outras vezes a casa, quando se concluísse também que o convencimento do arguido era anterior ao atropelamento, mas nenhuma “pista” os factos provados dão sobre tal matéria. 55ª Com efeito, no acórdão recorrido dá-se como provado que o arguido desconhecia a identidade da pessoa que viu em sua casa e se estava armada – ponto nº 47 da matéria de facto – razão pela qual o recorrente BB afirmou que lhe pôs um pé no braço (e não para atingir a sua integridade física). 56ª Sem dar como provados ou não provados os factos 42º, 44º, 45º, 75º, 76º e 82º da contestação, não se podia dar como não provada a al. M) dos factos não provados. 57ª Assim, ao não investigar os factos alegados sob os artºs 42º, 44º, 45º, 75º, 76º e 82º da contestação (quanto a este ultimo apenas se deu como não provado que existiam fortes indícios de que o ofendido tenha assaltado mais vezes a casa do arguido, o que é conclusivo) e, do mesmo passo, quando se gerou o convencimento do arguido de que tinha sido o ofendido a assaltar outras vezes a sua casa – ponto 55 dos factos provados, o acórdão recorrido incorreu em insuficiência para a decisão da matéria de facto prevista no artº 410º nº2 al. a) do CPP. 58ª Quando se entenda que não estão preenchidos os pressupostos da insuficiência para a decisão da matéria de facto, certo é que o acórdão recorrido ao não dar como provados ou não provados, os factos supra incorreu em nulidade por falta de fundamentação (artº 374º nº2 e 379º nº1 al. a) do CPP). 59ª O acórdão recorrido deixou por julgar, não dando como provados ou não provados os artºs 55º, 57º, 62º e 72º da contestação, sendo que todos eles se referem explícita ou tacitamente ao sentimento de medo que os arguidos e a mulher do arguido AA (as filhas não estavam em casa) experimentaram na data dos factos. 60ª Nos artºs 55º e 57º da contestação fala-se do receio que a conduta do ofendido causou na esposa do arguido e no próprio antes dos factos descritos na acusação e os artºs 62º e 72º refere-se ao medo sentido pelos recorrentes. 61ª Diz o acórdão recorrido que o arguido AA não disse que tivesse medo, tal como a sua esposa, mas se a prova sobre esse medo ou receio era importante para a descoberta da verdade material, o Tribunal tinha de inquirir a testemunha e o arguido quanto a essa matéria, sem o que viola o princípio da investigação. 62ª Por outro lado, se o arguido AA e a sua esposa EE não invocaram ter medo, já não é assim quanto ao arguido BB uma vez que, tal como se diz no acórdão recorrido, porque não sabiam se ele estava armado, admitiu ter posto um pé em cima do braço dele enquanto o irmão o segurou pelo outro braço, ao mesmo tempo que lhe dizia “Dá-me o que me roubaste”, negando que o tivessem revistado. Isto exactamente porque receavam que o ofendido estivesse armado. 63ª Daí que, não se pudesse dar como não provado a al. L) dos factos não provados sem que o acórdão se debruçasse sobre o alegado nos artºs 55º e 57º, 62º e 72º da contestação ou investigasse tal matéria. 64ª Assim, ao não investigar os factos alegados nesses artigos da contestação o acórdão recorrido incorreu em insuficiência para a decisão da matéria de facto prevista no artº 410º nº2 al. a) do CPP. 65ª Quando se entenda que não estão preenchidos os pressupostos da insuficiência para a decisão da matéria de facto, certo é que o acórdão recorrido ao não dar como provados ou não provados, os factos supra incorreu em nulidade por falta de fundamentação (artº 374º nº2 e 379º nº1 al. a) do CPP). 66ª As als. n) e o) dos factos não provados decorrem dos artºs 83º, 84º, 105º e 106º da contestação. 67ª Quanto ao alegado no artº 83º da contestação, os arguidos requereram que fosse junto aos autos o certificado de registo criminal do ofendido, sendo certo que sobre tal específica matéria não recaiu qualquer despacho ou os arguidos foram notificados do documento que constitui o registo criminal do arguido. 68ª O que os arguidos alegaram na sua contestação é que o ofendido foi, por várias vezes, condenado pelo crime de furto. Tal alegação em nada é beliscada pelo facto de, na sentença proferida no processo de furto, não constarem antecedentes criminais do ofendido. 69ª No entanto, certo é que o Tribunal não produziu a prova que foi requerida pelos arguidos e, portanto, não poderia concluir pela não prova dos factos da al. N). E, portanto, é entendimento dos recorrentes que o acórdão recorrido incorreu no vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto (artº 410º nº2 al. a) do CPP). 70ª No entanto, importa dizer-se, desde já, que se não decorresse de qualquer outro meio de prova, a condenação do ofendido pela prática de, pelo menos 6 furtos (para além daquele no qual foi condenado relativamente ao arguido AA), sempre resultaria do documento junto com o requerimento do ofendido datado de 17/10/24, ref. ...36 constituído por um despacho proferido no âmbito do Proc. nº 27/18.6 GACBT pendente no Juízo Central Criminal de Guimarães – Juiz .... 71ª Daí que, porque tal despacho deve constituir, pelo menos um princípio de prova quanto ao alegado no artº 83º da contestação, indicia-se, claramente, que a matéria de facto se encontra incorrectamente julgada. 72ª Mas, para além disso, deve considerar-se que quanto ao que se alega nos artºs 105º e 106º tal alegação está a coberto de uma proibição de prova. 73ªA alegação da al. o) não poderia ser imputada aos arguidos, mesmo que constasse da contestação, uma vez que se trata de alegação de advogado e não dos arguidos. 74ª No entanto, o que se verifica é que o que se alega nesses artigos cujo teor foi relegado para os factos não provados, serviu, apesar disso, para julgar as convicções dos arguidos, interpretar os seus depoimentos e os de outras testemunhas e ser levado em conta para afastar o preenchimento dos pressupostos da legítima defesa. 75ª Sucede que a matéria alegada na contestação, quando não confrontada com o arguido em audiência, como claramente não foi, constitui prova proibida (neste sentido, o acórdão da Relação de Lisboa de 16/1/25, relatado por Diogo Coelho Sousa Leitão, publicado in www.dgsi.pt supra transcrito), pelo que tal matéria não pode servir para formar a convicção do Tribunal. 76ª O recorrente BB foi condenado pela prática de um crime previsto e punido pelo artº 145º nº1 al. d), por referência ao artº 132º nº1 e 2 al. c) do CP – o arguido BB. 77ª Para que se encontrasse preenchido o tipo de crime necessário se tornava que se desse como provado que o arguido sabia que o ofendido se encontrava em situação que lhe dificultava particularmente a sua defesa em razão de ter as lesões que tinha. Ou seja, exigia-se ao arguido um duplo conhecimento: primeiro o de que as lesões eram incapacitantes e, em segundo, que tornavam o ofendido indefeso. 78ª Sucede que tal factualidade não emerge dos factos provados 15 ou20: dizer-se que o arguido viu o “estado” em que estava o ofendido ou que se apercebeu do “estado grave” em que este estava, trata-se de alegação conclusiva, pois que não diz quais as lesões incapacitantes que este tinha e que o tornavam particularmente indefeso, tal como nada diz quanto ao conhecimento das referidas lesões por parte do arguido. 79ª Deve, assim, considerar-se que os factos não preenchem o tipo agravado de ofensas corporais, mas apenas apontam para o cometimento por parte deste arguido do crime de ofensa à integridade física simples. 80ª Os arguidos vinham acusados ambos pela prática de um crime de homicídio, sendo que vieram a ser condenados, cada um, pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada previsto e punido pelo artº 145º nº1 al. d), por referência ao artº 132º nº1 e 2 al. h) do CP – o arguido AA – e previsto e punido pelo artº 145º nº1 al. d), por referência ao artº 132º nº1 e 2 al. c) do CP – o arguido BB. 81ª O que se operou no acórdão recorrido não foi apenas uma alteração da qualificação jurídica, mas também uma alteração de factos. 82ª Os arguidos não estavam acusados de homicídio qualificado pelo uso de instrumento particularmente perigoso ou pelo facto de a vítima ser particularmente indefesa. Os arguidos encontravam-se acusados de homicídio simples. 83ª Daí que o aditamento de factos que representa a alegação dos factos qualificativos e do prévio conhecimento pelos arguidos de tais factos, constitui uma alteração de factos, ainda que não substancial de que aos arguidos devia ser comunicada. 84ª Pelo exposto, deve considerar-se que o acórdão recorrido incorreu em nulidade por ter condenado os recorrentes por factos e qualificação jurídica diversos da constante da acusação, nos termos do disposto no artº 379º nº1 al. b) do CPP. 85ª A interpretação que se extraia do disposto no artº 358º nº1 e 3 do CPP no sentido de que não constitui uma alteração de factos e da qualificação jurídica determinante da correspondente comunicação ao arguido para efeitos do exercício da sua defesa, uma alteração de factos e da qualificação jurídica que, embora, leve à condenação por crime menos grave, introduz factualmente a qualificação do crime base, cujos factos não constavam da acusação, é inconstitucional por violação do artº 2º, 32º nº1 e 5 da Constituição. 86ª O acórdão recorrido entende que a conduta não era necessária nem proporcional pelas razões que alinha, sendo que a primeira das quais tem que ver com o facto de o arguido não ter chamado a GNR, dizendo que a patrulha até podia estar muito mais perto do que a sede da GNR em .... 87ª No mundo das hipóteses tal podia acontecer, mas a verdade é que os próprios agentes afirmaram em audiência que estavam em ..., quando foram chamados, ou seja, muito perto de .... 88ª Por outro lado, e decisivamente nenhum facto consta como assente que afaste a necessidade do uso do veículo, bem pelo contrário, tal como também nenhum facto se deu como provado quanto às características do local – ou sequer há quanto tempo o ofendido estava a correr para se dizer que este estava cansado, como se tenta dizer no acórdão recorrido – para se concluir que o arguido AA podia ultrapassar o ofendido pelo direita e atravessar-se à frente dele e muito menos, decisivamente, quando este corria do lado esquerdo da estrada junto à berma (ponto 23 da matéria de facto). 89ª Ou seja, se o arguido tentasse essa manobra acabaria, com certeza, com o carro batido de frente contra o muro e o arguido fugiria. 90ª Como decorre dos factos provados, o arguido quando recebeu a chamada da sua esposa encontrava-se no seu local de trabalho na empresa EMP02..., Lda. sita na Rua ..., freguesia ..., 91ª Ou seja, a uma distância de 2,9 Km, cerca de 5 minutos de carro da sua residência sita na Rua ..., ..., freguesia ..., como, aliás, se diz na acusação (ponto 45 da matéria de facto). 92ª A GNR competente na área da ... (...) onde está localizada a habitação do arguido, tem o seu quartel Rua ..., ..., ... ... estava a 12,7 Km, cerca de 19 minutos de carro da referida Rua ... (cfr. o doc. nº2 junto com o requerimento de instrução), partindo do pressuposto de que sairiam do posto, logo que o ofendido se ausentou da residência do arguido (ponto 56 da matéria de facto), 93ª Pelo que, se o arguido esperasse pela GNR, o ofendido com toda a certeza terse-ia posto em fuga, não mais sendo visto e desaparecendo definitivamente com os bens do arguido, como o fez ou fizeram outros como ele por cerca de 5 vezes. 94ª Daí que, o arguido ou a sua esposa não tivessem, imediatamente, chamado a GNR, pois que quando esta chegasse ao local de nada valeria: o furto estaria consumado e os bens definitivamente perdidos. 95ª Sucede que, por um lado o seu irmão e o seu sobrinho não conseguiam alcançar o ofendido – repare-se que o ofendido nasceu em ../../1999 (cfr. fls. 43), ou seja, tinha 19 anos à data da prática dos factos, o co-arguido BB nasceu em ../../1964 (cfr. fls. 114), ou seja tinha 54 anos à data da prática dos factos e o sobrinho do arguido nasceu em ../../1988 (cfr. fls. 127), ou seja tinha 30 anos à data da prática dos factos – (ponto 57 da matéria de facto), 96ª E o arguido AA, como se disse e decorre da acusação – ponto 9 - tinha “dificuldades em caminhar por ter sido sujeito a uma cirurgia” e, por outro, mesmo que estivesse totalmente são, nasceu em ../../1973 (cfr. fls. 105), ou seja, tinha 46 anos à data dos factos (pontos 9 e 44 da matéria de facto), 97ª Pelo que, a mais nova das pessoas que estava com o arguido era 11 anos mais velho que o ofendido e, portanto, a menos que fossem atletas – que não são –, dificilmente conseguiriam apanhar o ofendido e detê-lo nas circunstâncias vindas de descrever. 98ª Daí que, o arguido AA tenha optado por perseguir o ofendido de carro, detê-lo e depois chamar a GNR, como o fez. 99ª Mesmo que o arguido AA tivesse embatido intencionalmente no ofendido estes com a sua conduta pretendiam deter e constranger o ofendido a restituir o que havia furtado e, portanto, agiram em legítima defesa. 100ª Quanto à necessidade – que o acórdão recorrido afasta -, nos dizeres de Figueiredo Dias, in Direito Penal – Parte Geral, tomo I, 2ª edição, pag. 405 “(…) são dois os fundamentos da força justificativa da legítima defesa. Por um lado, a necessidade de defesa da ordem jurídica, através da qual se justificará que se sacrifiquem bens jurídicos de valor superior aos postos em causa pela agressão; se justificará que, numa palavra a legítima defesa não esteja limitada por uma ideia de proporcionalidade. Mas por outro lado também a necessidade dos bens jurídicos ameaçados pela agressão. 101ª A questão da proporcionalidade do meio de defesa contra o agressor não se coloca no preenchimento da acção de legítima defesa, mas tendo em conta o concreto circunstancialismo dos factos já descritos e as características do ofendido e do arguido - o primeiro um jovem de 19 anos, na flor da idade e cheio de vigor como se demonstra pela forma como transpôs o muro do jardim da habitação do ofendido e o segundo um homem de 46 anos, baixo e de compleição física muito inferior à do ofendido – seria sempre justificada a conduta do arguido através da legítima defesa. 102ª Ainda que se entendesse que não estão preenchidos os pressupostos da legítima defesa, certo é que o arguido pretendia constranger o ofendido a devolver os bens de que o ofendido ilegitimamente se apropriou, sendo que o ofendido, mesmo depois do acidente, negou que tivesse consigo. 103ª Mesmo na versão da acusação o arguido terá exercido violência dobre o ofendido para que este restituísse os bens que este furtou, pelo que independentemente da forma como a doutrina vê a norma do artº 154º nº3 als. a) e b) do Código Penal que para uns será uma causa de não exigibilidade (Maia Gonçalves, Código Penal anotado, 18ª edição, 2007, pag. 598), para outros será uma causa especial de exclusão da ilicitude da coacção ou uma causa de justificação exclusivamente referida aos crimes de coacção (Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense, 1ª edição, pag. 360/361, Miguez Garcia e Castela Rio, in Código Penal – Parte Geral e Especial, 1ª edição, pag. 638 e Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 4ª edição actualizada, pag. 661), deverá considerar-se justificada a conduta dos arguidos. 104ª De facto, todos os autores referidos estão de acordo numa conclusão: a de que as als. a) e b) do artº 154º nº3 do Código Penal constituem circunstâncias excludentes da punibilidade exclusivas do crime de coacção e que funcionam, mesmo que não se verifiquem os pressupostos das causas de exclusão da culpa tradicionais. 105ª Pelo exposto, o constrangimento a que os arguidos alegadamente sujeitaram o ofendido, foi meio adequado e proporcional, destinando-se a evitar a consumação de um facto ilícito típico, designadamente de um furto, 106ª Pois que, se assim não fosse, dificilmente o arguido AA reaveria os bens que lhe foram subtraídos e, portanto, a actuação dos arguidos não é punível de acordo com o artº 154º nº3 al. a) e b) do Código Penal. 107ª Dispõe o artº 71º do CPP que o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei. 108ª Como o demandante confessa este apresentou o seu pedido nos tribunais civis, nos termos do disposto no artº 72º nº1 al. a) do CPP, ou seja, porque o processo não conduziu a uma acusação no prazo de 8 meses após o conhecimento da notícia do crime. 109ª Nos termos do artº 72º nº1 al. a) do CPP é o eventual atraso do processo criminal que determina que a lei permita ao ofendido deduzir o pedido perante os tribunais civis, o que este fez. 110ª Mas tendo optado por essa via, não podia, deduzir o pedido perante o tribunal criminal, fazendo uso da excepção e da regra como melhor lhe apraz. 111ª Repare-se que a al. f) do nº1 do artº 72º do CPP permite ao ofendido deduzir o pedido em separado contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente civil, ou somente contra estas haja sido provocada, nessa acção, a intervenção principal do arguido. 112ª Quer isto dizer que o ofendido podia ter feito o pedido contra os demandados no tribunal civil e eram livres de optar por uma das jurisdições, mas apenas podem optar por uma e não, como o tentam fazer nestes autos, beneficiar da excepção ou da regra, conforme melhor lhe apraz, uma vez que à jurisdição criminal renunciaram (neste sentido, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 1981, pag. 541). 113ª Seria totalmente incongruente interpretar qualquer norma do direito processual português, designadamente o artº 72º do Código de Processo Penal, que é dominado pelo princípio da economia processual e da celeridade, no sentido de que o pedido cível pela prática de crime – no caso de homicídio na forma tentada e de injúria – pudesse ser intentado apenas contra uma parte na jurisdição civil e contra as outras partes co-responsáveis na jurisdição penal. 114ª Tendo os ofendidos renunciado à jurisdição criminal, este Tribunal é incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido (artº 96º al. a) do CPC), devendo, por isso, os demandados ser absolvidos. 115ª Quanto ao crime de injúria foi considerado que o procedimento criminal se achava prescrito, ainda antes da notificação da acusação. 116ª Assim sendo, tendo sido liminarmente admitido o pedido cível, no despacho do artº 311º do CPP quando não o devia ter sido, não se devia ter conhecido do pedido de indemnização civil, pelo que ao conhecer do pedido de indemnização civil decorrente das injúrias, o acórdão recorrido conheceu de matéria de que não devia conhecer, sendo o acórdão nulo, nos termos do artº 379º nº1 al. c) do CPP. 117ª É entendimento dos recorrentes que devem ser absolvidos dos crimes que lhes imputam, mas mesmo que assim não se entendesse, as penas aplicadas são exageradíssimas e desproporcionais, designadamente aquela aplicada ao recorrente BB não merecia mais do que uma pena de 3 meses substituída por multa e o arguido AA quando muito 1 não de prisão substituído por multa. 118ª Suspender as penas dos arguidos condicionada ao pagamento da indemnização é beneficiar o infractor, quando este ainda não se dignou pagar a indemnização ao arguido AA decorrente do furto, e quando não se demonstra que qualquer dos arguidos se queira furtar ao pagamento ou às suas responsabilidades. 119ª O acórdão recorrido violou ou fez errada aplicação do disposto nas normas constantes da motivação que se dão por reproduzidas breviaits causa, não podendo, pois, manter-se. Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas. No que o patrocínio se revelar insuficiente, deve ser concedido provimento aso recurso, e, em consequência, ser revogado o acórdão recorrido e substituído por outro que absolva os recorrentes do crime pelo qual vêm condenados, por só assim se fazer JUSTIÇA!
3
O Ministério Público respondeu aos recursos, pugnando pela sua improcedência.
3
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação de Guimarães, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência dos recursos.
4
Teve lugar a audiência.
II FUNDAMENTAÇÃO
1 Objeto dos recursos:
A
A decisão recorrida valorou prova proibida?
B
A decisão recorrida é nula, nos termos do disposto no art.º 379. º nº1 alíneas b) e c) do Código de Processo Penal?
C
A interpretação do artigo 358.º do Código de Processo Penal, constante da decisão recorrida, é inconstitucional?
D
A decisão recorrida padece de erro notório na apreciação da prova?
E
A decisão recorrida padece de contradição insanável da fundamentação?
F
A decisão recorrida padece de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão?
G
A decisão recorrida é nula por falta de fundamentação?
H
Ocorre violação do princípio da investigação?
I
Ocorre erro de julgamento?
J
Podem imputar-se ao arguido afirmações constantes da contestação por si apresentada?
L
Os factos doados como provados integram a prática de um crime previsto e punido pelo artº 145º nº1 al. d), por referência ao artº 132º nº1 e 2 al. c) do Código Penal em relação ao arguido BB?
M
Os factos dados como provados integram a causa de justificação da legítima defesa?
N
O pedido de indemnização civil formulado nos autos é legalmente admissível?
O
As penas aplicadas devem ser reduzidas, e deve revogar-se a decisão na parte em que condiciona a suspensão da execução das penas ao pagamento da indemnização ao ofendido?
*
*
2 Decisão recorrida (excertos relevantes):
Factos provados
Discutida a causa e com interesse para a sua justa decisão, resultou provada a seguinte matéria de facto:
Da acusação pública: 1. No dia ../../2019, pelas 11h50/11h55m, o arguido AA recebeu uma chamada telefónica da sua mulher, a comunicar-lhe que tinha ouvido um ruído estranho no interior da sua habitação. 2. O arguido disse então à sua mulher para ficar fora da habitação e que iria se deslocar de imediato para a residência. 3. Em seguida, o arguido ligou a BB, seu irmão, pedindo-lhe ajuda, tendo-se ausentado de imediato do seu local de trabalho que fica a cerca de dois/três quilómetros da sua residência, ao volante do veículo da marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-OI-... 4. Uma vez chegado à sua residência, o arguido AA entrou para o logradouro da sua habitação, contornou-a e verificou que uma das portas da sala estava aberta; aproximando-se do interior, ouviu passos nas escadas que dão acesso do primeiro andar para o rés-do-chão e, com receio, encostou a porta e ficou à espera que alguma coisa se passasse. 5. A determinada altura, apercebeu-se que no interior da habitação estava uma pessoa com capuz, que se dirigia para a cozinha, local que possui uma porta para o exterior. 6. Nesse instante, dirigiu-se para a cozinha para não permitir a fuga por aquela porta, apercebendo-se que alguém estava a deslocar-se novamente para a sala. 7. Após, dirigiu-se para o exterior, onde já se encontrava BB que se apercebeu de um indivíduo a saltar o muro do jardim, do interior da residência para a rua. 8. Encontrando-se na companhia do seu sobrinho, o arguido BB saiu do veículo que conduziam e foram no encalço do referido indivíduo. 9. Por sua vez, AA, por ter dificuldades em caminhar por ter sido sujeito a uma cirurgia, também foi no encalço do referido indivíduo, ao volante do veículo da marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-OI-... 10. Após ter arrancado, o arguido AA passou pelo arguido BB e sobrinho; após passar por eles, viu o indivíduo a correr a grande velocidade pelo lado esquerdo da rua. 11. O arguido AA seguiu no seu veículo atrás dele. 12. Nesse momento imprimiu velocidade ao seu veículo com o propósito de o alcançar e na Rua ..., em ..., em frente à habitação nº ...18, próximo de um posto de transformação elétrico, embateu com a frente esquerda, nos membros inferiores de CC, projetando-o contra o capot e vidro da frente da viatura. 13. CC, acabou por rebolar pela faixa de rodagem, caindo numa valeta, no lado esquerdo veículo. 14. Após, o arguido AA desferiu-lhe vários pontapés nos membros inferiores. 15. Entretanto, chegou ao local BB que, vendo o estado em que se encontrava o ofendido e apesar de este lhe suplicar para pararem de lhe baterem, depois de pisar o seu braço com o pé, desferiu-lhe vários murros na cabeça e tórax, ciente que podia, com essa conduta agravar-lhe as lesões. 16. Como consequência direta e necessária da conduta perpetrada, o ofendido sofreu queixas de dor à apalpação no terço inferior da perna direita. Queixas de dor à apalpação do dorso do pé. Sem limitação de mobilidade. Sem aparentes desvios do eixo longo da perna, à observação. Sem assimetrias do comprimento real e aparente dos membros e perímetros da coxa e perna, quando comparado com o membro contra-lateral. Cicatriz localizada no terço superior da face anterior da perna, com 3cm de comprimento, relativamente à qual o examinado não sabe se terá resultado do evento. No membro inferior esquerdo, duas cicatrizes cirúrgicas localizadas no terço inferior da face lateral da anca, com 4 cm e 3 cm de comprimento, duas cicatrizes cirúrgicas localizadas no terço inferior da face lateral da coxa, com 1 cm e 1 cm de comprimento. Queixas de dor à mobilização da anca, sem limitação funcional. Sem assimetrias do comprimento real e aparente dos membros e perímetros da coxa e perna, quando comprado com o membro contra-lateral, o que lhe determinou 249 dias para a consolidação médico-legal, com afetação da capacidade de trabalho geral (15 dias) e com afetação da capacidade para o trabalho profissional (115 dias). 17. As condutas perpetradas pelos arguidos causaram as consequências permanentes supra descritas, as quais não se consideram gravemente desfigurantes ou causa de afetação grave da capacidade geral ou profissional. 18. Aquando da chegada dos elementos da GNR foram encontrados bens na posse do ofendido pertencentes ao arguido AA. 19. O arguido AA agiu com o propósito de molestar o corpo e a saúde do ofendido, utilizando para o efeito o veículo que conduzia, que sabia ser um meio particularmente perigoso, sabendo que da sua conduta necessariamente resultariam lesões, do tipo das acima referidas, resultado que representou e quis. 20. O arguido BB, apercebendo-se do estado grave em que ficou o ofendido, agrediu-o com estalos, com o propósito de ofender a sua integridade física e agravar as lesões já sofridas. 21. Os arguidos atuaram motivados pela conduta de CC que tentou apropriar-se, introduzindo-se na habitação de AA, de objetos de valor. 22. Os arguidos agiram de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. Mais se provou que: 23. Nas circunstâncias aludidas em 10, o ofendido seguia a correr próximo da berma e o arguido AA na faixa de rodagem da esquerda, destinada à circulação em sentido contrário ao da sua marcha, num troço que apresentava duas vias de circulação, com uma largura de, pelo menos, 7 metros. 24. No sentido de marcha do assistente e arguidos, após a cabine de eletricidade existente do lado esquerdo da rua, esta estreita, em sentido descendente, para uma largura que apenas permite a passagem alternada de viaturas em sentido oposto. 25. Atento o sentido de marcha do assistente e dos arguidos, do lado direito do local de embate, apenas existem casas, muradas e com portão de acesso. 26. Após o embate no corpo do assistente, a viatura do arguido AA apresentava danos no vidro frontal e farolim, do lado esquerdo (do condutor). 27. Após o embate, depois de recuperar moedas que o assistente tinha na sua posse, o arguido AA mudou e imobilizou a viatura para o lado oposto (direito) da rua. 28. À data dos factos, o ofendido residia com a mãe na mesma rua onde ocorreu o embate, em casa sita no n.º ...79. Dos pedidos de indemnização civil 29. Em resultado dos factos descritos supra em 12 a 15, o ofendido deu entrada no serviço de urgência do Hospital ..., onde foi submetido a tratamentos, no período de 22.03.2019 a 29.03.2019, no valor de € 6.094,08. 30. No âmbito do processo n.º 117403/19.3YIPRT, a correr termos pelo Juiz ... do Juízo Local Cível de Guimarães, o aqui demandante Hospital ... instaurou ação especial para o cumprimento de obrigação demandado a Companhia de Seguros EMP03..., SA, contra quem formulou pedido de indemnização civil de € 6.094,08, para “pagamento de alegados serviços médicos e medicamentosos prestados ao cidadão CC e em virtude de imputado atropelamento ocorrido por culpa de AA, com utilização de veículo automóvel seguro na Ré.” 31. Por despacho saneador proferido em 24.01.2022, a aludida ação foi suspensa, “por existência de causa prejudicial, até que seja proferida decisão com trânsito em julgado no âmbito do processo crime n.º 977/19.2T9GMR.” 32. As agressões aludidas em 14 e 15 ocorreram logo após o demandado AA ter atropelado o demandante e quando este se encontrava deitado no solo, com dores e os membros inferiores fraturados, provocando-lhe dores. 33. Os demandados só pararam com as agressões com a chegada dos vizinhos. 34. Quando o ofendido estava prostrado no solo, os arguidos apelidaram-no de “filho da puta”, o que fizeram repetidamente e de viva voz, de livre e espontânea vontade, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, com intenção de o ofender. 35. As expressões usadas pelos arguidos deixaram o ofendido abalado. 36. Sob o n.º 4017/20.0T8GMR, correu termos pelo J... do Juízo Central Cível de Guimarães a ação declarativa de condenação instaurada pelo aqui demandante-assistente contra a Companhia de Seguros EMP03..., SA na qual invocou que “foi intencionalmente atropelado pelo veículo de marca ... com a matrícula ..-OI-.., seguro na Ré e pertença de EMP02..., Lda., na altura conduzido pelo seu sócio e gerente AA”, de que resultaram “vários danos de índole patrimonial e não patrimonial, cujo ressarcimento reclama, e terminou peticionando a condenação da Ré a indemnizar o A. na quantia já liquidada de € 51.782,85, relegando-se para posterior liquidação a indemnização que resultar de eventual IPP que lhe venha a ser fixada (…)” 37. No âmbito da aludida ação, por sentença de 28.11.2021, foi o pedido julgado parcialmente procedente e a ali Ré condenada a pagar ao aqui assistente-demandante “a quantia de € 352,85, a título de danos patrimoniais, e a quantia de € 30.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros (…)”. 38. A aludida sentença foi objeto de recurso no qual, por acórdão do TRG de 06.10.2022, além do mais, na parte relativa aos danos não patrimoniais, foi substituída pela condenação da Ré a pagar ao ali Autor “i) a título de Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-psíquica, a quantia de € 20.000,00, acrescida de juros de mora (…); ii) a título de danos morais, a quantia de € 20.000,00, acrescida de juros de mora (…)”. 39. O aludido acórdão do TRG foi objeto de recurso para o STJ o qual, por acórdão de revista transitado em 12.05.2023, foi julgado parcialmente procedente, reduzindo o valor indemnizatório fixado ao aqui demandante-assistente de € 40.000,00 para € 30.000,00. 40. No dia 21.10.2022 a companhia de seguros pagou ao aqui demandante-assistente a quantia total de € 40.288,15. Da contestação, com relevância para a decisão (excluídas as considerações de Direito e as afirmações irrelevantes, por conclusivas e/ou especulativas): 41. Pelo menos à data dos factos e desde há vários anos, o arguido AA vivia com a esposa e filhas na Rua ..., ..., em ..., ..., .... 42. Até à data dos factos, a aludida residência do arguido foi alvo de cerca de cinco assaltos, ou tentativa de assalto. 43. Dos vários assaltos ou tentativas de assalto a sua casa, o arguido AA apenas apresentou uma queixa, pelo ocorrido em 19.12.2016, a qual deu origem ao inquérito nº 891/16.3PBGMR, que terminou com despacho de arquivamento proferido em 09.03.2017. 44. O arguido AA sofreu uma queda em 24.11.2018 da qual resultou uma fratura da perna, que importou a realização de cirurgia e um longo período de recuperação, retomando a marcha autónoma, sem canadianas, em 18.03.2019. 45. Quanto o arguido AA recebeu a chamada da esposa aludida em 1, encontrava-se no seu local de trabalho, na empresa EMP02..., Lda, sita na Rua ..., em ..., a 2,9 Km da sua habitação. 46. O arguido AA demorou ente 5 e 10 minutos a chegar a sua casa. 47. O arguido AA desconhecia a identidade da pessoa que viu em sua casa e se estava armada. 48. Até este momento, nem os arguidos nem a esposa do arguido AA chamaram a GNR. 49. O arguido AA seguiu atrás do ofendido para retê-lo e recuperar os bens que havia furtado da sua residência. 50. Quando o arguido AA seguia de carro atrás do ofendido, percebeu que este não ia parar. 51. Após o embate, o arguido AA saiu do carro desconhecendo se o ofendido estava ou não armado e exigiu-lhe que entregasse os bens que este tinha furtado na sua residência, apelidando-o, por mais do que uma vez, de ladrão, sendo que o ofendido, também por mais do que uma vez, lhe disse que nada tinha furtado. 52. Depois de o arguido AA recuperar duas moedas de prata que o ofendido tinha consigo, telefonou para o 112. 53. Os bombeiros, no local, cortaram as calças que o ofendido vestia, deixando-as no local. 54. Pelos factos ocorridos em 22.03.2019 e por sentença transitada em 06.09.2021, o aqui ofendido foi condenado no âmbito do processo abreviado n.º 208/19.5GBGMR, que correu termos pelo Juiz ... do Juízo Local Criminal de Guimarães, pela prática de um crime de furto qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 203º e 204º, n.º 2, e), do Código Penal, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução, sujeita a regime de prova. 55. O arguido AA estava convicto que o ofendido tinha sido o autor de anteriores assaltos a sua casa e na vizinhança. 56. A GNR competente na área de residência do arguido AA tem o seu quartel sito na Rua ..., em ..., que dista 12,7 Km daquela residência. 57. O ofendido nasceu em ../../1999; o co-arguido AA nasceu em ../../1973; o co-arguido BB nasceu em ../../1964; o sobrinho dos arguidos, referido em 8, nasceu em ../../1988. Das condições pessoais e sociais dos arguidos 58. Do certificado de registo criminal dos arguidos nada consta. 59. O arguido AA é casado, vive com a mulher e duas filhas, maiores de idade, estudantes universitárias; o agregado reside em moradia unifamiliar própria, tipologia 3, com boas condições de habitabilidade e conforto. 60. O arguido AA está habilitado com o 9º ano de escolaridade; trabalha desde os 18 anos na empresa da família, EMP02..., Lda, da qual é sócio-gerente; aufere €.2.637,74; a esposa, técnica administrativa na mesma empresa, aufere € 1.599,34. 61. O agregado do arguido AA apresenta como despesa mais relevante os encargos académicos das filhas, de cerca de € 650,00 mensais. 62. O arguido AA beneficia do apoio e suporte da família constituída e de origem; dispõe de uma imagem social ajustada, sendo considerado pessoa trabalhadora e honesta. 63. O arguido BB é casado, vive com a mulher, tem dois filhos maiores, já autonomizados; o agregado reside em moradia unifamiliar própria, tipologia 3, com boas condições de habitabilidade e conforto. 64. O arguido BB está habilitado com o 12º ano de escolaridade e tem o curso de afinador de máquinas industriais; trabalha na empresa da família, EMP02..., Lda, da qual é sócio-gerente; aufere € 2.611,74; a esposa, técnica administrativa na mesma empresa, aufere € 1.346,34. 65. O agregado do arguido BB apresenta como despesas as relativas aos consumos domésticos, de cerca de € 250,00 mensais. 66. O arguido BB beneficia do apoio e suporte da família constituída e de origem; dispõe de uma imagem social ajustada, sendo considerado pessoa trabalhadora e honesta. Factos não provados Não se provaram quaisquer outros factos alegados nos autos ou em audiência de julgamento com interesse para a decisão da causa, para além dos que estão em contradição com os que se deixaram supra, ainda designadamente que: A. Nas circunstâncias aludidas em 11, o arguido AA buzinou, abriu o vidro, e disse ao individuo que corria à sua frente para parar, sem qualquer êxito. B. Após o embate automóvel, o arguido AA desferiu vários pontapés em na cabeça e tórax do ofendido. C. O arguido AA agiu com o propósito de tirar a vida do ofendido, dirigindo um veículo automóvel em sua direção ciente que a atuação levada a cabo era idónea à produção do resultado pretendido. D. O arguido BB, apercebendo-se do estado grave em que ficou o arguido, agrediu-o violentamente, ciente, que em consequência da sua conduta podia causar a morte do ofendido, resultado que quis e se conformou. E. Os arguidos só não concretizaram os seus intentos por circunstâncias alheias à sua vontade, nomeadamente porque se formou um aglomerado de pessoas e por terem sido auxiliado pelos meios de socorro que evitaram o resultado pretendido pelos arguidos. F. Que os arguidos agiram em conjugação de esforços e vontades. G. Que, ou quais d’, as queixas e sequelas descritas em 16 resultaram das agressões aludidas em 14 e 15. H. Que as expressões usadas pelos arguidos e referidas supra tenham causado no ofendido profundo abalo, perturbação e perda de apetite. I. Que, desde que na ... deixou de existir por posto da PSP, há mais de 30 anos, e em especial nos últimos 10 anos, a vila passou a ser conhecida pelos fenómenos do tráfico de estupefacientes e pela criminalidade subjacente a tal atividade, designadamente os furtos e roubos em habitação. J. Os habitantes daquela Vila vivam em constante sobressalto. K. Que quando o arguido AA conduzia o carro atrás do ofendido, acelerou o veículo com o propósito de o ultrapassar, altura em que aquele individuo que perseguia, de forma surpreendente e brusca, mudou de direção, virando para a direita, colocando-se à frente do veículo, não tendo o arguido tempo para travar ou parar a viatura antes de lhe embater. L. Com a prática dos factos descritos, o ofendido tenha causado medo no arguido AA, deixando-o inseguro, perturbado, ansioso, deprimido, angustiado e com medo de permanecer na própria habitação, pelo que não deixa as filhas ali ficarem sozinhas e está a pensar em vender a casa. M. Há fortes indícios de que o ofendido tenha sido o autor de mais do que um furto em casa do arguido. N. O ofendido faça do furto modo de vida, tendo já sido, por várias vezes, condenado por tal crime. O. Que a ação do arguido AA tenha posto fim à carreira criminosa do ofendido, aos constantes assaltos à sua residência e às residências vizinhas. Motivação A convicção deste tribunal sobre a matéria de facto provada formou-se com base na avaliação de todos os meios de prova produzidos e/ou analisados em audiência de julgamento (cfr. artigo 355º do CPP), sempre no confronto com as regras gerais da experiência e da norma do artigo 127º, do mesmo diploma legal, que estabelece o princípio da livre apreciação da prova. Desde logo, os arguidos, renunciando ao direito ao silêncio, entenderam prestar declarações, apresentando uma versão concordante não apenas entre si mas também com as declarações do assistente, no que concerne ao relato dos factos até ao momento do embate, o que permitiu o aditamento de vários factos, ainda que instrumentais para a decisão a proferir, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 358º do CPP. Assim, o arguido AA começou por referir os vários assaltos de que a sua casa foi vítima ao longo dos 20 anos em que ali reside, uma das quais atribui ao ofendido e outra, em 2016, participada às autoridades e que “não deu em nada”. Sobre o dia dos factos - dias depois de ter deixado as canadianas que usava por força do acidente de trabalho que sofreu em 2018 -, recordou que estava a trabalhar na fábrica quando recebeu um telefonema da mulher a dizer que ouviu barulhos na habitação; após o que, ao volante da sua viatura, de imediato se dirigiu para casa, a cerca de 3 Km; no caminho ligou ao irmão, para ir lá ter com ele. Chegado a casa, encontrou a mulher à porta e viu a porta da sala aberta, ouviu barulho de alguém a descer as escadas e então viu um individuo, de capuz, no interior, que se pôs em fuga, saltando o muro, no momento em que chegou ao local o irmão e o sobrinho. Estes seguiram o individuo a correr enquanto o arguido AA foi no seu carro. Segundo disse, passou pelos familiares, apeados, e gritou ao individuo para parar; este, sem parar, fez-lhe “um gesto”, pelo que decidiu ultrapassá-lo para pôr o carro atravessado à frente, por forma a impedi-lo de prosseguir. Sem saber a que velocidade seguia, mas admitindo que circulava pela esquerda da via, afirmou que, de repente, o ofendido “virou” para a direita, assim embatendo na frente do carro, caindo sobre o capot, ficando caído na valeta, do lado esquerdo. Recordou que o ofendido gritava, admitiu ter-lhe chamado ladrão e gatuno, e afirmou ter-lhe “pedido” para devolver o que tinha tirado, o que viria a perceber terem sido umas moedas de prata. De acordo com este arguido, depois disto, ligou para o 112, após o que chegou ao local a GNR e o INEM, tendo os bombeiros cortado as calças ao ofendido. Mais referiu que foi já depois de levado para o hospital que os militares da GNR encontraram mais objetos nas calças do ofendido que ali haviam sido deixadas. Negando ter – ele ou o irmão – agredido a vítima no chão ou sequer ter-lhe tocado para o revistar, afiançou que foi o ofendido que “voluntariamente” lhe devolveu as moedas que tinha nos bolsos; mais admitiu o arguido ter retirado o carro do lugar do embate, parando-o na berma do lado direito, o que fez apenas para não impedir a circulação automóvel, já que, àquela hora (do almoço) havia muito trânsito. Confrontado com fls. 7, o arguido reconheceu o local, identificando o portão como a zona do embate, admitindo que não reconhece no lado direito da via nenhum local de fuga. Em nenhum momento o arguido aludiu a qualquer trauma – seu ou da família – decorrente do assalto, o qual não o amedrontou, nem deprimiu ou angustiou (ponto L), antes motivou a perseguição que, sem hesitar nem temer, de imediato encetou (como provado em 9 a 14, 19, 21, 48 a 51). Por sua vez, o arguido BB, recordou a sexta feira, dia 22 de março, quando estava a trabalhar e recebeu uma chamada do irmão a contar o telefonema da mulher. Disse que, de imediato, arrancou com o sobrinho em direção à casa do irmão onde, logo quando ali chegou, viu um rapaz encapuzado a saltar o muro; saíram ambos do carro e foram a correr atrás dele quando, daí a pouco, o irmão passou ao lado, de carro, a gritar “Pára”. De acordo com este arguido, ambos continuaram a correr – atrás do carro – quando viram o rapaz, que seguia junto ao muro do lado esquerdo, a guinar para a direita, sendo atingido pelo carro do irmão. Mais referiu que, uma vez chegados junto do individuo, este estava sentado, junto à berma; porque não sabiam se ele estava armado, admitiu ter posto um pé em cima do braço dele enquanto o irmão o segurou pelo outro braço, ao mesmo tempo que lhe dizia “Dá-me o que me roubaste”, negando que o tivessem revistado. De acordo com o arguido, depois de começar por negar, o individuo “acalmou” e entregou umas moedas de prata. Admitiu que lhe ordenou que tirasse a camisola, o que ele fez, ficando em t-shirt. Então o irmão ligou para o 112, ao que disse “por conta de um acidente”. Entretanto, chegou o INEM, que cortou as calças ao ofendido e levou-o para o hospital; depois chegou a GNR que verificou as calças e nelas encontrou objetos “em ouro”. Confrontado com fls. 7, indicou o local do embate como tendo sido a cerca de 50 metros da cabine elétrica ali existente. Finalmente, admitiu que ele e o irmão chamaram o ofendido de ladrão e gatuno, não recordando que o tivessem chamado de “Filho da puta”; mais repetindo que o irmão mudou o carro de sítio antes da policia chegar, para não interferir no trânsito. Das declarações dos arguidos resultou, desde logo, assente a factualidade deixada sob os n.ºs 1 a 11, parte (o embate e queda) de 12, 13, parte (a chegada e prender o braço com o pé) de 15, 18, 21, 23 a 27, parte de 32, 41 a 53, 55, 56 e parte de 57 (quanto às datas de nascimento dos próprios, constantes dos respetivos TIR’s e relatórios sociais). Conhecida a versão dos arguidos, a ela contrapôs-se a do assistente, CC, que se reportou ao sucedido começando por admitir que “cometi um delito de furto”, referindo-se à residência do arguido AA, a cerca de 150 metros do local onde, à data, ele próprio residia. Relatou que, no interior da casa, ouviu barulhos e vozes, alguém a dizer que o ia matar pelo que, com medo, fugiu pela rua fora, correndo pela berma do lado esquerdo (junto ao muro); a dada altura, apercebeu-se (pelo barulho do motor) de um carro a vir atrás de si; referiu que quando olhou para trás foi logo “atropelado” e projetado por cima do carro, caindo na berma, do lado esquerdo da rua. Garantiu que, nos cerca de 200 metros que percorreu, não ouviu qualquer buzina, chamamento ou travagem. Já caído no chão, e com as pernas magoadas, viu o arguido AA sair do carro (altura em que o identificou), a insultá-lo e dizer que o queria matar “daqui não sais”, “assaltaste-me a casa”, “filho da puta”, “ladrão”; disse que o arguido “estava furioso”, puxou-o pelas pernas, a tentar tirar-lhe as calças, bateu-lhe com socos e pontapés. Entretanto, chegaram duas pessoas (homens) que logo lhe bateram, “não tanto”, mas também com socos e “chapadas na cabeça e no corpo”, não se recordando se estes lhe chamaram nomes. Garantiu que o arguido AA lhe retirou o que tinha furtado e estava no bolso das calças, “nem teve tempo para entregar”. De acordo com o assistente, só um ou dois minutos depois é que começaram a chegar os vizinhos (FF, ..., GG e a própria mãe, chamada por uma vizinha), altura em que pararam as agressões. Precisou que o local do embate foi a cerca de meio metro antes da cabine de eletricidade e que o arguido AA retirou o carro e parou-o do outro lado da estrada, nos termos já admitidos pelo próprio. Sobre o seu propósito, asseverou que pretendia apenas fugir, correndo em frente (assim se afastando da sua casa, naquela rua), em direção às escolas, onde se podia esconder, negando que tenha mudado de direção ou, de alguma forma, se lançado em frente do carro que o seguia. Sobre as lesões sofridas, relatou as dores que teve no momento, onde suplicava aos agressores que parassem, e confirmou que foi operado à perna esquerda, engessado na perna direita, ficou internado uma semana e três meses em casa, imóvel, numa cama articulada; depois fez fisioterapia. Mais confirmou o auto de reconstituição em que teve participação. Conhecidas as versões dos diretamente envolvidos nos factos, e divergindo elas no essencial relativo ao momento do embate, há que convocar a restante prova, desde logo testemunhal, na certeza de que apenas uma testemunha (o sobrinho dos arguidos) viu a colisão, pois que todas as demais (a esposa do arguido AA, os vizinhos da rua, os agentes da autoridade e bombeiros) chegaram ao local já com a vítima caída, ferida, no chão, relatando, de forma credível e essencialmente concordante, o que ali observaram. Assim, HH, residente na rua onde se deu o embate, que reconheceu na fotografia de fls. 7 que lhe foi exibida, reportou-se ao dia dos factos por referência ao momento em que começou a ouvir gritos e um homem a dizer “despe-te”, o que o fez vir junto ao seu muro donde viu um rapaz ali encostado, “caído na valeta”, entre o portão e a cabine. A testemunha referiu não ter ouvido insultos, não ter visto agressões nem sequer buzinas ou travagem de carro; disse que regressou a casa e pouco depois viu ali chegar a GNR e a ambulância que levou o rapaz, incapaz de ser pôr em pé. Recordou que no local ficou o que achou ser um casaco que o militar da GNR “mexeu” e donde retirou “umas coisas” que viu entregar a uma mulher, cuja identidade afirmou desconhecer. Perguntado, esclareceu que, do lado oposto (direito) da rua existe um portão de acesso a casa de um vizinho (sr. FF). Ora, este testemunho, isento e desinteressado, relevou pelo que presenciou (desde logo os gritos do rapaz ferido, caído junto ao seu muro) mas também pelo que não ouviu (nem o buzinar do carro, nem o som de travagem, que seriam prévios aos gritos que o alertaram, dados como não provados em A). O facto de não ter presenciado agressões ou insultos não significa que estes não tenham ocorrido, apenas que não ocorreram nos momentos em que ali se encontrava. II, bombeiro que acorreu ao local após chamada por agressão na via pública (conforme relatório de ocorrência de fls. 41), esclareceu que, ali chegado, verificou o que lhe pareceu um atropelamento: encontrou um jovem na berma, encostado ao muro, e um veículo branco com o vidro frontal partido, do outro lado da rua (o que asseverou porque a ambulância parou entre a vítima e o tal carro), tendo concluído que se tratava de um atropelamento. A vítima apresentava-se muito queixosa, com lesões visíveis nas pernas, incapaz de se levantar, com suspeita de fratura numa perna razão porque foi imobilizado e levado ao hospital. Confirmou o protocolo normal de cortar as calças para ver e chegar à lesão. Com base neste testemunho, totalmente isento e desinteressado, assentaram-se os factos n.º 13, 26, 27 e 53. DD, residente na mesma rua e casa onde vivia o ofendido (no ...79, por baixo da sua), recordou que estava em casa quando ouviu alguém a “berrar”, veio ao portão e viu um rapaz no chão, “contra o muro”, a um ou dois metros da cabine, a berrar enquanto três senhores lhe estavam a tirar as calças das pernas e um a pontapear as pernas (viu pelo menos um chuto), o rapaz só dizia “não me mexas na perna” enquanto os homens diziam que “fostes lá a casa”; a testemunha não recordou insultos, apenas “malandro”; disse que, nessa altura, aproximou-se e reconheceu a vítima como sendo o CC, ali também residente; quando ia avisar a mãe do rapaz, encontrou uma vizinha que a foi chamar; viu sangue na cara do rapaz e, do outro lado da rua, um carro parado. Aguardou a chegada da mãe do ofendido, após o que foi embora. Garante que não ouviu travagem de carro, nem nenhum apito ou buzina antes dos gritos do ofendido. Soube que o ofendido “partiu alguma coisa” e que ficou muito tempo em cama articulada. Ora, mais uma vez, esta testemunha apresentou um relato que temos por sincero, sendo compreensíveis eventuais lacunas ou lapsos, explicáveis pelos mais de cinco anos volvidos. Não obstante, no essencial, é reiterada a situação da vítima no local, rodeada por três indivíduos – que, desde logo por admissão dos próprios, sabemos serem os arguidos e o sobrinho -, que o chutavam enquanto tentavam puxar-lhe as calças. Este relato, que vai de encontro às declarações do assistente e dos próprios arguidos (que admitiram ter segurado o ofendido, que não sabiam se estaria armado, enquanto lhe pediam/exigiam a restituição do furtado, apelidando-o de ladrão e gatuno), convenceu-nos que esta testemunha foi uma das primeiras a chegar ao local, onde, por isso, viu o que descreveu e que temos por verdadeiro. Assentámos, assim, os factos sob os n.ºs 13 a 15, 20, 25, 28, 32, 33 e 51. JJ, militar da GNR de ..., testemunha na participação do acidente, explicou que foram acionados para um furto numa habitação; relatou que, chegados à morada, em ..., encontraram a casa vazia pelo que andaram uns metros e viram uma ambulância; aproximaram-se do local e aí viram um jovem já dentro da ambulância, vítima de um atropelamento; alguém terá acionado o 112. Mais referiu que foi então abordado pelo arguido AA que contou que o jovem tinha sido surpreendido a assaltar a casa pelo que o seguiu de carro e deu-se o atropelamento. O mesmo arguido indicou as calças da vítima junto a um poste (que tinham sido cortadas), as quais verificaram e das quais retiram objetos que foram reconhecidos pelo arguido AA. Referiu que com a vítima só falaram no hospital; no local, estava um ... branco, com danos no lado esquerdo e vidro partido; porque o carro tinha sido mudado de lugar, admitiu que não foram feitas medições, não recordando a existência de marcas de travagem. Finalmente, referiu que, do local, seguiram para a habitação do arguido onde procuraram os sinais do assalto. Este testemunho – relevante apenas para corroborar os factos n.º 26, 27 e 56 - foi, no essencial, reiterado pelo de KK, militar da GNR, autuante na participação de acidente. Assim, a testemunha recordou a chamada por um furto numa residência aonde acorreram e não encontraram ninguém; confirmou que percorreram a rua e viram uma ambulância e um “aglomerado” de pessoas; aí foram abordados pelo arguido AA que lhes relatou que tinha seguido, no carro, o individuo que viu fugir de sua casa quando se deu o atropelamento. A vítima já estava dentro da ambulância e o arguido disse não saber precisar o local do embate, tendo já retirado a viatura. A testemunha afirmou que não havia vestígios do acidente (nem vidros nem marcas de travagem), apenas uma calças rasgadas junto ao muro; esclareceu que não foi chamado o ... porque não houve mortes nem feridos graves (já que a indicação dos bombeiros era de ferido leve – cfr. fls. 37 e ss). Dali foram a casa do arguido AA e de lá para o hospital, onde falaram com a vítima que contou a sua versão dos factos, dizendo que tinha sido atropelado e agredido. FF, proprietário da casa em frente ao local onde ocorreu o acidente, produziu um depoimento que temos por sincero e desinteressado, limitado aos dois momentos em que teve participação, um antes e outro depois da ambulância ter chegado ao local. Assim, explicou que, quando estava a sair de casa para, com a esposa (a testemunha LL), ir buscar o almoço, viram um rapaz no chão, do outro lado da rua, a berrar e a pedir um copo de água; só quando lhe entregou a água é que reconheceu o ofendido, seu vizinho. Viu um carro parado próximo do ofendido, em contramão, o que o levou a pensar que fora um acidente; viu também um homem ao telefone; perguntou se era preciso alguma coisa tendo-lhe dito que já tinham chamado a ambulância. Quando regressou com o almoço, já lá estava a ambulância não sabendo se o carro estava no mesmo sítio. Confrontado com fls. 61, confirmou a posição do ofendido, não garantindo a posição do carro. Não ouviu nenhum insulto, admitindo ter ouvido alguém falar em “ladrão”, embora não recorde quem; não viu nenhuma agressão. Ora, percebe-se deste depoimento que quando a testemunha primeiramente chegou ao local já o arguido estava ao telefone (a ligar para o 112) o que nos permite concluir que tal ocorreu já depois, não apenas e obviamente do embate, mas também já depois de os arguidos lograram recuperar da vítima as moedas que esta tinha na sua posse, ou seja, depois de a cercarem, segurarem e “interpelarem”, nos termos dados por provados, o que explica que não tenha presenciado quaisquer agressões ou insultos anteriores à sua chegada ao portão. Não obstante, corroborou os factos n.º 13, 24, 25, 26 (quanto à posição do carro) e 52. LL, esposa da anterior testemunha FF, reiterou o depoimento do marido ao recordar a sexta feira em que, por volta do meio dia, quando ia comprar o almoço, à saída do portão da sua casa, viu um individuo encostado ao seu portão, outro no meio da estrada (ao telefone) e outro “na valeta” em frente, a gemer, sem se conseguir mexer, tendo depreendido que tinha sido atropelado; tendo perguntado o que se passara, o homem que estava junto ao muro disse-lhe que o rapaz tinha assaltado a casa do irmão, que já a tinha assaltado várias vezes e veio atrás dele mas já estava a chamar ajuda. Antes disto não ouviu qualquer barulho (de travagem ou buzinas); quando o marido chegou ao pé dele, o rapaz reconheceu-o e disse “sr. FF arranje-me um copo de água”, só nessa altura percebeu que era conhecido. Entretanto começaram a chegar mais pessoas, incluindo a mãe do jovem. Quando regressou com o almoço, já lá estava a GNR e a ambulância, sabendo que o carro batido já não estava no mesmo sítio, crendo que estava agora do lado oposto, junto à sua casa. Confrontada com fls. 61 a 63, confirmou o local e posição da vítima. Ora, como dito, esta testemunha confirmou o relato do marido, acrescentando o facto (confessado pelos arguidos) de que, no regresso com o almoço, o carro já havia sido mudado de lugar, assim se assentando os factos n.º 13, 25, 26, 27, 28, 52 e 55. Por sua vez, MM recordou o dia em que estava em casa, a fazer as lides domésticas, quando, pela hora do almoço, se apercebeu de um alvoroço na rua, que começou por desconsiderar por achar serem os miúdos do ciclo; mas como os cães estavam a ladrar e se apercebeu de alguém a berrar, nessa altura foi à varanda e viu um rapaz na berma, com uns vizinhos a ver, dentro dos respetivos muros (sr. FF e sr. HH), a DD e outros, que não recorda, mais próximos; viu três senhores “mais exaltados”, um dos quais o arguido AA, a discutir e a tentar puxar a roupa do rapaz, que gritava quando lhe tocavam nas pernas, sem se recordar das palavras ditas. Viu ali um carro branco; a pedido da vizinha DD, que vinha do local, foi buscar a mãe do ofendido (a testemunha NN) a uma padaria próxima; mais tarde, quando saiu para ir buscar a filha à escola, viu os bombeiros a prestar assistência ao rapaz e o carro branco estacionado no lado oposto ao onde antes estava, com o vidro estilhaçado. Não viu nenhuma agressão, não ouviu nenhum insulto e barulhos de buzinas só depois do acidente, pelos carros que estavam impedidos de passar. Este afigurou-se-nos mais um depoimento credível, não sendo exigível que a testemunha detalhe, com absoluta precisão, todos os momentos, e pela sua exata ordem cronológica, de um acidente/incidente ocorrido há mais de cinco anos e que não a envolveu diretamente. Assim, confirma e corrobora o relato da testemunha DD que afirmou ter encontrado uma vizinha a quem pediu para ir buscar a mãe da vítima, o que atesta que esta testemunha chegou ao local em momento anterior e de lá saiu a pedir ajuda, o que explica que outras testemunhas, entretanto chegadas ao local, ali a não tivessem visto. Este depoimento confirma também quais os primeiros barulhos que fizeram alertar os cães e os vizinhos, e não foram quaisquer buzinas ou travagens, mas os gritos de um rapaz. Finalmente, atesta a mudança de lugar do carro após o embate e antes da chegada das autoridades ao local, tudo dado por assente sob os n.ºs 13, 25, 26, 27, 28, 42, 33 e 51 (quando à abordagem ao ofendido no chão). EE, esposa e cunhada dos arguidos, relatou o dia em que a sua casa foi assaltada: por volta do meio dia, entrou pela cozinha e ouviu um barulho de portas e gavetas no andar de cima; na sala viu uma janela aberta, o que a assustou; ligou ao marido (que estava na fábrica) e à senhora que iria fazer limpeza na parte da tarde, que lhe confirmou não estar ali. De acordo com a testemunha, dez minutos depois, o marido chegou e apercebem-se de um vulto na cozinha; gritou e nessa altura viu uma pessoa, com capuz na cabeça, a saltar o muro; nesse momento chegou o cunhado e o sobrinho que saíram do carro e foram a correr; o marido meteu-se na carrinha e a testemunha começou a correr atrás. Pouco depois, deparou-se com o carro do marido acidentado “no meio” da estrada, mais encostado ao lado esquerdo, e encontrou-se com uma senhora (a testemunha DD) a quem contou o sucedido em sua casa e que lhe deu conta que o rapaz também a tinha assaltado. Confirmou que também já lá estavam o cunhado e o sobrinho; aproximou-se do marido, que se queixava dos olhos e lhe mostrou uma moeda em prata (de meio quilo) que o rapaz tinha; nessa altura abeirou-se do jovem e confrontou-o com o assalto, acusando-o de ter anteriormente assaltado a sua casa, o que ele negou; estava sem capuz, não recorda se sangrava. Recorda-se que alguém pediu um copo de água a uns vizinhos que estavam a sair de casa. Confrontada com as fotografias extraídas do processo n.º 208/19.5GBGMR, juntas em audiência, reconheceu os objetos e os danos do veículo. Admitiu que o carro foi retirado do local e estacionado mais à frente, do lado oposto, para permitir a circulação. Depois de falar com a GNR, os militares acompanharam-na a casa onde viram por onde tinha sido feito o acesso e o que faltava do cofre. Confirmou que o marido estava nervoso e garantiu que agiu com o propósito de recuperar o que tivesse sido retirado, nunca com a intenção de matar, não aludindo a qualquer receio dele ou trauma da família. Pese embora a qualidade desta testemunha, temos o seu depoimento por credível, até porque concordante e corroborado pela demais prova, razão porque nele também assentámos a nossa convicção para dar por provados os factos sob os n.ºs 1 a 9, 11, 13, 18, 21, 26, 27, 41 a 49, 51, 52 e 55 (e não provado em L). OO, sobrinho dos arguidos, recordou o dia em que o tio (arguido BB) lhe pediu para ir a casa do tio AA, onde a tia suspeitava que estivesse alguém. Chegados ao local, depois de saírem do carro, viram um individuo a saltar o muro e a tia à porta; foram a correr atrás dele, a seguir junto ao muro, do lado esquerdo, pedindo-lhe para parar; o tio ficou para trás (um ou dois metros), pouco à frente, numa curva, passou um carro branco, que depois percebeu ser o tio AA; uns segundos depois, “deu-se o acidente”: o individuo, “deu uma guinada à direita” e atravessou-se à frente do carro, para “se desviar” da caixa de eletricidade, apesar de ir a 1,5 ou 2 metros do muro, no meio da estrada; já o carro do tio “ia pela mão dele.” Confrontado com fls. 58 e ss, considera que este não foi o local de impacto; apesar do acidente acontecer à sua frente, não recorda a queda do ofendido que diz que ficou na berma, onde tapava a cara com o capuz. Chegados junto ao rapaz, referiu que a primeira coisa que o tio disse foi para devolver as coisas que tinha roubado; ele disse que não tinha nada, mas acabou por dar, de forma que não recorda; garante que só perguntaram, negando que alguém o tenha revistado ou agredido. Logo atrás de si vinha o tio BB e depois a tia; os vizinhos começaram a chegar depois. Garantiu a testemunha que só mais tarde o rapaz se queixou de dores nas pernas, não recordando se tinha sangue; confirmou que foi o tio AA quem ligou para o 112, já depois de ter recuperado a moeda. Entretanto, chegaram os bombeiros e depois a GNR (quando a vítima já estava a entrar na ambulância), já após o tio AA ter mudado o carro de sítio para permitir a circulação. Confirma que não ficaram marcas de travagem; no local estavam apenas as calças onde a GNR encontrou mais peças. Ora, este testemunho, esforçado em confirmar a versão dos arguidos da brusca mudança de direção da vítima, não nos convenceu. Note-se que o esforço de isentar o arguido/tio AA de responsabilidade foi tanto que, indo mais longe do que o próprio, afirmou que a viatura seguia “na sua mão”, facto que se mostra inequivocamente negado por toda a prova. Não, nem o carro ia do lado direito da via (caso em que nem havia necessidade para o deslocar de sítio), nem a vítima ia no meio da estrada (pois que seguia junto à berma do lado esquerdo), nem o tio vinha a buzinar ou a gritar (caso em que a própria testemunha se aperceberia que se tratava do tio antes de este passar por si, quando diz que dele se apercebeu), não sendo crível que não tenha visto a projeção e queda do ofendido que ocorreu à sua frente (projeção e queda que foi vista pelo arguido BB, que seguia atrás da testemunha). Como dito, este depoimento, contaminado por uma evidente parcialidade, não nos mereceu credibilidade. PP, na data dos factos, pela hora do meio dia, vinha, a pé, pela rua onde viu “o rapaz” encostado ao muro, do lado esquerdo, a gemer “chamai a ambulância, estou mal”; referiu que o jovem se queixava das pernas, não reparando se havia marcas de sangue, recordando apenas que se viam as cuecas (não sabendo se tinha as calças despidas ou apenas descidas); disse que havia “muita gente” no local, nomeadamente os arguidos, a esposa de um e a mãe do ofendido, com quem a testemunha havia estado antes, numa pastelaria próxima. Viu um carro branco parado na estrada, do lado direito, oposto ao sítio onde estava o rapaz, não tendo reparado em estragos. Mais referiu que, entretanto, viu chegar os bombeiros que o levaram, numa maca. Segundo a testemunha, o que se constava é que o ofendido vinha da casa do arguido, que tinha assaltado, e os arguidos já lhe tinham tirado as coisas roubadas do bolso. Prima da mãe do ofendido, foi visitá-lo uma vez a casa, onde vivia com a mãe e o irmão, encontrando-o “com as pernas ao alto”, numa cama de hospital. Ora, o relato da testemunha afigura-se-nos isento e desinteressado, por isso credível apesar de pouco relevante, sendo uma das últimas pessoas a chegar ao local, onde acorre depois das várias outras, nomeadamente a mãe do ofendido, pouco antes da chegada dos bombeiros. NN, mãe do ofendido, recordou o dia em que estava na padaria e uma vizinha (a MM) foi buscá-la a dizer que o filho tinha tido um acidente; veio de boleia até ao local onde viu “o QQ” (referindo-se ao arguido AA) a discutir com o filho a chamar-lhe “filho da puta”, “ladrão”, “gatuno”; disse que o filho estava na valeta, aos gritos, com dores e as pernas “todas torcidas”, não entendia porque estavam a chamar nomes ao filho até que “alguém” (que não recorda, dada a confusão) lhe disse que ele tinha assaltado a casa; toda esta situação levou-a a sentir-se muito mal, tendo sido hospitalizada nesse dia. Confirmou que o carro tinha o vidro da frente, do lado do volante, partido e estava parado junto ao filho mas, a dada altura, alguém, que não identificou (por estar debruçada sobre o filho), mudou o carro para o outro lado da rua. Para além dos arguidos e dos vizinhos que identificou, viu “um moço mais novo”, junto aos arguidos, que não conhece. Sobre o estado do filho, recordou que tinha sangue na cabeça e na cara, só uma sapatilha calçada e as calças puxadas para baixo. De forma que temos por sincera, admitiu que não ouviu o arguido BB a chamar nomes ao filho nem viu nenhuma agressão. Referiu estar presente quando chegaram a GNR e os bombeiros, que levaram o filho para o hospital onde foi operado e ficou internado; após, ficou vários meses acamado, apenas em julho começou a sair da cama e a andar de muletas. Explicou o apoio que lhe prestou e a medicação que teve de tomar. Ora, sem olvidar que se trata da mãe da vítima, temos este testemunho por sincero e credível. Com efeito, apesar da compreensível dor e mágoa desta mãe, por ver o seu filho ferido, a ser insultado, percebendo que antes cometera um ilícito que por certo a envergonhava, ela não cedeu à tentação e exagerar o seu relato, por exemplo, confirmando agressões (estalos ou pontapés) que o filho afirma ter ali sofrido ou afirmando ter ouvido insultos do arguido BB. A testemunha revela-se, assim, credível pelo que diz ter visto: para além daquilo que todos os demais viram e relataram (e os arguidos até admitiram) - como o chamar o filho de ladrão, gatuno ou malandro -, também o epíteto que, apesar de vulgar no Norte, porventura mais fere – e por isso marca -, uma mãe: “filho da puta”. Estamos certos que os arguidos proferiram esta expressão (confirmada pela testemunha quanto ao AA e afirmada pelo assistente quanto a ambos os arguidos): depois de um episódio de alta tensão (como surpreender um assalto em curso, perseguir o assaltante, atropelar/ver atropelar o meliante, abordar o meliante sem saber se este está armado), num claro estado de exaltação e até excitação, os arguidos acercam-se do ofendido, caído e ferido no chão, certos de que este invadira e assaltara a sua casa, pelo que o abordam com animosidade, insultando-o, segurando-o e agredindo-o de forma a poderem recuperar dele os objetos que tenha furtado. Todo este contexto de escalada de violência explica que as palavras usadas tenham sido precisamente as que o assistente referiu, visando ferir a sua honra (nos termos que a contestação não escamoteia ao afiançar que “o ofendido faz do furto modo de vida, tendo já sido por várias vezes condenado por tal crime”, apesar de a sentença condenatória pelo furto do dia dos factos aludir à ausência de antecedentes criminais do ofendido, ali arguido). Este testemunho, corroborando as declarações do assistente e confirmado pelas regras da experiência, permitiu-nos assentar os factos sob os n.ºs 26, 27, 28, 34, 35 e 55. Esgotada a prova da acusação, seguiu-se a da defesa, no essencial, para caracterizar ambos os arguidos como pessoas sérias, honestas, incapazes de desejar a morte de alguém. Assim, RR, empresário, amigo do arguido AA, afirmou-o incapaz dos atos de que o acusam; mais aludiu à situação profissional do arguido. SS, empresário e amigo de infância do arguido AA, descreveu-o como bom pai de família, trabalhador e honesto, incapaz de matar alguém. TT, empresário e amigo dos arguidos, descreveu a situação profissional e familiar do arguido BB, com quem tem uma amizade de mais de 30 anos; descreveu-o como pessoa reservada, embora conhecida pelo seu trabalho; prestável e honesta. UU, empresário e amigo dos arguidos, referiu-se ao BB como amigo de longa data, “de quem só pode dizer bem”, por ser pessoa educada, respeitadora, séria e honesta. Ora, da prova a que supra se aludiu, dizer que as circunstâncias em que os factos ocorreram estão firmemente assentes, quer pelas declarações do assistente, quer dos próprios arguidos. Ficou, assim, claro o motivo que levou o ofendido a casa do arguido AA, e pelo qual foi já punido, e que provocou a fuga (do ofendido, apeado) e a “perseguição” (dos arguidos, do sobrinho e da esposa do arguido AA), pela rua até ao local do embate, tudo nos termos dados por provados sob os pontos 1 a 12. Ambos os arguidos assumem que perseguiram o ofendido (um apeado o outro ao volante do carro) desconhecendo a sua identidade, se estava armado ou acompanhado, ou se tinha retirado algo da casa onde fora surpreendido. Ambos os arguidos confirmam a versão do assistente de que este seguia no lado esquerdo da rua, junto à berma, sendo seguido pelo arguido AA na sua viatura, do mesmo lado esquerdo da rua, ou seja, em contra-mão, o que apenas foi negado – de forma nada credível - pela testemunha OO, sobrinho dos arguidos que corria também atrás do ofendido. Assente que o ofendido corria junto à berma do lado esquerdo da rua e que o arguido AA o seguia, e alcançou, com o carro, resta perceber como se deu o embate de que resultou a projeção do ofendido por cima do carro e a sua queda junto à valeta do lado esquerdo da rua bem como os danos verificados na viatura do arguido. Nesta parte, as versões do assistente e dos arguidos diferem: aquele afirma que foi intencionalmente atingido pela frente do carro do arguido; estes garantem que foi o ofendido quem, mudando a direção da sua marcha, se colocou em frente do carro que, assim inadvertidamente, o colheu. Ora, para apreciar e valorar cada uma das versões socorremo-nos dos factos que temos por objetivos e certos, complementados por outros (indiretos ou instrumentais) que, analisados à luz do normal suceder e das regras da experiência nos habilitarão a motivação da nossa convicção. Com efeito, sabemos que a prova pode ser direta ou indireta/indiciária: enquanto a prova direta se refere diretamente ao tema da prova; a prova indireta ou indiciária refere-se a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova. Nesta prova indireta (ou indiciária) intervêm a inteligência e a lógica do julgador que associa o facto-indício a uma regra da experiência que vai permitir alcançar a convicção sobre o facto a provar. Sem olvidar que também na prova direta tem intervenção um elemento porventura ainda mais difícil de determinar - a credibilidade do testemunho -, é seguro que a prova indireta exige do julgador um particular cuidado na sua apreciação, uma vez que apenas se pode extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, de forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis. A nossa lei processual penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objetivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e de acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação. É o princípio da livre apreciação da prova, proclamado no artigo 127º do CPP: "salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente". De acordo com o Prof. Germano Marques da Silva (in Direito Processual Penal, vol. II, p. 111) "a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão". Isto posto temos que: - os arguidos surpreenderam o ofendido no interior da casa do AA onde acedeu sem autorização e donde fugiu, saltando um muro; - os arguidos estavam convictos que o ofendido fora surpreendido a assaltar a casa do arguido AA e que tinha sido o autor de anteriores assaltos; - os arguidos não chamaram as autoridades policiais pela suspeita do furto; - os arguidos seguiram no encalço do ofendido para o alcançarem e recuperarem os bens e valores que pudesse ter retirado da casa; - os arguidos desconheciam a identidade do ofendido e se este estava armado; - o ofendido saltou o muro e correu sem limitações; - o arguido AA, com 45 anos de idade, tinha dificuldades em andar, por ter sido sujeito a cirurgia, usando canadianas até 3 dias antes; - o ofendido fugia a correr, junto à berma do lado esquerdo da rua, num troço que apresentava duas vias de circulação, com uma largura de pelo menos 7 metros; - no sentido de marcha do assistente e arguidos, após a cabine de eletricidade existente do lado esquerdo da rua, esta estreita para uma largura que apenas permite a passagem alternada de viaturas em sentido oposto; - o ofendido residia na rua do embate, em casa sita do lado direito, atendo o seu sentido de marcha; - atento o sentido de marcha do assistente e dos arguidos, do lado direito do local de embate, apenas existem casas, muradas e com portão de acesso; - após o embate, o assistente foi projetado por cima do capot do carro do arguido AA e caiu na berma da estrada, junto ao muro, do lado esquerdo da rua; - após o embate no corpo do assistente, a viatura do arguido AA apresentava danos no vidro frontal e farolim, do lado esquerdo; - após o embate, depois de recuperar moedas que o assistente tinha na sua posse, o arguido AA mudou e imobilizou a viatura para o lado oposto (direito) da rua. Ora, todos estes factos – indiretos, invocados e admitidos pelos próprios arguidos – habilitam o tribunal a concluir (o que fez de forma unânime) que o embate ocorreu de forma voluntária e intencional: o arguido, que seguia o ofendido que corria sem sinais de parar, ao ver aproximar-se da cabina de eletricidade, percebeu que, a partir dali e seguindo o ofendido a correr, dificilmente o alcançaria já que a rua, embora continuando com dois sentidos, passava a estreitar, não permitindo sequer a passagem cruzada de duas viaturas. Ora, pretendendo alcançar e reter o ofendido – e não apenas segui-lo indefinidamente, esperando por um rebate de consciência que o fizesse “render-se” -, o arguido, seguindo imediatamente atrás do assistente (por isso em confessa contra-mão), sem buzinar ou esboçar qualquer outro sinal de alerta (conforme todos os vizinhos confirmaram, que não ouviram qualquer som antes dos gritos de dor que começaram a ecoar), lançou a frente do seu carro em direção ao corpo/pernas do ofendido, que atinge com a parte frontal esquerda, assim logrando imobilizá-lo. Os danos provocados no veículo, a forma como o corpo da vítima foi colhido e projetado, acabando na berma do lado esquerdo, junto ao muro, confirmam esta versão. Diferentemente, a versão dos arguidos não colhe suporte, quer nos factos, quer nas regras da experiência. Com efeito, acaso o arguido não pretendesse colher, imobilizando, o ofendido, qual o sentido de o perseguir, desconhecendo se este tinha um parceiro a aguardá-lo, uma viatura de fuga ou até uma arma? Como o iria então reter, evidenciando o ofendido ser um jovem com vitalidade e força e sendo o arguido um homem que estava fisicamente debilitado? Se o que pretendia era atravessar a sua viatura em frente do ofendido, impedindo a sua marcha, porque seguia em contra-mão, atrás dele, e não na faixa da direita, que lhe permitia o necessário ângulo para a manobra de 90º? Se o ofendido pretendia fugir e escapar, porque haveria de guinar para a direita, colocando-se em frente de um carro que sabia vir no seu encalce? Conhecendo o ofendido a rua onde vivia, porque haveria ele de, quando está prestes a ser alcançado pelo carro que o seguia, guinar para a direita onde apenas existem muros que vedam casas de vizinhos, onde não teria por onde “escapar”? Toda a prova aponta, pois, no sentido de que o ofendido fugia e pretendia continuar a fugir pela rua “abaixo”, por um lado afastando-se da sua casa (assim procurando manter oculta a sua identidade) e, por outro, chegando ao ponto onde a perseguição se tornava mais difícil, bastando uma viatura em sentido contrário para “parar” o seu perseguidor, assim permitindo-lhe chegar à estrada onde mais facilmente se sumiria. Note-se que, embora de forma não decisiva, mas seguramente não despicienda, há a considerar que, após o embate, a “preocupação” do arguido AA e do irmão que, entretanto, ali chegou não foi prestar ou pedir assistência para o sinistrado, mas perceber quais os bens que haviam sido retirados da casa, só tendo chamado as autoridades depois recuperar “as moedas” e de retirar a viatura do local onde se encontrava, denunciando condução em contra-mão. Um eventual transtorno para a circulação automóvel – que, a existir, nem sequer significativo, dada a natureza secundária e a largura da via -, não justifica a ação do arguido, que mudou o carro apenas para o outro lado da via, por onde as demais viaturas poderiam circular, contornando o veículo sinistrado, devidamente sinalizado com o triângulo que cumpre esse mesmo propósito. Temos, assim, fundamentada a conclusão de que o embate foi intencional. Resta saber, com que intenção (cuja eventual relevância jurídica será apreciada em sede de Direito). Ora, a acusação sustenta que o propósito dos arguidos (em comparticipação) era a de causar a morte ao ofendido, por via da agressão violenta com a viatura, o que não concretizaram “por circunstâncias alheias à sua vontade, nomeadamente porque se formou um aglomerado de pessoas e por terem sido auxiliado pelos meios de socorro que evitaram o resultado pretendido pelos arguidos”. Ora, entendemos que a prova não sustenta esta afirmação. Com efeito, o que resultou demonstrado é que, agindo motivados pela conduta do ofendido que tentou apropriar-se de bens do interior da casa do arguido AA (facto n.º 21) e pretendendo reter o ofendido e recuperar dele os bens furtados (facto n.º 49), ambos os arguidos encetaram perseguição, seguindo o arguido AA de carro atrás do ofendido, em contra-mão (facto n.º 23); quando percebeu que aquele não ia parar (facto n.º 50), imediatamente antes de a rua estreitar (facto n.º 24), imprimiu velocidade ao seu veículo com o propósito de o alcançar e embateu com a frente esquerda nos membros inferiores do ofendido, projetando-o contra o capot e vidro frontal da viatura (facto nº13), fazendo-o cair, ferido, na berma da estrada (facto n.º 13), após o que, depois de imobilizar e sair do veículo, o arguido AA e depois também o arguido BB acercaram-se do ofendido, em quem desferiram pontapés e murros (factos n.º 14 e 15), exigindo-lhe a restituição dos objetos furtados, enquanto o insultavam de “ladrão” e “filho da puta” (factos n.ºs 51 e 34), só chamando o 112 depois de recuperar moedas que estavam na posse daquele (facto n.º 52). Ora, desta sucessão de atos, na nossa convicção, não resulta que os arguidos tenham agido, ambos, em conjugação de esforços e vontades, com o intuito de tirar a vida do assistente. Diferentemente, o que resulta demonstrado é que ambos pretendiam perseguir e reter o ofendido para dele reaverem o que tivesse furtado, tendo para o efeito o arguido AA usado a sua viatura como instrumento de agressão – lançando-a no corpo (por trás) da vítima -, sabendo que tal meio era particularmente perigoso - dada a manifesta desproporção do ataque em relação à vítima (apeada e por certo algo desgastada pela distância já percorrida a correr) – e necessariamente causador de lesões que o arguido AA queria provocar para lograr o seu propósito de parar o ofendido para o abordar e dele retirar os bens que tivesse furtado. O mesmo sucedeu com o arguido BB que, vendo o ofendido já sinistrado no chão, em dores e a suplicar por clemência, não hesitou em, depois de lhe prender o braço com o pé, agredir com socos no corpo, agravando as lesões e dores já existentes, ciente da vulnerabilidade da vítima ali prostrada. Este modo de agir aquando dos factos, por inferência e com apoio nas regras da normalidade, permite extrair os elementos psicológicos e volitivos que lhes foram imputados, cujas condutas foram sempre praticadas com firme vontade e plena consciência da respetiva ilicitude, tudo conforme dado por provado nos pontos 19 a 22. Finalmente, dizer que complementarmente com toda esta prova, atendemos a todos os documentos juntos aos autos, os quais não mereceram impugnação, nomeadamente: imagens do local do embate de fls. 7 a 9 e imagem aérea do local fls. 54 e 55 (factos n.º 23 e 24); participação de acidente de viação de fls. 37 a 39, completada a fls. 843 a 856 (factos n.º 26 e 27); relatório de ocorrência dos bombeiros de fls. 41 (facto n.º 53); relatórios periciais ao ofendido de fls. 135 a 137, 148 a 151, 226 a 230 (facto n.º 16 e 17); informação clínica do ofendido fls. 139 a 146, 208 a 211; cálculo de rotas de fls. 462 e 463 (factos n.º 45 e 56); fatura de fls. 425 (facto n.º 29); certidões de sentenças/acórdãos de fls. 683 a 686 (factos n.º 30 e 31), fls. 687 a 697 (facto n.º 54), fls. 702 a 744 e 752 a 841 (factos n.º 36 a 39); recibo de fls. 750 (facto n.º 40); auto de exame ao local de fls. 860 a 863 (factos n.º 23 a 25); documentos de fls. 564 a 657 (facto n.º 43); informação médica de fls. 567 vs.º a 577 (facto n.º 44); CRC fls. 674 e 675 (facto n.º 58) e relatórios sociais de fls. 638 a 645 (factos n.º 59 a 66).
*
ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL Cumpre agora subsumir o manancial fáctico apurado no respetivo enquadramento jurídico. Os arguidos vêm acusados e pronunciados pela prática, como co-autores materiais, na forma tentada, de um homicídio e, em autoria, na forma consumada, de um crime de injúria. Extinto o procedimento quanto a este crime particular, passamos a analisar o Crime de HOMICÍDIO, na forma tentada Nos termos do artigo 131º, do CP, quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos. O bem jurídico aqui protegido é considerado como o mais precioso e que por isso exige a maior proteção jurídico-penal: a vida humana. Com efeito, a Constituição da República Portuguesa impõe no artigo 24º, nº1, que a vida humana é inviolável, sendo certo que este é o pressuposto essencial de todos os outros direitos fundamentais. Estamos, pois, em face da mais forte tutela penal, sendo a vida e a sua inviolabilidade que conferem sentido ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito à liberdade que estruturam e densificam o Estado de direito. Qualquer pessoa pode ser agente deste crime e qualquer pessoa, diferente do agente, pode ser (também) sujeito passivo do mesmo, tratando-se, portanto, de um crime comum. Este é um crime de dano quanto ao bem jurídico; de resultado quanto ao objeto de ação – já que para se consumar é necessário que a morte ocorra –; instantâneo – pois que se consume com a morte e aí se esgota –; e de execução livre – pode ser executado por qualquer forma. A conduta tipificada é a de matar outra pessoa, ou seja, o facto humano destinado a provocar a morte de alguém, o que pode ocorrer não só por ação, como também por omissão (comissão por omissão; omissão imprópria). Exige-se, ainda, que exista um nexo de causalidade entre o resultado morte e a conduta do agente, pois que o “causar a morte” significa que tem de se estabelecer o indispensável nexo de imputação objectiva do resultado à conduta (vide FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p.16). O tipo subjetivo deste ilícito-típico reclama o dolo em qualquer das suas formas, contempladas no artigo 14º, do CP (direto, necessário ou eventual), tratando-se de um tipo (…) relativamente ao qual se verifica aquilo que a doutrina chama de total congruência entre a sua parte objectiva e a parte subjectiva (ibidem, p.17). Ocorre, ademais, que o tipo legal de crime em apreço, sendo um crime de resultado, admite a figura da tentativa, já que a sua estrutura normativa é intrinsecamente co-natural aos «crimes tentados». A tentativa existe, nos termos do artigo 22.º do C. Penal, quando o agente praticar atos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se, sendo atos de execução: a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime; b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores. Podemos, assim, afirmar que a tentativa configura um crime imperfeito ou incompleto na medida em que o crime que o agente decide cometer não se completa, não se consuma. Relativamente à punibilidade da tentativa, estatui-se no artigo 23º, nºs1 e 2, do CP, que: 1 – Salvo disposição em contrário, a tentativa só é punível se ao crime consumado respectivo corresponder pena superior a 3 anos de prisão. 2 – A tentativa é punível com a pena aplicável ao crime consumado, especialmente atenuada. Revertendo ao caso dos presentes autos e tendo em consideração a factualidade que mereceu adesão de prova, importa conjugá-la com o que se afirma nos pontos 19º e 20º da acusação e pronúncia: “O arguido AA agiu com o propósito de tirar a vida do ofendido, dirigindo um veículo automóvel em sua direção ciente que a atuação levada a cabo era idónea à produção do resultado pretendido. e O arguido BB, apercebendo-se do estado grave em que ficou o arguido, agrediu-o violentamente, ciente, que em consequência da sua conduta podia causar a morte do ofendido, resultado que quis e se conformou”. No caso sub judice ficou demonstrado que o arguido AA utilizou o veículo automóvel e que, por via do seu uso, provocou lesões no corpo do ofendido, o que fez intencional e deliberadamente, o que poderia ser considerado atos de execução do crime de homicídio, atento o disposto no artigo 22º, nº2, alínea b), do CP, se considerados idóneos a produzir o resultado morte (que, no caso e felizmente, não ocorreu, não se tendo provado que por circunstâncias alheias à vontade dos arguidos – ponto E). Não obstante, sempre faltaria o tipo subjetivo deste ilícito típico. Com efeito, da mobilização probatória resultou tão-só apurado que o mencionado AA, nas descritas circunstâncias, ao lançar a sua viatura contra o corpo do ofendido, representou e quis atingi-lo no seu corpo e saúde, assim forçando-o a parar a sua fuga – facto n.º 19. Ou seja, os factos provados não realizam o dolo do crime de homicídio (na forma tentada), pois que não ficou demonstrado que aquele AA, nem também o BB, sabiam e queriam todos os atos (adequados a causar a morte) que objectivamente praticaram. Conclui-se, pois, que as condutas dos arguidos não integram a prática do imputado crime de homícidio. Mas serão elas juridicamente irrelevantes? Antecipando conclusões, dizemos que não. Como dito, apurou-se a prática de atos atentatórios da integridade física da vítima: agressões no seu corpo, por via do embate com o carro e dos socos e pontapés. Mais se apurou que ambos os arguidos assim agiram, ainda que não em execução de um plano comum, mas de forma paralela, cada um, ciente de que feria o corpo da vítima, o que ambos queriam, cientes da censurabilidade de tais condutas – factos n.º 19, 20 e 22 – o que faz chamar à colação o Crime de OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA: Prescreve o n.º 1 do artigo 143.º do Código Penal que “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”. Por sua vez, estabelece o artigo 145.º do diploma citado que “Se as ofensas forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido: a) Com pena de prisão até quarto anos no caso do art. 143.º (…)”, sendo que “são susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º”. Nos termos do n.º 2 deste normativo são suscetíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade o facto de o agente “praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez;” ou “utilizar meio particularmente perigoso” – cfr. als. c) e h). Sinteticamente, diremos que a técnica utilizada no artigo 132.º foi a dos exemplos-padrão, permitindo, por um lado, que o tribunal rejeite a subsunção ao tipo “qualificado” de uma situação de vida formalmente subsumível a alguma das alíneas do nº 2 deste artigo, mas que não revela a especial censurabilidade pressuposta pela “qualificação” e, por outro, subsuma ao tipo “qualificado” situações da vida semelhantes às nele previstas desde que reveladoras daquela especial censurabilidade. (assim, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2.ª edição atualizada, p. 400). À “especial censurabilidade” pretendeu o legislador imputar «aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refração, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “especial perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta diretamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, ob. Cit. p.29). Assim, para se afirmar a existência de especial censurabilidade ou perversidade no comportamento do agente, impõe-se, pois, a análise das circunstâncias concretas que rodearam a prática do facto e a conclusão de que elas são tais que exprimem inequívoca e concretamente uma especial perversidade do agente ou que são merecedoras de um severo juízo de censura. Tecidas estas considerações, vejamos o que dimana dos autos. Quanto ao arguido AA: Este, encetando uma perseguição de carro, seguiu o ofendido, que corria apeado, até ao ponto em que, usando a faixa contrária de circulação, lançou a sua viatura no corpo daquele, atingindo-o por trás, para assim lhe causar ferimentos e o imobilizar; fez tudo isto ciente da perigosidade que o emprego da viatura constituía, das lesões que poderia causar, o que pretendia, mantendo a conduta agressiva quando saiu do veículo. Aqui chegados, podemos afirmar que esta conduta é especialmente censurável/perversa de molde a agravar a sua culpa? A resposta não pode deixar de ser afirmativa. Com efeito, ao funcionamento de um veículo automóvel é reconhecida uma inegável capacidade letal, atento o seu peso e a possibilidade que tem de atingir grandes velocidades. Aliás, podemos mesmo afirmar que a combinação destas duas características torna um veículo automóvel numa verdadeira arma. Deste modo, ao uso de uma viatura não pode deixar de estar associada a referida capacidade letal, pela sua suscetibilidade de causar lesões muito graves e extensas, para além da morte da vítima. E se esta for surpreendida por uma aceleração (ainda mais, pelas suas costas, como foi o caso) dificilmente disporá de recursos que lhe permitam desenhar qualquer reação de defesa. Por isso, a intenção que foi atribuída ao arguido no libelo acusatório era, precisamente, a de matar. Assim, o uso do veículo automóvel com o propósito em que o arguido AA comprovadamente atuou – de ferir o corpo e a saúde - não poderá deixar de enquadrar-se na utilização de meio particularmente perigoso. Como se escreve no Acórdão da Relação do Porto, de 13.06.2018: (…) O veículo automóvel consubstancia meio especialmente perigoso para atingir outrem na sua integridade física? Parecemos evidente que sim, não só pela sua aptidão e capacidade lesiva e efeitos do seu embate, como pela sua abrangência (largura e certeza no atingir o visado) e pela velocidade e surpresa que permite ao lesante e menor defensabilidade perante o seu uso por parte do visado, para além de poder ser usado com uma aparência de legalidade ou encobrir uma acção dolosa com aparência de negligência (mero acidente de viação), e depois não é o meio próprio ou normal para atingir outrem na sua integridade física, nem é esse o seu uso, face à sua natureza de meio de locomoção e não meio de agressão (no mesmo sentido, os Acórdãos da Relação de Guimarães de 06.02.2017, da Relação de Évora, de 08.05.2018, e da Relação de Coimbra de 02.03.2022, todos acessíveis em www.dgsi.pt). Mas, sendo típica, será esta conduta ilícita e/ou culposa? Ora, como causa exclusória da ilicitude, invoca o arguido – para este caso em que o embate, contrariamente ao por si alegado, é considerado intencional -, o exercício de legítima defesa, sustentando que agiu da única forma que lhe permitia recuperar os bens furtados já que, dada a distância do posto da GNR, “quando esta chegasse ao local de nada valeria: o furto estaria consumado e os bens definitivamente perdidos”, pelo que, conclui, “o arguido perseguiu e deteve legitimamente o ofendido”. Ora, estatui o artigo 32º, do CP, que constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro (cfr., ainda, o artigo 31º, nsº1 e 2, alínea a), do mesmo diploma legal). São, assim, pressupostos da legítima defesa: [i] a existência de uma agressão a quaisquer interesses, pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro; [ii] que essa agressão seja actual, no sentido de estar a desenvolver-se ou na iminência disso; [iii] que seja ilícita, no sentido de ser contrária ao direito; [iv] que a defesa utilizada quantos aos meios seja apenas a adequada e necessária para fazer cessar aquela agressão ilícita, aqui se incluindo a impossibilidade de recurso à força pública; e [v] que o agente aja com o intuito de se defender animus deffendendi ou seja, com o fim de pôr termo à agressão em curso ou iminente (vide MAIA GONÇALVES, Código Penal Anotado, 8ª edição, 1985, p.277 e MIGUEZ GARCIA, O Risco de Comer uma Sopa e Outros Casos de Direito Penal, 2ª edição revista e actualizada, Almedina, Agosto, 2012, p.371ss; e o Acórdão da Relação do Porto, de 11.12.2013, acessível em www.dgsi.pt). Como se afirma no Acórdão do STJ, de 13.12.2001: [s]ó é legítima se surgir como indispensável para a salvaguarda de um interesse jurídico do agredido ou de terceiro – o meio menos gravoso para o agressor. A necessidade de defesa tem de ser vista em confronto com as circunstâncias em que se verifica a agressão, e, em particular, consoante a intensidade desta, a perigosidade do agressor, a sua forma de actuar e os meios de que se dispõe para defesa. Assim a necessidade deve aferir-se objectivamente, ou seja, segundo o exame das circunstâncias feito por um homem médio colocado na situação do agredido (vide Colectânea de Jurisprudência – STJ, 2001-III-244). Efectivamente, como sustenta TAIPA DE CARVALHO, sendo função da acção de legítima defesa apenas o impedir ou repelir a agressão, compreende-se e exige-se que o defendente só utilize o meio considerado no momento e segundo as circunstâncias concretas, suficiente para suster a agressão. Meios adequados para impedir a agressão, mas mais danosos (para o agressor) do que aqueles que, sem deixarem de ser adequados (suficientes, eficazes), causariam menores lesões ou prejuízos ao agressor, serão considerados desnecessários e, assim, excluirão a justificação do facto praticado pelo agredido (vide A Legítima Defesa, 1995, Coimbra Editora, p.317). Daí que no artigo 33º do CP se estabeleça que se houver excesso dos meios empregados em legítima defesa, o facto é ilícito mas a pena pode ser especialmente atenuada, não havendo lugar à punição “se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto, não censuráveis.” A este propósito, escreve-se no Acórdão do STJ, de 18.04.2002, que: 1 – A legítima defesa, como causa exclusória da ilicitude, constitui o exercício de um direito: o direito de legítima defesa que tem, entre nós, assento na Constituição, no Código Civil e está previsto para efeitos penais no art. 32.º do C. Penal, estando dependente a sua capacidade exclusória da ilicitude da verificação dos seguintes requisitos: - agressão actual e ilícita; - defesa necessária e com intenção defensiva. 2 – Já o excesso de legítima defesa se situa entre as causas de exclusão da culpabilidade: circunstâncias que impedem que determinado acto considerado ilícito pela lei, seja atribuível de forma culposa ao seu autor, motivos que anulam, pois, o conhecimento ou a vontade do agente. 3 – O excesso de legítima defesa, quando o excesso (no grau em que são utilizados ou na sua espécie os meios necessários para a defesa) resultar de perturbação, medo ou susto não censuráveis (art. 33.º, n.º 2 do C. Penal) cabe na inexigibilidade de conduta diversa, actuando no domínio da culpa. 4 – O «excesso nos meios» de que fala a lei, porque é em regra esse tipo de excesso que ocorre, resultante da perturbação profunda que a agressão provoca no agente deve imputar-se a uma culpa mitigada (ao menos em princípio), susceptível de permitir ao juiz que atenue a pena (art. 33.º, n.º 1 do C. Penal), ou não sendo censurável conduzirá à não punição do agente (art. 33.º, n.º 2 do C. Penal). 5 – Mas não é qualquer perturbação, medo ou susto que é susceptível de afastar a punição em caso de excesso de legítima defesa, o que só sucederá quando os mesmos não forem censuráveis. 6 – A necessidade da defesa há-de apurar-se segundo a totalidade das circunstâncias em que ocorre a agressão e, em particular, com base na intensidade daquela, da perigosidade do agressor e da sua forma de agir (acessível em www.dgsi.pt, relator SIMAS SANTOS). Transpondo as considerações vindas de enunciar para o caso decidendo verificamos que: - quando a esposa do arguido AA se apercebeu da presença de um estranho no interior da sua casa, ligou-lhe para o local de trabalho, dando-lhe conta do que sucedia; - o arguido AA ligou para o irmão, que se encontrava no mesmo local de trabalho, pedindo-lhe para ir ter com ele a sua casa; - nem a esposa do arguido AA nem nenhum dos arguidos chamou as autoridades policiais; - o posto da GNR fica a cerca de 12 Km do local; - os arguidos demoraram cerca de 5 a 10 minutos a chegar ao local; - os arguidos viram o ofendido a saltar o muro e fugir apeado; - os arguidos, juntamente com o sobrinho, percebendo a fuga do ofendido, decidem encetar-lhe perseguição, seguindo o AA de carro e os outros a pé; - o arguido AA decide atingir o corpo do ofendido com o carro, por trás; - o local do embate é uma via com dupla circulação com, pelo menos, 7 metros de largura. Ora, dos factos que se deixam enunciados, cremos, não resulta que a agressão do arguido AA tenha sido praticada ao abrigo de uma legítima defesa (nem sequer, por excesso). Com efeito, reconhece-se que existiu uma agressão a um interesse patrimonial do arguido AA (ainda que, nesse momento, este desconhecesse se, efetivamente, o ofendido havia logrado apropriar-se de qualquer bem e, se sim, de que valor), e admite-se que a reação/agressão do arguido, ilícita (porque atentatória da integridade física) seja atual. Ainda que na perspetiva do arguido (e de qualquer homem comum no seu lugar), por certo, o assalto a que reagia lhe afigurasse como já ocorrido (tendo o seu autor abandonado o local, de que se afastava em passo de corrida), facto é que, técnica e juridicamente o furto (qualificado) que se veio a comprovar ter existido, enquadrado na forma de tentativa (pelo qual o ofendido foi já condenado), não estava ainda consumado, pelo que se afirma estar em curso, o que permite concluir que, quando ocorre o atropelamento, o ato de subtração dos bens pelo ofendido ainda não estava finalizado. Tanto basta para se afirmar que, pese embora assim não pareça, a agressão a que o arguido reage é atual. Mas se é atual, já não a entendemos necessária nem proporcional. Com efeito, quando foram alertados da presença, não autorizada, do ofendido no interior da sua casa, podiam e deviam (pelo menos) os arguidos ter chamado as autoridades ao local, não podendo a distância do posto justificar que, sem mais, se desconsiderem as regras da vida em sociedade. Caso contrário, estaria aberta a porta à justiça privada a todos quantos não tenham os postos ou esquadras por vizinhos… Note-se que, apesar de o posto da GNR estar a 12 Km de distância, nada garantia aos arguidos que o carro patrulha não estivesse já na rua, a 2 ou 3 ou 5 ou 10 minutos de sua casa, na certeza de que eles próprios demoraram a chegar ao local entre 5 a 10 minutos, não dispondo dos sinais luminosos ou sonoros de marcha de urgência que existem nas viaturas policiais. Para além do que se deixou dito, há a ter presente que o arguido AA, que negou ter intencionalmente atingido o corpo da vítima, podia ter adotado outra conduta, aquela que afirmou ser a sua pretensão: a de cortar o caminho do ofendido, obrigando-o a parar. Para isso, dispunha o arguido AA das necessárias condições: a sua viatura deu-lhe a velocidade e dava-lhe o avanço preciso para o alcançar e depois ultrapassar, pela direita da estrada, atravessando-se à sua frente, antes da cabine de eletricidade, num movimento de 90º que a largura da via ali lhe permitia. Aí, impedido de prosseguir em frente, o ofendido ou saltaria o muro lateral, onde acederia a uma casa donde não podia fugir, ou voltaria para trás, onde tinha o arguido BB, o sobrinho deste e, logo a seguir, a esposa do arguido AA, assim deixando-o sem escapatória e com a sua identidade revelada. Tendo todas estas alternativas disponíveis, entendeu o arguido AA agir da forma dada por provada, causando as lesões que foram verificadas na vítima (e até os danos na sua viatura), indiferente a estas consequências, empenhado que estava em, como refere na sua contestação, terminar com a carreira criminosa do ofendido, que ali julgou, condenou e puniu, não apenas pelo assalto antes realizado mas também por todos os demais de que foi vítima (mesmo quando o ofendido era ainda menor) e até por todos os que tanham ocorrido nas redondezas. Evidencia-se-nos, de forma clara e unânime por todos os elementos deste tribunal de juri, que o animus do arguido não era o de se defender mas o de castigar o ofendido, ali mesmo executando a pena, indiferente às lesões e gravidade que causasse e, até, ao risco que produzia para si e para terceiros (recorde-se que conduzia em contra-mão, numa via pública). Por isso também se afirma que a agressão do arguido, para além de não necessária, não foi seguramente proporcional: a desproproção entre a gravidade da lesão causada à integridade física do ofendido e o interesse patrimonial protegido (cujo montante desconhecia mas sabia que, a existir, seria limitado a bens ou valores transportados no corpo do ofendido) é indiscutível e manifesta. O que dizer se o arguido tivesse surpreendido um crime, ou tentativa de crime, de ofensas à integridade física, ou de natureza sexual, ou mesmo de homicidio, em que os bens jurídicos atingidos são seguramente mais valiosos que eventuais bens patriminiais? Entendemos, pois, que não resulta verificada a invocada legítima defesa, como causa excludente da ilicitide. Mas terá havido excesso de legítima defesa? Ora, como já deixamos dito supra, para que esta justificação do ato opere, “o excesso dos meios empregados em legítima defesa” resulta de “perturbação, medo ou susto, não censuráveis”. No caso, como decorre da factualidade provada, não se apurou que o arguido AA tenha agido em estado de perturbação, medo ou susto em virtude da ação do ofendido. Pelo contrário, provou-se que o arguido teve vários minutos para pensar na sua reação ao intruso/assaltante, durante a viagem que fez (sozinho) desde a chamada da esposa até chegar a casa e aí o ver; depois disto, enquanto via os familiares a correr atrás do ofendido, enquanto entrou no seu carro, passou por estes e seguiu no encalço da vítima, teve ainda larga oportunidade para refletir nesta sua intenção agressiva a qual, em vez de medo ou susto, é clara demonstração de uma vontade firme, determinada e afoita, de parar do ofendido, sem qualquer receio de o enfrentar e confrontar, como fez. Assim, como claramente resulta da matéria de facto provada (pontos 9, 10, 11, 12, 14, 19, 21, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 55) e não provada (pontos K e L), conclui-se que este arguido agiu com o propósito de ferir e magoar o corpo do ofendido pelas razões e do modo supra descrito, causando-lhe as lesões descritas, resultado que quis e representou, pelo que temos por preenchido também o elemento subjetivo do crime, sendo a conduta culposa, dado que o mesmo é imputável e agiu com consciência da ilicitude. Donde se conclui ter este arguido cometido um crime de ofensa à integridade física qualificada, por força da al. h) do n.º 2 do artigo 132º do CP. Quanto ao arguido BB: Este arguido, encetando uma perseguição a pé, juntamente com o sobrinho e a cunhada, correu atrás do ofendido, sendo ultrapassado pelo cunhado (o arguido AA) que seguia de carro. Depois de ver o carro do irmão embater no corpo do ofendido e este a ser projetado por cima da viatura em direção ao chão, onde caiu, junto à berma, o arguido BB aproximou-se do ofendido quando este jazia ferido, encostado ao muro. Apesar de o saber vítima do embate que acabara de acontecer, apesar de o saber ferido e queixoso de dor, apesar de ver o irmão a insultá-lo e agredi-lo com pontapés nas pernas, apesar de o ver a suplicar por clemência, o arguido não hesitou em prender-lhe um braço, com o pé, e socá-lo no corpo, enquanto, insultando-o, lhe perguntava pelos bens furtados. O arguido agiu assim plenamente ciente que o ofendido estava já gravemente ferido, incapaz de se levantar ou de esboçar qualquer sinal de defesa, estando ali cercado pelos arguidos e, entretanto, também pelo sobrinho, numa evidente posição de vulnerabilidade e indefesa. Não obstante, o arguido BB, sem tentar demover a ação do irmão ou prestar qualquer auxílio à vítima, desferiu os murros dados por provados, sabendo e querendo, como único propósito, ferir o seu corpo e aumentar as dores e lesões da vítima. Ora, não há dúvidas que este comportamento integra o tipo objetivo das ofensas à integridade física, mas poder-se-á afirmar que esta conduta é também especialmente censurável/perversa de molde a agravar a sua culpa? Mais uma vez, temos a resposta como afirmativa. Com efeito, quando este arguido se aproxima da vítima, sabia-a ferida, gravemente ferida pelo atropelamento que acabara de acontecer à sua frente: o corpo voou por cima do carro, partindo o seu vidro frontal, e caiu no chão, onde permanecia, incapaz de se levantar. Quando este arguido se acerca da vítima, sabia-a incapaz de reagir ou de se defender (acaso tivesse uma arma, já teria tido oportunidade, enquanto o arguido AA parava e saía do carro, de a empunhar, sendo que logo lhe prendeu um braço com o pé), sendo visíveis os ferimentos e a sua gravidade. Esta é, pois, uma agressão especialmente censurável, já que não cumpre qualquer outro propósito do que o de bater naquele que está já gravemente ferido, sem defesa, em virtude do acidente/agressão que acabara de sofrer. Ora, salvo melhor opinião, este é um caso que tem cobertura no exemplo-padrão da alínea c) do artigo 132º para que remete o já citado artigo 145º: o agente (arguido) pratica o ato (agressão) contra pessoa particularmente indefesa (ofendido ferido) porquanto, naquelas circunstâncias, se encontra à mercê do arguido, incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz. Porque disto estava o arguido BB plenamente ciente, entende-se que se mostram preenchidos os elementos objetivos e subjetivos deste crime qualificado, relativamente ao qual não é sequer equacionável a legítima defesa. Na verdade, reiterando o quanto supra se deixou dito, referir apenas que, quando este arguido se acerca da vítima e a agride esta está já imobilizada, no chão, pelo que nada justifica a agressão que lhe inflige e que, assim, evidencia uma violência totalmente gratuita, totalmente injustificada e indesculpada. Donde se conclui ter também este arguido cometido um crime de ofensa à integridade física qualificada, por força da al. c) do n.º 2 do artigo 132º do CP.
*
De acordo com a acusação e pronúncia, a atuação dos arguidos foi em co-autoria. Como é sabido, a co-autoria assenta em dois elementos, traduzidos na existência de um acordo ou vontade de colaboração recíproca, de um lado, e na participação conjunta na execução do facto, por outro. Assumindo-se que a teoria do domínio do facto continua a ser a que melhor se harmoniza com os critérios conformadores da autoria nos crimes dolosos de ação, parte-se de um conceito de autor correspondente a quem domina o facto, dele dependendo o se e o como da realização típica. Autor é, segundo esta conceção, quem toma a execução nas suas próprias mãos de tal modo que dele depende decisivamente o se e o como da realização típica. Esse domínio pode exercer-se de diferentes formas e fundar, por conseguinte, diferentes modalidades de autoria, concretizadas no art.º 26.º do C.P., entre as quais a coautoria. Nas palavas de Figueiredo Dias (in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 3ª edição, 2019, p. 923 e 924): o que na coautoria existe de característico “é a existência, por um lado, de uma decisão conjunta; por outro lado, de uma determinada medida de significado funcional da contribuição do coautor para a realização típica; muito exatamente realçada pela nossa lei ao impor que o coautor tome parte direta na execução. Deste modo, a atuação de cada coautor, no papel que lhe é destinado, apresenta-se como momento essencial da execução do plano comum, ou, noutras palavras, constituiu a realização da tarefa que lhe cabe na divisão de trabalho que representa mesmo a essência dessa forma de autoria. A coautoria consiste, assim, numa “divisão de trabalho” que torna possível o facto ou que facilita o risco. Requer, no aspeto subjetivo, que os intervenientes se vinculem entre si mediante uma resolução comum sobre o facto, assumindo cada qual, dentro do plano conjunto (expresso ou tácito, prévio ou não à execução do facto), uma tarefa parcial, mas essencial, que o apresenta como cotitular da responsabilidade pela execução de todo o processo. A resolução comum de realizar o facto é o elo que une num todo as diferentes partes. No aspeto objetivo, a contribuição de cada coautor deve alcançar uma determinada importância funcional, de modo que a cooperação de cada qual no papel que lhe correspondeu constitui uma peça essencial na realização do plano conjunto (domínio funcional), não sendo, porém, indispensável que cada um dos intervenientes participe em todos os atos para obtenção do resultado pretendido, bastando que a atuação de cada um seja um elemento componente do todo indispensável à sua produção - cf. Ac. do STJ de 18.10.2006. (…)” Desta forma, a qualificação do agente como co-autor depende de este desempenhar um papel exigido pelo plano ou quadro de atuação concertada, como «uma função autónoma no quadro da cooperação», surgindo este contributo como um requisito indispensável para a realização do resultado pretendido, na medida em que, tendo assumido a incumbência de vir a desempenhar na fase executiva uma função essencial, ele tem o poder de impedir, através da omissão do seu contributo, que o plano comum se realize, apesar de sobre este não ter um domínio positivo global ou pleno. Revertendo ao caso em análise, temos que não resultou provado que a atuação dos arguidos tenha resultado de um plano conjunto, em execução de esforços (ponto F). Diferentemente, entendemos ter duas atuações paralelas: chegados a casa do AA separadamente e em momentos diferentes, ambos os arguidos tomam, cada um por si, a decisão de perseguir o ofendido da forma em que cada um o fez, não se vislumbrando como o arguido BB tenha participado na decisão e ação de atropelar a vítima da forma executada pelo arguido AA. Não se apurou qualquer acordo prévio, nem expresso nem implícito, a que tenha aderido inicial ou posteriormente, ainda que sem tomar parte na execução de todos os atos. Pelo contrário, afigura-se-nos que a ação do arguido BB não constituiu, de forma alguma, uma participação essencial à produção do resultado (atropelamento). Assim, não obstante a perseguição que ambos fizeram à vítima, entendemos que não existiu uma atuação conjunta dos arguidos, agindo cada um isoladamente, em circunstâncias que permitem autonomizar cada atuação, assim um e outro a responsabilizar como autores dos respetivos atos.
*
Alteração da qualificação jurídica: Aqui chegados, percebemos que o crime pelo qual se consideram os arguidos responsáveis não é o crime de homicídio pelo qual foram acusados e pronunciados. Sucede que, não tendo sido alterados os factos atinentes à ação dos arguidos (que são os mesmos da acusação e pronúncia, complementados apenas pelos que resultam da própria defesa), apenas o elemento subjetivo sofreu alteração da acusação para a presente decisão (concretamente, nos pontos 19 e 20). Ora, como já considerava o STJ em acórdão de 07.11.1990 (in www.dgsi.pt), a propósito do crime de ofensas corporais com dolo de perigo previsto no então artigo 144º, n.º 2, do CP, “(…) III - Na intenção de matar constante do despacho de pronuncia está contida a intenção de ofender corporalmente. IV – O uso de um veículo automóvel como instrumento para ofender outrem no corpo não pode deixar de considerar-se “particularmente perigoso” para os efeitos do artigo 144º n.º 2 do Código Penal, sendo essa perigosidade notoriamente conhecida por todas as pessoas. (…)” Como sustenta Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código de Processo Penal, 2011, 4.ª ed., Universidade Católica Portuguesa, p. 44 a 47) “(…) só constitui alteração substancial dos factos a modificação que se reporte a factos constitutivos do crime e a factos que tenham o efeito de imputação de um crime punível com uma pena abstrata mais grave. A modificação dos restantes factos que constem da acusação ou da pronúncia constitui alteração não substancial dos factos, desde que sejam relevantes para a decisão da causa (…)” e que “(…) não há crime diverso em face da mera alteração das circunstâncias da execução do crime (incluindo o dia, hora, local, modo de execução e instrumento do crime), desde que essas circunstâncias não constituam elementos do tipo legal, nem constituam um outro facto histórico unitário (…)”. Tendo presente que só devem ser comunicadas as alterações da qualificação jurídicas que sejam relevantes do ponto de vista da defesa dos arguidos, entende-se que tal no ocorre no presente caso em que estamos em presença de uma redução: onde se imputava o propósito de tirar a vida do ofendido, por via do uso (“dirigindo”) de veículo automóvel (por isso necessariamente particularmente perigoso) e a agressão violenta ciente que podia causar a morte do ofendido, passamos a considerar o propósito de molestar o corpo e a saúde do ofendido, utilizando para o efeito o veículo que conduzia, que sabia ser um meio particularmente perigoso e o propósito de ofender a sua integridade física. Como em situação semelhante se considerou no acórdão do TRE de 21.06.2022 (acessível em www.dgsi.pt) “(…) só poderá imputar-se homicídio tentado se se cogitou tirar a vida a outrem; e isso necessariamente integra (como caminho para) a ofensa grave à integridade física que se veio a considerar verificada. (…)” Pelo exposto, entendemos que nada obsta à alteração da qualificação jurídica, para um minus pelo que se condenarão os arguidos.
*
AS PENAS Escolha e medida concreta das penas No caso, temos que os arguidos incorreram na prática, cada um, de um crime de ofensa à integridade física qualificada a que corresponde a moldura penal abstrata de prisão (de 1 mês) até 4 anos (cfr. artigos 41º, 145.º e 132.º, n.º 2, al. h) do C.P.). Uma vez que este crime só admite pena de prisão, cumpre-nos, apenas, determinar as respetivas medidas, dentro dos aludidos limites e de acordo com o disposto no artigo 71º do CP, para o que atendemos à culpa e às exigências de prevenção, bem como a todas as circunstâncias que, não fazendo parte dos tipos de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele. Aplicando os critérios fixados no aludido artigo 71.º, nº1, conjugado com o artigo 40.º, nº1, as penas de prisão concretas serão determinadas de modo a promover a tutela do bens jurídicos violados, em ordem à estabilização da expectativa comunitária na validade das normas violadas (prevenção geral positiva ou de integração), sem que o seu quantum ultrapasse a medida da culpa dos arguidos, pois esta, não sendo fundamento da pena, é seu pressuposto e limite inultrapassável (artigo 40.º, nº2, do CP), em nome do respeito pela dignidade humana, consagrado no artigo 1.º da CRP. Serão igualmente ponderadas as exigências de prevenção especial que o caso demanda. Tendo presente que a finalidade primária da pena é a de tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, de reinserção do agente na comunidade, à culpa cabe a função de estabelecer um limite que não pode ser ultrapassado. Na lição de Figueiredo Dias, a aplicação de uma pena visa acima de tudo o “restabelecimento da paz jurídica abalada pelo crime”. Há uma “medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar”, mas que não fornece ao juiz um quantum exacto de pena, pois “abaixo desse ponto óptimo ideal outros existirão em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente e onde portanto a pena concreta aplicada se pode ainda situar sem perda da sua função primordial”. Dentro desta moldura de prevenção geral, ou seja, “entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos (ou de defesa do ordenamento jurídico)” atuam considerações de prevenção especial, que, em última instância, determinam a medida da pena – cfr. Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2007, p. 79 a 82. Isto posto, somos desde logo a considerar as prementes exigências de prevenção geral: dos atos dos arguidos, e das afirmações que se deixam escritas nos autos, propala a ideia de que a todos nós assiste o poder (a dado passo até parece o dever) de se substituir ao Estado na repressão de qualquer agressão de que sejamos vítima. Não precisamos esperar, nem sequer chamar, as autoridades, já que todos podemos defender o que é nosso, independentemente do seu valor, usando o que para o efeito tivermos disponível. Ora, alarmantemente, esta ideia de “justiça privada”, de “justiça pelas próprias mãos”, é cada vez mais recorrente, sendo este tribunal testemunha de múltiplos casos em que se passou da ideia à ação, sempre com resultados devastadores, tantas vezes mais graves do que as sequelas que o ofendido sofreu. Este discurso, muitas vezes alimentado por ódio, tem de merecer da Justiça uma resposta clara: as ações são julgadas em tribunal, os culpados são punidos pelo tribunal onde não deixarão de ser reconhecidos os direitos de defesa dos arguidos, nomeadamente quando atuaram a coberto de uma legítima legítima defesa. Já as exigências de prevenção especial que no caso se fazem sentir são apenas moderadas uma vez que, embora não sendo claro que os arguidos tenham interiorizado totalmente a censurabilidade das condutas, ambos, sem antecedentes criminais, são pessoas plenamente integradas, com vidas pessoais, familiares e profissionais estruturadas e, até, de sucesso. Não obstante, há a atender que os arguidos, embora motivados pela atuação (também) ilícita do ofendido, atuaram com vontade firme e persistente de atacar e agredi-lo na sua integridade física, sabendo e desejando as lesões e sofrimento que lhe causavam, agravados pelo instrumento utilizado pelo AA (a viatura), agindo ambos com dolo direto, na sua modalidade mais intensa, embora com distinto desvalor das respetivas ações, dada a diferente gravidade das consequências causadas perante as quais ambos demonstraram indiferença e insensibilidade, apenas solicitando auxílio depois de cumprido o desígnio de recuperar os bens furtados, o que evidencia um grau de culpa agravado. É certo que ambos os arguidos são delinquentes primários, porém tal circunstância, embora abonatória, não traduz uma atenuante de significativo relevo já que corresponde, apenas, à obrigação geral, de todo e qualquer cidadão, de não cometer crimes e de viver de acordo com os padrões pré-estabelecidos em sociedade, não lesando o tecido social. Mais relevante a inserção familiar, social e profissional de ambos os arguidos, genericamente considerados como “pessoas de bem”, honestas, cumpridores das suas obrigações, o que nos leva a concluir ter este sido um episódio isolado numa vida, no essencial, conforme ao dever-ser jurídico. Finalmente, reforçar a crescente preocupação pelo aumento da frequência destes “crimes justiceiros”, fonte de intranquilidade e insegurança social pelo exemplo que incentiva, o que vale dizer que a pena deve exercer um fator de dissuasão, como forma de contenção de instintos primários, de potenciais delinquentes. E muito embora os arguidos sejam pessoas integradas socialmente, nada fazendo prever a sucumbência à reincidência, nem por isso as penas devem deixar de fazer-lhes sentir, interiorizando os seus efeitos, a gravidade dos seus atos. Tudo ponderado, julgamos justo, adequado, proporcional e necessário aplicar penas que se situam ainda na primeira metade da moldura, a saber: - ao arguido AA, a pena de 2 anos de prisão; - ao arguido BB, a pena de 15 meses de prisão.
*
Da pena de SUBSTITUIÇÃO A aplicação de uma pena de prisão não significa que a efetiva privação da liberdade seja necessária à realização dos fins da pena, sendo que o legislador prevê penas de substituição para determinados casos (cf. Anabela M. Rodrigues, «Pena de prisão substituída por pena de prestação de trabalho a favor da comunidade», in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 2001, nº11, Coimbra, p. 664). Atendendo à medida concreta das penas de prisão ora aplicadas aos arguidos (superiores a um ano), não é possível substituí-las por pena de multa (artigo 45.º, nº1, do Código Penal). Embora a lei admita a sua execução em regime de permanência na habitação ou a sua substituição por prestação de trabalho a favor da comunidade (cf. artigos 43.º, nº1, als. a) e b), e 58.º, nº1, do mesmo Código Penal) entendemos que as circunstâncias do caso e a já aludidas finalidades da punição apontam para a insuficiência de desadequação destas formas punitivas. Contudo, de acordo com o preceituado no artigo 50.º, nº1, do Código Penal, a aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão é também admissível, porque ambas as penas são fixadas em medida não superior a 5 anos. De acordo com o aludido normativo, o tribunal suspende a execução da pena de prisão desde que, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, possa concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. À opção pela suspensão pela suspensão da execução da pena de prisão, enquanto medida de reação criminal autónoma, são alheias considerações relativas à culpa do agente, valendo exclusivamente as exigências postas pelas finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização (artigo 40.º, do Código Penal). De molde que a opção por esta pena deverá assentar, em primeira linha, na formulação de um juízo positivo ou favorável à recuperação comunitária do agente através da censura do facto e da ameaça da prisão, sem a efetiva execução desta prisão, que ficaria suspensa, mas desde que esta opção não contrarie ou prejudique a necessidade de reafirmar a validade das normas comunitárias, ou seja, desde que o sentimento comunitário de crença na validade das normas infringidas não seja contrariado ou posto em causa com tal suspensão. No caso dos autos, pese embora as prementes necessidades de prevenção geral já aludias, destaca-se a ausência de antecedentes criminais dos arguidos, ambos, como referido, pessoas plenamente integradas, o que nos permite efetuar um juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro. Entende-se, assim, que as finalidades da punição serão alcançadas de modo adequado e bastante através da simples censura do facto e da ameaça da prisão pelo que se decide, à luz do disposto no citado artigo 50.º, nº1, suspender a execução das penas de prisão aplicadas. Tal suspensão será por período idêntico ao das respetivas penas de prisão aplicadas – artigo 50.º, nº 5 do Código Penal – que consideramos adequado para atingir o propósito ressocializador. De acordo com o artigo 50.º, nºs 2 e 3, do Código Penal, a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao agente, destinados a reparar o mal do crime (cf. artigo 51.º, nºs 1 e 2), e/ou regras de conduta, de conteúdo positivo ou negativo (cf. artigo 52.º, nºs 1 a 4), ou ser acompanhada de regime de prova, assente num plano de reinserção social (cf. artigo 53.º, nºs 1 a 4). Atentos os factos dos autos, entende-se subordinar a suspensão da execução das penas aplicadas ao dever de os arguidos repararem o mal do crime, concretamente, ao dever de cada um dos arguidos proceder ao pagamento de parte – correspondente a 1/2 - da indemnização que infra se fixará em favor do ofendido, a pagar no prazo de seis meses e a comprovar nos autos.
*
Inaplicação da LEI DO PERDÃO (Lei nº 38-A/2023, de 02 de agosto): A aludida lei veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (cfr. artigo 1º), abrangendo as sanções penais referentes aos ilícitos praticados até às 00h do dia 19.06.2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, “... nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º”. Ora, porque à data dos factos os arguidos (nascidos em ../../1973 e ../../1964) contavam já com mais de 30 anos de idade, por força do artigo 2º do citado diploma, não cabem no âmbito subjetivo de aplicação da aludida lei do perdão (limitado a “pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto”), que, desde logo por isso, se não lhes aplicará.
*
Dos PEDIDOS DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL A perpetração de uma infração criminal pode justificar que se formulem junto dos tribunais dois pedidos diferentes: um de natureza criminal (para que o autor do delito seja penalmente censurado, isto é, para que lhe seja aplicada uma pena) e um de natureza cível (para que os prejudicados com o crime sejam indemnizados pelas consequências materiais e morais advindas daquele) – cfr. artigo 129º, do CP (remissivo para os artigos 483º, 496º, 562º e 566º, do CC) e artigo 71º, este do CPP. Com a indemnização pretende-se ressarcir todos os danos causados, tanto de natureza patrimonial, como de natureza não patrimonial, por forma a reconstituir a situação em que o lesado se encontraria se não tivesse acontecido a lesão. Baseando-se o pedido de indemnização civil na responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, impõe-se recorrer ao preceituado no artigo 483º, nº1, do CC, com a seguinte redação: aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. Desta norma resultam indicados requisitos cujo preenchimento cabe verificar, já que o facto ilícito culposo extracontratual constitui, nos termos vindos de expor, uma fonte e, neste caso, pressuposto da obrigação de indemnizar. Com efeito, a simples leitura do citado preceito legal mostra que vários pressupostos condicionam, no caso geral da responsabilidade por factos ilícitos, a obrigação de indemnizar imposta ao lesante, cada um dos quais desempenhando um papel especial na complexa disciplina das situações geradoras do dever de reparação do dano, os quais poderão ser enunciados pela seguinte forma concretizada: a) o facto voluntário, controlável pela vontade humana; b) a ilicitude; c) o nexo de imputação subjetiva do facto ao lesante (culpa); d) o dano sobrevindo à conduta ilícita e culposa; e) um nexo de causalidade (imputação objetiva) entre o facto e o dano.
Posto isto, I) Quanto ao pedido formulado pelo Hospital ...: Pede este demandante a condenação do arguido AA no pagamento de € 6.094,08, para ressarcimento dos custos do tratamento médico dispensado ao ofendido em virtude dos factos dos autos. Em matéria de responsabilidade civil extracontratual, a regra geral é a de que a indemnização cabe apenas ao titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado pela violação de disposição legal destinada a protegê-lo (cfr. o já citado artigo 483º, do CC). Em princípio, o titular do direito a indemnização é apenas o sujeito direta ou imediatamente lesado pelos danos resultantes da violação, o titular dos bens imediatamente afetados pelo facto danoso. O terceiro, que só reflexa ou indiretamente seja prejudicado com a violação do direito do lesado direto, está, em princípio, fora do círculo dos titulares do direito à indemnização. Excecionalmente, porém, a indemnização pode caber também (no caso de lesão corporal) ou apenas (no caso de morte) a terceiros, sendo o artigo 495º, nº2, do CC, um desses casos excecionais, pois que sobre a epígrafe ‘Indemnização a terceiros em caso de morte ou lesão corporal’, estabelece que no caso de lesão de que proveio a morte, como em todos os outros de lesão corporal, têm direito a indemnização aqueles que socorreram o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras pessoas ou entidades que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima (vide, a este respeito, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Volume I, 9ª edição, Almedina, p.645). Assim, por força do preceito vindo de citar, protegem-se os terceiros que sejam reflexamente prejudicados pelo evento danoso, reconhecendo-lhes o direito a serem compensados pelo tratamento ou assistência que providenciaram à vítima de morte ou lesão corporal. O lesante fica, então, constituído na obrigação de indemnizar esses terceiros. Como se escreve no Acórdão do STJ de 21.11.2019, [o] estabelecimento hospital que contribuiu para o tratamento ou assistência da vítima é titular de um direito de indemnização que tem origem no facto ilícito, logo é um lesado nos termos e para os efeitos do artigo 495.º, n.º 2, do Código Civil (acessível em www.dgsi.pt/jstj, relatora CATARINA SERRA). É, precisamente, o que sucede com o aqui demandante “Hospital”, uma vez que, como resulta do elenco dos factos provados que, em virtude da agressão perpetrada, o ofendido recebeu tratamento no demandante “Hospital”, que consistiu em assistência médica que originou custos no montante total de € 6.094,08, que se mantêm por pagar. Sucede que, como o demandado alega na sua contestação, os danos cuja reparação o demandante peticiona decorreram de um acidente de viação/atropelamento, intencionalmente provocado pelo condutor, aqui arguido-demandado. Ora, dispõe o artigo 15.º, n.º 2, do DL n.º 291/2007, de 21.08, que aprovou o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e transpôs a Diretiva n.º 2005/14/CE do Parlamento e do Conselho, de 11.05, que “o seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas (…) de acidentes de viação dolosamente provocados (…)” e o artigo 27.º, n.º 1, al. b) que, “satisfeita a indemnização, a empresa de seguros (…) tem direito de regresso contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente” (realce nosso). Por sua vez, estatui o artigo 64º, nº 1, do DL nº 291/2007, de 21 de agosto que: “As acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal, e em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente: a) Só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório; b) Contra a empresa de seguros e o civilmente responsável, quando o pedido formulado ultrapassar o limite referido na alínea anterior.(…). – nosso sublinhado e negrito. Da leitura da citada al. a), resulta que, existindo contrato de seguro (o que o demandante não desconhecia, uma vez que até já demandou a Seguradora – facto n.º 30), e contendo-se o montante por si peticionado dentro do capital mínimo do seguro obrigatório, o pedido por si formulado, fundado em acidente de viação, tinha de ter sido obrigatoriamente deduzido contra a Companhia de Seguros, e unicamente contra esta, a única que possuía legitimidade para ser demandada. Em causa está uma situação de pura legitimidade originária e exclusiva da seguradora, ou seja, de pedidos que têm que ser, ab initio, deduzidos contra a empresa de seguro – cfr., a título de exemplo, os acórdãos do TRC de 12/09/2012 e de 31.01.2024, e do STJ de 03.10.2019, todos acessíveis in www.dgsi.pt. In casu, é manifesto que o valor do pedido indemnizatório está compreendido dentro dos limites fixados para o seguro obrigatório, pelo que, face ao preceito legal ora transcrito e às considerações supra explanadas, o mesmo devia ter sido deduzido apenas e tão-somente contra a seguradora, como o fez na ação identificada supra, sob o n.º 30. Assim, face ao exposto e por força do sobredito preceito legal, conclui-se que o ora demandado é parte ilegítima no pedido indemnizatório em causa, assim procedendo a invocada exceção dilatória (cfr. arts. 278, nº 1 al. d), 577º al. e) e 578º, todos do Código de Processo Civil) que importa a sua absolvição da instância.
II) Quanto ao pedido formulado pelo assistente, CC: Pede este demandante a condenação solidária dos arguidos AA e BB no pagamento de € 7.500,00, para ressarcimento dos danos decorrentes dos “atos de ofensa à integridade física” não incluídos na indemnização peticionada e paga pela Seguradora “em resultado do atropelamento”, e de € 700,00, para ressarcimento do abalo resultante do crime de injúria. Em sede de contestação, os demandados, além do mais, invocam a incompetência do tribunal para apreciar estes pedidos uma vez que o demandante apresentara já um pedido perante os tribunais civis, nos termos do artigo 72º, n.º 1, a), do CPP. Assim, tendo optado pela jurisdição civil, não podia, agora, deduzir pedido perante o tribunal criminal, “fazendo uso da exceção e da regra como melhor lhe apraz”. Ora, conforme resulta dos factos provados, a lide civil que foi instaurada pelo ora demandante teve objeto diferente daquele ora limitado aos factos alheios (insultos) e posteriores (murros e pontapés) ao atropelamento ali configurado como causa de pedir. Em conformidade, somos a concluir que, para o mesmo pedido, não houve o (prévio) acionamento dos tribunais civis, pelo que, por força das normas já citadas, somos competentes para conhecer e decidir o pedido formulado, com o que improcede a invocada incompetência. Quanto à também invocada ineptidão do pedido: Sustentam os demandantes que, ao formular “um pedido de indemnização civil por conta de um crime de ofensa à integridade física de que os arguidos não estão acusados”, invocando a anterior ação instaurada contra a Seguradora, “não se percebe a final quem são os demandados ou qual a causa de pedir (agressões ou o embate da viatura), não se percebe se o pedido é o que se encontra junto aos autos ou o que se protesta juntar”, pelo que, concluem, o pedido formulado “é totalmente inepto, devendo ser considerado nulo e desentranhado dos autos por sequer se perceber contra quem é dirigido (artigo 186º, n.º 1, do Código de Processo Civil)”. Ora, dispõe o n.º 2 do invocado artigo 186º: “Diz-se inepta a petição: a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.” A ineptidão da petição inicial visa, desde logo, evitar que o juiz seja colocado na impossibilidade de julgar corretamente a causa, decidindo sobre o mérito, em face da inexistência de pedido ou de causa de pedir, ou de pedido ou causa de pedir que se não encontrem deduzidos em termos inteligíveis. Ora, como nos parece resultar da alegação petitória, o demandante formula claramente o seu pedido, contextualizando a demanda que intentou, em relação a diferentes danos (para os quais os aqui demandados nem sequer tinham legitimidade passiva, como supra já foi explicado), assim justificando (e antecipadamente se defendendo d’) a não duplicação de causas, por diferença de pedidos e de causas de pedir. Note-se que, ininteligibilidade que os demandados invocam, ambos se defendem da pretensão indemnizatória do demandante que, assim, demonstram ter conhecido e compreendido. Em conformidade, improcede a invocada nulidade por ineptidão do pedido de indemnização civil. Isto posto: Ora, quanto aos insultos dirigidos pelos arguidos ao assistente: pese embora a declarada prescrição do respetivo procedimento criminal, esta não prejudica o conhecimento do correspondente pedido de indemnização civil, uma vez que, como se referiu, a conduta dos demandados – ao apelidarem o demandante de “filho da puta” com intenção de ofender a sua honra (cfr. facto nº 34) - é típica, ilícita e culposa. Importa, pois, apreciar a questão de saber se os danos morais em decorrência sofridos pelo assistente merecem a tutela do direito e, em caso afirmativo, fixar o quantum da indemnização. Sabemos que o pedido de indemnização civil deduzido no processo penal, nos termos do artigo 71º, do CPP, está limitado pela sua conexão com a matéria criminal em apreciação no processo em que é deduzido, de modo que, nos termos do artigo 377º, nº 1, do mesmo Código, a decisão sobre esse pedido só pode abranger os danos causados pelo crime praticado, não podendo ser aqui tomados em conta outros aspetos da obrigação de indemnizar não conexionados com esse crime. Apelando ao que se deixou dito a propósito dos artigos 129º do Cód. Penal e 483º e segs. e 562º e segs., estes do Cód. Civil, há a considerar que a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais está limitada aos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, operando critérios de equidade (atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, etc..), com proporcionalidade em relação à gravidade do dano, atendendo às regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da partes - cfr. P. de Lima e A. Varela, CC anotado, vol. I, p.443 e s.; e A. Varela, Das Obrigações em Geral, p. 335 e segs. Do elenco dos factos provados resultam comprovados os elementos típicos constitutivos do tipo legal de injúria e que o assistente, em consequência dele, sofreu um dano não patrimonial pois que “As expressões usadas pelos arguidos deixaram o ofendido abalado” (facto n.º 35), ainda que não profundamente abalado (ponto I), já que, dadas as circunstâncias em que foram proferidas, o profundo abalo e transtorno que sofreu, por resultar de diferente causa (o atropelamento), está já ressarcido. Atende-se ao contexto de exaltação em que os factos ocorreram, após uma perseguição e atropelamento de que foi vítima o suspeito de assalto; porém, não se ignora também que o demandante estava já ferido no chão, incapaz de se levantar ou fugir, sendo apelidado de “filho da puta” (para além de “ladrão” e “gatuno”), na presença de terceiros, nomeadamente da sua mãe. O sofrimento e vexame do assistente merecem a tutela do direito e considerando a (não significativa) gravidade do dano, o grau de culpa, a situação económica dos demandados, afigura-se-nos justo e adequado o montante de € 500,00 (quinhentos euros), que assim se fixa para ressarcimento destes danos não patrimoniais sofridos pelo assistente. Já quanto aos danos peticionados como consequência dos “atos de ofensa à integridade física” não incluídos na indemnização peticionada e paga pela Seguradora “em resultado do atropelamento”: percorrida a matéria que mereceu a adesão de prova, pese embora o demandante não ter logrado demonstrar a existência de lesões diferentes das causadas pelo atropelamento (e que se mostram já ressarcidos em sede cível) – todas ao nível dos membros inferiores (factos n.º 16, 17, 32, 33 e ponto G) -, é inegável que sofrer socos e pontapés no corpo, ainda para mais quando está já ferido, é causa, no mínimo, de dores que merecem a tutela do Direito. Em conformidade, atendendo às circunstâncias já aludidas e mais uma vez por apelo à equidade, entende-se fixar a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), em que vão os demandados solidariamente condenados, para ressarcimento destes danos morais, no mais improcedendo o pedido, por indemonstrado.
*
O direito. Nota prévia:
As conclusões do presente recurso, além de desnecessariamente extensas e repetitivas, ostentam uma evidente indisciplina organizacional, apresentando a questões a decidir por ordem dessincronizada com a sua prevalência legal apreciativa, e, além disso, enunciando-as e, depois disso, interpolando-as com outras, e a elas regressando posteriormente – a título de mero exemplo, começa com uma questão relativa à contradição insanável da fundamentação (conclusão 6.ª), que retoma na conclusão 44.ª, mas inserindo antes o erro notório na apreciação da prova (conclusão 36.ª), quando deveria ter começado pela proibição de prova da conclusão 72.ª, seguida das outras várias nulidades da decisão invocadas e das questões de fundo suscitadas. Esta indevidamente osmótica “síntese” conclusiva muito dificulta o trabalho desta instância, que procurou ordenar e resolver as questões suscitadas de acordo com os princípios processuais legais, mas não pôde deixar de fazer constar esta observação a bem da preocupação por parte dos recorrentes em apresentarem verdadeiras sínteses conclusivas da motivação, e organizadas em compartimentos, pelo menos, relativamente estanques, para que a sua ordenação e análise se torne menos tormentosa para esta instância.
A/J A decisão recorrida valorou prova proibida?
A este respeito, afirma-se nas conclusões:
72ª Mas, para além disso, deve considerar-se que quanto ao que se alega nos artºs 105º e 106º tal alegação está a coberto de uma proibição de prova. 73ªA alegação da al. o) não poderia ser imputada aos arguidos, mesmo que constasse da contestação, uma vez que se trata de alegação de advogado e não dos arguidos. 74ª No entanto, o que se verifica é que o que se alega nesses artigos cujo teor foi relegado para os factos não provados, serviu, apesar disso, para julgar as convicções dos arguidos, interpretar os seus depoimentos e os de outras testemunhas e ser levado em conta para afastar o preenchimento dos pressupostos da legítima defesa. 75ª Sucede que a matéria alegada na contestação, quando não confrontada com o arguido em audiência, como claramente não foi, constitui prova proibida (neste sentido, o acórdão da Relação de Lisboa de 16/1/25, relatado por Diogo Coelho Sousa Leitão, publicado in www.dgsi.pt supra transcrito), pelo que tal matéria não pode servir para formar a convicção do Tribunal.
A presente questão consta do ponto 1.5.3 da motivação.
Na contestação apresentada pelo arguido AA foi alegado que:
83.º Certo é que o ofendido faz do furto modo de vida, tendo sido já, por várias vezes, condenado por tal crime. 84.º E que desde que ocorreu este último furto, a casa do arguido não mais foi alvo de intrusões ou furtos. 105.º Daí que o arguido AA tenha optado por perseguir o ofendido de carro, detê-lo e depois chamar a GNR, como o fez. 106.º Pondo fim à sua carreira criminosa, aos contínuos assaltos à sua residência e às residências vizinhas.
Dos factos acima enunciados, receberam decisão de não provado os que constam do ponto 83.º (alínea N) e 106.º (alínea O).
É certo, todavia, que na exposição relativa aos motivos da decisão, as afirmações em causa foram mencionadas pelo tribunal recorrido:
Aquando da análise do depoimento da mãe do assistente:
Estamos certos que os arguidos proferiram esta expressão (confirmada pela testemunha quanto ao AA e afirmada pelo assistente quanto a ambos os arguidos): depois de um episódio de alta tensão (como surpreender um assalto em curso, perseguir o assaltante, atropelar/ver atropelar o meliante, abordar o meliante sem saber se este está armado), num claro estado de exaltação e até excitação, os arguidos acercam-se do ofendido, caído e ferido no chão, certos de que este invadira e assaltara a sua casa, pelo que o abordam com animosidade, insultando-o, segurando-o e agredindo-o de forma a poderem recuperar dele os objetos que tenha furtado. Todo este contexto de escalada de violência explica que as palavras usadas tenham sido precisamente as que o assistente referiu, visando ferir a sua honra (nos termos que a contestação não escamoteia ao afiançar que “o ofendido faz do furto modo de vida, tendo já sido por várias vezes condenado por tal crime”, apesar de a sentença condenatória pelo furto do dia dos factos aludir à ausência de antecedentes criminais do ofendido, ali arguido). Este testemunho, corroborando as declarações do assistente e confirmado pelas regras da experiência, permitiu-nos assentar os factos sob os n.ºs 26, 27, 28, 34, 35 e 55
Na fundamentação de direito, a propósito da invocada legítima defesa: Tendo todas estas alternativas disponíveis, entendeu o arguido AA agir da forma dada por provada, causando as lesões que foram verificadas na vítima (e até os danos na sua viatura), indiferente a estas consequências, empenhado que estava em, como refere na sua contestação, terminar com a carreira criminosa do ofendido, que ali julgou, condenou e puniu, não apenas pelo assalto antes realizado mas também por todos os demais de que foi vítima (mesmo quando o ofendido era ainda menor) e até por todos os que tenham ocorrido nas redondezas. Evidencia-se-nos, de forma clara e unânime por todos os elementos deste tribunal de juri, que o animus do arguido não era o de se defender mas o de castigar o ofendido, ali mesmo executando a pena, indiferente às lesões e gravidade que causasse e, até, ao risco que produzia para si e para terceiros (recorde-se que conduzia em contra-mão, numa via pública).
Ora, em relação a este último trecho, é absolutamente impertinente a questão da proibição de prova, porque as considerações tecidas na decisão são, agora, de direito, com base nos factos dados como provados. Assim, nesta parte da decisão não ocorre qualquer assentamento de factualidade nem, por conseguinte, as afirmações expendidas podem ter por finalidade explicar o raciocínio levado a cabo naqueloutra tarefa que sobre o tribunal impende. O discurso e argumentação podem ser mais ou menos certos, mais ou menos próprios, felizes, ou adequadas, mas não se destinam a fundamentar o assentamento factual, tendo antes por fim transmitir o pensamento do tribunal em relação à interpretação da lei e à sua aplicação aos factos dados com provados. De qualquer modo, temos para nós que a argumentação teria sido mais feliz e adequada se não tivesse referido as aludidas alegações da contestação, mas isso não aporta qualquer nulidade neste campo.
Vejamos agora a questão no tocante ao primeiro excerto.
Na resposta ao recurso, diz o Ministério Público que: Relativamente à matéria de facto insurgem-se ainda os recorrentes pelo facto de ter sido dado como não provado o facto O – “Que a acção do arguido AA tenha posto fim à carreira criminosa do ofendido, aos constantes assaltos à sua residência e às residências vizinhas” – por se tratar de matéria dos pontos 105.º e 106.º da contestação que configura alegação de advogado, com a qual o arguido não foi confrontado, constituindo prova proibida que não pode servir para formar a convicção do Tribunal. Em defesa desta posição invocam os recorrentes o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.01.2025, disponível em www.dgsi.pt, relator Dr. Diogo Coelho. Ora, decorre das conclusões deste acórdão que: “1 Tendo o arguido em audiência de julgamento decidido ficar em silêncio, a versão dos factos vertida na sua contestação não poderá ser valorada pelo juiz na motivação da matéria de facto, sendo prova proibida.”. Ora, in casu, os arguidos prestaram declarações sobre todos os factos incluindo as consequências das suas actuações, das quais não resultaram demonstrados os factos que vieram a ser dados como provados sob o ponto O. De todo o modo, há que sublinhar que o facto O foi dado como não provado, não tendo qualquer valor para a conclusão jurídica a que chegou o Tribunal a quo, pois quanto a esta o que relevam são os factos provados. Assim, deverá também improceder a presente alegação
A questão deve ser situada no capo mais vasto de saber quais as declarações (processuais e extra processuais) do arguido a que o tribunal pode atender na sua decisão.
A lei processual penal é muito rigorosa a este respeito.
Podemos elencar as seguintes disposições: Artigo 141.º Primeiro interrogatório judicial de arguido detido (…) 4 - Seguidamente, o juiz informa o arguido: (…) b) De que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova;
*
Artigo 343.º Declarações do arguido 1 - O presidente informa o arguido de que tem direito a prestar declarações em qualquer momento da audiência, desde que elas se refiram ao objecto do processo, sem que no entanto a tal seja obrigado e sem que o seu silêncio possa desfavorecê-lo. 2 - Se o arguido se dispuser a prestar declarações, o tribunal ouve-o em tudo quanto disser, nos limites assinalados no número anterior, sem manifestar qualquer opinião ou tecer quaisquer comentários donde possa inferir-se um juízo sobre a culpabilidade. 3 - Se, no decurso das declarações, o arguido se afastar do objecto do processo, reportando-se a matéria irrelevante para a boa decisão da causa, o presidente adverte-o e, se aquele persistir, retira-lhe a palavra. 4 - Respondendo vários co-arguidos, o presidente determina se devem ser ouvidos na presença uns dos outros; em caso de audição separada, o presidente, uma vez todos os arguidos ouvidos e regressados à audiência, dá-lhes resumidamente conhecimento, sob pena de nulidade, do que se tiver passado na sua ausência. 5 - Ao Ministério Público, ao defensor e aos representantes do assistente e das partes civis não são permitidas interferências nas declarações do arguido, nomeadamente sugestões quanto ao modo de declarar. Ressalva-se, todavia, relativamente ao defensor, o disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo 345.º
*
Artigo 344.º Confissão 1 - O arguido pode declarar, em qualquer momento da audiência, que pretende confessar os factos que lhe são imputados, devendo o presidente, sob pena de nulidade, perguntar-lhe se o faz de livre vontade e fora de qualquer coação, bem como se se propõe fazer uma confissão integral e sem reservas. 2 - A confissão integral e sem reservas implica: a) Renúncia à produção da prova relativa aos factos imputados e consequente consideração destes como provados; b) Passagem de imediato às alegações orais e, se o arguido não dever ser absolvido por outros motivos, à determinação da sanção aplicável; e c) Redução da taxa de justiça em metade. 3 - Exceptuam-se do disposto no número anterior os casos em que: a) Houver co-arguidos e não se verificar a confissão integral, sem reservas e coerente de todos eles; b) O tribunal, em sua convicção, suspeitar do carácter livre da confissão, nomeadamente por dúvidas sobre a imputabilidade plena do arguido ou da veracidade dos factos confessados; ou c) O crime for punível com pena de prisão superior a 5 anos. 4 - Verificando-se a confissão integral e sem reservas nos casos do número anterior ou a confissão parcial ou com reservas, o tribunal decide, em sua livre convicção, se deve ter lugar e em que medida, quanto aos factos confessados, a produção da prova. 5 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável no processo contra pessoa coletiva ou entidade equiparada, podendo o seu representante fazer uma confissão dos factos que são imputados à representada, contanto que a confissão caiba nos seus poderes de representação.
*
Artigo 357.º Reprodução ou leitura permitidas de declarações do arguido 1 - A reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo só é permitida: a) A sua própria solicitação e, neste caso, seja qual for a entidade perante a qual tiverem sido prestadas; ou b) Quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária com assistência de defensor e o arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 141.º 2 - As declarações anteriormente prestadas pelo arguido reproduzidas ou lidas em audiência não valem como confissão nos termos e para os efeitos do artigo 344.º 3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 7 a 9 do artigo anterior.
Devemos ainda ter presente que é muito discutida a possibilidade de o regime do depoimento indireto previsto no artigo 129.º do Código de Processo Penal ser aplicável ao testemunho de ouvir dizer ao arguido, havendo defensores e decisões em ambos os sentidos.
Toda esta esmiuçadora regulamentação pretende acautelar o princípio da proibição de autoincriminação e do direito ao silêncio do arguido.
Além disso, temos ainda a norma geral a respeito das provas e da sua aproveitabilidade pelo tribunal:
Artigo 355.º Proibição de valoração de provas 1 - Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência. 2 - Ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes.
Ora, sendo certo que o defensor é o representante do arguido em juízo, e que sendo seu mandatário os atos por si praticados, em geral, também o vinculam, não podemos, em face dos basilares princípios acima enunciados, aplicar ao direito processual penal as normas a este respeito existentes no processo civil a propósito das afirmações (e até das omissões) feitas pelas partes nos articulados subscritos pelos seus mandatários, designadamente os efeitos da aceitação expressa de factos (confissão) ou as consequências da não impugnação destes.
Não podemos nunca arredar do nosso espírito de aplicadores da lei e empenhados buscadores da Justiça, sempre dentro os parâmetros daquela, note-se bem, o que nos ensina o velhíssimo brocardo: no direito público só se pode fazer o que é permitido, no direito privado pode fazer-se tudo o que não é proibido. Ora, sendo o direito processual (todo ele) direito público, o tribunal e os sujeitos processuais apenas podem proceder nos termos em que a lei autoriza, não sendo toleradas tiradas criativas ou enviesamentos adjetivos. A lei autoriza o arguido a apresentar contestação, e regula a sua composição formal no artigo 311.º-B do Código de Processo Penal, sendo de notar que o seu n.º 2 diz, desde logo, que a contestação não está sujeita a formalidades especiais. Todavia, não há qualquer preceito, ao contrário do que existe no processo civil, a regulamentar os efeitos do que deste articulado consta, o que é bem demonstrativo do nenhum valor que a lei lhe atribui nesse campo específico.
Por isso, como acertadamente se decidiu no Acórdão citado pelo recorrente, as afirmações constantes da contestação apenas podem ser valoradas pelo tribunal se forem repetidas pelo arguido nas declarações que entenda dever prestar em audiência de julgamento, ou se, tendo decidido prestar declarações, for sobre elas interrogado e as confirmar, pois, procedimento contrário violaria luce meridiana clarior, o lapidar brocardo acima enunciado, e mais do que isso, afrontaria os ditos princípios da proibição de autoincriminação e do direito ao silêncio do arguido. Assim, se o arguido não prestar declarações, o que foi afirmado na contestação escrita pelo seu defensor constitui uma inexistência probatória, pois não há razão para se lhe não aplicar o conjunto de restrições que se aplica a todas as outras suas declarações em sede de aproveitabilidade probatória – além de acertada e consonante com os princípios, esta solução legal acautela de modo evidente os riscos sempre existentes (traduzidos numa eventual culpa in eligendo, em caso de defensor constituído, ou em puro azar, em caso de defensor nomeado) de um causídico mais facundo que fecundo poder prejudicar, involuntariamente, é certo, o seu defendido, ao espraiar naquele articulado mais do que devia ou o que o bom senso ou a boa técnica jurídica vivamente desaconselhariam.
Veja-se até o grau de exigência a que chegou o nosso mais Alto Tribunal no seguinte Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 04/05/23, exarado no processo 660/19.9PBOER.L1-A.S1, disponível em www.dgsi.pt: a) As declarações feitas pelo arguido no processo perante autoridade judiciária com respeito pelo disposto nos arts. 141.º, n.º 4, al. b), e 357.º, n.º 1, al. b), do CPP, podem ser valoradas como prova desde que reproduzidas ou lidas em audiência de julgamento; b) Julgar procedente o presente recurso extraordinário, revogando o acórdão recorrido no segmento em que validou a valoração de declarações do arguido prestadas no inquérito sem a respetiva reprodução ou leitura em audiência de julgamento.
É certo que há neste Acórdão várias declarações de voto e votos de vencido, mas o regime que vingou ordena a leitura efetiva em audiência de julgamento destas declarações do arguido para poderem ser valoradas na decisão final, sendo certo, certíssimo, dir-se-ia, que todos as conhecem, e que foram prestadas perante um juiz de instrução, que o informou da possibilidade da sua valoração em julgamento, e com assistência de defensor.
Assim, em face de toda esta tão cautelosa e prudente quão emaranhada teia filtrante que circunda a aproveitabilidade probatória das declarações do arguido, fácil é concluir que não podem ser atendidas afirmações a este atribuídas que constem da contestação por si oferecida, que tanto podem ter origem no seu verbo como na inspiração ou até excitação do seu defensor, e que certamente foram passadas a escrito no recato do local de trabalho deste, quiçá até sem a presença do primeiro, nem sendo absolutamente afiançável se as terá, sequer, lido, atenta a vertiginosa velocidade do trabalho dos profissionais do foro hoje em dia, salvo se, como já se disse, tendo decidido prestar declarações, as tenha repetido ou confirmado.
Não obstante tudo o que se disse, a leitura e interpretação do excerto da motivação de facto que mereceu a impugnação recursiva que ora se aprecia, não demonstra que o tribunal tenha assentado a sua convicção em afirmações da contestação que o arguido não reproduziu nem confirmou em audiência de julgamento.
É certo que, de modo manifestamente infeliz, há uma referência a algumas dessas declarações no excerto em causa. Mas, devidamente interpretado, em nosso entender, o que o tribunal de júri exarou foi o que serviu para a formação da sua convicção em relação aos factos em causa.
Vejamos em que se estribou o tribunal:
- depois de um episódio de alta tensão (como surpreender um assalto em curso, perseguir o assaltante, atropelar/ver atropelar o meliante, abordar o meliante sem saber se este está armado), - num claro estado de exaltação e até excitação, os arguidos acercam-se do ofendido, caído e ferido no chão, certos de que este invadira e assaltara a sua casa, pelo que o abordam com animosidade, insultando-o, segurando-o e agredindo-o de forma a poderem recuperar dele os objetos que tenha furtado. - Todo este contexto de escalada de violência explica que as palavras usadas tenham sido precisamente as que o assistente referiu, visando ferir a sua honra; - Este testemunho, corroborando as declarações do assistente e confirmado pelas regras da experiência, permitiu-nos assentar os factos sob os n.ºs 26, 27, 28, 34, 35 e 55
Depois, também numa daquelas convulsões do espírito a que ninguém está imune, o tribunal de júri diz que tudo isto a contestação não escamoteia ao afiançar que “o ofendido faz do furto modo de vida, tendo já sido por várias vezes condenado por tal crime”, adicionando ainda o dispensável discordante comentário apesar de a sentença condenatória pelo furto do dia dos factos aludir à ausência de antecedentes criminais do ofendido, ali arguido. Ora, “não escamoteia” pretende significar “não nega”, e tal é a certeza, transmitida pelo texto, que o tribunal de júri enuncia em relação ao que decidiu, que só faltou mesmo escrever “e ainda que escamoteasse”.Ora, a transposição para o texto destes estados de alma era perfeitamente dispensável, mas não constitui, a nosso ver, a utilização de uma declaração do arguido sem autorização legal para decidir factos em julgamento.
Assim sendo, sem embargo de reconhecer razão ao arguido no tocante ao enunciado técnico e dogmático da questão, entende-se que no caso concreto não se constata a utilização de qualquer prova proibida, pelo que improcede esta parte do recurso.
B/N/G
A decisão recorrida é nula, nos termos do disposto no art.º 379. º nº1 alíneas a), b) e c) do Código de Processo Penal?
Esta invalidade da decisão recorrida é invocada, naquele particular e impróprio modo salteado já referido, nas seguintes conclusões:
14ª Por outro lado, decorre claramente do requerimento do arguido de 11/10/24, da resposta da EMP01... de 24/10 e da resposta do ofendido (requerimento de 17/10) que o arguido mentiu em audiência quanto ao pagamento ao arguido AA da indemnização no processo de furto, tal como mentiu quando afirmou que restituiu 10.000 € à EMP01.... 15. Aliás, a propensão deste para mentir está demonstrada nos autos no ponto 51, quando se deu como provado que quando os arguidos chegaram à beira dele este, apesar das dores que dizia sentir, foi capaz de dizer por mais do que uma vez que nada tinha furtado…. 16. Se a isto juntarmos que no acórdão recorrido não se fez o exame crítico do seu depoimento; que, ao contrário do que se deu como provado, não consta do acórdão que o recorrente AA tivesse pontapeado o ofendido nas pernas, temos que, pelo menos, o acórdão é nulo por falta de fundamentação (cfr. o artº 374º nº2 e 379º nº1 al. a) do Código de Processo Penal e, por certo, o seu depoimento não foi credível, tendo-se violado o princípio da livre apreciação da prova, uma vez que esta foi apreciada de forma arbitrária.
*
56ª Sem dar como provados ou não provados os factos 42º, 44º, 45º, 75º, 76º e 82º da contestação, não se podia dar como não provada a al. M) dos factos não provados. 57ª Assim, ao não investigar os factos alegados sob os artºs 42º, 44º, 45º, 75º, 76º e 82º da contestação (quanto a este ultimo apenas se deu como não provado que existiam fortes indícios de que o ofendido tenha assaltado mais vezes a casa do arguido, o que é conclusivo) e, do mesmo passo, quando se gerou o convencimento do arguido de que tinha sido o ofendido a assaltar outras vezes a sua casa – ponto 55 dos factos provados, o acórdão recorrido incorreu em insuficiência para a decisão da matéria de facto prevista no artº 410º nº2 al. a) do CPP. 58ª Quando se entenda que não estão preenchidos os pressupostos da insuficiência para a decisão da matéria de facto, certo é que o acórdão recorrido ao não dar como provados ou não provados, os factos supra incorreu em nulidade por falta de fundamentação (artº 374º nº2 e 379º nº1 al. a) do CPP).
*
63ª Daí que, não se pudesse dar como não provado a al. L) dos factos não provados sem que o acórdão se debruçasse sobre o alegado nos artºs 55º e 57º, 62º e 72º da contestação ou investigasse tal matéria. 64ª Assim, ao não investigar os factos alegados nesses artigos da contestação o acórdão recorrido incorreu em insuficiência para a decisão da matéria de facto prevista no artº 410º nº2 al. a) do CPP. 65ª Quando se entenda que não estão preenchidos os pressupostos da insuficiência para a decisão da matéria de facto, certo é que o acórdão recorrido ao não dar como provados ou não provados, os factos supra incorreu em nulidade por falta de fundamentação (artº 374º nº2 e 379º nº1 al. a) do CPP).
*
80ª Os arguidos vinham acusados ambos pela prática de um crime de homicídio, sendo que vieram a ser condenados, cada um, pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada previsto e punido pelo artº 145º nº1 al. d), por referência ao artº 132º nº1 e 2 al. h) do CP – o arguido AA – e previsto e punido pelo artº 145º nº1 al. d), por referência ao artº 132º nº1 e 2 al. c) do CP – o arguido BB. 81ª O que se operou no acórdão recorrido não foi apenas uma alteração da qualificação jurídica, mas também uma alteração de factos. 82ª Os arguidos não estavam acusados de homicídio qualificado pelo uso de instrumento particularmente perigoso ou pelo facto de a vítima ser particularmente indefesa. Os arguidos encontravam-se acusados de homicídio simples. 83ª Daí que o aditamento de factos que representa a alegação dos factos qualificativos e do prévio conhecimento pelos arguidos de tais factos, constitui uma alteração de factos, ainda que não substancial de que aos arguidos devia ser comunicada. 84ª Pelo exposto, deve considerar-se que o acórdão recorrido incorreu em nulidade por ter condenado os recorrentes por factos e qualificação jurídica diversos da constante da acusação, nos termos do disposto no artº 379º nº1 al. b) do CPP. 85ª A interpretação que se extraia do disposto no artº 358º nº1 e 3 do CPP no sentido de que não constitui uma alteração de factos e da qualificação jurídica determinante da correspondente comunicação ao arguido para efeitos do exercício da sua defesa, uma alteração de factos e da qualificação jurídica que, embora, leve à condenação por crime menos grave, introduz factualmente a qualificação do crime base, cujos factos não constavam da acusação, é inconstitucional por violação do artº 2º, 32º nº1 e 5 da Constituição.
*
116ª Assim sendo, tendo sido liminarmente admitido o pedido cível, no despacho do artº 311º do CPP quando não o devia ter sido, não se devia ter conhecido do pedido de indemnização civil, pelo que ao conhecer do pedido de indemnização civil decorrente das injúrias, o acórdão recorrido conheceu de matéria de que não devia conhecer, sendo o acórdão nulo, nos termos do artº 379º nº1 al. c) do CPP.
Assim sendo, a nulidade da decisão recorrida é invocada a propósito da falta de exame crítico das declarações do arguido AA, pela não apreciação de factos alegados na contestação, pelo incumprimento do disposto no artigo 358.º do Código de Processo Penal, e pela indevida admissão e apreciação do pedido de indemnização civil, ou seja, falta de fundamentação, omissão de pronúncia e excesso de pronúncia.
Vejamos, em primeiro lugar, o que diz o Código de Processo Penal, na parte que aqui interessa e como interpretar o respetivo regime:
Artigo 97.º Actos decisórios 1 - Os actos decisórios dos juízes tomam a forma de: a) Sentenças, quando conhecerem a final do objecto do processo; b) Despachos, quando conhecerem de qualquer questão interlocutória ou quando puserem termo ao processo fora do caso previsto na alínea anterior. 2 - Os actos decisórios previstos no número anterior tomam a forma de acórdãos quando forem proferidos por um tribunal colegial. (…) 5 - Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
*
Artigo 374.º Requisitos da sentença (…) 2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. (…)
*
Artigo 379.º Nulidade da sentença 1 - É nula a sentença: a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F; (…) c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ouconheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Antes de tudo isto, dispõe o artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República, que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
“Princípio de matriz constitucional essencial em matéria de decisões judiciais é o princípio da fundamentação, consagrado no art.º 205.º, n.º 1, da Constituição da República, o qual se traduz na obrigatoriedade de o tribunal especificar os motivos de facto e de direito da decisão – n.º 4 do artigo 97.º deste Código. Tal princípio, relativamente à sentença penal concretiza-se, porém, mediante uma fundamentação reforçada, que visa, por um lado, a total transparência da decisão, para que os seus destinatários (aqui se incluindo a própria comunidade) possam apreender e compreender claramente os juízos de valoração e de apreciação da prova, bem como a atividade interpretativa da lei e da sua aplicação e, por outro lado, possibilitar ao tribunal superior a fiscalização e o controlo da atividade decisória, fiscalização e controlo que se concretizam através do recurso, o que consubstancia, desde a revisão de 1997, um direito do arguido constitucionalmente consagrado, expressamente incluído nas garantias de defesa - art.º 32.º, n.º 1, da Constituição da República.” – Conselheiro Oliveira Mendes, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pag. 1168.
Significa isto, e de acordo com as normas acima citadas, que, sob pena de nulidade, a sentença, a este respeito, para além da indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, tem de conter também o respetivo exame crítico das provas, isto é, o processo lógico e racional que foi seguido na sua apreciação, e apreciar as questões que lhe são colocadas pelos sujeitos processuais.
A exigência dessa fundamentação tem como função, conforme escreve Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal. 2ª ed. III, p. 294), permitir «a sindicância da legalidade do ato, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, atuando, por isso como meio de autodisciplina».
A propósito dos motivos de facto que fundamentam a decisão, diz Marques Ferreira (Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, p. 229) que estes «não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que, em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência».
O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental, mas bastante, que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte (cf., entre outros, Acórdão do STJ de 03.10.2007, processo n.º 07P1779).
Por outro lado, para a sentença ser considerada nula por omissão em relação à matéria de facto, necessário é que esteja obliterada nessa parte, não bastando para tal que tenha havido falta de decisão de alguns dos factos alegados na acusação ou na pronúncia. Repare-se que, lida a lei, diz esta que é nula a sentença que não contivera enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal; ou seja a lei não fere de nulidade a sentença que não contiver, por exemplo, a enumeração de todos os factos provados e não provados que interessam à boa decisão da causa – isso será já uma questão de insuficiência, como se verá na analise da questão seguinte.
Neste sentido, cfr. Mouraz Lopes, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, 2.º Edição, Tomo IV, pag. 809: “Sobre a ausência de fundamentação a norma estabelece que a nulidade ocorre, inequivocamente, quando a sentença não contenha (i) a enumeração dos factos provados e não provados, (ii) a exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas. A omissão integral de qualquer destes elementos estruturais da sentença torna a mesma nula. Ainda que algum deles (factos provados, factos não provados e motivação) esteja na sentença, individualizadamente, a omissão de qualquer um, fulmina a sentença de nulidade.” Note-se bem: a omissão integral, e não a parcial.
É certo que se conhece a orientação que entende que a falta na sentença da decisão em relação a factos relevantes que integram o objeto do processo constitui omissão de pronúncia porque o tribunal se não pronunciou sobre questão que lhe cumpria decidir. Ou seja, procede-se a uma equivalência entre facto singular e questão, o que implicará considerar que uma sentença tem tantas questões para decidir quantos os factos para julgar (que podem ser dezenas, centenas ou milhares), a que acrescerão, naturalmente, as outras questões (no processo penal, v.g., qual o crime, causas de exclusão da ilicitude e/ou da culpa, medida da pena, perda de bens, etc., etc.). Ou seja, um mundo infinito de questões. Sendo assim, caberá indagar qual o lugar reservado para a insuficiência.
Sobre o que são questões, para este efeito, pronuncia-se também Mouraz Lopes, ob. cit., loc. cit, pag. 813, apontando como exemplos” (…) conhecimento (i) dos crimes imputados ao arguido na acusação ou na pronúncia; (ii) do pedido de indemnização civil; (iii) da aplicação do perdão ou da amnistia; (iv) da prescrição já ocorrida à data da sentença; (v) da aplicação da pena acessória; (vi) da aplicação das penas de substituição; (vii) da aplicação do regime penal especial aplicáveis a jovens delinquentes; (viii) não suspensão da execução da pena de prisão, imposta a cada um dos arguidos em media não superior a 5 anos de prisão.”
Por isso, quando está em causa, por exemplo, o exame crítico da prova, não obstante poder até haver na decisão um texto submetido a esse tópico, se ele não for percetível, se os motivos do tribunal não forem apreensíveis, tudo se passa como se não existisse, apesar de formalmente lá se encontrar, e por isso se pode considerar nula tal sentença. O mesmo se não pode dizer da falta de decisão em relação a parte dos factos relevantes, uma vez que, para além de não se tratar de uma situação de integralidade, não se vislumbra que a decisão fique inapreensível ou incompreensível – fica apenas incompleta, sendo que a sua completude não deve ser buscada pela via da nulidade, mas antes por outros caminhos.
E deve ter-se presente que uma sentença anulada nos termos do artigo 379.º do Código de Processo Penal deve ser reformulada pelo tribunal de recurso, se tal for possível, ou, caso o não seja, será reformulada pelo juiz ou juízes que a subscreveram, não estando previsto na lei novo julgamento para tal, pois está apenas em causa a correta e integral explanação do pensamento que dela deve constar, segundo a lei, ao passo que se não tiver sido proferida decisão sobre factos (ainda que apenas alguns) não há sequer a garantia de que eles tenham sido alvo de indagação pelo tribunal recorrido durante o julgamento realizado, seja por descuido ou por opção consciente (por se entender serem irrelevantes, por exemplo), pelo que também não haverá a garantia de que sem novo julgamento eles possam ser objeto de decisão conscienciosa. O que está em causa na omissão de pronúncia é uma omissão de exposição do pensamento do julgador, e não uma omissão do próprio pensamento devido, sendo certo que em relação aos factos, como se disse, nunca poderá haver a garantia de terem sido objeto de apreciação no momento próprio, a audiência de julgamento. Se faltarem todos os factos, estamos certamente em face de um erro de elaboração da sentença, uma vez que não é crível que, tendo havido ato de julgamento, não tenham tido lugar quaisquer procedimentos de cognição factual, mas se faltarem apenas alguns dos factos que integram o objeto do processo, houve, muito provavelmente, um descuido, uma desatenção, uma desconsideração no julgamento de parte relevante do objeto processual, e basta essa probabilidade para a lei se não conformar com a resolução do problema pelo mesmo julgador, mais não seja até pelo risco de repetição da convicção já formada, não obstante ter sido lacunar.
Na verdade, e em conclusão, refira-se que a nulidade está cominada para a falta de fundamentação (“é nula a sentença que não contenha as menções referidas no n.º 2 (…) do art.º 374.º” - cfr. art.º 380.º, n.º 1, alínea a), ambos do CPP), e não para os casos de fundamentação menos brilhante ou menos conseguida por parte de quem escreve – o importante é que se possam perceber a decisão e os seus motivos. Saber, depois, se foi ou não bem decidido é outra questão. E não esqueçamos que é sempre muito mais difícil atingir a completude com a sempre desejável concisão do que com a balofa prolixidade, e que a concisa completude será sempre, naturalmente a seguir ao percucienteacerto, a maior qualidade de qualquer decisão judicial. Por outro lado, a nulidade está cominada para a omissão ou excesso de pronúncia sobre questões ou problemas, não sobre factos materiais singulares, pois estes, se relevantes e ausentes, implicam insuficiência, e se relevantes e aditados ao objeto do processo, serão abarcados pelo regime da alteração de factos, substancial ou não substancial, consoante os factos em causa, não obstante este primeiro caso poder conduzir-nos, de novo, aqui, mas isso é outra questão.
Comecemos pelo exame crítico das declarações do assistente (incorretamente qualificadas como depoimento de ofendido no recurso).
A este respeito consta da decisão: Ora, da prova a que supra se aludiu, dizer que as circunstâncias em que os factos ocorreram estão firmemente assentes, quer pelas declarações do assistente, quer dos próprios arguidos. Ficou, assim, claro o motivo que levou o ofendido a casa do arguido AA, e pelo qual foi já punido, e que provocou a fuga (do ofendido, apeado) e a “perseguição” (dos arguidos, do sobrinho e da esposa do arguido AA), pela rua até ao local do embate, tudo nos termos dados por provados sob os pontos 1 a 12. Ambos os arguidos assumem que perseguiram o ofendido (um apeado o outro ao volante do carro) desconhecendo a sua identidade, se estava armado ou acompanhado, ou se tinha retirado algo da casa onde fora surpreendido. Ambos os arguidos confirmam a versão do assistente de que este seguia no lado esquerdo da rua, junto à berma, sendo seguido pelo arguido AA na sua viatura, do mesmo lado esquerdo da rua, ou seja, em contra-mão, o que apenas foi negado – de forma nada credível - pela testemunha OO, sobrinho dos arguidos que corria também atrás do ofendido. Assente que o ofendido corria junto à berma do lado esquerdo da rua e que o arguido AA o seguia, e alcançou, com o carro, resta perceber como se deu o embate de que resultou a projeção do ofendido por cima do carro e a sua queda junto à valeta do lado esquerdo da rua bem como os danos verificados na viatura do arguido. Nesta parte, as versões do assistente e dos arguidos diferem: aquele afirma que foi intencionalmente atingido pela frente do carro do arguido; estes garantem que foi o ofendido quem, mudando a direção da sua marcha, se colocou em frente do carro que, assim inadvertidamente, o colheu. Ora, para apreciar e valorar cada uma das versões socorremo-nos dos factos que temos por objetivos e certos, complementados por outros (indiretos ou instrumentais) que, analisados à luz do normal suceder e das regras da experiência nos habilitarão a motivação da nossa convicção. (…) Isto posto temos que: - os arguidos surpreenderam o ofendido no interior da casa do AA onde acedeu sem autorização e donde fugiu, saltando um muro; - os arguidos estavam convictos que o ofendido fora surpreendido a assaltar a casa do arguido AA e que tinha sido o autor de anteriores assaltos; - os arguidos não chamaram as autoridades policiais pela suspeita do furto; - os arguidos seguiram no encalço do ofendido para o alcançarem e recuperarem os bens e valores que pudesse ter retirado da casa; - os arguidos desconheciam a identidade do ofendido e se este estava armado; - o ofendido saltou o muro e correu sem limitações; - o arguido AA, com 45 anos de idade, tinha dificuldades em andar, por ter sido sujeito a cirurgia, usando canadianas até 3 dias antes; - o ofendido fugia a correr, junto à berma do lado esquerdo da rua, num troço que apresentava duas vias de circulação, com uma largura de pelo menos 7 metros; - no sentido de marcha do assistente e arguidos, após a cabine de eletricidade existente do lado esquerdo da rua, esta estreita para uma largura que apenas permite a passagem alternada de viaturas em sentido oposto; - o ofendido residia na rua do embate, em casa sita do lado direito, atendo o seu sentido de marcha; - atento o sentido de marcha do assistente e dos arguidos, do lado direito do local de embate, apenas existem casas, muradas e com portão de acesso; - após o embate, o assistente foi projetado por cima do capot do carro do arguido AA e caiu na berma da estrada, junto ao muro, do lado esquerdo da rua; - após o embate no corpo do assistente, a viatura do arguido AA apresentava danos no vidro frontal e farolim, do lado esquerdo; - após o embate, depois de recuperar moedas que o assistente tinha na sua posse, o arguido AA mudou e imobilizou a viatura para o lado oposto (direito) da rua. Ora, todos estes factos – indiretos, invocados e admitidos pelos próprios arguidos – habilitam o tribunal a concluir (o que fez de forma unânime) que o embate ocorreu de forma voluntária e intencional: o arguido, que seguia o ofendido que corria sem sinais de parar, ao ver aproximar-se da cabina de eletricidade, percebeu que, a partir dali e seguindo o ofendido a correr, dificilmente o alcançaria já que a rua, embora continuando com dois sentidos, passava a estreitar, não permitindo sequer a passagem cruzada de duas viaturas. Ora, pretendendo alcançar e reter o ofendido – e não apenas segui-lo indefinidamente, esperando por um rebate de consciência que o fizesse “render-se” -, o arguido, seguindo imediatamente atrás do assistente (por isso em confessa contra-mão), sem buzinar ou esboçar qualquer outro sinal de alerta (conforme todos os vizinhos confirmaram, que não ouviram qualquer som antes dos gritos de dor que começaram a ecoar), lançou a frente do seu carro em direção ao corpo/pernas do ofendido, que atinge com a parte frontal esquerda, assim logrando imobilizá-lo. Os danos provocados no veículo, a forma como o corpo da vítima foi colhido e projetado, acabando na berma do lado esquerdo, junto ao muro, confirmam esta versão.
Além de tudo isto, o tribunal referiu antes os depoimentos de HH, II, DD, FF e esposa, LL, PP e NN, cujo teor reproduziu por síntese, explicando a respetiva razão de ciência, e enunciando as razões por que os considerou credíveis e em que medida corroboraram as declarações do assistente, tudo em ordem a conferir credulidade a estas, pelo que não há qualquer falta de exame crítico. É certo que esse exame em relação às declarações do assistente qua tale não é exuberante, nem precisa de o ser, até porque se trata de um sujeito do processo e, portanto, com interesse no seu desfecho, mas deve afirmar-se que, no geral, a fundamentação a este respeito é completa, compreensível e aceitável, pelo que nada mais se pode exigir ao tribunal nesta parte. Pode discordar-se da decisão, como fazem os recorrentes, mas não se pode dizer que ela é inapreensível pelo intelecto ou que desrespeita as exigências legais pertinentes.
Quanto ao excerto o arguido mentiu em audiência constante conclusão 14.ª, nada se pode dizer nesta parte do recurso (nem em posteriores, como adiante se verá), uma vez que não há qualquer referência, nos termos legais, às declarações em causa, apenas se podendo tomar aqui em conta o texto da decisão e o objeto do processo.
Quanto a esta tão intrincada questão, sempre aparentemente demolidora, da mentira, cumpre, também sempre, ter avisada e humildemente presente que, por um lado, nada impede que a testemunha incorra em erro e não em mentira. O Insigne Santo Agostinho, in De Mendatio, Introductio, I,1, classifica a mentira como magna et latebrosa quaestio, ou seja, a mentira é uma grande questão, que se apresenta cheia de esconderijos; além disso, “a mentira não se define simplesmente por uma duplicidade, ou por uma dobrez. Para haver mentira, rigorosamente, essa falsidade de e na significação (…) tem que se encontrar operada por vontade intencional, por propósito deliberado, de enganar. (…) Na Antiguidade, esta linha de abordagem está fortemente presente e ativa, muito em particular nos ambientes estoicos, e não deixou de se transmitir ao pensamento romano, para o qual era familiar a distinção entre «mentir» (mentiri) e «dizer mentiras» (mendati dicere), isto é, no fundo, entre «errar» (errare) e «dizer falso» (falsum dicere).” – cfr. a notável obra de José Barata-Moura, Da Mentira: Um Ensaio – Transbordante de Errores, Caminho, pags. 16 e 93.
Assim sendo, só se pode concluir que o tribunal efetuou o exame crítico das provas que lhe cumpria apreciar, sendo percetível o seu pensamento. Pode discutir-se se o fez com a dimensão que o recorrente pretendia; mas isso já não faz parte do núcleo de uma decisão válida. O virtuosismo literário, a elasticidade verbal, o dom da escrita e a capacidade de verbalização do pensamento variam de pessoa para pessoa, sendo certo que uma decisão jurisdicional nada tem que ver com uma peça literária ou com um exercício de estilo, devendo os tribunais esforçar-se por produzir decisões sintéticas, mas abrangentes, o que é mais difícil, mas muito mais, do que fazê-las longas e enfadonhas - deve apenas ter o suficiente para ser compreendida, mas deve ter tudo o que é necessário para o ser. E não há dívida de que a decisão recorrida tem o necessário e suficiente para ser compreendida.
Não ocorre, portanto, a invocada falta de exame crítico.
Passemos agora à questão atinente aos factos 42º, 44º, 45º, 75º, 76º e 82º, por um lado, e 55.º, 57.º, 62.º e 72.º, por outro, da contestação, cuja não apreciação leva os recorrentes a assacar à decisão as invalidades de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, a título principal, e de omissão de pronúncia, a título subsidiário.
Ora, independentemente do local para apreciar estas diferentes questões (aqui cumprirá apreciar a omissão de pronúncia), haverá que, em primeiro lugar, aquilatar da relevância dos aludidos factos para a decisão.
Recordemos as conclusões: 56ª Sem dar como provados ou não provados os factos 42º, 44º, 45º, 75º, 76º e 82º da contestação, não se podia dar como não provada a al. M) dos factos não provados. 63ª Daí que, não se pudesse dar como não provado a al. L) dos factos não provados sem que o acórdão se debruçasse sobre o alegado nos artºs 55º e 57º, 62º e 72º da contestação ou investigasse tal matéria.
Vejamos os factos em causa: 42º Assim sucedeu, por exemplo no dia 19/12/16 entre as 19 horas e as 22 horas, quando alguém se introduziu na habitação do arguido AA através de uma portada do andar superior da habitação, abriu uma sapateira aí existente, onde se encontrava dissimulado um cofre e daí furtou uma série de jóias da esposa do arguido e das suas filhas e 10.000 € em numerário. 43º Tais factos deram origem ao Proc. nº 891/16.3 PBGMR que pendeu na ... Secção do Ministério Público e que terminou com um despacho de arquivamento em 9/3/17 (cfr. os doc. nº1 e 2 que se juntam). 44º Antes e depois dessa data a habitação do arguido foi assaltada, tendo, inclusivamente, por uma das vezes, uma das filhas do arguido visto o assaltante, tendo a referida sapateira e o cofre em causa sido novamente “visitados” pelos meliantes. 45º Para além da sua habitação, o arguido sabe que as habitações existentes nas cercanias foram também elas alvo de furto, designadamente as das testemunhas constantes da acusação, sendo que estas ou não apresentaram queixa ou o processo teve o mesmo desenlace: o arquivamento por não se ter logrado apurar quem foi o seu agente. 55º A esposa do arguido saiu imediatamente da habitação, temendo ser atacada pela pessoa ou pessoas que estavam dentro da sua casa e telefonou ao arguido dando-lhe conta do que estava a suceder. 57º O arguido, temendo o que pudesse acontecer à sua esposa, saiu da empresa onde estava a trabalhar, tendo telefonado ao seu irmão BB, pedindo-lhe que se deslocasse a sua casa, contando-lhe o que se estava a passar. 62º O arguido, pretendendo que o ofendido devolvesse os bens que havia furtado, no intuito de o alcançar e porque desconfiava que o ofendido pudesse estar armado, decidiu entrar no seu veículo e perseguir o ofendido, uma vez que tendo em conta a cirurgia descrita, estava ainda debilitado, tendo dificuldades em andar e não conseguindo correr. 71º Após o embate o arguido AA saiu do carro, desconhecendo se o ofendido estava ou não armado e exigiu que o ofendido lhe entregasse os bens que este tinha furtado na sua residência, apelidando o ofendido por mais do que uma vez de ladrão, sendo que o ofendido também por mais do que uma vez lhe disse que nada tinha furtado. 72º Perante a insistência do arguido AA e do arguido BB, o ofendido começou a mexer nos bolsos, o que fez os arguidos temer que o ofendido estivesse efectivamente armado, no entanto o ofendido tirou duas moedas de prata do bolso, dizendo “é só isto que eu tenho”. 75º Em inspecção posterior à habitação do arguido, a GNR constatou que nas traseiras da residência se encontrava uma porta – a porta da sala – que foi forçada e que estava solta uma tábua que fica na parte superior de uma janela. 76º Constataram ainda no ... andar da habitação que dentro da sapateira estava um cofre aberto, local onde se encontravam as moedas de prata furtadas pelo arguido, uma das prateleiras estava toda remexida e o fio furtado pelo ofendido estava dentro de um cinzeiro que se encontrava em cima do móvel da sala do rés-do-chão. 82º Há fortes indícios de que o ofendido foi o autor de mais do que um furto em casa do arguido, tendo em conta que, por um lado, no assalto de 2016, constata-se que a pessoa que o praticou esperou pacientemente que o arguido saísse de casa, o que leva a concluir que o crime foi praticado por quem vivia perto do arguido e sabia os seus hábitos de vida, em segundo lugar o arguido vangloria-se por ... que entrou na casa do arguido por várias vezes, em terceiro lugar porque, tal como no assalto de 2016, o arguido soube imediatamente dirigir-se à sapateira onde se encontra dissimulado o cofre da habitação e em quarto lugar porque uma das filhas do arguido num dos outros assaltos perpetrados viu o arguido no interior da casa.
Na mencionada alínea M), deu-se como não provado o seguinte: Há fortes indícios de que o ofendido tenha sido o autor de mais do que um furto em casa do arguido.
Na alínea L) assentou-se o que se segue: Com a prática dos factos descritos, o ofendido tenha causado medo no arguido AA, deixando-o inseguro, perturbado, ansioso, deprimido, angustiado e com medo de permanecer na própria habitação, pelo que não deixa as filhas ali ficarem sozinhas e está a pensar em vender a casa.
A matéria das alíneas L) e M), de todo aquele acervo discursivo, poderia ter interesse para a decisão da causa, designadamente para ser ponderada em sede de culpa dos arguidos, e mesmo assim, parte dela, em grau ínfimo, porque fortes indícios neste domínio é, praticamente, o mesmo que nada, ou em sede de excesso de excesso de legítima defesa, sendo certo que a restante argumentação traduz factualidade que deu origem a processos de inquérito arquivados, não se vendo, nem os recorrentes o explicam, que relevância jurídica poderia ter esta factualidade e a restante, que está, além disso, pejada de juízos conclusivos, para a sua pretensão justificativa da ação através da legítima defesa – a perturbação, também um juízo normativo, será apreciada mais à frente, com base nos factos dados como provados.
Assim, os factos em causa não têm interesse para a boa decisão da causa, e os juízos cabem noutra sede, pelo que a omissão da sua apreciação neste local não representa qualquer imperfeição da decisão.
Isto não quer dizer que o tribunal não possa ter ponderado o que sobre tudo isto se disse em ordem a apreciar o estado psicológico dos agentes aquando da atuação, pois podemos até aceitar tratar-se de matéria instrumental ou circunstancial (tal como, aliás, se reconhece no recurso) neste domínio, mas é para nós liquido que a dita factualidade não se alcandora a estatuto tal que demande a sua apreciação cognitiva expressa por parte do tribunal, por não contender diretamente com o objeto do processo. Há, na verdade, que distinguir entre factos essenciais e factos instrumentais ou circunstanciais, destinando-se estes à demonstração daqueles, não cabendo ao tribunal pronunciar-se individualmente sobre todos eles, sob pena de a decisão se tornar inutilmente extensa. E não há dúvida de que a factualidade sobre que o tribunal se não pronunciou, ainda que depurada de toda a adjacência conclusiva, é de natureza instrumental em relação ao objeto do processo.
Assim sendo não ocorre qualquer omissão de pronúncia, relegando-se para ulterior oportunidade neste acórdão a apreciação da questão sob o enfoque da insuficiência, sendo certo que, atento o que ora se disse a respeito, é quase intuitivo qual será o seu destino.
Vejamos agora o excesso de pronúncia.
Comecemos pela invocada desconsideração do mecanismo relativo à alteração não substancial e factos.
É unânime nos autos que: 80ª Os arguidos vinham acusados ambos pela prática de um crime de homicídio, sendo que vieram a ser condenados, cada um, pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada previsto e punido pelo artº 145º nº1 al. d), por referência ao artº 132º nº1 e 2 al. h) do CP – o arguido AA – e previsto e punido pelo artº 145º nº1 al. d), por referência ao artº 132º nº1 e 2 al. c) do CP – o arguido BB.
Façamos, previamente, um pequeno excurso teórico sobre o principio da vinculação temática.
Devemos ter em linha de conta, desde logo, o princípio acusatório, ou da acusação, ou, no dizer de outros, separatista, previsto no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, que preceitua que “ (…) a entidade que investiga e acusa deve ser distinta da que julga (…)” – cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, Almedina, 4.ª Edição, pag. 92.
Por outro lado, cumpre lembrar que “Pela acusação se define e fixa o objeto do processo - o objeto do julgamento, e, portanto, da possível condenação ou absolvição tão-só da infração e autor acusados. Todo o sentido do princípio da acusação seria anulado se esta se limitasse a ser pressuposto formal da intervenção judicial, permitindo-se que quanto ao conteúdo e objeto da investigação e julgamento o juiz pudesse atuar e decidir inquisitoriamente sem limites – voltaria ele a encontrar-se «pessoalmente» interessado na investigação e repressão de quaisquer infrações, não apenas da que lhe é acusada, e ainda que só relativa ao mesmo agente.” – cfr. Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, Coimbra 1968, pag. 34.
Com tudo isto se relaciona, ainda, o princípio da identidade do objeto do processo – o objeto do processo deve manter-se idêntico desde a acusação (em sentido material, incluindo o requerimento de abertura da instrução do assistente e o despacho de pronúncia) até à sentença definitiva; relaciona-se também com o princípio da unidade ou indivisibilidade do objeto do processo – o objeto do processo deverá ser conhecido na sua totalidade, unitária e indivisivelmente – cfr. Paulo Sousa Mendes, Lições de Direito Processual Penal, Almedina, pag. 144.
Não podemos, contudo, alijar do nosso pensamento que o processo penal em geral, e a audiência de julgamento em especial, assume feição marcadamente dinâmica, e que a atividade do tribunal também é norteada pelo princípio da investigação, sempre em busca da verdade material, tal como claramente resulta do disposto no artigo 340.º do Código de Processo Penal:
CAPÍTULO III Da produção da prova Artigo 340.º Princípios gerais 1 - O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa. 2 - Se o tribunal considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação, dá disso conhecimento, com a antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá-lo constar da acta. (…).
E do decurso da dinâmica própria da produção de prova, ou da inserção nesta do dever investigatório do tribunal, podem, eventualmente, resultar dessincronizações factuais em relação ao que consta da acusação, que a lei processual penal, não obstante afirmar vigorosamente a vigência dos princípios acima enunciados, não enjeita de imediato e de forma absoluta, autorizando, pelo contrário, diferente modulação do objeto do processo, desde que respeitados determinados procedimentos, de acordo com a dimensão da aludida alteração.
Os mecanismos em causa são os seguintes:
Artigo 358.º Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia 1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa. 2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa. 3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.
*
Artigo 359.º Alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia 1 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância. 2 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo. 3 - Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal. 4 - Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.
A lei processual penal diz-nos, ainda, o que se deve entender por alteração substancial de factos:
Artigo 1.º Definições legais Para efeitos do disposto no presente Código considera-se: (…) f) «Alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis; (…).
Não oferecendo especiais dificuldades a alteração de factos que implique a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, pode dizer-se que “A imputação de um crime diverso significa, isso sim, que os novos factos conhecidos pelo tribunal vão além do objeto do processo fixado pela acusação ou pela pronúncia, o que envolve a questão de saber o que é afinal, o objeto do processo. Esta questão tem tido várias respostas na doutrina portuguesa. Para Eduardo Correia, o objeto do processo é uma concreta e hipotética violação jurídico-criminal acusada; para Cavaleiro de Ferreira, o objeto do processo é o facto da sua existência histórica, que importa averiguar no decurso do processo; para Castanheira neves, o objeto do processo é o caso jurídico concreto trazido pela acusação, para Figueiredo Dias, o objeto do processo é um recorte, umpedaço de vida, um conjunto de factos em conexão natural. Para Germano Marques da Silva, o crime será diverso quando implique alteração do juízo base de ilicitude.” – cfr. Maria João Antunes, ob. cit., pag. 219.
Assim sendo, alteração não substancial de factos será toda a modificação ou alteração da matéria de facto constante da acusação ou da pronúncia, com relevo para a decisão da causa, que se contenha dentro dos limites do objeto do processo ou que apenas se traduza numa diferente qualificação jurídica do acervo factual apurado no âmbito das balizas assim definidas.
Não há qualquer dúvida de que a modificação fáctica que a decisão recorrida apresenta relativamente à acusação/pronúncia não se reconduz ao conceito de substancial, tal como o descrevemos, e com isso também se conformam os recorrentes: o segmento de vida dos intervenientes é exatamente o mesmo, a juízo de ilicitude em causa é também o mesmo, não se tratando, assim, de crime diverso, sendo certo que nenhuma das aludidas vicissitudes sofridas pelo objeto do processo implica um agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Tratar-se-á, então, de alteração não substancial? Antes disso, será mesmo uma alteração, em sentido técnico-jurídico e, portanto, geradora de efeitos processuais?
“Estaremos sempre perante uma alteração de factos quando se subtraiam ou aduzam aos factos conhecidos – independentemente do momento processual em que tal modificações e operem – algum ou alguns factos, ou outros factos, quer estes se relacionem com o tempo do cometimento, com o lugar, com o evento, com o nexo de causalidade, com o agente, com elementos subjetivos da imputação, etc.” – cfr. Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua relevância no processo penal português, Almedina, 1992, pag. 99.
“O problema não pode, contudo, ser reduzido a uma operação de aditamento ou eliminação de factos, pois a correspondência entre o acusado e o decidido não tem de ser aritmética e formal, mas sim substancial. Isto é, relevante para tutelar os valores essenciais do sistema. O que importa, por isso, é saber se a modificação que ocorre é relevante, no plano do seu objeto e dos seus efeitos: quer por dizer respeito aos factos probandos que constituem a matéria da proibição (do facto típico imputado ao arguido) quer por a modificação não poder ser livremente conhecida sem por em causa valores essenciais do sistema penal, designadamente a plenitude da defesa do arguido.
(…)
Assim, cabe perguntar: no âmbito do objeto do processo como é que se podem identificar as situações que motivam a aplicabilidade do regime da alteração substancial e não substancial de factos?
O denominador comum a estes dois conceitos resulta dos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal e corresponde a variações factuais ocorridas no julgamento que exigem no mínimo o respeito pelo princípio do contraditório (direito à informação, possibilidade de pronúncia, direito de impugnação) pois essa é a parte comum aos dois regimes legais citados. A variação que motiva o contraditório pode ser identificada à luz deste princípio: permitir que os sujeitos processuais conheçam e se pronunciem sobre aspetos relevantes do caso, pois o que se pretende vir a conhecer na decisão é diverso do que se tinha avançado na acusação.
Neste sentido, existirá um «alteração de factos» quando a variação do conteúdo factual do processo exigir contraditório quanto aos novos factos, o que pode acontecer em três situações: (i) são acrescentados factos que não estavam na acusação e, por isso, a defesa não se poderia ter pronunciado sobre eles (omissão de contraditório); (ii) são modificados factos que vinham da acusação e, por isso, a defesa pronunciou-se sobre uma versão diferente de tais factos (inutilização do contraditório), sendo necessário que conheça e se possa pronunciar sobre a nova versão dos factos; (iii) são eliminados factos que vinham da acusação que, por terem sido conhecidos pela defesa, geraram ou poderiam gerar uma pronúncia sobre essa realidade e, por isso, uma legítima expectativa sobre o uso dos mesmos na decisão (expectativa do contraditório). Ou seja, trata-se em todas as situações de «factos diversos» daqueles que eram conhecidos até aí, para usar a expressiva linguagem do artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal.
A correção de erros ou simples lapsos da acusação ou da pronúncia pode estar em princípio fora do âmbito da alteração de factos se – e apenas se – forem, cumulativamente, inócuos no plano da imputação a realizar, neutros quanto ao facto inicial referido e não tiverem relevância para a defesa. Contudo, sempre que o arguido se tenha pronunciado sobre factos que, por estarem errados, são corrigidos em decisão judicial posterior será necessário garantir o contraditório em relação à nova versão dos factos, caso a correção ponha em causa a defesa anteriormente exercida. Diversamente, se a defesa percebeu o lapso e o teve em conta na sua intervenção processual torna-se desnecessário o contraditório. O facto de o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição determinar que o processo penal assegura todas as garantias de defesa constitui um apoio hermenêutico decisivo para resolver os casos duvidosos: sempre que existam dúvidas sobre se a correção, especificação ou concretização realizada é ou não uma «alteração de factos», o respeito pelo artigo 32.º, n.º 1, da Constituição exige que se garanta o contraditório quanto à mesma.” – cfr. Teresa Pizarro Beleza/Frederico de Lacerda da Costa Pinto, Alteração de Factos e Vinculação Temática em Processo Penal, in Prof. Doutor Augusto Silva Dias, In Memoriam, AAFDL, Vol. II, pag. 583 e segs., que na nota de rodapé n.º 26, pag. 584, dão conta da sua discordância relativamente a “ (…) alguma (discutível) permissividade (…)” da nossa Jurisprudência no que concerne a estes tipos de correções, entre as quais referem “(…) a alteração da data, hora ou local do facto (…), arrolando em favor da sua posição o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 674/99, de 15 de Dezembro, e Ivo Miguel Barroso, in Estudos Sobre o Objeto do Processo, Lisboa, Vislis, 2003, pag. 19-28, e Objeto do Processo Penal, Lisboa, AAFDL, 2013, pag. 42 e segs.
Ora, compaginando o que consta da acusação/pronúncia com o que consta da decisão, verifiquemos, para o que aqui interessa, em que esta discrepa daquela:
Acusação/Pronúncia:
C. O arguido AA agiu com o propósito de tirar a vida do ofendido, dirigindo um veículo automóvel em sua direção ciente que a atuação levada a cabo era idónea à produção do resultado pretendido. D. O arguido BB, apercebendo-se do estado grave em que ficou o arguido, agrediu-o violentamente, ciente, que em consequência da sua conduta podia causar a morte do ofendido, resultado que quis e se conformou. E. Os arguidos só não concretizaram os seus intentos por circunstâncias alheias à sua vontade, nomeadamente porque se formou um aglomerado de pessoas e por terem sido auxiliado pelos meios de socorro que evitaram o resultado pretendido pelos arguidos. F. Que os arguidos agiram em conjugação de esforços e vontades.
Decisão:
19. O arguido AA agiu com o propósito de molestar o corpo e a saúde do ofendido, utilizando para o efeito o veículo que conduzia, que sabia ser um meio particularmente perigoso, sabendo que da sua conduta necessariamente resultariam lesões, do tipo das acima referidas, resultado que representou e quis. 20. O arguido BB, apercebendo-se do estado grave em que ficou o ofendido, agrediu-o com estalos, com o propósito de ofender a sua integridade física e agravar as lesões já sofridas.
A alteração é, portanto, para factualidade configuradora de resultado diferente: de tentativa de homicídio para ofensa à integridade física. Ou seja, o tribunal não ficou convencido que os arguidos pretendiam matar o ofendido, mas ficou convencido que o pretendiam magoar, passo prévio indispensável para matar e, por natureza, compreendido na conduta inicialmente imputada.
Quanto ao automóvel e à sua perigosidade, deve recordar-se que já na acusação/pronúncia se dizia dirigindo um veículo automóvel em sua direção, pelo que, em termos factuais, nenhuma diferença ocorre. Quanto ao excerto que sabia ser um meio particularmente perigoso, que o recorrente considera alteração factual, há que recordar o ensinamento de Faria Costa:
“(…) o perigo em direito penal é constituído por dois elementos: a probabilidade de um acontecer e o caráter danoso do mesmo. Estão, deste jeito, definidos os dois pilares essenciais para uma exata compreensão do perigo. E é precisamente partindo destes dois elementos que podemos surpreender a exata noção de perigo que se apresenta matricialmente normativa e, porque normativa, outrossim relacional. Efetivamente, o perigo surpreende-se, com rigor, na relacionação que se estabelece entre o caráter danoso de um sucesso e a probabilidade desse acontecer.” – cfr. Faria Costa, O Perigo em Direito Penal, Coimbra Editora, pag. 584. De modo ainda mais claro, veja-se o ensinamento deste autor a este respeito no Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pag. 875, § 22, Coimbra Editora. Ou seja, o perigo em direito penal é um juízo normativo e não um juízo de facto, pelo que o perigo e o seu conhecimento não carecem de constar na factualidade, apenas ali devendo figurar os factos (e o conhecimento e o querer destes por parte do agente) para, em apreciação normativa se concluir ou não pelo preenchimento da previsão legal: concretizando, se for dado como provado que uma pessoa voluntariamente incendiou uma casa, sabendo que estavam pessoas lá dentro a dormir, certamente que incorre na prática do crime p.p. pelo artigo 272.º, n.º1, alínea a), do Código Penal, sem necessidade que nos factos dados como provados conste que sabia que deste modo criava um perigo para a vida ou para a integridade física pois a verificação do perigo é de natureza normativa, a partir dos factos, e não factual (pense-se o que se sucederia se fosse dado como não provado o excerto atrás escrito em itálico: certamente não passaria a ser um crime com criação negligente de perigo, pois isso só ocorreria se o agente não soubesse, mas sendo-lhe exigível que o soubesse, que estavam lá as pessoas a dormir); no caso que ora se analisa ainda surge um elemento de natureza normativa mais denso, consubstanciado no vocábulo particularmente, sendo indesmentível que a sua demonstração factual subjetiva não pode consistir na respetiva reprodução na materialidade assente, sob pena de esta conter em si já a decisão final de direito. O mesmo se passa no caso dos autos: segundo a acusação/pronúncia, o arguido utilizou um carro para praticar o facto e sabia que o fazia e queria fazê-lo, pelo que a noção da particular perigosidade do meio já é um juízo normativo, que não carece de constar dos factos dados como provados – apenas num esforço de clarificação do nosso pensamento, veja-se por exemplo a parte final do artigo 132.º, n.º 2, alínea h), do Código Penal: utilizar meio (…) que se traduza na prática de um perigo de crime comum; certamente que não há necessidade, para se condenar alguém com base nesta norma que fique dado como provado que o arguido bem sabia que o que fazia se traduzia na prática de um perigo de crime comum, pelo que se o homicídio for praticado através de um incêndio, por exemplo, não é exigível que o agente tivesse conhecimento de tal classificação legal do crime em causa; aliás, serão bem poucos, ou até nenhuns, os que sabem o que isto quer dizer, e nem por isso a norma deixa de se aplicar. Assim sendo, o segmento aditado na decisão que sabia ser um meio particularmente perigoso consubstancia um juízo normativo, impróprio, portanto, para esta parte da decisão,pelo que se deve considerar como não escrito, nada relevando para a questão da alteração.
Confirmando estas afirmações, e para cabal explanação delas, veja-se a Jurisprudência citada na decisão recorrida: Como se escreve no Acórdão da Relação do Porto, de 13.06.2018: (…) O veículo automóvel consubstancia meio especialmente perigoso para atingir outrem na sua integridade física? Parecemos evidente que sim, não só pela sua aptidão e capacidade lesiva e efeitos do seu embate, como pela sua abrangência (largura e certeza no atingir o visado) e pela velocidade e surpresa que permite ao lesante e menor defensabilidade perante o seu uso por parte do visado, para além de poder ser usado com uma aparência de legalidade ou encobrir uma acção dolosa com aparência de negligência (mero acidente de viação), e depois não é o meio próprio ou normal para atingir outrem na sua integridade física, nem é esse o seu uso, face à sua natureza de meio de locomoção e não meio de agressão (no mesmo sentido, os Acórdãos da Relação de Guimarães de 06.02.2017, da Relação de Évora, de 08.05.2018, e da Relação de Coimbra de 02.03.2022, todos acessíveis em www.dgsi.pt).
O tribunal interroga-se se sobre se o veículo automóvel consubstancia meio especialmente perigoso para atingir outrem na sua integridade física – ora, se o tribunal se interroga sobre isto é porque está em causa um juízo normativo, apenas resolúvel na fase de julgamento de direito com base nos factos e não na fase do julgamento de facto.
Ainda nesta senda, o elucidativo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça também citado na decisão recorrida: Ora, como já considerava o STJ em acórdão de 07.11.1990 (in www.dgsi.pt), a propósito do crime de ofensas corporais com dolo de perigo previsto no então artigo 144º, n.º 2, do CP, “(…) III - Na intenção de matar constante do despacho de pronuncia está contida a intenção de ofender corporalmente. IV – O uso de um veículo automóvel como instrumento para ofender outrem no corpo não pode deixar de considerar-se “particularmente perigoso” para os efeitos do artigo 144º n.º 2 do Código Penal, sendo essa perigosidade notoriamente conhecida por todas as pessoas. (…)”
O trecho sendo essa perigosidade notoriamente conhecida por todas as pessoas é, também aqui, a confirmação de que o perigo é um juízo normativo e não um juízo de facto. Esta afirmação, efetuada em sede de apreciação de direito, naturalmente, é claramente demonstrativa que o seu teor não provém dos factos, sento antes burilada e apreciada a partir daqueles. Norma era o nome que os geniais pedreiros e carpinteiros romanos davam ao esquadro, que garantia o carater absolutamente reto dos ângulos, bem como a incólume perpendicularidade das construções, assegurando assim a sua admirável estabilidade (muitos, em pé até aos dias de hoje, como é consabido), passando a usar-se essa expressão como regra, padrão, modelo, sendo, portanto, normallis, o que é ou está de acordo com a regra, o que segue o padrão. Assim, em face dos factos, o tribunal aprecia a normalidade da perigosidade constante do tipo, e em face dela jugará o agente e a sua ação, quer na componente objetiva, quer na componente subjetiva.
Resta, então, a alteração do objetivo da atuação de morte para ofensa à integridade física.
Certo é que a imputação subjetiva se mantém a título doloso.
Todavia, alterou-se o objetivo da ação: de morte para ofensa à integridade física.
“O instituo da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia visa assegurar as garantias de defesa do arguido. O que a lei pretende é que aquele não venha ser julgado e condenado por factos diferentes daqueles por que foi acusado ou pronunciado, por factos que lhe não foram dados a conhecer oportunamente, ou seja, venha a ser censurado jurídico-criminalmente com violação do princípio do acusatório, sem que tenha tido a possibilidade de adequadamente e defender.
Ao alargar o âmbito de aplicação do instituto à alteração da qualificação jurídica dos factos o legislador visou, também, assegurar as garantias de defesa do arguido, de acordo, aliás, com a Constituição da Republica, que impõe que sejam asseguras todas as garantias de defesa do arguido – n.º 1 do artigo 32.º -, consabido que defesa do arguido não se basta com o conhecimento dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, sendo necessário àquela o conhecimento das disposições legais com base nas quais o arguido irá ser julgado (as disposições legais é que definem e estabelecem a natureza jurídica do facto, o tipo de culpa exigido para o seu preenchimento e demais elementos constitutivos, as sanções aplicáveis e outros elementos essenciais para a correta e adequada defesa do arguido, devendo-se ter em vista que a própria tramitação processual depende da qualificação jurídica dos factos sendo o que acontece com a forma do processo, a competência do tribunal e o modo de exercício e a extensão do direito ao recurso).
Assim e atenta a ratio do preceito, vem-se entendendo que só nos casos e situações em que as garantias de defesa do arguido – artigo 32.º, n.º1, da Constituição da República – o exijam (possam estar em causa), está o tribunal obrigado a comunicar ao arguido a alteração da qualificação jurídica e a conceder-lhe prazo para a preparação da defesa. Por isso, se considera que que a alteração resultante da imputação de um crime simples ou «menos agravado», quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime, mas em forma qualificada ou mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravador inicialmente imputado, não deve ser comunicada, visto que o arguido ao defender-se do crime qualificado ou mais grave se defendeu em relação a todos os elementos do de facto e normativos pelos quais vai ser julgado – a jurisprudência do Supremo Tribunal tem-se orientado, de forma pacífica, neste preciso sentido, como se vê, entre outros, dos acórdãos de 02.07.17, 03.11.12, 04.03.10, 06.04.06, 06.05.10, 06.06.14 e 07.10.31, proferidos nos processos n.ºs 3158/02, 1216/03, 4024/03, 658/06, 1290/06, 1415/06 e 3271/07.
O mesmo sucede quando a alteração resulta na imputação de um crime menos grave do que o da acusação ou da pronúncia em consequência da redução da matéria de facto na sentença quando esta redução não constitui, obviamente, uma alteração essencial do sentido de ilicitude típica do comportamento do arguido, ou seja, quando não consubstanciar uma alteração substancial dos factos da acusação – neste sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 91.04.03, publicado na CJ, XVI, II, 17 e acórdão do Tribunal Constitucional de 94.04.17, proferido no processo n.º 254/95. Tal acontece, ainda, face à alteração de coautoria para autoria (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.11.09, publicado na CJ «Supremo Tribunal de Justiça», XIII, III, 205), bem como perante a alteração resultante da requalificação da culpa do agente de dolo direto para dolo eventual (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 72/05)” – cfr. Conselheiro Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal Comentado, obra coletiva, Almedina, 2014, pg. 1127.
“Não há necessidade de comunicação da alteração não substancial dos factos e da alteração da qualificação jurídica dos factos nos seguintes casos:
(…)
2. a condenação por um crime menos grave do que o da acusação por força da redução da matéria de facto na sentença, se esta redução não consubstanciar uma «alteração essencial do sentido de ilicitude típica do comportamento do arguido», isto é, se ela não constituir uma alteração substancial dos factos da acusação2 – cfr. Paulo Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE Editora, 2.º Edição, atualizada, pag. 908.
Em sentido diferente, veja-se, por exemplo, Pedro Albergaria, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, 2.º Edição, Tomo IV, pag. 645.
Ora, no caso presente não ocorre qualquer alteração dos factos respeitantes à ação, cujo fim, segundo a acusação/pronúncia era a morte do agente.
A morte (apenas tentada, embora) do agente seria sempre, segundo a acusação/pronúncia, causada pelas ofensas físicas infligidas no corpo da vítima pelos arguidos – não podemos deixar de observar, em face dos factos alegados e das lesões infligidas, o insólito desta imputação, quer na acusação, quer, de modo mais grave, após o crivo da instrução, em especial em relação ao arguido que seguia a pé no encalço do ofendido, até porque não é desconhecida a ideia empedernidamente gravada no cérebro de muitos dos nossos compatriotas de que o ladrão merece sempre um boa malha, mas, felizmente, ainda não grassa, nem de modo embrionário, a ideia da morte como pena adequada para os adeptos da subtração.
Assim sendo, não há dúvida de que em relação à açãoimputada não surgiu qualquer novidade factual de que os arguidos tivessem e se defender.
E sendo certo que na ação e seu objetivo imputados aos arguidos se inclui, necessariamente, o querer ofender o corpo da vítima, pois não é possível querer matar pelo modo descrito na acusação/pronúncia sem esse passo prévio, reduzir o referido intuito apenas para o aludido passo prévio não pode traduzir-se numa incomportável ou intolerável alteração que surpreende e dificulta a defesa dos arguidos.
Mais prosaicamente, repare-se bem: em síntese, o que se alega (de modo manifestamente imperfeito quanto à coautoria, diga-se, cujo plano comum só surge enunciado, e de modo quase perfunctório, no artigo 23.º) é que ambos (AA e BB) quiseram matar o ofendido (um com dolo direto, outro com dolo eventual), através das ofensas à integridade física que lhe foram infligindo (um com o automóvel e com os pés, o outro com as mãos), sendo certo que ambos negaram quer o propósito das ofensas (o AA aceitando parte das ofensas mas imputando a sua causa ao comportamento da vítima, o BB negando as próprias ofensas), quer o dolo de homicídio; em face disto, o tribunal entendeu que a ação imputada teve lugar, mas apenas com uma parte dodesígnio que àquela foi atribuído, o que em nada pode perturbar a defesa dos arguidos: caso o tribunal tivesse efetuado a comunicação, a reação dos arguidos seria precisamente a mesma: o BB diria, na mesma, que não bateu, e o AA diria que foi a vítima que se pôs à frente do carro e que depois do “acidente” não lhe bateu. Não se vislumbra, nem os recorrentes o indicam, nem ao de leve sequer, que outra defesa ou que outras provas poderiam ter sido apresentadas para esta versão, de modo a salvaguardar, o contraditório, o acusatório, as garantias de defesa e todo o resto que se costuma invocar nesta sede.
O conteúdo literal das normas processuais penais (e de todas as normas) deve ser respeitado, é certo, quando lhe corresponde um sentido útil, explicável e apreensível – aliás, o que a lei estatui é que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, afirmando, contudo, que aquela deve ter um mínimo de correspondência verbalcom a letra da lei (art.º 9.º do Código Civil). A aplicação automática e puramente literal da lei pode revelar-se um contrassenso, como o seria neste caso, e noutros semelhantes, em que a declaração da nulidade da decisão, a devolução dos autos à primeira instância, a reabertura da audiência e a comunicação, e a elaboração de novo acórdão, conduziriam, estamos certos, ao mesmíssimo resultado final, com todos os inconvenientes daí advenientes, designadamente em termos de celeridade processual e trabalho desnecessário para um grande grupo de pessoas, sem qualquer vantagem ainda que muito remota para a defesa dos ora recorrentes.
Em sentido semelhante ao aqui propugnado, veja-se o recente Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processos n.º 829/23.1PHMTS.P1 de 05/02/2025, disponível em www.dgsi.pt:
I - O que está na base da equiparação do regime da alteração da qualificação jurídica ao da alteração não substancial dos factos é a ideia de que o arguido tem o direito de se defender dos factos que lhe são imputados, bem como da qualificação jurídica dos mesmos, exigindo esta última uma defesa técnica. II - Quando o crime acusado inclui já os elementos do crime da condenação, não passando este de um minus em relação àquele, a comunicação da alteração da qualificação jurídica não é imposta, dado que a finalidade para a qual a norma do artigo 358º, n.º 3 do CPP foi criada –garantia de defesa técnica – está naturalmente assegurada pela relação jurídica de concurso aparente entre o crime acusado e o ‘provado’, pois a defesa técnica do primeiro implica a defesa do segundo. III - Vindo os arguidos acusados do cometimento em coautoria de um crime de roubo, mas não se provando os factos da acusação relativos à violência, passando os seus comportamentos a integrar apenas um crime de furto, a alteração de qualificação jurídica daí resultante, uma vez que não afeta o seu direito de defesa técnica, pois que o furto está compreendido dentro do crime de roubo que estruturalmente mais não é do que um furto qualificado pela violência, pelas ameaças ou pela colocação da vítima na impossibilidade de resistir, verificando-se até uma relação de concurso aparente entre o furto e o roubo, consumindo este aquele, não está sujeita ao dever de comunicação previsto no artigo 358º, n.º 1 e 3 do Código de Processo Penal.
Vejamos agora a questão em relação ao pedido de indemnização civil.
A este respeito, diz-se nas conclusões:
108ª Como o demandante confessa este apresentou o seu pedido nos tribunais civis, nos termos do disposto no artº 72º nº1 al. a) do CPP, ou seja, porque o processo não conduziu a uma acusação no prazo de 8 meses após o conhecimento da notícia do crime. 109ª Nos termos do artº 72º nº1 al. a) do CPP é o eventual atraso do processo criminal que determina que a lei permita ao ofendido deduzir o pedido perante os tribunais civis, o que este fez. 110ª Mas tendo optado por essa via, não podia, deduzir o pedido perante o tribunal criminal, fazendo uso da excepção e da regra como melhor lhe apraz. 111ª Repare-se que a al. f) do nº1 do artº 72º do CPP permite ao ofendido deduzir o pedido em separado contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente civil, ou somente contra estas haja sido provocada, nessa acção, a intervenção principal do arguido. 112ª Quer isto dizer que o ofendido podia ter feito o pedido contra os demandados no tribunal civil e eram livres de optar por uma das jurisdições, mas apenas podem optar por uma e não, como o tentam fazer nestes autos, beneficiar da excepção ou da regra, conforme melhor lhe apraz, uma vez que à jurisdição criminal renunciaram (neste sentido, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 1981, pag. 541). 113ª Seria totalmente incongruente interpretar qualquer norma do direito processual português, designadamente o artº 72º do Código de Processo Penal, que é dominado pelo princípio da economia processual e da celeridade, no sentido de que o pedido cível pela prática de crime – no caso de homicídio na forma tentada e de injúria – pudesse ser intentado apenas contra uma parte na jurisdição civil e contra as outras partes co-responsáveis na jurisdição penal. 114ª Tendo os ofendidos renunciado à jurisdição criminal, este Tribunal é incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido (artº 96º al. a) do CPC), devendo, por isso, os demandados ser absolvidos. 115ª Quanto ao crime de injúria foi considerado que o procedimento criminal se achava prescrito, ainda antes da notificação da acusação. 116ª Assim sendo, tendo sido liminarmente admitido o pedido cível, no despacho do artº 311º do CPP quando não o devia ter sido, não se devia ter conhecido do pedido de indemnização civil, pelo que ao conhecer do pedido de indemnização civil decorrente das injúrias, o acórdão recorrido conheceu de matéria de que não devia conhecer, sendo o acórdão nulo, nos termos do artº 379º nº1 al. c) do CPP.
A questão está cristalinamente resolvida com acerto na decisão recorrida, pelo que aqui a reproduzimos, sem necessidade de outros considerando, por com ela estarmos inteiramente de acordo:
II) Quanto ao pedido formulado pelo assistente, CC: Pede este demandante a condenação solidária dos arguidos AA e BB no pagamento de € 7.500,00, para ressarcimento dos danos decorrentes dos “atos de ofensa à integridade física” não incluídos na indemnização peticionada e paga pela Seguradora “em resultado do atropelamento”, e de € 700,00, para ressarcimento do abalo resultante do crime de injúria. Em sede de contestação, os demandados, além do mais, invocam a incompetência do tribunal para apreciar estes pedidos uma vez que o demandante apresentara já um pedido perante os tribunais civis, nos termos do artigo 72º, n.º 1, a), do CPP. Assim, tendo optado pela jurisdição civil, não podia, agora, deduzir pedido perante o tribunal criminal, “fazendo uso da exceção e da regra como melhor lhe apraz”. Ora, conforme resulta dos factos provados, a lide civil que foi instaurada pelo ora demandante teve objeto diferente daquele ora limitado aos factos alheios (insultos) e posteriores (murros e pontapés) ao atropelamento ali configurado como causa de pedir. Em conformidade, somos a concluir que, para o mesmo pedido, não houve o (prévio) acionamento dos tribunais civis, pelo que, por força das normas já citadas, somos competentes para conhecer e decidir o pedido formulado, com o que improcede a invocada incompetência. (…) Ora, como nos parece resultar da alegação petitória, o demandante formula claramente o seu pedido, contextualizando a demanda que intentou, em relação a diferentes danos (para os quais os aqui demandados nem sequer tinham legitimidade passiva, como supra já foi explicado), assim justificando (e antecipadamente se defendendo d’) a não duplicação de causas, por diferença de pedidos e de causas de pedir. Note-se que, ininteligibilidade que os demandados invocam, ambos se defendem da pretensão indemnizatória do demandante que, assim, demonstram ter conhecido e compreendido. (…) Ora, quanto aos insultos dirigidos pelos arguidos ao assistente: pese embora a declarada prescrição do respetivo procedimento criminal, esta não prejudica o conhecimento do correspondente pedido de indemnização civil, uma vez que, como se referiu, a conduta dos demandados – ao apelidarem o demandante de “filho da puta” com intenção de ofender a sua honra (cfr. facto nº 34) - é típica, ilícita e culposa. Importa, pois, apreciar a questão de saber se os danos morais em decorrência sofridos pelo assistente merecem a tutela do direito e, em caso afirmativo, fixar o quantum da indemnização.
Resulta claramente da lei que a vicissitude processual da declaração da prescrição do procedimento criminal não tem os efeitos pretendidos pelos recorrentes. Na verdade, pode até ser ao contrário do que os recorrentes propugnam, tudo dependendo da fase processual em que aquela extinção foi declarada. Vejamos o Código de Processo Penal:
Artigo 72.º Pedido em separado 1 - O pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, quando: (…) b) O processo penal tiver sido arquivado ou suspenso provisoriamente, ou o procedimento se tiver extinguido antes do julgamento;
Assim, a declaração de prescrição no julgamento impede o recurso ao processo civil, sendo esse, precisamente, o caso dos autos – cfr. a este respeito, Paulo Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, UCE, 2.ª edição, atualizada, pag. 222. O processo terá, naturalmente, de prosseguir para apreciação dessa pretensão. E se essa declaração ocorrer antes do julgamento, o direito de opção do lesado mantém-se válido, como também claramente resulta da norma transcrita.
Não ocorre, portanto, excesso de pronúncia.
Nestes termos, soçobra também o recurso nesta parte.
C A interpretação do artigo 358.º do Código de Processo Penal, constante da decisão recorrida, é inconstitucional?
Por tudo o que dissemos no ponto anterior, é para nós evidente que não ocorre qualquer inconstitucionalidade na interpretação do artigo 358.º do Código de Processo Penal exarado na decisão recorrida ou no que por nós foi acolhido, pelo que, me homenagem ao princípio da economia processual, nada mais adiantaremos.
D/E/F/G/H
A decisão recorrida padece de erro notório na apreciação da prova, de contradição insanável da fundamentação ou de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, ou viola do princípio da investigação?
Por estarem intimamente relacionadas, analisaremos estas questões de modo conjunto.
A matéria de facto dada como provada numa decisão jurisdicional pode ser escrutinada em recurso por dois modos: o primeiro, que é também de verificação oficiosa, está previsto no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e consubstancia uma imperfeição do texto da própria decisão e/ou do raciocínio nele expendido, por si só considerado ou conjugado com o objeto do processo e as regras da experiência, desdobrando-se nos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, e erro notório na apreciação da prova; o segundo, previsto no artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, através do qual, e mediante a reanálise de segmentos probatórios testemunhais ou outros, devidamente circunscritos e identificados, se discute a bondade do juízo efetuado na decisão, igualmente em relação a pontos factuais específicos devidamente individualizados, quer por imparidade entre o selecionado conjunto probatório existente e o que foi julgado como assente, quer por incorreta aplicação do principio da livre apreciação da prova.
Vejamos o que consta do Código de Processo Penal a respeito do primeiro modo:
Artigo 410.º Fundamentos do recurso 1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida. 2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. 3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada
Para melhor compreender o disposto neste artigo 410.º convém analisar a sua história.
O artigo 410.º do Código de Processo Penal corresponde quase na íntegra à versão original desta norma – a única exceção é o acrescento da alínea b) “(…) ou entre a fundamentação e a decisão”.
E na versão original do Código de Processo Penal, os tribunais superiores conheciam, em regra, de direito – o Supremo Tribunal de Justiça, por natureza, dir-se-ia, e os tribunais da relação por causa do disposto nos artigos 364.º , n.ºs 1 e 2, e 389.º, n.º 2, que fazia depender o recurso da matéria de facto da declaração no início da audiência de julgamento de que se não prescindia da documentação em ata das declarações ali prestadas oralmente, o que só era possível perante tribunal singular e/ou em processo sumário, que, como todos sabemos, raramente ocorria, por corresponder a um julgamento com depoimentos escritos, naturalmente demorado. Ainda na versão original do Código, os recursos apresentados das decisões do tribunal coletivo e de júri eram da competência do Supremo Tribunal de Justiça – cfr. art.º 432.º, alínea c), dessa versão original.
Por isso, o artigo 410.º do Código de Processo Penal constituía, por assim dizer, uma válvula de segurança do sistema, uma salvaguarda extrema, para situações gritantes e absolutamente evidentes, através da qual a lei processual garantia ao tribunal de recurso, que apenas tinha poderes de cognição em relação à matéria de direito, algumas competências excecionais para entrar no campo da matéria de facto, naqueles casos, como se disse, gritantes e incontornavelmente óbvios. Foi por isso que se passou a chamar este mecanismo “revista alargada”, pois, o Supremo Tribunal de Justiça, que, tradicionalmente, apenas conhecia de revista, passou a ter alguns poderes de cognição em sede de matéria de facto; claro que esses poderes também estavam ao alcance da relação quando conhecia apenas de direito, que como se viu, também era a regra, mas neste caso não se tratava de revista alargada porque a recurso para a relação nunca foi designado por recurso de revista – cfr. sobre o tema, o interessantíssimo estudo do Prof. Paulo Merêa Bosquejo Histórico do Recurso de Revista, in BMJ, n.º 7, 1948, pag. 43 e segs,. e Damião da Cunha, in O Caso Julgado Parcial, UCE, Porto, 2002, pag. 512 e segs.
E, quer na altura, quer agora, precisamente por se tratar de tão grave e evidente imperfeição da decisão, a consequência consistia e consiste, regra quase geral, no reenvio, que obriga a novo julgamento, total ou parcial, com outros juízes (isto mais tarde) – cfr. art.º 426.º, 39.º (original) e 40.º (atual) do Código de Processo Penal, sendo certo que a redação original do primeiro sofreu apenas alterações de pormenor (é certo que o art.º 430.º do Código de Processo Penal prevê a possibilidade de o tribunal da relação, perante a existência de um dos vícios elencados no n.º 2 do art.º 410.º, ordenar, a requerimento, a renovação da prova se tiver razões para crer que isso permitirá evitar o reenvio do processo, mas, como é consabido, esse não é o procedimento habitualmente seguido pelos tribunais superiores, não obstante autorizadas posições doutrinárias clamarem em sentido oposto – cfr. Helena Morão, in Pela renovação da renovação da prova, Prof. Augusto Silva Dias, In Memoriam, AAFDL, Vol. II, pag. 369 e segs.).
Todavia, os excecionais (como acima se explicou) fundamentos de recurso previstos no art.º 410.º, designadamente no seu n.º 2, do Código de Processo Penal tornaram-se atualmente, de modo absolutamente incompreensível, quase invariável e sistematicamente invocados, quando é certo e seguro que o cerne do recurso de facto se encontra previsto no art.º 412.º, n.º 3, do mesmo Código, que contém apertados e exigentes requisitos no que se refere à sua invocação, nem sempre respeitados e cumpridos pelos recorrentes – dir-se-ia até que o vício do erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, quase perdeu razão de ser, atendendo à atual dimensão da impugnação do julgamento de facto prevista no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do mencionado Código, ficando assim ainda mais restringida a aplicação do respetivo regime. É, aliás, algo estranha, processualmente, diga-se, a vincada insistência dos recorrentes na questão do erro notório, sempre de muito mais difícil demonstração, quando, atualmente, e ao contrário da versão inicial do Código de Processo Penal, é autorizada a impugnação do julgamento da matéria de facto mesmo perante tribunal de júri – cfr. artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º nº 48/2007, de 29/08.
A matéria de facto que padeça deste vícios está ” (…) ostensivamente divorciada da realidade das coisas, quer por ser insuficiente, quer por ser contraditória, quer por erroneamente apreciada.” – cfr. Conselheiro Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, pag. 1356/7. Ainda por isso, o seu conhecimento é oficioso.
E é preciso ter bem presente que a “(…) indagação, por parte do tribunal ad quem dos vícios a que se refere o art.º 410.º (…)” constituiu “ (…) uma tarefa puramente jurídica, de matéria de direito afinal, já que mais nenhuma prova é necessária ao tribunal respetivo para que possa concluir pela eventual existência ou não dos falados vícios. (…). Já a eventual correção dos vícios aqui elencados, implica sempre uma decisão sobre a matéria de facto a levar a cabo nos termos do art.º 426.º, n.ºs 1 e 2, quer pelo próprio tribunal de recurso com jurisdição em matéria de facto, ou, tal não sendo possível, pelo tribunal reenviado para o efeito.” - Cfr. Conselheiro Pereira Madeira, ob. cit., loc. cit.
No que concerne à configuração técnica teórica dos vícios previstos no n.º 2 do art.º 410.º do CPP, passamos a transcrever o pensamento do Conselheiro Pereira Madeira na obra acima citada, que é esclarecedor:
“Tem causado alguma dificuldade de perceção em alguns interlocutores judiciários a precisão e alcance da expressão <<insuficiência da matéria de facto para a decisão>>.
Deve notar-se antes de mais, que a fórmula não se refere ou especifica o tipo de decisão <<decisão condenatória>> ou decisão <<absolutória>>. A formulação legal é abrangente <<para a decisão>> e compreende toda e qualquer que seja a natureza da decisão. Assim para ser <<insuficiente para a decisão>> a matéria de facto apurada no seu conjunto há de ser incapaz de a suportar em abstrato, isto é, seja ela condenatória ou absolutória. Quando se afirma, como se vê fazer muitas vezes, que a matéria de facto provada é insuficiente para a condenação proferida pelo tribunal, não se está a proceder à invocação deste vício, antes, em suma, a afirmar que o tribunal errou na aplicação do direito aos factos provados, o que nada tem a ver com os vícios da matéria de facto. Na verdade, sob esta perspetiva, a matéria de facto seria sempre <<insuficiente>>: pois, em caso de absolvição ela seria insuficiente para a condenação … e em caso de condenação, sê-lo-ia para a absolvição…
A afirmação do vício ora em causa, importa, sempre, uma adequada perspetiva do objeto do processo, cujos confins são fixados pela acusação e ou pronúncia complementada pela pertinente defesa. A partir daí impõem-se o confronto de tal objeto processual com o que o tribunal de julgamento em concreto indagou, independentemente de o resultado dessa indagação ter tido ou não êxito, isto é, independentemente de os factos indagados terem sido dados como provados ou não provados. Importa, sim, que esses factos pertinentes ao objeto do processo tenham sido averiguados em julgamento do facto e obtido a necessária resposta, seja positiva seja negativa. Se se constatar que o tribunal averiguou toda a matéria de facto postulada pela acusação/defesa pertinente – afinal o objeto do processo – ainda que toda ela tenha porventura obtido resposta de <<não provado>>, então, o vício de insuficiência está afastado. Os factos pertinentes obtiveram resposta do tribunal, a matéria de facto é bastante para a decisão.
Já assim não será se o tribunal de julgamento deixou de dar resposta a um facto essencial postulado pelo referido objeto do processo, isto é, deixou por esgotar o thema probandum. É o caso, por exemplo, num julgamento por homicídio doloso, não haver qualquer referência nos factos provados e ou não provados, ao elemento subjetivo da ação do acusado pronunciado. Num caso destes, tenha sido condenatória ou absolutória a decisão, ela assenta em matéria de facto insuficiente, já que sem se saber qual a intenção ou atuação subjetiva do agente, a decisão condenatória peca por excesso, pois o arguido pode não ter agido com intenção de matar, e a decisão absolutória por defeito, pois o arguido pode ter agido com essa intenção. Nenhuma daquelas decisões (condenatória ou absolutória) é segura, daí o vício.” - cfr. ob. cit., loc. cit., pag. 1357/9.
Retenha-se, ainda, a não menos lúcida explicação de Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 2.ª Edição, atualizada, pag. 1055: “a insuficiência para a decisão a matéria de facto corresponde materialmente ao vício previsto nos artigos 712.º, n.º 4, e 729.º, n.º 3, do CPC. Contudo, o alargamento do objeto do processo obedece em processo penal a regras muito restritas (artigos 358.º e 359.º do CPP) e o controlo do vício da insuficiência não pode constituir um artifício para subverter estas regras.” – note-se que, atualmente, a referência deve considerar-se como sendo efetuada para os artigos 662.º e 682.º do Código de Processo Civil.
No mesmo sentido, ainda, Simas Santos/Leal Henriques, in Recursos Penais, Rei dos Livros, 9.ª Edição, pag. 75 e segs., com abrangente citação de concordante Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça “ (…) só existe insuficiência quando (…) há omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados todos os factos que, sendo relevante para decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão.”
A insuficiência pressupõe, portanto, por assim dizer, sempre, um alargamento da análise do objeto do processo.
“A contradição da fundamentação ou entre esta e a decisão só importa verificação do vício quando não seja suprível pelo tribunal ad quem. Isto é, quando seja insanável. Na verdade, tratando-se, por exemplo de um erro no assentamento da matéria de facto, ou mesmo da respetiva fundamentação de facto, um erro percetível pela simples leitura do texto da decisão, não poderá falar-se em vício de contradição, o qual só existirá se eliminado o erro pelo expediente previsto no art.º 380.º do CPP, correção a que o próprio tribunal de recurso pode e deve proceder (n.º 2 do mesmo artigo), a contradição persistir, então, sim, sendo insanável.
A contradição tanto pode emergir entre factos contraditoriamente provados entre si, como entre estes e os não provados (p.ex. “provado que matou”, “não provado que matou”) como finalmente entre a fundamentação (em sentido amplo, abrangendo a fundamentação de facto e também a de direito) e a decisão. É exemplo deste último tipo de contradição, a circunstância de a sentença se espraiar em considerações tendentes à irresponsabilidade penal do arguido e a decisão final concluir, sem mais explicações, por uma condenação penal.
O erro notório na apreciação da prova é o terceiro dos vícios da matéria de facto aqui em causa. Estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, de que qualquer homem médio se dá conta.
Porém, a ser assim, com um alcance tão restrito, o preceito acabaria por perder grande parte do seu interesse prático, acabando afinal por deixar encobertas, situações de erro clamoroso, ainda que porventura não acessíveis ao cidadão comum. Impor-se-á, assim, uma leitura algo mais abrangente que não acoberte situações de julgamento erróneo não inteiramente escancaradas à observação do homem comum, todavia, que numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada. Certo que o erro tem de ser <<notório>>. Mas basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada – ainda que para além das perceções do homem comum – e sopesado à luz de regras da experiência. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem.” – cfr. ob. cit., loc. cit., pag. 1357/9.
Além disso, devemos ainda acrescentar que a contradição tem que ser absolutamente evidente, e deve resultar, não só, por exemplo, de uma imprecisa formatação do texto, de um lapso de manuseamento informático, de um esquecimento acidental de uma palavra ou frase entre milhares, como tantas vezes sucede, mas, para além da distonia verbal ou literal, de uma óbvia imperfeição do raciocínio expendido na decisão, de um evidente desequilíbrio argumentativo, de modo a que nenhum mínimo esforço de interpretação permita resolver o problema. Só assim se assegurará o respeito pelas decisões soberanas e se evitarão as vicissitudes de índole meramente burocrática.
Quanto à desconsideração das regras da experiência, deve lembrar-se os recorrentes que a sua invocação acarreta o correlativo dever intelectual da sua indicação. Isto é, regras da experiência, constitui uma miríade de sabedoria comum que encerra em si uma infinita pletora de conhecimentos, sendo necessário indicar a qual deles nos referimos no discurso, para, da sua análise e ponderação, poder resultar, ou não, a conclusão pretendida. E não nos esqueçamos nunca, ao invocar de modo tão seguro, assertivo e conhecedor as ditas regras da experiência, a inolvidável lição de Óscar Wilde, no inesquecível Retrato de Dorian Gray: “A experiência é o nome que costumamos dar aos nossos erros”.
Os números 1 e 3 do art.º 410.º do CPP não oferecem dificuldade especial de interpretação, nem são, normalmente, invocados nos recursos.
*
Em relação às questões pertinentes à insuficiência, já nos pronunciámos suficientemente, diríamos, na parte em que recursamos a invocação simultânea com a omissão de pronúncia. Reafirmamos agora que nenhuma da factualidade invocada tinha relevância para a boa decisão da causa, enquanto facto essencial, nada impedindo de a configurar como materialidade instrumental, a abordar no julgamento, se entendido como necessário.
E é precisamente a este respeito que vem também invocada a desconsideração do princípio da investigação: 61ª Diz o acórdão recorrido que o arguido AA não disse que tivesse medo, tal como a sua esposa, mas se a prova sobre esse medo ou receio era importante para a descoberta da verdade material, o Tribunal tinha de inquirir a testemunha e o arguido quanto a essa matéria, sem o que viola o princípio da investigação.
A este respeito, cumpre rememorar lição exemplar:
Sob o império do principio designado da investigação, e oposto ao do dispositivo, “a adução e esclarecimento do material de facto não pertence exclusivamente às partes, mas em último termo ao juiz: é sobre ele que recai o ónus de investigar e esclarecer oficiosamente - independentemente das contribuições das partes – o facto submetido a julgamento. (…) Dado o dever de investigação judicial autónoma da verdade, logo se compreende que não impenda nunca sobre as partes, em processo penal, qualquer ónus de afirmar, contradizer e impugnar; como igualmente que se não atribua qualquer eficácia à não-apresentação de certos factos ou ao «acordo», expresso ou tácito, que se formaria sobre factos não contraditados; como, finalmente, que o tribunal não tenha de limitar a sua convicção sobre os meios de prova apresentados pelos interessados. Por isso se diz que em processo penal está em causa, não a verdade «formal», mas a verdade «material», que há de ser tomada em duplo sentido: no sentido de uma verdade subtraída à influência que, através do seu comportamento processual, a acusação e a defesa queiram exercer sobre ela; mas também no sentido de uma verdade que, não sendo «absoluta» ou «ontológica», há de ser antes de tudo uma verdade judicial,prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço mas processualmente válida.” Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, Vol. I, pag. 192 e segs.
Finalmente, e para ajudar os recorrentes a compreender a verdadeira missão dos tribunais e as naturais limitações da sua capacidade, reproduzimos o pregnante ensinamento do Insigne Mestre imediatamente antes citado:
” Por fim – mas não por último -, cumpre salientar como, surpreendentemente, o dogma (errado, por mal-entendido) da dita «verdade material» continua a fazer caminho em alguns expoentes da doutrina democrática dos processos penais europeus continentais; mesmo depois dos resultados lamentáveis – e, às vezes, trágicos – a que deu lugar na práxis judiciária de alguns países. Talvez seja já tempo de nos entendermos. Naturalmente que não será necessário perseguir a velhíssima pergunta metafísica sobre «o que é a Verdade» para podermos operar tranquila e racionalmente, no quadro das finalidades do processo penal democrático – e mesmo de um direito penal substantivo ancorado numa conceção basicamente geral-preventiva da pena -, na determinação do que seja a verdade que no processo penal se pretende alcançar. Naturalmente que essa verdade não é a narrativa construída pela acusação e a defesa, dita «verdade formal». Mas também não é integralmente a factualidade (a «facticidade») histórica do real acontecido, mesmo que na sua relevância para as exigências normativas do caso: é sim esta facticidade combinada com as – e por consequência condicionada e limitada pelas – exigências impreteríveis de garantia dos diretos das pessoas face ao Estado. O resultado desta combinação pode, assim, ser algo de substancialmente diferente, ou mesmo oposto ao real acontecido. (…) é irrisório (e ainda bem!) pretender que a reconstituição da «verdade material» constitui a finalidade essencial, última e inarredável, do julgamento penal. A verdade que se procura, mesmo através da atuação do princípio da investigação oficial, é, não decerto, como no processo penal anglo-americano, a verdade formalmente construída, mas a verdade processualmente válida, hoc sensu, a verdade judicial” – in Acordos Sobre a Sentença em Processo Penal, Coleção Virar de Página, Edição do CDOA do Porto, pag. 48/49.
Por outro lado, é também certo que a omissão de perguntas a um participante na audiência de julgamento não pode, obviamente, configurar uma insuficiência, atenta a sua dimensão minudente em relação a todo um julgamento. A insuficiência da matéria de facto provada para a decisão pode estar associada (ou resultar de) a uma claudicação do princípio da investigação, é certo, mas será sempre à ausência da diligência em causa como um todo e não às constelações ou feixes de perguntas ou procedimentos pertinentes durante a sua execução. Tais perguntas indevidamente omitidas devem ser feitas pelo interessado, ou caso não o sejam e não possa fazê-las (v.g. ao arguido), deverá requerer que o sejam, e perante eventual indeferimento deverá arguir a respetiva nulidade, cuja decisão, se for de indeferimento, será passível de recurso. Tollitur quaestio, dir-se-ia.
Não se vislumbra, portanto, qualquer diligência omitida para prolação da decisão recorrida que tenha por consequência uma insuficiência da matéria provada para a decisão, nem os recorrentes a indicam, pois se estribam, a este respeito, em perguntas omitidas.
Não ocorre, portanto, o vicio da insuficiência da matéria provada para a decisão.
Passemos à contradição.
Essencialmente, está em causa o seguinte:
21. O tribunal a quo errou mais uma vez ao fixar a matéria de facto, dando a um tempo a mesma matéria como provada e não provada, designadamente no ponto 4 que o arguido AA estava com receio e na al. l) dando como não provado que o arguido tivesse, em consequência da conduta do ofendido, ficado com medo, inseguro, perturbado, ansioso, deprimido, angustiado e com medo de permanecer na própria habitação, pelo que não deixa as filhas ali ficarem sozinhas e está a pensar em vender a casa. 23. O acórdão, ao mesmo tempo, apesar de anotar a ausência de medo e trauma de família, na descrição do depoimento da mulher do arguido AA – EE – constante da pag. 27 - afirma que esta “relatou o dia em que a sua casa foi assaltada: por volta do meio dia ouviu um barulho de portas e gavetas no andar de cima; na sala viu uma janela aberta, o que a assustou (…)”. De acordo com a testemunha, dez minutos depois, o marido chegou e apercebeu-se de um vulto na cozinha, gritou e nessa altura viu uma pessoa (…).E mais à frente “Confirmou que o marido estava nervoso (…) não aludindo a qualquer receio dele ou trauma de família” 24. Ou seja, a esposa do arguido assustou-se e gritou, tendo em conta as condutas do ofendido, mas ainda assim a família não demonstrou trauma ou medo. 25ª Também aqui sobressai a contradição insanável da fundamentação, mas, ainda que assim não se entendesse, certo é que o Tribunal concluiu pela ausência de trauma ou medo, mas não colocou a pergunta, apenas se limitando a constatar que assim não ocorreu. 37ª O ponto 16 da matéria de facto entra em contradição consigo próprio quando diz que Como consequência direta e necessária da conduta perpetrada, o ofendido sofreu (…) Cicatriz localizada no terço superior da face anterior da perna, com 3cm de comprimento, relativamente à qual o examinado não sabe se terá resultado do evento. 38ª Na verdade, se o próprio ofendido não sabe se a cicatriz em causa derivou do “evento” e o perito não o afirma, não se pode considerar que essa cicatriz surgiu Como consequência direta e necessária da conduta perpetrada. 39ª Depois, como está bom de ver, As condutas perpetradas pelos arguidos não podiam causar as consequências permanentes supra descritas, designadamente a referida cicatriz, pelo que o ponto 17 também se encontra em contradição com o ponto 16. 40ª Os pontos 14, 15, 16, 17 e G) dos factos não provados são também contraditórios. 41. No ponto 17 diz-se que as condutas dos arguidos causaram as consequências permanentes supra descritas, ou seja, no ponto 16. Mas se é assim, quais foram as consequências não permanentes? 42ª Por outro lado, se não resultou da prova quais as queixas e sequelas que resultaram dos pontos 14) e 15) da matéria de facto, quais foram as consequências que advieram para o ofendido da conduta do recorrente BB e que determinaram a fixação da medida da pena? 43ª É que lida a restante matéria de facto não se concretiza qualquer dano ou dor causada pela conduta do recorrente BB, nem, aliás, a mesma constava da acusação.
Vejamos o teor do ponto 4 e da alínea L: 4. Uma vez chegado à sua residência, o arguido AA entrou para o logradouro da sua habitação, contornou-a e verificou que uma das portas da sala estava aberta; aproximando-se do interior, ouviu passos nas escadas que dão acesso do primeiro andar para o rés-do-chão e, com receio, encostou a porta e ficou à espera que alguma coisa se passasse. L. Com a prática dos factos descritos, o ofendido tenha causado medo no arguido AA, deixando-o inseguro, perturbado, ansioso, deprimido, angustiado e com medo de permanecer na própria habitação, pelo que não deixa as filhas ali ficarem sozinhas e está a pensar em vender a casa.
Não há qualquer contradição, porque o teor do ponto 4.º se refere ao estado psíquico do arguido quando chegou a casa e a alínea L se refere a esse mesmo estado, mas agora geral, do arguido enquanto sequela da ação do ofendido. Por outro lado, o receio referido no ponto 4.º pode ter uma interpretação mais benigna do que o vocábulo medo, embora possam também considerar-se semanticamente como sinónimos – uma das suas aceções é dúvida ou incerteza, acompanhada de preocupação, relativamente a um facto, a uma situação; apreensão (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, pag. 3110). E o sentido daquele receio é mais o que ora se enunciou do que aqueloutro tolhedor do espírito que o recorrente invoca, pois, o segmento ficou à espera que alguma coisa se passasse é mais consentâneo com a apreensão do que com medo, o qual, quando instalado, tem como um dos principais sintomas a fuga, se possível, e ali era-o sem dúvida. E quando alguém é informado de que a casa está a ser assaltada e a ela se dirige sem pedir ajuda às autoridades, e que tome a iniciativa de avançar antes de estas chegarem, não pode ou é pouco provável estar com medo, e nisso o tribunal tem toda a razão – poderá estar perturbado, como se verá, mas é menos provável que esteja com medo.
Em relação às conclusões 23.º, 24.º e 25.º, a única contradição detetável é a que ocorre entre o veredicto do tribunal e a opinião do recorrente. É certo que o tribunal refere que a testemunha esposa do arguido AA se assustou e gritou, mas não deu como provado que ficou com medo, e nós compreendemos a decisão, pois a testemunha em vez de zarpar dali para fora, como seria expectável em alguém que suspeita ter um ladrão em casa e que por isso fica com medo, telefonou ao marido a relatar a ocorrência, esperou, e, quando este chegou, assistiu a tudo ou a boa parte das diligências deste. Acreditando que não é fleuma, estado de alma mais britânico do que luso, é, pelo menos, invulgar, e revelador de particular calma, coragem ou quiçá até temeridade. É certo que o marido lhe disse para ficar fora da casa, mas o facto de ali ficar, mesmo fora ou à ilharga, é sintomático do que se afirmou, sendo até de estranhar o conselho do marido, pois talvez se impusesse a sugestão de se afastar para o mais longe possível. Seria certamente o conselho de qualquer dos subscritores deste acórdão se recebesse tão perturbadora chamada telefónica do cônjuge.
Passemos agora aos pontos 14.º, 15.º, 16.º e 17.º, e alínea G).
14. Após, o arguido AA desferiu-lhe vários pontapés nos membros inferiores. 15. Entretanto, chegou ao local BB que, vendo o estado em que se encontrava o ofendido e apesar de este lhe suplicar para pararem de lhe baterem, depois de pisar o seu braço com o pé, desferiu-lhe vários murros na cabeça e tórax, ciente que podia, com essa conduta agravar-lhe as lesões. 16. Como consequência direta e necessária da conduta perpetrada, o ofendido sofreu queixas de dor à apalpação no terço inferior da perna direita. Queixas de dor à apalpação do dorso do pé. Sem limitação de mobilidade. Sem aparentes desvios do eixo longo da perna, à observação. Sem assimetrias do comprimento real e aparente dos membros e perímetros da coxa e perna, quando comparado com o membro contra-lateral. Cicatriz localizada no terço superior da face anterior da perna, com 3cm de comprimento, relativamente à qual o examinado não sabe se terá resultado do evento. No membro inferior esquerdo, duas cicatrizes cirúrgicas localizadas no terço inferior da face lateral da anca, com 4 cm e 3 cm de comprimento, duas cicatrizes cirúrgicas localizadas no terço inferior da face lateral da coxa, com 1 cm e 1 cm de comprimento. Queixas de dor à mobilização da anca, sem limitação funcional. Sem assimetrias do comprimento real e aparente dos membros e perímetros da coxa e perna, quando comprado com o membro contra-lateral, o que lhe determinou 249 dias para a consolidação médico-legal, com afetação da capacidade de trabalho geral (15 dias) e com afetação da capacidade para o trabalho profissional (115 dias). 17. As condutas perpetradas pelos arguidos causaram as consequências permanentes supra descritas, as quais não se consideram gravemente desfigurantes ou causa de afetação grave da capacidade geral ou profissional.
G. Que as queixas e sequelas descritas em 16 resultaram das agressões aludidas em 14 e 15.
A decisão de direito ajuda-nos a compreender esta aparente contradição: Já quanto aos danos peticionados como consequência dos “atos de ofensa à integridade física” não incluídos na indemnização peticionada e paga pela Seguradora “em resultado do atropelamento”: percorrida a matéria que mereceu a adesão de prova, pese embora o demandante não ter logrado demonstrar a existência de lesões diferentes das causadas pelo atropelamento (e que se mostram já ressarcidos em sede cível) – todas ao nível dos membros inferiores (factos n.º 16, 17, 32, 33 e ponto G) -, é inegável que sofrer socos e pontapés no corpo, ainda para mais quando está já ferido, é causa, no mínimo, de dores que merecem a tutela do Direito. Em conformidade, atendendo às circunstâncias já aludidas e mais uma vez por apelo à equidade, entende-se fixar a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), em que vão os demandados solidariamente condenados, para ressarcimento destes danos morais, no mais improcedendo o pedido, por indemonstrado.
É certo, todavia, que assiste razão ao recorrente em relação à falta de cuidado (pois não é mais do que isso) na redação do ponto 16.º, quando dele se faz constar o segmento relativamente à qual o examinado não sabe se terá resultado do evento, que constitui elemento de prova e não facto submetido a julgamento. É uma daquelas consequências da tecnologia e das facilidades de trabalho por ela proporcionadas, pois é evidente que o tribunal copiou o teor das lesões, cuja terminologia técnica lhe é algo alheia, digamos, mas deixou passar aquele comentário do perito, numa compreensível distração, que pode suceder a qualquer um, e que não justifica certamente a anulação de um julgamento, tal como acima se explicou quando se enunciou o correto enfoque do presente vício da decisão.
Quanto ao resto, da decisão da matéria de facto e da sua fundamentação resulta com clareza que o tribunal ficou convencido que o ofendido sofreu lesões por causa do que se passou naquele dia, mas não ficou convencido que tenham sido originadas pelos factos posteriores ao choque entre a automóvel e o ofendido, que é o que está em causa nos autos nesta parte; assim, deu como provadas as lesões, algumas permanentes (algumas das cicatrizes), tendo explicado que a decisão de indemnização se não refere a elas, mas antes às consequências dos murros e pontapés, que sempre causarão dores, que merecem indemnização.
Não ocorre aqui, portanto, qualquer contradição, muito menos insanável.
Percutindo, diz o recorrente: 37ª O ponto 16 da matéria de facto entra em contradição consigo próprio quando diz que Como consequência direta e necessária da conduta perpetrada, o ofendido sofreu (…) Cicatriz localizada no terço superior da face anterior da perna, com 3cm de comprimento, relativamente à qual o examinado não sabe se terá resultado do evento. 38ª Na verdade, se o próprio ofendido não sabe se a cicatriz em causa derivou do “evento” e o perito não o afirma, não se pode considerar que essa cicatriz surgiu Como consequência direta e necessária da conduta perpetrada.
Ora, a questão já foi explicada, e a lesão em concreto cicatriz localizada no terço superior da face anterior da perna, com 3cm de comprimento, relativamente à qual o examinado não sabe se terá resultado do evento não tem a dimensão para a decisão dos autos que o recorrente lhe atribui, e será equacionada em sede de erro de julgamento, com se verá.
Finalmente:
39ª Depois, como está bom de ver, As condutas perpetradas pelos arguidos não podiam causar as consequências permanentes supra descritas, designadamente a referida cicatriz, pelo que o ponto 17 também se encontra em contradição com o ponto 16. 40ª Os pontos 14, 15, 16, 17 e G) dos factos não provados são também contraditórios. 41. No ponto 17 diz-se que as condutas dos arguidos causaram as consequências permanentes supra descritas, ou seja, no ponto 16. Mas se é assim, quais foram as consequências não permanentes? 42ª Por outro lado, se não resultou da prova quais as queixas e sequelas que resultaram dos pontos 14) e 15) da matéria de facto, quais foram as consequências que advieram para o ofendido da conduta do recorrente BB e que determinaram a fixação da medida da pena? 43ª É que lida a restante matéria de facto não se concretiza qualquer dano ou dor causada pela conduta do recorrente BB, nem, aliás, a mesma constava da acusação.
O recorrente continua a fazer incidir a sua atenção em palavras isoladas, muitas delas habituais no foro, como consequências ou lesões permanentes, não querendo perceber que se trata de lapsos de escrita, de expressões provenientes de outros textos, que não houve o tempo e atenção para depurar totalmente, que nada interferem com a sentido da decisão nem com a sua inteligibilidade. Ora, não há dúvida que o tribunal pretendeu dizer que a conduta dos arguidos causou as lesões descritas no exame médico, sendo que permanentes são as cicatrizes cirúrgicas, sendo as outras apenas consequências ou lesões, sendo tudo isto de uma evidência cristalina para qualquer intérprete.
É certo, e nisso o recorrente tem razão, não há na matéria de facto qualquer dano ou dor causados pelas ações posteriores ao embate entre ofendido e automóvel.
Todavia, a esta surpreendente perplexidade do recorrente responde, com clareza, avalizada Doutrina:
“Tipo objetivo. A conduta típica pode consistir tanto num mau trato corporal com numa lesão da saúde. Dano na saúde representa criação ou agravação de um estado patológico com certa intensidade (por exemplo, a transmissão, por via sexual, de uma doença venérea ou do vírus da SIDA). O mau trato, por seu turno, é uma agressão sobre o corpo de outrem, independentemente da existência de dor, aleijão ou marca física. Resulta daqui que pode ser vítima de ofensa corporal uma pessoa insensível à dor em virtude de paralisia dos membros inferiores contra quem são desferidas agulhadas nessa parte do corpo. A destruição de próteses apenas constitui mau trato quando estão ligadas ao corpo. Ambas as modalidades de ofensa podem estar relacionadas, mas isso não tem necessariamente de suceder. São pensáveis lesões na saúde que aumentam o bem-estar corporal da vítima (por exemplo, uma injeção de cocaína) e maus tratos que não causem dano na saúde (por exemplo, um simples soco).” – cfr. Augusto Silva Dias, Crimes Contra Vida e Integridade Física, AAFDL, 2.º edição, Reimpressão, pag. 88/89.
Portanto, o facto de não se terem provado dores em resultado dos socos e pontapés não impede a subsunção da conduta que os causou ao tipo de ofensa à integridade física, como se viu, pelo que nada há de anómalo nesta operação e na fixação da respetiva indemnização. Apurar as dores e outros incómodos pode relevar para o grau de ilicitude da ação, mas a sua não inclusão nos factos no caso de uma conduta destas não afasta a sua integração no tipo objetivo.
Não podemos terminar esta parte da nossa tarefa sem tecer breve comentário a duas muito infelizes conclusões formuladas no recurso: 26ª Ou seja, o Tribunal buscou activamente a “verdade” que havia preconcebido para os factos da acusação, mas assim já não o fez relativamente aos outros factos, designadamente aqueles que podiam excluir ou atenuar a culpa dos arguidos. 28ª Se a tudo isto juntarmos que se deu como provado nos pontos 42 e 43 que a casa do arguido foi assaltada 5 vezes, só faltaria na fundamentação do acórdão dizer que o arguido fomentava os assaltos a sua casa, só para depois poder fazer-se de polícia e correr atrás dos meliantes.
Estas afirmações estão nos antípodas do respeito devido a um tribunal. Os juízes (e, neste caso, também os jurados) têm como principal pilar definidor da sua missão a imparcialidade. Ora, acusar um tribunal de ter verdadepreconcebida em relação ao mérito dos autos constitui, além de intolerável desprimor, uma afronta a um órgão de soberania, sendo que este tribunal, por ser de júri, beneficia até de uma acrescida legitimidade democrática, que o recorrente desconsiderou completamente. Compreende-se que os recorrentes discordem da decisão, mas imputar ao órgão decisor estas infundadas e ofensivas apreciações é absolutamente intolerável. Assim como o é a tão desastradamente desajeitada quão vulgar graçola constante da conclusão 28.ª, completamente à margem do que deve ser a serena e ponderada discussão jurídica num recurso perante um Tribunal Superior.
Estas situações, que infelizmente ocorrem algumas vezes, tornam-se ainda mais chocantes porque o órgão que é por elas visado já não se pode sequer defender, pois terminou a sua intervenção e o estatutário dever de reserva impede qualquer iniciativa de desagravo. Por isso mesmo, a argumentação deve ser particularmente respeitadora e cuidadosa sem deixar de invocar assertivamente as questões que possam conduzir a um melhor resultado para o recorrente. E deve sublinhar-se que o acórdão, não obstante alguns dispensáveis excertos mais emocionais, é de uma irrepreensível educação e elegância para com os sujeitos processuais, e designadamente para os profissionais do foro, pelo que, mais não fosse, por uma questão de reciprocidade, impunha-se outra finura na fase elocutória da elaboração retórica do recurso, tudo no sentido aristotélico, note-se bem.
Falta apreciar, nesta sede, o erro notório.
23. O acórdão, ao mesmo tempo, apesar de anotar a ausência de medo e trauma de família, na descrição do depoimento da mulher do arguido AA – EE – constante da pag. 27 - afirma que esta “relatou o dia em que a sua casa foi assaltada: por volta do meio dia ouviu um barulho de portas e gavetas no andar de cima; na sala viu uma janela aberta, o que a assustou (…)”. De acordo com a testemunha, dez minutos depois, o marido chegou e apercebeu-se de um vulto na cozinha, gritou e nessa altura viu uma pessoa (…).E mais à frente “Confirmou que o marido estava nervoso (…) não aludindo a qualquer receio dele ou trauma de família” 24. Ou seja, a esposa do arguido assustou-se e gritou, tendo em conta as condutas do ofendido, mas ainda assim a família não demonstrou trauma ou medo. 25ª Também aqui sobressai a contradição insanável da fundamentação, mas, ainda que assim não se entendesse, certo é que o Tribunal concluiu pela ausência de trauma ou medo, mas não colocou a pergunta, apenas se limitando a constatar que assim não ocorreu. 29ª E tudo isto demonstra que também houve erro notório na apreciação da prova (artº 410º nº2 al. c) do Código de Processo Penal).
Esta mesma questão já foi apreciada anteriormente, a respeito da contradição/insuficiência, pelo que aqui damos por reproduzido o que ali dissemos.
Rememorando, de modo sintético, não existe erro notório na apreciação da prova por se não ter dado como provado o medo e o trauma. Poderia ter sido assim, e perante a situação de surpreender alguém dentro e casa para furtar, poder gerar-se uma situação de medo ou pânico e até trauma – todavia, o que os factos provados na decisão demonstram é que as pessoas em causa atuaram apenas por sua conta, aperceberam-se do autor dos factos e parte delas encetaram a sua perseguição, que findou com agressões de vária ordem, o que inculca ou pelo menos permite a conclusão de ausência de medo e de trauma (não de perturbação como se verá), não havendo nenhum preceito empírico que imponha o contrário, nem os recorrentes o identificam. A primeira atitude de quem tem medo de ser vítima da prática de um crime é obter a ajuda das autoridades policiais, se possível, e não encetar diligências para remover o perigo ou fazer cessar a agressão. É certo que também é possível conceber uma situação em que alguém, embora invadido por profundo medo, enceta a perseguição de alguém que está na origem desse tolhedor sentimento, por motivos nobres ou superiores – por exemplo, um pai perseguir alguém de uma organização criminosa que acabou de lhe raptar o filho. Mas o caso presente – um amigo do alheio que vai a fugir de mãos a abanar - nada tem que ver com estes extremos, pelo que sendo possíveis vários enfoques, nenhum deles, e designadamente o que consta da decisão recorrida, se torna absolutamente ilógico ou paradoxal, pelo que, portanto, imune ao vício do erro notório.
Ainda: 8ª A prova das agressões após o embate – pontos 14, 15 e 20 da matéria de facto – baseou-se, segundo o acórdão recorrido no depoimento do arguido AA, no depoimento do ofendido, da testemunha DD e parcialmente no depoimento do arguido BB. 9ª Sucede é que, o arguido AA nada disse quanto a tal matéria, o depoimento do ofendido não coonesta o facto 14, nem o da testemunha inquirida é credível, nem o depoimento arguido BB tem o alcance que o acórdão recorrido lhe empresta. 10ª A testemunha DD tanto diz que eram 3 como 4 os indivíduos que estavam de volta do ofendido, como não sabe dizer quem deu “chutos” no ofendido. 11ª Parece certo que o ofendido após o embate caiu numa valeta do lado esquerdo do veículo, pelo que os arguidos não podiam estar a chutar o ofendido enquanto lhe tentavam puxar as calças, como se afirma no acórdão, porquanto para tal necessário que os arguidos se baixassem por forma a ficarem ao nível do ofendido e o pontapeassem. Ora, baixando-se os arguidos era fisicamente impossível pontapear o ofendido ao mesmo tempo. 12ª Trata-se de erro notório na apreciação da prova que deve ser decretado (artº 410º nº2 al. c) do Código de Processo Penal).
Em primeiro lugar, refira-se que os factos dados como provados demonstram que, após o embate entre o veículo e ofendido, o arguido AA pontapeou o ofendido, e que o arguido BB lhe desferiu murros – ou seja, em lado algum se assentou que ambos o pontapearam.
Aqui, o recorrente mistura a invocação do erro notório com o erro de julgamento, pois arrola a questão da credibilidade (conclusão 9.ª), e o alcance do “depoimento” (sic) do arguido BB com a incongruência de se estar a puxar as calças de alguém, e, simultaneamente, pontapeá-lo.
Ora, quando ao teor dos depoimentos e sua credibilidade nada se pode fazer nesta fase, pois nada há no texto da decisão que infirme as gradações de credulidade efetuadas pelo tribunal.
Quanto à impossibilidade conceitual, digamos assim, de, simultaneamente, puxar as calças de alguém e pontapeá-lo, sem grande esforço de imaginação se vislumbra, por exemplo, a possibilidade de um ou os dois indivíduos se baixarem para agarrar o fundo das calças de um outro que esteja deitado no chão, e, puxando pela parte da frente de tal peça de roupa (a que fica em frente à tíbia/canela), alçarem ambas as pernas da vítima ao ar, até à zona da cintura dos agressores, e, nessa posição, enquanto puxam para despir tal vestimenta, um ou ambos desferirem os pontapés que entenderem nas ditas pernas. Assim sendo, basta esta cena possível para alijar o erro notório desta equação. Isto já para não falar da célebre dança russa, Kalinka, em que os seus ágeis intérpretes dos regimentos cossacos, apesar de cócoras, desferem violentos pontapés, felizmente apenas na atmosfera, sendo certo que, atentos os factos dados como provados, os ora arguidos não teriam tamanha agilidade.
Além disto:
31ª O Tribunal quis também incluir na fundamentação a premeditação do arguido ao afirmar que provou-se que o arguido teve vários minutos para pensar na sua reação ao intruso/assaltante, durante a viagem que fez (sozinho) desde a chamada da esposa até chegar a casa e aí o ver (…)” 32ª No entanto, provou-se que o arguido demorou 5/10 minutos depois do telefonema da sua esposa a chegar a casa – cfr. o ponto 1 e 46 da matéria de facto – e o acórdão quer-nos fazer crer que durante essa viagem o arguido reflectiu ponderadamente o que havia de fazer ao assaltante, como se o arguido fosse uma vítima de assaltos profissional!!! 33ª É evidente que o arguido se estava a pensar em alguma coisa nessa viagem era em chegar o mais depressa possível e no risco que a sua mulher estava a correr! 34ª A preocupação com a mulher é a única pista que a matéria de facto nos dá para as preocupações imediatas do arguido, uma vez que lhe terá dito para se manter fora da casa – ponto 2 da matéria de facto. 35ª É também evidente que durante o curtíssimo espaço que o arguido percorreu de carro – que apesar de o Tribunal ter estado no local não entendeu como importante medir, embora se abalance a tirar várias conclusões dessa distância – também não estava a pensar no que ia fazer ao ofendido, mas sim pensava em reaver o que lhe foi furtado, pois que, se ao invés de correr, o arguido tivesse entregue o que havia furtado, nada lhe teria acontecido com certeza. 36ª Daqui decorre que, nesta parte o acórdão recorrido incorre em erro notório na apreciação da prova (artº 410º nº2 al. c) do Código de Processo Penal).
Também já expressámos o nosso entendimento a respeito desta matéria, e entendemos como plausível a decisão tomada, sendo, bem pelo contrário, percutimos, notoriamente inquietante o facto de o arguido não ter sugerido à esposa que se afastasse o mais que pudesse do local, sendo que também não é destituída de fundamento a asserção de que durante a viagem do arguido até casa se impunha um telefonema a pedir a ajuda das autoridades policiais, pois 5/10 minutos é tempo mais que suficiente para tal. Ao contrário do que afirma o recorrente, o acórdão não quer fazer crer coisa alguma, pois não se trata aqui de questões de fé. O acórdão contém a decisão do tribunal de que não houve medo nem trauma, e, em nosso entender, nada há nas regras da experiência que aporte ilogismo ou que fulmine de irrazoável tal raciocínio, pelo que se mantém a imunidade da decisão ao invocado vício.
Não encontramos na decisão, portanto, qualquer erro notório na apreciação da prova.
Também aqui, portanto, fenece a pretensão recursiva.
I Ocorre erro de julgamento?
Vejamos agora o segundo dos modos acima indicados de sindicar o julgamento de facto, consubstanciado na invocação de erro de julgamento.
Atentemos no que consta no Código de Processo Penal em relação ao que ora nos ocupa: Artigo 412.º Motivação do recurso e conclusões (…) 3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas. 4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. (…) 6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
Levemos a cabo, agora, um pequeno excurso teórico sobre este modo de impugnação do julgamento de facto.
Estamos, deste modo, em face do triplo dever (ónus, segundo outros) que legalmente impende sobre o inconformado recorrente de facto.
Assim, se a indicação dos concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados não apresenta dificuldade de maior, bastando indicá-los tout court, sendo certo que a maior parte das decisões têm a factualidade estruturada através de numeração (convém, todavia, ter presente que alguns números contêm vários pontos concretos), já as concretas provas dizem respeito ao conteúdo específico das provas, não sendo suficiente a simples indicação de uma testemunha ou perícia, por exemplo, para fundar aquela pretensão – quanto à prova gravada, é necessário indicar com precisão o ficheiro áudio de que consta, e até a data da sessão da audiência em que foi produzida, se forem várias, bem como o momento inicial e final (minutos e segundos), na dita gravação, do excerto em causa, e quanto às restantes provas (documental, pericial, apreensões, etc.), o preciso local dos autos em que foram adquiridas e produzidas, designadamente a data ou referência da sua junção, bem como a explicitação da parte ou partes do seu teor que, no entender do recorrente, impõem decisão diversa, não sendo necessária, todavia, atualmente, a transcrição da gravação áudio invocada, tal como esclarece o Conselheiro Pereira Madeira, ob., cit., pag. 1390, nota 6, e resulta do Acórdão n.º 3/2012, de 18 de Abril, DR, n.º 77/2012, Série I, de 18/04/2012, cujo dispositivo reza assim:
Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações.
(Tenha-se presente que se não conhece processo em que se não tenha dado cumprimento ao aludido dever de consignação na ata.)
Observação importantíssima tem que ver com as condições de procedência do recurso em sede de impugnação da matéria de facto. Na verdade, o julgamento efetuado em primeira instância beneficia, em pleno, dos princípios da oralidade e imediaçãoda produção de prova, o que, consabidamente, confere aos julgadores melhores possibilidades de apreciar a prova com rigor e clarividência, permitindo um juízo mais aproximado da verdade material e, portanto, uma mais precisa reconstituição desta.
Por isso, a lei estabelece no preceito ora em análise que a argumentação do recorrente deve conter a indicação das provas que impõem uma decisão diversa, bem como, naturalmente, qual é ela. Que impõem, e não apenas que aconselham, permitem, autorizam ou facultam. E tal exigência não deriva, como muitas vezes se afirma, do princípio da livre apreciação da prova, ínsito no art.º 127.º do Código de Processo Penal, pois este tanto se aplica ao julgamento do tribunal recorrido como ao julgamento do tribunal de recurso; na verdade, tão livre é um tribunal quanto o outro para apreciar a prova; a diferença entre ambos radica, precisamente, na aludida proximidade em relação à prova produzida na primeira instância, a qual confere particulares garantias de fiabilidade do juízo que assim sobre elas se produz, ideia que a lei acolhe expressamente, quando opta pelo vocábulo impõe para autorizar uma alteração daquele julgamento primordial – basta pensarmos na diferença entre um julgador numa sala de audiências com várias pessoas a olhar diretamente o arguido, a testemunha ou o perito nos olhos, assistir às suas reações, postura corporal, esgares, hesitações ou assertividade, e olhares, assistir ao seu interrogatório ou formular-lhe as perguntas que entender necessárias, no momento que lhe parecer ser pertinente ou adequado, mostrar-lhe documentos ou outras partes do processo, apreciar, no decurso da audiência, comparativa e simultaneamente as reações isoladas ou recíprocas de uns e outros, enfim, ter perante si este completíssimo e riquíssimo cenário, dir-se-ia teatro até, por um lado, e entre um outro julgador que está durante umas horas, dias ou até mais, fechado no seu gabinete, com uns auscultadores nos ouvidos e de olhos abertos, cerrados ou semicerrados, tentando captar a maior parte que lhe é humanamente possível de toda aquela riqueza de pormenores através da simples audição, para percebermos por que (acertado) motivo a lei tomou a opção acima referida. É, na verdade, esta diferença fundamental de condições que justifica que a intervenção do tribunal de recurso no julgamento da matéria de facto só ocorra se estiver irrefutável e cabalmente demonstrado que há um claro e evidente erro de apreciação, seja por inexperiência, desconhecimento, precipitação ou outro qualquer motivo, de tal modo que se torne absolutamente indiscutível proceder à correção ou acerto da decisão nesta sede – embora não seja critério de decisão, sobre as inigualáveis vantagens do contacto pessoal, recordemos Ovídio: Oh!, Como é tão difícil não denunciar no rosto a culpa, in Metamorfoses, Livro II, 447, Pinguim Clássicos, pag. 43.
Assim, e em conclusão, o art.º 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, apenas autoriza a alteração do julgamento de facto quando as provas invocadas pelo recorrente impõem uma decisão diversa, não bastando que a permitam; trata-se de concluir que se impõe quase como um imperativo categórico kantiano um “julgamento necessário” e não apenas que se configura como aceitável ou possível um “julgamento diferente”.
Além disso, é consabido que a jurisprudência e a doutrina entendem de forma unânime que o recurso do julgamento da matéria de facto não se traduz na realização de um novo e inteiro julgamento pelo tribunal recorrido, antes constituindo um meio de sanar evidentes erros, devidamente circunscritos, sendo certo que não se pode negar que a verificação de um desse erros de julgamento possa ter consequências mais ou menos extensas na decisão da matéria de facto, consoante a sua relevância e a matéria a que respeitar. Seguro é que uma pretensão recursiva de inconformismo genérico e total com o julgamento da matéria de facto, traduzida na proposta de uma completa inversão do decidido se afigura como quase inaceitável à luz do teor da nossa lei e da interpretação que dela é feita, como se disse - cfr., a título meramente exemplificativo, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23/04/2008, processo n.º 899/88, de 14/05/2008, processo n.º 1139/08, de 12/06/2008, processo n.º 4375/97 (cfr. ob. cit., pag. 1388 e seguintes).
O princípio da livre apreciação da prova, previsto no art.º 127.º do Código de Processo Penal, estatui que o tribunal aprecia o valor da prova de acordo com as regras da experiência e a sua livre convicção; a ele se contrapõe ao princípio da prova legal, nos termos do qual o valor dos meios de prova é legalmente tarifado.
“O princípio da livre apreciação da prova significa, negativamente, a ausência de critérios legais que predeterminem o valor da prova e, positivamente, que as entidades a quem caiba valorar a prova o façam de acordo com o dever de perseguir a realização da justiça e a descoberta da verdade material, numa apreciação que terá de ser sempre objetivável, motivável, e, por conseguinte, suscetível de controlo.” – cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, Almedina, 4.ª Edição, pag. 202.
Ou seja, este princípio não constitui, evidentemente, uma autorização genérica da lei para decidir de forma arbitrária ou caprichosa, pois a livre convicção terá de resultar sempre de um esforço intelectual e emocional sério, profundo e rigoroso, e da conjugação aturada de todos os elementos nesse campo aproveitáveis dos autos, conferindo e validando essa íntima opção com os dados objetivos e consabidos das regras da experiência, de modo a chegar a uma decisão compreensível e verosímil, da qual até se pode discordar, mas que, intelectualmente, se aceita, pelo menos como possível, razoável, numa palavra, normal. Não é, portanto, necessário que todos concordem com a decisão para que se conclua que foi aplicado o princípio em causa com rigor; o que é preciso é que essa decisão observe estritamente os passos e requisitos acima elencados na difícil tarefa de reconstituição histórica e aplicação da lei que aos tribunais incumbe levar a cabo no seu múnus de dirimir litígios na comunidade. Depois disto, e cumprido isto, aceitar ou não a confissão como livre ou eficaz, acreditar nesta ou naquela testemunha, conferir ou não relevância a um documento (sendo autêntico, pode a falsidade afastar o seu valor legal), apoiar-se ou não numa perícia (com especial fundamentação em caso de divergência, é claro), por exemplo, é uma prerrogativa exclusiva do poder jurisdicional. E, como dissemos, este campo da decisão também é sindicável nesta sede, mas para que com ele se bula ter-se-á de concluir pela análise da prova que a decisão assim livremente tomada contraria frontalmente as regras da experiência, põe em causa os mais elementares bom senso e prudência, desafia de modo incontroverso as circunstâncias práticas e humanas da vida, enfim, constitui um autêntico paradoxo, não sendo nunca suficiente a simples invocação do desrespeito dos mencionados preceitos empíricos, ainda que com invulgar clamor, sendo, pelo contrário, com já acima dissemos, sempre e simultaneamente, exigível a sua concreta individualização ou identificação, o que constitui, aliás, um verdadeiro dever intelectual e processual,.
Não obstante tudo o que se disse, devemos procurar sempre dar cumprimento ao norteador Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/10/2010, processo n.º 3518/06-3, citado por Simas Santos/Leal Henriques, Recursos penais, Rei dos Livros, 9.ª Edição, pag. 151, nota 1, segundo o qual “o recurso em matéria de facto (quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto) não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorretamente julgado, na base da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (…) ou da renovação da prova nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer. A reapreciação da matéria de facto, se não impõe uma avaliação global, também se não poderá bastar com meras declarações gerais quanto à razoabilidade do decidido no acórdão recorrido, requerendo sempre, nos limites traçados pelo objeto do recurso, a reponderação especificada, em juízo autónomo, da força e da compatibilidade probatória entre os factos impugnados e as provas que serviram de suporte à convicção. (…). Paralelamente, o regime de impugnação das decisões em matéria de facto não consente a afirmação de que o tribunal de recurso «só pode afastar-se do juízo feito pelo julgador de primeira instância, naquilo que não tiver origem nos dois princípios (oralidade e imediação), ou seja, naqueles casos em que a formulação da convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum»”. Em sentido semelhante, cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/10/2008, processo n.º 3066/08, referido por Pereira Madeira, ob. cit., pag. 1405, no qual se lê que “(…) o recorrente tem direito à reapreciação da matéria de facto fixada em primeira instância pelo tribunal coletivo, o que envolve necessariamente uma nova apreciação das provas produzidas e a emissão de um novo juízo em matéria de facto, embora rigorosamente restrito aos pontos questionados pelo recorrente. Deste modo, é de rejeitar a interpretação que limita o recurso das matéria de facto à análise da «razoabilidade» da convicção de facto do tribunal coletivo, e exclui uma autêntica reapreciação da matéria de facto, pois coloca-se frontalmente contra legem, por constituir, afinal, a negação da dupla jurisdição em matéria de facto, que o legislador inequivocamente quis introduzir, interpretação que afeta decisão respetiva de nulidade, por omissão e pronúncia, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c, e 425.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.”
Na verdade, costuma ler-se nas posições enunciadas pelos sujeitos processuais, quando ocorre a impugnação da decisão sobre a matéria de facto que lhes é favorável, a proclamatória afirmação de erigir a oralidade e a imediação a sacrossantos e absolutamente inultrapassáveis pressupostos da decisão, inalcançáveis pela Relação, e, por isso, conferidores de inexpugnável solidez ao assim decidido. Como se vê, não é assim, de todo, sendo que os poderes da Relação tanto se dirigem às puras imparidades probatórias como à razoabilidade da operacionalização da livre apreciação da prova, sendo que, em qualquer caso, se tratará sempre de uma imposição, afigurando-se evidente ser mais fácil surpreender essa imposição nos casos de imparidade do que nos restantes - uma coisa é saber se a testemunha A ou o documento x dizem isto ou aquilo, outra é apreciar se o que é dito ou o que está escrito corresponde à verdade, se é credível. E tenha-se presente que, se bem que a imediação da Relação com as provas pessoais seja impossível de alcançar (salvo nos – inexistentes, de resto - casos de renovação da prova), ela é alcançada com outras provas, como a prova documental, por exemplo, e que a oralidade está decididamente, pelo menos parcialmente, ao alcance desta instância, uma vez que as audiências de julgamento são objeto de gravação áudio digital, sendo possível, pelo menos, ouvir tudo o que é dito, quando é dito e como é dito, o que representa instrumento de análise não totalmente despiciendo – ou seja, mesmo na instância de recurso permanece uma réstia de oralidade, ao contrario de antanho, em que a impugnação da matéria de facto era levada a cabo com base em depoimentos escritos, o que faz, se não toda, muita diferença. Tal como refere Helena Morão, ob. cit., loc. cit., pag. 381, com significativa resenha Doutrinal, “com efeito, a imediação atenuada que a consulta da gravação da audiência de primeira instância admite possibilita uma relação direta do julgador com a prova – e a formação de uma perceção própria – semelhante à que ocorre com o exame da prova documental em cuja produção não se interveio, não se vendo razão de princípio para que a renovação da prova se mostre indispensável em todos os casos. De resto, não é evidente que um processo de recurso justo reclame a «máxima expansão possível» da imediação em segunda instância: o respeito pelos princípios da oralidade e da imediação nesta sede poderá concretizar-se precisamente no acesso ao que se passou no julgamento de primeira instância”.
Ou seja, o ponto de equilíbrio relativo ao cerne do recurso do julgamento de facto deve ser encontrado entre duas balizas extremas, ambas indesejáveis: por um lado, o tão simples quão árido puro endosso para as alegadamente inatingíveis imediação e oralidade da instância recorrida, e, por outro, a, eventualmente, irresistível tentação do recorrente (ou da segunda instância) de proceder a uma duplicação de julgamentos, sendo certo que será sempre o prudente critério da absoluta imposição a graduar a extensão e a intensidade da intervenção a este respeito levada a cabo pelo tribunal de recurso, a qual, desde que imposta, não brigará com qualquer princípio processual.
O princípio da livre apreciação da prova, tem exato paralelo no processo civil – art.º 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil. Aliás, o mais esclarecedor autor sobre o tema da livre apreciação da prova é o Prof. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, Vol. IV, pag. 566 e segs., em anotação ao antigo art.º 655.º do CPC, que consagrava o sistema da prova livre. Os seus extensos e profundos ensinamentos têm aqui plena aplicação.
No essencial, este princípio contém duas vertentes:
- a primeira, já acima enunciada, consiste no poder de o tribunal decidir se uma determinada prova é ou não credível (a testemunha diz ou não a verdade, o documento demonstra isto ou aquilo, o objeto apreendido comprova ou não o que se afirma), é claro que este poder cede nos casos de prova tarifada ou vinculada (um documento autêntico para demonstrar a venda de um imóvel, uma perícia para demonstrar um facto que carece de conhecimentos científicos); mas mesmo aqui há exceções: se o documento autêntico for declarado falso, por exemplo;
- a segunda consiste no poder de o tribunal decidir se as provas apresentadas, depois de consideradas credíveis, são suficientes para dar como provados os factos em julgamento: aqui entram em jogo as questões relativas à prova direta e à prova indireta, bem como à prova indiciária.
Com a prova direta credível nenhum problema se levanta e a função do tribunal é, neste caso, quase notarial.
Com a prova indireta credível, entramos no campo complexo, denso, profundo do mais responsabilizante poder jurisdicional – reconstituir o passado histórico através de meios de prova que, só por si, individualmente considerados, não o fazem de modo inequívoco, tal como sucede na prova direta. E é neste campo que a experiência, a ponderação, a argúcia e a coragem (moral, designadamente) do tribunal são de extrema importância para obter uma decisão justa. Prova direta é aquela em que o julgador verifica com os seus próprios sentidos o facto a averiguar, quando nada se interpõe ente o juiz e o facto a apurar, o juiz é posto em contacto imediato com objeto da prova – Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pag. 210; Castro Mendes, Do Conceito de prova em processo Civil, pag. 176, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 3.º, pag. 241. Exemplos deste tipo de prova é a inspeção ao local ou a observação de objetos apreendidos que constituam tema da prova. Prova indireta é aquela em que se interpõem entre o facto e a sua representação mental pelo juiz fenómenos de transmissão do conhecimento, como, por exemplo, documentos ou testemunhas, tendo o juiz que usar agora, para além dos sentidos, outros instrumentos, como o raciocínio e as regras da experiência – Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, III, 209, nota 2; Alberto dos reis, Código de Processo Civil Anotado, 3., pag. 242. Provas críticas ou indiciárias, constituem uma subclassificação das provas indiretas, e nelas o facto, ou objeto, posto ao alcance da perceção do juiz, sem representar o outro, permite induzir, argumentar, tirar ilações – segundo as máximas da experiência – no sentido da realidade desse outro facto. Constitui índice dele, suscita a respetiva ideia atuando sobre o raciocínio, e não sobre os sentidos e sobre a imaginação – Manuel de Andrade, ob. cit., pag. 210.
Assim, não raras vezes se afirma, em evidente equívoco, que se o facto foi dado como provado com base no depoimento de uma testemunha, que o afirmou, esteve em causa prova direta, e se foi resultado de inferência ou ilação, esteve em causa a prova indireta. Como se vê, não é assim, pois, rigorosamente, a ilação ou inferência é uma forma de julgar como provado um facto com base em prova crítica ou indiciária, a qual é uma subespécie da prova indireta. Não se deve confundir o conhecimento direto que o meio de prova tenha do facto sobre que depõe ou declara com o caráter direto da prova, pois, como se viu, estão em causa categorias dogmáticas diversas e não sobreponíveis
Nesta vertente recursiva, é evidente que os recorrentes não deram cumprimento ao dever de indicar o momento concreto da gravação em que se situam os excertos dos vários depoimentos e declarações a que se referem no recurso, optando por remeter para a súmula e apreciação crítica efetuada na decisão recorrida, pelo que tais argumentos não podem ser tidos em conta no presente acórdão.
Todavia, num dos segmentos desta parte do recurso, há condições para dele conhecer, qual seja a que se refere à imparidade entre os factos dados como provados e o teor da prova pericial referente às lesões sofridas pelo ofendido.
Diz o recorrente:
45ª Por fim, dir-se-á que a perícia médico-legal junta aos autos pelo ofendido no seu pedido de indemnização civil afasta a possibilidade de dar como provado o ponto 17 relativamente ao arguido BB. 46ª Na verdade, é o próprio relatório pericial que junta que afirma que “não é provável que a agressão descrita tenha causado as lesões descritas, nem haverá força suficiente associada para que se agravassem as já existentes decorrentes do embate”. 47ª Daí que, ao dar como provado o facto nº 17 relativamente ao arguido BB o acórdão recorrido está a violar prova tarifada – artº 163º do CPP -, não justificando a sua dissensão da mesma.
No ponto 17.º consta:
17. As condutas perpetradas pelos arguidos causaram as consequências permanentes supra descritas, as quais não se consideram gravemente desfigurantes ou causa de afetação grave da capacidade geral ou profissional.
Já tivemos oportunidade, acima, de interpretar o texto da decisão nesta parte, designadamente sobre o que o tribunal decidiu em relação à origem das lesões mencionadas nos autos, pelo que para lá remetemos, apenas brevemente rememorando que tais lesões provieram do embate com o automóvel e não das agressões posteriormente desferidas pelos arguidos no ofendido (o que está rigorosamente de acordo com o teor do aludido exame médico), e que em relação ao arguido BB estarão em causa apenas estas últimas. Contudo, tendo em conta que foi dado como provado que ambos (AA e BB) encetaram perseguição ao ofendido (respetivamente, no veículo automóvel e a pé), e que a fuga deste se deveu a essa perseguição, não repugna entender que a conduta do arguido BB também contribuiu para a ocorrência dos danos, sendo certo que ficou claro que não foi ele quem tripulava o automóvel em relação ao qual ocorreu o embate, e sendo também certo que o tribunal nenhuma responsabilidade lhe assacou pela ocorrência de tais lesões, restringindo a sua responsabilidade aos murros desferidos no ofendido após o mencionado embate.
Todavia, num aspeto o recorrente tem razão, e já acima o dissemos: o segmento cicatriz localizada no terço superior da face anterior da perna, com 3cm de comprimento, relativamente à qual o examinado não sabe se terá resultado do evento, não poderá permanecer nos factos dados como provados, pois resulta clara do dito relatório, até para o ofendido, a incerteza da sua origem, sendo certo que nenhuma justificação plausível se constata no acórdão para a divergência aludida em relação a prova com valor legal reforçado – cfr. artigo 163.º do Código de Processo Penal.
Nesta parte, o recurso tem de proceder, retirando-se este segmento dos factos dados como provados.
Continuando a sua osmótica/subsidiária argumentação, diz o recorrente:
67ª Quanto ao alegado no artº 83º da contestação, os arguidos requereram que fosse junto aos autos o certificado de registo criminal do ofendido, sendo certo que sobre tal específica matéria não recaiu qualquer despacho ou os arguidos foram notificados do documento que constitui o registo criminal do arguido. 68ª O que os arguidos alegaram na sua contestação é que o ofendido foi, por várias vezes, condenado pelo crime de furto. Tal alegação em nada é beliscada pelo facto de, na sentença proferida no processo de furto, não constarem antecedentes criminais do ofendido. 69ª No entanto, certo é que o Tribunal não produziu a prova que foi requerida pelos arguidos e, portanto, não poderia concluir pela não prova dos factos da al. N). E, portanto, é entendimento dos recorrentes que o acórdão recorrido incorreu no vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto (artº 410º nº2 al. a) do CPP). 70ª No entanto, importa dizer-se, desde já, que se não decorresse de qualquer outro meio de prova, a condenação do ofendido pela prática de, pelo menos 6 furtos (para além daquele no qual foi condenado relativamente ao arguido AA), sempre resultaria do documento junto com o requerimento do ofendido datado de 17/10/24, ref. ...36 constituído por um despacho proferido no âmbito do Proc. nº 27/18.6 GACBT pendente no Juízo Central Criminal de Guimarães – Juiz .... 71ª Daí que, porque tal despacho deve constituir, pelo menos um princípio de prova quanto ao alegado no artº 83º da contestação, indicia-se, claramente, que a matéria de facto se encontra incorrectamente julgada.
Vejamos o teor do artigo 83.º: 83º Certo é que o ofendido faz do furto modo de vida, tendo sido já, por várias vezes, condenado por tal crime,
Esta matéria não tem interesse para a decisão da causa, nem o recorrente indica a norma jurídica para cujo preenchimento é exigida a sua apreciação, sendo certo que nós também a não vislumbramos; num quase excruciante esforço de imaginação, poder-se-á ponderar se o recorrente entende que aplicar uma sova ou embater com o carro num cidadão que praticou um furto com várias condenações por furto implica menos culpa – menos ilicitude, nem com delirante imaginação - do que fazê-lo em relação a um com o CRC limpo; todavia, a lei não autoriza essa afirmação. Talvez para uma análise emocional e prosaica da questão possa relevar - impressivamente, nem sequer seduziu, ao de leve sequer, um tribunal de júri, consabidamente, em tese, mas apenas em tese, mais permeável a estas perspetivas mais justicialistas. Para a análise jurídico-penal do objeto do processo é absolutamente irrelevante, estranhando-se até a inusitada insistência do recorrente neste ponto, que está absolutamente alheado da lei, como é evidente, e que o tribunal recorrido, acertadamente, excluiu terminantemente do objeto do processo.
Quanto à omissão de decisão sobre requerimento apresentado, e uma vez que não ocorre insuficiência, recorde-se o que já se disse antes: haveria que suscitar-se a nulidade decorrente de tal omissão, e, em caso de indeferimento dessa arguição, interposição de recurso de tal decisão.
Assim sendo, nem há insuficiência, nem erro de julgamento, mais não seja porque a matéria de facto em causa não tem interesse para a boa decisão da causa.
L Os factos dados como provados integram a prática de um crime previsto e punido pelo art.º 145º n.º1 al. d), por referência ao art.º 132º nº 1 e 2, al. c) do Código Penal em relação ao arguido BB?
A este respeito, escreve-se nas conclusões:
76ª O recorrente BB foi condenado pela prática de um crime previsto e punido pelo artº 145º nº1 al. d), por referência ao artº 132º nº1 e 2 al. c) do CP – o arguido BB. 77ª Para que se encontrasse preenchido o tipo de crime necessário se tornava que se desse como provado que o arguido sabia que o ofendido se encontrava em situação que lhe dificultava particularmente a sua defesa em razão de ter as lesões que tinha. Ou seja, exigia-se ao arguido um duplo conhecimento: primeiro o de que as lesões eram incapacitantes e, em segundo, que tornavam o ofendido indefeso. 78ª Sucede que tal factualidade não emerge dos factos provados 15 ou20: dizer-se que o arguido viu o “estado” em que estava o ofendido ou que se apercebeu do “estado grave” em que este estava, trata-se de alegação conclusiva, pois que não diz quais as lesões incapacitantes que este tinha e que o tornavam particularmente indefeso, tal como nada diz quanto ao conhecimento das referidas lesões por parte do arguido. 79ª Deve, assim, considerar-se que os factos não preenchem o tipo agravado de ofensas corporais, mas apenas apontam para o cometimento por parte deste arguido do crime de ofensa à integridade física simples.
Vejamos os factos dados como provados: 11. O arguido AA seguiu no seu veículo atrás dele. 12. Nesse momento imprimiu velocidade ao seu veículo com o propósito de o alcançar e na Rua ..., em ..., em frente à habitação nº ...18, próximo de um posto de transformação elétrico, embateu com a frente esquerda, nos membros inferiores de CC, projetando-o contra o capot e vidro da frente da viatura. 13. CC, acabou por rebolar pela faixa de rodagem, caindo numa valeta, no lado esquerdo veículo. 14. Após, o arguido AA desferiu-lhe vários pontapés nos membros inferiores. 15. Entretanto, chegou ao local BB que, vendo o estado em que se encontrava o ofendido e apesar de este lhe suplicar para pararem de lhe baterem, depois de pisar o seu braço com o pé, desferiu-lhe vários murros na cabeça e tórax, ciente que podia, com essa conduta agravar-lhe as lesões.
Ora, perante estes factos, que estão em estado de imutabilidade ab initio, o tribunal efetuou a respetiva subsunção ao disposto nos artigos145º, n.º 1, alínea d), por referência ao artigo 132º, n.ºs 1 e 2, alínea c), do Código Penal – conformando-se o recorrente, em tese, com a subsunção da factualidade ao previsto no artigo 143.º do Código Penal, cumpra apenas averiguar se os factos quadram ou não ao previsto no artigo 145.º, n.º 1 e 2, por referência à sua alínea a), e ao disposto no artigo 13.º, n.º2, alínea c), todos do Código Penal.
O artigo 132.º, n.º 2, alínea c), do Código Penal estatui que
Homicídio qualificado 1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos. 2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: (…) c) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez; (…).
Vejamos o que consta da decisão recorrida a este respeito:
Prescreve o n.º 1 do artigo 143.º do Código Penal que “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”. Por sua vez, estabelece o artigo 145.º do diploma citado que “Se as ofensas forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido: a) Com pena de prisão até quarto anos no caso do art. 143.º (…)”, sendo que “são susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º”. Nos termos do n.º 2 deste normativo são suscetíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade o facto de o agente “praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez;” ou “utilizar meio particularmente perigoso” – cfr. als. c) e h). Sinteticamente, diremos que a técnica utilizada no artigo 132.º foi a dos exemplos-padrão, permitindo, por um lado, que o tribunal rejeite a subsunção ao tipo “qualificado” de uma situação de vida formalmente subsumível a alguma das alíneas do nº 2 deste artigo, mas que não revela a especial censurabilidade pressuposta pela “qualificação” e, por outro, subsuma ao tipo “qualificado” situações da vida semelhantes às nele previstas desde que reveladoras daquela especial censurabilidade. (assim, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2.ª edição atualizada, p. 400). À “especial censurabilidade” pretendeu o legislador imputar «aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refração, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “especial perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta diretamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, ob. Cit. p.29). Assim, para se afirmar a existência de especial censurabilidade ou perversidade no comportamento do agente, impõe-se, pois, a análise das circunstâncias concretas que rodearam a prática do facto e a conclusão de que elas são tais que exprimem inequívoca e concretamente uma especial perversidade do agente ou que são merecedoras de um severo juízo de censura. Tecidas estas considerações, vejamos o que dimana dos autos. (…) Quanto ao arguido BB: Este arguido, encetando uma perseguição a pé, juntamente com o sobrinho e a cunhada, correu atrás do ofendido, sendo ultrapassado pelo cunhado (o arguido AA) que seguia de carro. Depois de ver o carro do irmão embater no corpo do ofendido e este a ser projetado por cima da viatura em direção ao chão, onde caiu, junto à berma, o arguido BB aproximou-se do ofendido quando este jazia ferido, encostado ao muro. Apesar de o saber vítima do embate que acabara de acontecer, apesar de o saber ferido e queixoso de dor, apesar de ver o irmão a insultá-lo e agredi-lo com pontapés nas pernas, apesar de o ver a suplicar por clemência, o arguido não hesitou em prender-lhe um braço, com o pé, e socá-lo no corpo, enquanto, insultando-o, lhe perguntava pelos bens furtados. O arguido agiu assim plenamente ciente que o ofendido estava já gravemente ferido, incapaz de se levantar ou de esboçar qualquer sinal de defesa, estando ali cercado pelos arguidos e, entretanto, também pelo sobrinho, numa evidente posição de vulnerabilidade e indefesa. Não obstante, o arguido BB, sem tentar demover a ação do irmão ou prestar qualquer auxílio à vítima, desferiu os murros dados por provados, sabendo e querendo, como único propósito, ferir o seu corpo e aumentar as dores e lesões da vítima. Ora, não há dúvidas que este comportamento integra o tipo objetivo das ofensas à integridade física, mas poder-se-á afirmar que esta conduta é também especialmente censurável/perversa de molde a agravar a sua culpa? Mais uma vez, temos a resposta como afirmativa. Com efeito, quando este arguido se aproxima da vítima, sabia-a ferida, gravemente ferida pelo atropelamento que acabara de acontecer à sua frente: o corpo voou por cima do carro, partindo o seu vidro frontal, e caiu no chão, onde permanecia, incapaz de se levantar. Quando este arguido se acerca da vítima, sabia-a incapaz de reagir ou de se defender (acaso tivesse uma arma, já teria tido oportunidade, enquanto o arguido AA parava e saía do carro, de a empunhar, sendo que logo lhe prendeu um braço com o pé), sendo visíveis os ferimentos e a sua gravidade. Esta é, pois, uma agressão especialmente censurável, já que não cumpre qualquer outro propósito do que o de bater naquele que está já gravemente ferido, sem defesa, em virtude do acidente/agressão que acabara de sofrer. Ora, salvo melhor opinião, este é um caso que tem cobertura no exemplo-padrão da alínea c) do artigo 132º para que remete o já citado artigo 145º: o agente (arguido) pratica o ato (agressão) contra pessoa particularmente indefesa (ofendido ferido) porquanto, naquelas circunstâncias, se encontra à mercê do arguido, incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz.
O nosso acordo com o decidido é total, pelo que desnecessários se tornam quaisquer outros considerandos, improcedendo também esta pretensão recursiva.
Mas para ajudar o recorrente a interiorizar o quão infundada é a sua perspetiva, diremos apenas que é infinitamente mais uma alegação conclusiva dizer-se que arguido sabia que o ofendido se encontrava em situação que lhe dificultava particularmente a sua defesa em razão de ter as lesões que tinha. Ou seja, exigia-se ao arguido um duplo conhecimento: primeiro o de que as lesões eram incapacitantes e, em segundo, que tornavam o ofendido indefeso, como propõe na conclusão 77.ª, do que descrever a concreta situação do ofendido e dizer que o arguido viu o estado em que ele estava e, mesmo assim, decidiu agredi-lo. Relembramos que estamos perante juízo normativos e até de direito e que “pessoa particularmente indefesa em razão de” configura conclusão de direito a retirar dos factos dados como provados e que é aplicável ao caso se for exigível ao agente que assim os percecionasse, como é, sem duvida a presente situação, pois bater numa pessoa que está por terra e ferido, que não reage ou se defende e que clama por misericórdia ou equivalente, integra indubitavelmente a qualificação legal – o único caso conhecido de alguém que beneficiava ao estar por terra, surge na magnífica mitologia grega, e é o de Anteu, derrotado por Hércules num dos seus doze trabalhos (Os Pomos de Ouro das Hespérides), o qual, sempre que na luta com este caía ao chão, logo se levantava redobrado em sua força, devido ao contacto com a Terra (Gaia), sua mãe, até que Hércules disso se apercebeu, levantou-o do chão, onde não mais o pousou, e assim o venceu, por ele ter perdido toda a sua energia – cfr. Stephan Fry, in A Grande História dos Heróis Gregos, Clube do Autor, pag. 106/107. Tirando este caso, qualquer pessoa que esteja por terra, vencido, e a pedir clemência, deve ser poupado a posteriores agressões, tenham elas as origens e os fins que tiverem, como é evidente.
Assim sendo, nada há a censurar à subsunção jurídica efetuada na decisão recorrida.
M Os factos dados como provados integram a causa de justificação da legítima defesa?
Comecemos por ver o que e decidiu a este respeito no tocante ao arguido AA:
Ora, como causa exclusória da ilicitude, invoca o arguido – para este caso em que o embate, contrariamente ao por si alegado, é considerado intencional -, o exercício de legítima defesa, sustentando que agiu da única forma que lhe permitia recuperar os bens furtados já que, dada a distância do posto da GNR, “quando esta chegasse ao local de nada valeria: o furto estaria consumado e os bens definitivamente perdidos”, pelo que, conclui, “o arguido perseguiu e deteve legitimamente o ofendido”. Ora, estatui o artigo 32º, do CP, que constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro (cfr., ainda, o artigo 31º, nsº1 e 2, alínea a), do mesmo diploma legal). São, assim, pressupostos da legítima defesa: [i] a existência de uma agressão a quaisquer interesses, pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro; [ii] que essa agressão seja actual, no sentido de estar a desenvolver-se ou na iminência disso; [iii] que seja ilícita, no sentido de ser contrária ao direito; [iv] que a defesa utilizada quantos aos meios seja apenas a adequada e necessária para fazer cessar aquela agressão ilícita, aqui se incluindo a impossibilidade de recurso à força pública; e [v] que o agente aja com o intuito de se defender animus deffendendi ou seja, com o fim de pôr termo à agressão em curso ou iminente (vide MAIA GONÇALVES, Código Penal Anotado, 8ª edição, 1985, p.277 e MIGUEZ GARCIA, O Risco de Comer uma Sopa e Outros Casos de Direito Penal, 2ª edição revista e actualizada, Almedina, Agosto, 2012, p.371ss; e o Acórdão da Relação do Porto, de 11.12.2013, acessível em www.dgsi.pt). Como se afirma no Acórdão do STJ, de 13.12.2001: [s]ó é legítima se surgir como indispensável para a salvaguarda de um interesse jurídico do agredido ou de terceiro – o meio menos gravoso para o agressor. A necessidade de defesa tem de ser vista em confronto com as circunstâncias em que se verifica a agressão, e, em particular, consoante a intensidade desta, a perigosidade do agressor, a sua forma de actuar e os meios de que se dispõe para defesa. Assim a necessidade deve aferir-se objectivamente, ou seja, segundo o exame das circunstâncias feito por um homem médio colocado na situação do agredido (vide Colectânea de Jurisprudência – STJ, 2001-III-244). Efectivamente, como sustenta TAIPA DE CARVALHO, sendo função da acção de legítima defesa apenas o impedir ou repelir a agressão, compreende-se e exige-se que o defendente só utilize o meio considerado no momento e segundo as circunstâncias concretas, suficiente para suster a agressão. Meios adequados para impedir a agressão, mas mais danosos (para o agressor) do que aqueles que, sem deixarem de ser adequados (suficientes, eficazes), causariam menores lesões ou prejuízos ao agressor, serão considerados desnecessários e, assim, excluirão a justificação do facto praticado pelo agredido (vide A Legítima Defesa, 1995, Coimbra Editora, p.317). Daí que no artigo 33º do CP se estabeleça que se houver excesso dos meios empregados em legítima defesa, o facto é ilícito mas a pena pode ser especialmente atenuada, não havendo lugar à punição “se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto, não censuráveis.” A este propósito, escreve-se no Acórdão do STJ, de 18.04.2002, que: 1 – A legítima defesa, como causa exclusória da ilicitude, constitui o exercício de um direito: o direito de legítima defesa que tem, entre nós, assento na Constituição, no Código Civil e está previsto para efeitos penais no art. 32.º do C. Penal, estando dependente a sua capacidade exclusória da ilicitude da verificação dos seguintes requisitos: - agressão actual e ilícita; - defesa necessária e com intenção defensiva. 2 – Já o excesso de legítima defesa se situa entre as causas de exclusão da culpabilidade: circunstâncias que impedem que determinado acto considerado ilícito pela lei, seja atribuível de forma culposa ao seu autor, motivos que anulam, pois, o conhecimento ou a vontade do agente. 3 – O excesso de legítima defesa, quando o excesso (no grau em que são utilizados ou na sua espécie os meios necessários para a defesa) resultar de perturbação, medo ou susto não censuráveis (art. 33.º, n.º 2 do C. Penal) cabe na inexigibilidade de conduta diversa, actuando no domínio da culpa. 4 – O «excesso nos meios» de que fala a lei, porque é em regra esse tipo de excesso que ocorre, resultante da perturbação profunda que a agressão provoca no agente deve imputar-se a uma culpa mitigada (ao menos em princípio), susceptível de permitir ao juiz que atenue a pena (art. 33.º, n.º 1 do C. Penal), ou não sendo censurável conduzirá à não punição do agente (art. 33.º, n.º 2 do C. Penal). 5 – Mas não é qualquer perturbação, medo ou susto que é susceptível de afastar a punição em caso de excesso de legítima defesa, o que só sucederá quando os mesmos não forem censuráveis. 6 – A necessidade da defesa há-de apurar-se segundo a totalidade das circunstâncias em que ocorre a agressão e, em particular, com base na intensidade daquela, da perigosidade do agressor e da sua forma de agir (acessível em www.dgsi.pt, relator SIMAS SANTOS). Transpondo as considerações vindas de enunciar para o caso decidendo verificamos que: - quando a esposa do arguido AA se apercebeu da presença de um estranho no interior da sua casa, ligou-lhe para o local de trabalho, dando-lhe conta do que sucedia; - o arguido AA ligou para o irmão, que se encontrava no mesmo local de trabalho, pedindo-lhe para ir ter com ele a sua casa; - nem a esposa do arguido AA nem nenhum dos arguidos chamou as autoridades policiais; - o posto da GNR fica a cerca de 12 Km do local; - os arguidos demoraram cerca de 5 a 10 minutos a chegar ao local; - os arguidos viram o ofendido a saltar o muro e fugir apeado; - os arguidos, juntamente com o sobrinho, percebendo a fuga do ofendido, decidem encetar-lhe perseguição, seguindo o AA de carro e os outros a pé; - o arguido AA decide atingir o corpo do ofendido com o carro, por trás; - o local do embate é uma via com dupla circulação com, pelo menos, 7 metros de largura. Ora, dos factos que se deixam enunciados, cremos, não resulta que a agressão do arguido AA tenha sido praticada ao abrigo de uma legítima defesa (nem sequer, por excesso). Com efeito, reconhece-se que existiu uma agressão a um interesse patrimonial do arguido AA (ainda que, nesse momento, este desconhecesse se, efetivamente, o ofendido havia logrado apropriar-se de qualquer bem e, se sim, de que valor), e admite-se que a reação/agressão do arguido, ilícita (porque atentatória da integridade física) seja atual. Ainda que na perspetiva do arguido (e de qualquer homem comum no seu lugar), por certo, o assalto a que reagia lhe afigurasse como já ocorrido (tendo o seu autor abandonado o local, de que se afastava em passo de corrida), facto é que, técnica e juridicamente o furto (qualificado) que se veio a comprovar ter existido, enquadrado na forma de tentativa (pelo qual o ofendido foi já condenado), não estava ainda consumado, pelo que se afirma estar em curso, o que permite concluir que, quando ocorre o atropelamento, o ato de subtração dos bens pelo ofendido ainda não estava finalizado. Tanto basta para se afirmar que, pese embora assim não pareça, a agressão a que o arguido reage é atual. Mas se é atual, já não a entendemos necessária nem proporcional. Com efeito, quando foram alertados da presença, não autorizada, do ofendido no interior da sua casa, podiam e deviam (pelo menos) os arguidos ter chamado as autoridades ao local, não podendo a distância do posto justificar que, sem mais, se desconsiderem as regras da vida em sociedade. Caso contrário, estaria aberta a porta à justiça privada a todos quantos não tenham os postos ou esquadras por vizinhos… Note-se que, apesar de o posto da GNR estar a 12 Km de distância, nada garantia aos arguidos que o carro patrulha não estivesse já na rua, a 2 ou 3 ou 5 ou 10 minutos de sua casa, na certeza de que eles próprios demoraram a chegar ao local entre 5 a 10 minutos, não dispondo dos sinais luminosos ou sonoros de marcha de urgência que existem nas viaturas policiais. Para além do que se deixou dito, há a ter presente que o arguido AA, que negou ter intencionalmente atingido o corpo da vítima, podia ter adotado outra conduta, aquela que afirmou ser a sua pretensão: a de cortar o caminho do ofendido, obrigando-o a parar. Para isso, dispunha o arguido AA das necessárias condições: a sua viatura deu-lhe a velocidade e dava-lhe o avanço preciso para o alcançar e depois ultrapassar, pela direita da estrada, atravessando-se à sua frente, antes da cabine de eletricidade, num movimento de 90º que a largura da via ali lhe permitia. Aí, impedido de prosseguir em frente, o ofendido ou saltaria o muro lateral, onde acederia a uma casa donde não podia fugir, ou voltaria para trás, onde tinha o arguido BB, o sobrinho deste e, logo a seguir, a esposa do arguido AA, assim deixando-o sem escapatória e com a sua identidade revelada. Tendo todas estas alternativas disponíveis, entendeu o arguido AA agir da forma dada por provada, causando as lesões que foram verificadas na vítima (e até os danos na sua viatura), indiferente a estas consequências, empenhado que estava em, como refere na sua contestação, terminar com a carreira criminosa do ofendido, que ali julgou, condenou e puniu, não apenas pelo assalto antes realizado mas também por todos os demais de que foi vítima (mesmo quando o ofendido era ainda menor) e até por todos os que tenham ocorrido nas redondezas. Evidencia-se-nos, de forma clara e unânime por todos os elementos deste tribunal de juri, que o animus do arguido não era o de se defender mas o de castigar o ofendido, ali mesmo executando a pena, indiferente às lesões e gravidade que causasse e, até, ao risco que produzia para si e para terceiros (recorde-se que conduzia em contra-mão, numa via pública). Por isso também se afirma que a agressão do arguido, para além de não necessária, não foi seguramente proporcional: a desproproção entre a gravidade da lesão causada à integridade física do ofendido e o interesse patrimonial protegido (cujo montante desconhecia mas sabia que, a existir, seria limitado a bens ou valores transportados no corpo do ofendido) é indiscutível e manifesta. O que dizer se o arguido tivesse surpreendido um crime, ou tentativa de crime, de ofensas à integridade física, ou de natureza sexual, ou mesmo de homicidio, em que os bens jurídicos atingidos são seguramente mais valiosos que eventuais bens patriminiais? Entendemos, pois, que não resulta verificada a invocada legítima defesa, como causa excludente da ilicitide. Mas terá havido excesso de legítima defesa? Ora, como já deixamos dito supra, para que esta justificação do ato opere, “o excesso dos meios empregados em legítima defesa” resulta de “perturbação, medo ou susto, não censuráveis”. No caso, como decorre da factualidade provada, não se apurou que o arguido AA tenha agido em estado de perturbação, medo ou susto em virtude da ação do ofendido. Pelo contrário, provou-se que o arguido teve vários minutos para pensar na sua reação ao intruso/assaltante, durante a viagem que fez (sozinho) desde a chamada da esposa até chegar a casa e aí o ver; depois disto, enquanto via os familiares a correr atrás do ofendido, enquanto entrou no seu carro, passou por estes e seguiu no encalço da vítima, teve ainda larga oportunidade para refletir nesta sua intenção agressiva a qual, em vez de medo ou susto, é clara demonstração de uma vontade firme, determinada e afoita, de parar do ofendido, sem qualquer receio de o enfrentar e confrontar, como fez. Assim, como claramente resulta da matéria de facto provada (pontos 9, 10, 11, 12, 14, 19, 21, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 55) e não provada (pontos K e L), conclui-se que este arguido agiu com o propósito de ferir e magoar o corpo do ofendido pelas razões e do modo supra descrito, causando-lhe as lesões descritas, resultado que quis e representou, pelo que temos por preenchido também o elemento subjetivo do crime, sendo a conduta culposa, dado que o mesmo é imputável e agiu com consciência da ilicitude. Donde se conclui ter este arguido cometido um crime de ofensa à integridade física qualificada, por força da al. h) do n.º 2 do artigo 132º do CP.
Repare-se que em relação ao arguido BB, o tribunal nem sequer aprecia a questão, pois luce meridiana clarior, não há mínima possibilidade de verificação dessa causa de exclusão da ilicitude.
Neste segmento da decisão recorrida, o dissídio concretiza-se no seguinte:
86ª O acórdão recorrido entende que a conduta não era necessária nem proporcional pelas razões que alinha, sendo que a primeira das quais tem que ver com o facto de o arguido não ter chamado a GNR, dizendo que a patrulha até podia estar muito mais perto do que a sede da GNR em .... 87ª No mundo das hipóteses tal podia acontecer, mas a verdade é que os próprios agentes afirmaram em audiência que estavam em ..., quando foram chamados, ou seja, muito perto de .... 88ª Por outro lado, e decisivamente nenhum facto consta como assente que afaste a necessidade do uso do veículo, bem pelo contrário, tal como também nenhum facto se deu como provado quanto às características do local – ou sequer há quanto tempo o ofendido estava a correr para se dizer que este estava cansado, como se tenta dizer no acórdão recorrido – para se concluir que o arguido AA podia ultrapassar o ofendido pelo direita e atravessar-se à frente dele e muito menos, decisivamente, quando este corria do lado esquerdo da estrada junto à berma (ponto 23 da matéria de facto). 89ª Ou seja, se o arguido tentasse essa manobra acabaria, com certeza, com o carro batido de frente contra o muro e o arguido fugiria. 90ª Como decorre dos factos provados, o arguido quando recebeu a chamada da sua esposa encontrava-se no seu local de trabalho na empresa EMP02..., Lda. sita na Rua ..., freguesia ..., 91ª Ou seja, a uma distância de 2,9 Km, cerca de 5 minutos de carro da sua residência sita na Rua ..., ..., freguesia ..., como, aliás, se diz na acusação (ponto 45 da matéria de facto). 92ª A GNR competente na área da ... (...) onde está localizada a habitação do arguido, tem o seu quartel Rua ..., ..., ... ... estava a 12,7 Km, cerca de 19 minutos de carro da referida Rua ... (cfr. o doc. nº2 junto com o requerimento de instrução), partindo do pressuposto de que sairiam do posto, logo que o ofendido se ausentou da residência do arguido (ponto 56 da matéria de facto), 93ª Pelo que, se o arguido esperasse pela GNR, o ofendido com toda a certeza ter-se-ia posto em fuga, não mais sendo visto e desaparecendo definitivamente com os bens do arguido, como o fez ou fizeram outros como ele por cerca de 5 vezes. 94ª Daí que, o arguido ou a sua esposa não tivessem, imediatamente, chamado a GNR, pois que quando esta chegasse ao local de nada valeria: o furto estaria consumado e os bens definitivamente perdidos. 95ª Sucede que, por um lado o seu irmão e o seu sobrinho não conseguiam alcançar o ofendido – repare-se que o ofendido nasceu em ../../1999 (cfr. fls. 43), ou seja, tinha 19 anos à data da prática dos factos, o co-arguido BB nasceu em ../../1964 (cfr. fls. 114), ou seja tinha 54 anos à data da prática dos factos e o sobrinho do arguido nasceu em ../../1988 (cfr. fls. 127), ou seja tinha 30 anos à data da prática dos factos – (ponto 57 da matéria de facto), 96ª E o arguido AA, como se disse e decorre da acusação – ponto 9 - tinha “dificuldades em caminhar por ter sido sujeito a uma cirurgia” e, por outro, mesmo que estivesse totalmente são, nasceu em ../../1973 (cfr. fls. 105), ou seja, tinha 46 anos à data dos factos (pontos 9 e 44 da matéria de facto), 97ª Pelo que, a mais nova das pessoas que estava com o arguido era 11 anos mais velho que o ofendido e, portanto, a menos que fossem atletas – que não são –, dificilmente conseguiriam apanhar o ofendido e detê-lo nas circunstâncias vindas de descrever. 98ª Daí que, o arguido AA tenha optado por perseguir o ofendido de carro, detê-lo e depois chamar a GNR, como o fez. 99ª Mesmo que o arguido AA tivesse embatido intencionalmente no ofendido estes com a sua conduta pretendiam deter e constranger o ofendido a restituir o que havia furtado e, portanto, agiram em legítima defesa. 100ª Quanto à necessidade – que o acórdão recorrido afasta -, nos dizeres de Figueiredo Dias, in Direito Penal – Parte Geral, tomo I, 2ª edição, pag. 405 “(…) são dois os fundamentos da força justificativa da legítima defesa. Por um lado, a necessidade de defesa da ordem jurídica, através da qual se justificará que se sacrifiquem bens jurídicos de valor superior aos postos em causa pela agressão; se justificará que, numa palavra a legítima defesa não esteja limitada por uma ideia de proporcionalidade. Mas por outro lado também a necessidade dos bens jurídicos ameaçados pela agressão. 101ª A questão da proporcionalidade do meio de defesa contra o agressor não se coloca no preenchimento da acção de legítima defesa, mas tendo em conta o concreto circunstancialismo dos factos já descritos e as características do ofendido e do arguido - o primeiro um jovem de 19 anos, na flor da idade e cheio de vigor como se demonstra pela forma como transpôs o muro do jardim da habitação do ofendido e o segundo um homem de 46 anos, baixo e de compleição física muito inferior à do ofendido – seria sempre justificada a conduta do arguido através da legítima defesa. 102ª Ainda que se entendesse que não estão preenchidos os pressupostos da legítima defesa, certo é que o arguido pretendia constranger o ofendido a devolver os bens de que o ofendido ilegitimamente se apropriou, sendo que o ofendido, mesmo depois do acidente, negou que tivesse consigo. 103ª Mesmo na versão da acusação o arguido terá exercido violência dobre o ofendido para que este restituísse os bens que este furtou, pelo que independentemente da forma como a doutrina vê a norma do artº 154º nº3 als. a) e b) do Código Penal que para uns será uma causa de não exigibilidade (Maia Gonçalves, Código Penal anotado, 18ª edição, 2007, pag. 598), para outros será uma causa especial de exclusão da ilicitude da coacção ou uma causa de justificação exclusivamente referida aos crimes de coacção (Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense, 1ª edição, pag. 360/361, Miguez Garcia e Castela Rio, in Código Penal – Parte Geral e Especial, 1ª edição, pag. 638 e Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 4ª edição actualizada, pag. 661), deverá considerar-se justificada a conduta dos arguidos. 104ª De facto, todos os autores referidos estão de acordo numa conclusão: a de que as als. a) e b) do artº 154º nº3 do Código Penal constituem circunstâncias excludentes da punibilidade exclusivas do crime de coacção e que funcionam, mesmo que não se verifiquem os pressupostos das causas de exclusão da culpa tradicionais. 105ª Pelo exposto, o constrangimento a que os arguidos alegadamente sujeitaram o ofendido, foi meio adequado e proporcional, destinando-se a evitar a consumação de um facto ilícito típico, designadamente de um furto, 106ª Pois que, se assim não fosse, dificilmente o arguido AA reaveria os bens que lhe foram subtraídos e, portanto, a actuação dos arguidos não é punível de acordo com o artº 154º nº3 al. a) e b) do Código Penal.
Há, efetivamente, na decisão recorrida duas afirmações que hoje estão esclarecidas pela Doutrina mais autorizada: a primeira é a afirmação, para ocorrência da causa de justificação que aqui se aprecia da necessidade de verificação do animus defendendi; a segunda é a configuração da proporcionalidade como requisito da sua verificação.
No que se refere à primeira questão:
“Para além do requisito subjetivo que vale para a generalidade das causas de justificação – o do conhecimento da situação de legítima defesa (cfr. Supra 14.º Cap., 17) desde há muito que se suscita e continua a suscitar-se a questão e saber se será ainda de exigir, como requisito da ação de defesa, a existência no defendente de um animus deffendendi, de uma atuação com a vontade de defender os bens jurídicos ameaçados pela agressão. Uma resposta afirmativa foi outrora dominante na doutrina portuguesa; mas, como acentua Taipa de Carvalho, tal equivalia só as mais das vezes a exigir que o defendente representasse a existência de uma agressão atual e ilícita. A jurisprudência portuguesa tem-se mantido fiel à exigência neste contexto de uma vontade de defesa, impondo até mesmo por vezes - o que é de todo inaceitável – que essa vontade se manifeste sob a forma de «dolo direto». Mas ultrapassado o entendimento puramente objetivista da ilicitude e da justificação, compreende-se que a doutrina hoje dominante corra no sentido de que, existindo o conhecimento da situação de legítima defesa, não deverá fazer-se a exigência adicional de uma co-motivação de defesa: tal faria depender a existência de justificação e manifestação de uma atitude interior do defendente que levaria a contar perigosamente a legítima defesa com conceções morais próximas de uma direito penal do agente.” – cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Parte Geral, Coimbra Editora, 2.ª edição, Tomo I, pag. 433.
No mesmo sentido, Tereza Pizarro Beleza, Direito Penal, 2.º Vol. AAFDL, pag. 255, e Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, UCE, 3.º Edição, pag. 402 e 344, e Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Almedina, Parte Geral, pag, 186.
Quanto à segunda:
“Ao contrário do que acontece em outras figuras de causa de justificação – é o caso por exemplo da ação direta ou do estado de necessidade – na legítima defesa não está diretamente implicada uma ideia de proporção. (…) E, portanto, em última análise saber se uma pessoa agiu corretamente em legítima defesa, ou se se excedeu, tem mais que ver com as possibilidades práticas de defesa que a pessoa tinha do que propriamente com uma comparação de gravidade entre a ofensa de que ia ser vítima, e a ofensa que, por sua vez, cometeu em legítima defesa.” – cfr. Teresa Pizarro Beleza, ob. cit., pag. 248.
“Pode afirmar-se assim, acompanhando até certo ponto a doutrina hoje dominante entre nós, que são dois os fundamentos da força justificativa da legítima defesa. Por um lado, a necessidade de defesa da ordem jurídica, através da qual se justificará que se sacrifiquem bens jurídicos de valor superior aos postos em causa pela agressão; se justificará que, numa palavra, a legítima defesa não esteja limitada por uma ideia de proporcionalidade. Mas por outro aldo também a necessidade de proteção de bens jurídicos ameaçados pela agressão.” Figueiredo Dias ob. cit., pag. 405.
“Poderá, então, sustentar-se racionalmente, juridicamente, que não é de invocar a necessidade de defesa em casos de agressões que consistem em ofensas de muito pequena importância, ou, como alguns as denominam, em «bagatelas»? Deverá então prescindir-se racionalmente da defesa (ou sejam, excluir a legítima defesa) sobretudo se o único meio de defesa for fortemente desproporcionado em relação à ofensa em que consiste a agressão? A afirmativa tem sido por vezes admitida na interpretação jurisprudencial e doutrinária alemã. E, de certo modo, o seu fundamento traduz a ideia de uma proporcionalidade entre a agressão e a defesa, em razão do dano que causam; serviu de base ao critério de proporcionalidade que o nosso Código Civil recebeu do Código italiano. Mas não é como critério fundamental que pode ser admitido. É como coadjuvante do critério geral, ou seja, o direito não pode considerar justa uma defesa implacável contra danos de pequena monta, usando meios que, para esse fim, são juridicamente inadequados, porque constituem um meio gravemente injusto para um fim que embora justo é de ínfima importância.” Cfr. Cavaleiro de Ferreira, ob. cit., loc. cit., pag, 186.
No mesmo sentido, Eduardo Correia, Direito Criminal, Almedina, Vol. II, pag. 59, e Conceição Valdágua, in Legítima Defesa no Código Penal e no Código Civil, Jornadas de Homenagem ao Prof. Cavaleiro de Ferreira, Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, pag. 264.
Assim sendo, não entraremos aqui em consideração com questões de proporcionalidade, nem terá qualquer relevância o conjunto de observações (dispensáveis, de resto) sobre as íntimas motivações que o acórdão imputa ao arguido AA a propósito do dito animus deffendendi.
Restará, então, analisar apenas a questão relativa à necessidade do meio empregue pelo arguido para defender o seu património.
“A justificação por legítima defesa pressupõe que na ação de defesa sejam usados os meios necessários para repelir a agressão atual e ilícita. A necessidade dos meios é, deste modo, um dos requisitos essenciais da legítima defesa e talvez aquele que, na prática, mais dúvidas e dificuldades suscita. É por isso importante determinar, com a precisão possível, os critérios pelos quais se deverá avaliar se numa concreta situação os meios usados pelo defendente foram os necessários para responder à agressão. O meio será necessário se for um meio idóneo para deter a agressão e, caso sejam vários os meios adequados de resposta, ele for o menos gravoso para o agressor. Só quando assim aconteça se poderá afirmar que o meio usado foi indispensável à defesa e, portanto, necessário.” cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pag. 419.
Para uma perspetiva mais abrangente desta complexíssima questão, parece-nos adequada a seguinte exposição de Cavaleiro de Ferreira, in ob. cit., loc. cit., pag. 174:
“A formulação do conceito legal de legítima defesa no Código Penal de 1982 representa formalmente um regresso à fórmula do Código francês de 1808 (art. 328.º). Foi esta que esteve na origem da definição do Código Penal português de 1852, como igualmente do Código Penal prussiano, e que é, praticamente inaltera, a do § 32 do atual Código alemão de 1975; tendo recebido idêntica formulação o art. 32.º do Código atual, regressa-se assim à conceção de legítima defesa que era também a do nosso Código de 1852 (art. 14.º, n.º 3).
A definição de legítima defesa do Código de 1852 foi criticada pela doutrina coeva (Comentário de Levi Maria Jordão e Teoria do Direito Penal de Silva Ferrão).
Ora, o Código francês simplificou o conceito de legítima defesa, alargando o seu âmbito relativamente à noção de legítima defesa consoante fora delineada pela legislação canónica e civil anterior.
As Ordenações (Livro V, título 35) consagravam a legítima defesa do seguinte modo: “Se a morte for em necessária defensão, não haverá pena alguma, salvo se nela excedeu a temperança que devera e pudera ter, porque então será punido segundo a qualidade do excesso”.
Já a doutrina que se desenvolvera no direito canónico exigia para justificar a impunidade a temperança ou a moderação da defesa inculpada: moderamen inculpatae tutelae.
No Ensaio do Código Criminal de Mello Freire (título XXX, § 5.º) declara-se que “…não tem pena alguma o homicídio feito em justa e necessária defesa da própria vida ou de algum membro do corpo, contra todo e qualquer injusto agressor”; e no 8.º: “não sendo a defesa inculpada e provando-se que o matador excedeu a temperança que devera e pudera ter, será punido segundo a qualidade do excesso”.
A definição do Código Penal francês, exigindo apenas a necessidade de defesa e suprimento o requisito da sua “temperança”, quis dar expressão ao carácter absoluto dos direitos individuais que eram objeto da legítima defesa, como corolário do mais extrénuo individualismo.
Mas o perfil da legítima defesa consoante foi gizado por canonistas e legistas manteve-se nos Códigos que se subtraíram à rigidez da primitiva fórmula oriunda do individualismo da Revolução Francesa.
A reforma do Código Penal português de 1844 regressou, como a crítica o exigia, à definição tradicional (Código Penal de 1886, art. 46.º), procurando escrupulosamente esclarecê-la. Serviu-lhe de apoio similar empreendimento da legislação espanhola com o Código Penal espanhol de 1848, o qual se inspirou no Código Penal brasileiro do Império (1830), que não se abandonara o rumo que se mantém ainda no Código Penal de 1890 e nos posteriores.
Portugal, Brasil, Espanha e países da América Central e do Sul de origem espanhola mantiveram a legitimidade da defesa condicionada pela moderação ou temperança, com fórmulas iguais ou similares, e em geral também a exigência da defesa inculpada.
As duas orientações mantiveram-se diferenciadas na legislação. Já não assim na efetiva aplicação do direito, isto é, na realidade do instituto da legítima defesa, porquanto, quer em França, quer na Alemanha, não obstante a manutenção da mesma conceção legal, a jurisprudência e a doutrina criaram limites à legítima defesa, que aproximaram a sua estrutura, com variável fundamento ou criativa argumentação, na realidade da vida jurídica, daquela que a tradição jurídica portuguesa mantivera.
Este panorama pode originar alguma perplexidade na interpretação do novo Código. E na verdade o dilema que se coloca é o seguinte:
1.º - Na lógica da interpretação do novo Código, o confronto deste com o Código revogado revela indubitavelmente a supressão de requisitos de legitimidade da defesa que a condicionavam ou limitavam e a conclusão deveria ser que se optou pela supressão desses limites constantes da lei anterior e que no novo não foram reproduzidos, com a mesma ou diversa formulação.
2.º - A originária conceção individualista da legítima defesa que o Código francês e, seguindo-o, o Código alemão conservam, veio a ser limitada na interpretação jurisprudencial e doutrinária, quer mediante o apelo a princípios gerais, quer mediante o confronto com outras instituições da ordem jurídica, quer mediante uma interpretação evolutiva, de modo que requisitos não expressos legalmente da legitimidade da defesa lhe foram apostos por essa forma indireta.
E, sendo assim, surge a dúvida sobre se o novo Código regressou à conceção originária, que estava na base da orientação do legislador francês e prussiano, ou se pretendeu importar os limites que, criativamente, a doutrina e jurisprudência francesa ou alemã impuseram à rigidez da fórmula legal.
A primeira alternativa é efetivamente a mais lógica, pois que, na evolução do direito pátrio, não pode deixar de estar presente em nova legislação aquilo que há-de suprimir-se na legislação a revogar, bem como o alcance ou amplitude da inovação.
Mas também é certo que o rígido conceito individualista de legítima defesa não é atualmente recebido no direito vigente de qualquer país, mesmo daqueles que lhe conservam a expressão legal. E por isso há que ponderar a segunda alternativa.”
Ora, Figueiredo Dias é o primeiro a reconhecer as dificuldades de vulto (ob. cit., pag. 422) no julgamento sobre a necessidade/idoneidade do meio utilizado para defesa, o que deveria ter motivado o recorrente a aceitar com mais humildade o veredicto do tribunal de júri, não obstante ser absolutamente compreensível que do mesmo apresente recurso.
Neste segmento específico, consta da decisão recorrida: Para além do que se deixou dito, há a ter presente que o arguido AA, que negou ter intencionalmente atingido o corpo da vítima, podia ter adotado outra conduta, aquela que afirmou ser a sua pretensão: a de cortar o caminho do ofendido, obrigando-o a parar. Para isso, dispunha o arguido AA das necessárias condições: a sua viatura deu-lhe a velocidade e dava-lhe o avanço preciso para o alcançar e depois ultrapassar, pela direita da estrada, atravessando-se à sua frente, antes da cabine de eletricidade, num movimento de 90º que a largura da via ali lhe permitia. Aí, impedido de prosseguir em frente, o ofendido ou saltaria o muro lateral, onde acederia a uma casa donde não podia fugir, ou voltaria para trás, onde tinha o arguido BB, o sobrinho deste e, logo a seguir, a esposa do arguido AA, assim deixando-o sem escapatória e com a sua identidade revelada. Tendo todas estas alternativas disponíveis, entendeu o arguido AA agir da forma dada por provada, causando as lesões que foram verificadas na vítima (e até os danos na sua viatura), indiferente a estas consequências, empenhado que estava em, como refere na sua contestação, terminar com a carreira criminosa do ofendido, que ali julgou, condenou e puniu, não apenas pelo assalto antes realizado mas também por todos os demais de que foi vítima (mesmo quando o ofendido era ainda menor) e até por todos os que tenham ocorrido nas redondezas.
Ora, tendo presente os factos dados como provados, parece-nos que o raciocínio plasmado na decisão recorrida é correto: em vez de embater com o automóvel contra o corpo do aqui ofendido, poderia o arguido ter efetuado a manobra atrás descrita, como fortíssimas probabilidades de sucesso. Assim, o meio atropelamento violento não se afigura ser o meio necessário, sem prejuízo de podermos entender, tal como faz o tribunal recorrido, que o uso do automóvel para perseguir e a realização de outro tipo de manobras, como a ali referida, seriam suficientes para debelar a agressão. Ou seja, o caso é de defesa, já não legítima, porque em excesso, embora lei a qualifique de legítima a defesa em excesso – cfr. art.º 33.º do Código Penal.
Por outro lado, embora concedamos razão ao recorrente em que não era certo nem seguro que a autoridade policial, se chamada, chegasse a tempo ao local, será sempre de estranhar que não tenha havido essa tentativa enquanto fazia o percurso do trabalho para casa, ou que não tenha solicitado à esposa que o fizesse enquanto esperava do lado de fora da casa, o que é, eventualmente demonstrativo de falta de confiança no sistema de segurança, assim como será eventualmente demonstrativo de falta de confiança no sistema de justiça o facto de apenas ter apresentado uma denúncia por furto, não obstante ter sido vítima de vários desses ilícitos. É um direito legítimo do recorrente, as ditas desconfianças, que fazem até parte de um impreparado discurso de alguns dos nossos concidadãos, como é consabido, mas esse direito não lhe dá acesso a outros direitos que, ao que parece, ele julga ter. “A impossibilidade de recorrer à força pública (…) tem de ser vista em relação às circunstâncias concretas: por exemplo, o facto o facto de um agente estar presente pode não significar que seja possível recorrer à força pública, pois até se pode recorrer à força pública e esta não fazer nada. Isso quer dizer que nesse caso a legítima defesa seria permitida.” – cfr Teresa Pizarro Beleza, ob. cit., loc. cit., pag. 247. Assim, concordando que a elucubração teórica formulada na decisão a respeito da eventual localização da autoridade policial é algo forçada, também sublinhamos a insensatez consubstanciada no seu não acionamento no caso em (eventual) tempo útil. De qualquer modo não atribuímos a esta omissão inicial o efeito excludente da consideração desta causa de justificação, pois é também possível cogitar que a falta de certeza, nessa altura, da realidade da agressão pudesse ter induzido alguma hesitação em relação à concretização dessa diligência.
Ora, retomando o excurso histórico acima transcrito e a sugerida ponderação de recusa de uma visão puramente individualista nesta causa de justificação, temos como certo que a conduta do ora arguido se encontra muito distante da moderação e da temperança exigidas pelos nossos antepassados, em tempos em que estes problemas eram encarados de modo mais áspero, e em que os direitos das pessoas, designadamente das pessoas que delinquiam, eram muitas vezes meramente aparentes, e que presidem de novo aos mais autorizados critérios interpretativos desta causa de exclusão, tal como se explicou.
Assim, não obstante as limitações físicas do arguido, bem como a sua idade, quando comparada com a do aqui assistente, invocadas com vigor no recurso, e admitindo a perseguição automóvel como lícita ou necessária, entendemos, tal como o tribunal recorrido entendeu, que concreta utilização do meio escolhido (atropelamento violento) pelo ora arguido não era o meio necessário, porque havia outras alternativas, tal como se referiu, e haveria, pelo menos, primeiro que tentar levá-las a cabo – os disparos de uma arma de fogo contra o agressor podem, eventualmente, ser admitidos num contexto de legítima defesa, mas o quadro da situação pode exigir que antes de alvejar este, sejam efetuados um ou dois disparos de aviso, por exemplo. O facto de se aceitar a utilização do automóvel para este fim, nos termos equacionados no acórdão, e por nós subscritos, não quer dizer que se reconhece que o atropelamento também o seja, pelo menos de modo inicial e como primeira alternativa. Poder-se-ia até aceitar um pequeno embate com o automóvel, com temperança e moderação, algo de concretização muito fácil e que apenas exigiria a moderação da velocidade e/ou o uso do travão antes do embate, e que este fosse efetuado de modo lateral e não por trás, tudo de modo a não causar danos significativos no agressor, mas provocar um atropelamento com tamanhas consequências físicas que, embora não pretendido certamente, tal como se decidiu e merece o nosso acordo, poderia facilmente causar a morte do aqui assistente (bastava, para tanto, por exemplo, bater com a cabeça numa esquina de uma pedra com violência) afigura-se inadmissível exagero – ainda há bem pouco tempo foi conhecido o caso, numa grande cidade portuguesa, de um jovem que deu um soco/empurrão a outro à entrada de um bar, o qual caiu e bateu com a cabeça na esquina do passeio e por isso faleceu. Será que o ora recorrente assumiria a mesma aposição que assume no recurso se, acidentalmente, o agressor tivesse falecido na queda provocada pelo embate? Não sabemos, mas é ago que merece reflexão –teria morrido por duas moedas de prata! Além disso, e por mais que o recorrente percuta nas excecionais capacidades de velocista do ora assistente, o homem mais rápido do mundo, Usain Bolt, atingiu a velocidade máxima de 44,72 km hora, e média de 37,58 km hora quando bateu o record mundial dos 100 metros, pelo que este impreparado vimaranense certamente correria a uma velocidade muitíssimo inferior, admitamos, com muito boa vontade e para mero efeito de raciocínio, na casa de metade daqueles valores, o que, para um carro ligeiro atual, constitui uma velocidade só alcançável com muita atenção e contenção, pois todos eles tendem a andar mais rapidamente, sem que o condutor se aperceba sequer, atento avanço técnico verificado na indústria automóvel; assim sendo, ultrapassar o agressor em fuga em vez de o derrubar seria algo muito fácil e ao alcance do defendente, nem sequer se justificando ou compreendendo, até, a argumentação a este respeito apresentada, designadamente o bater contra a parede para execução da manobra corretamente aventada na decisão recorrida.
Concluímos, portanto, que o meio utilizado era o necessário naquele quadro, mas que a sua concreta utilização se revela excessiva, nos termos expostos.
Quanto à atenuação da pena daqui derivada, nos termos do artigo 33.º, n.º 1, do Código Penal, pronunciar-nos-emos em seguida.
O recurso procede em parte, neste segmento, portanto.
O As penas aplicadas devem ser reduzidas, e deve revogar-se a decisão na parte em que condiciona a suspensão da execução das penas ao pagamento da indemnização ao ofendido?
Sobre a medida da pena prevê o Código Penal o seguinte:
Artigo 71.º Determinação da medida da pena 1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. 2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. 3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.
“Através do requisito de que sejam levadas em conta exigências de prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária de punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional do respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente, - limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção. – cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, Reimpressão, 2005, pag. 215.
A enumeração legal das circunstâncias elegíveis para este raciocínio não é taxativa, como facilmente se depreende do vocábulo “nomeadamente”, que consta do n.º 2 do preceito legal citado, sendo certo que as circunstâncias arroladas pelo tribunal para a efetivação deste cálculo podem até ter dimensão ambivalente ou antinómica, isto é podem ser simultaneamente valoradas como elementos graduadores da culpa e da prevenção, ou assumirem direções opostas na concretização desses vetores – cfr. Prof. Figueiredo Dias, ob. cit., loc. cit. pag. 220.
Temos como certo que a determinação concreta da pena é, a par do julgamento da matéria de facto, a mais árdua tarefa do julgador criminal, não havendo orientações infalíveis ou indiscutíveis para a sua realização, havendo sempre que considerar um relativo subjetivismo neste campo, balizado, todavia, pelas fronteiras legais.
Contudo, podemos dizer que a fixação da medida concreta da pena é um raciocínio jurídico-penal, temperado por uma sempre dificilmente alcançável finura na ponderação global do circunstancialismo apurado, através do qual o julgador, partindo sempre do mínimo da moldura penal, avança no quantum punitivo contabilizando as agravantes em direção ao limite superior da pena, para, depois, retroceder, mediante a consideração das atenuantes, em direção ao limite inferior desta, sem prejuízo de, neste percurso, efetuar operações simultâneas num sentido ou noutro, em virtude de eventualmente poderem surgir circunstâncias ambivalentes ou antinómicas, tudo isto nunca ultrapassando a culpa do agente e nunca fazendo perigar as necessidades de prevenção geral e especial.
Além disso, seguimos convictamente a orientação do Supremo Tribunal de Justiça, constante, por exemplo, do Acórdão do STJ 14/07/2010, Processo 364/09.0GESLV.E1.S1. disponível em www.dgsi.pt: Quanto ao controle da fixação concreta da pena a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça tem de ser necessariamente “parcimoniosa”, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de fatores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efetuada”. (Neste sentido cfr. acórdãos do STJ de 04-07-2007, processo n.º 1775/07 - 3ª; de 17-10-2007, processo n.º 3321/07 - 3ª; de 10-01-2008, processo n.º 907/07 - 5ª; de 16-01-2008, processo n.º 4571/07 - 3ª; de 20-02-2008, processos n.ºs 4639/07 - 3ª e 4832/07-3ª; de 05-03-2008, processo n.º 437/08 - 3ª; de 02-04-2008, processo n.º 4730/07 - 3ª; de 03-04-2008, processo n.º 3228/07 - 5ª; de 09-04-2008, processo n.º 1491/07 - 5ª e processo n.º 999/08-3ª; de 17-04-2008, processos n.ºs 677/08 e 1013/08, ambos desta secção; de 30-04-2008, processo n.º 4723/07 - 3ª; de 21-05-2008, processos n.ºs 414/08 e 1224/08, da 5ª secção; de 29-05-2008, processo n.º 1001/08 - 5ª; de 03-09-2008 no processo n.º 3982/07-3ª; de 10-09-2008, processo n.º 2506/08 - 3ª; de 08-10-2008, nos processos n.ºs 2878/08, 3068/08 e 3174/08, todos da 3ª secção; de 15-10-2008, processo n.º 1964/08 - 3ª; de 29-10-2008, processo n.º 1309/08-3ª; de 21-01-2009, processo n.º 2387/08-3ª).
Isto é, a severidade ou a brandura não são, só por si, fundamentos para que o bisturi recursivo se intrometa na dosimetria penal – terão de ser aquelas características tão exuberantes que consubstanciem ou revelem violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efetuada.
Quanto à medida da pena, consta da decisão: Escolha e medida concreta das penas No caso, temos que os arguidos incorreram na prática, cada um, de um crime de ofensa à integridade física qualificada a que corresponde a moldura penal abstrata de prisão (de 1 mês) até 4 anos (cfr. artigos 41º, 145.º e 132.º, n.º 2, al. h) do C.P.). Uma vez que este crime só admite pena de prisão, cumpre-nos, apenas, determinar as respetivas medidas, dentro dos aludidos limites e de acordo com o disposto no artigo 71º do CP, para o que atendemos à culpa e às exigências de prevenção, bem como a todas as circunstâncias que, não fazendo parte dos tipos de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele. Aplicando os critérios fixados no aludido artigo 71.º, nº1, conjugado com o artigo 40.º, nº1, as penas de prisão concretas serão determinadas de modo a promover a tutela do bens jurídicos violados, em ordem à estabilização da expectativa comunitária na validade das normas violadas (prevenção geral positiva ou de integração), sem que o seu quantum ultrapasse a medida da culpa dos arguidos, pois esta, não sendo fundamento da pena, é seu pressuposto e limite inultrapassável (artigo 40.º, nº2, do CP), em nome do respeito pela dignidade humana, consagrado no artigo 1.º da CRP. Serão igualmente ponderadas as exigências de prevenção especial que o caso demanda. Tendo presente que a finalidade primária da pena é a de tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, de reinserção do agente na comunidade, à culpa cabe a função de estabelecer um limite que não pode ser ultrapassado. Na lição de Figueiredo Dias, a aplicação de uma pena visa acima de tudo o “restabelecimento da paz jurídica abalada pelo crime”. Há uma “medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar”, mas que não fornece ao juiz um quantum exacto de pena, pois “abaixo desse ponto óptimo ideal outros existirão em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente e onde portanto a pena concreta aplicada se pode ainda situar sem perda da sua função primordial”. Dentro desta moldura de prevenção geral, ou seja, “entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos (ou de defesa do ordenamento jurídico)” atuam considerações de prevenção especial, que, em última instância, determinam a medida da pena – cfr. Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2007, p. 79 a 82. Isto posto, somos desde logo a considerar as prementes exigências de prevenção geral: dos atos dos arguidos, e das afirmações que se deixam escritas nos autos, propala a ideia de que a todos nós assiste o poder (a dado passo até parece o dever) de se substituir ao Estado na repressão de qualquer agressão de que sejamos vítima. Não precisamos esperar, nem sequer chamar, as autoridades, já que todos podemos defender o que é nosso, independentemente do seu valor, usando o que para o efeito tivermos disponível. Ora, alarmantemente, esta ideia de “justiça privada”, de “justiça pelas próprias mãos”, é cada vez mais recorrente, sendo este tribunal testemunha de múltiplos casos em que se passou da ideia à ação, sempre com resultados devastadores, tantas vezes mais graves do que as sequelas que o ofendido sofreu. Este discurso, muitas vezes alimentado por ódio, tem de merecer da Justiça uma resposta clara: as ações são julgadas em tribunal, os culpados são punidos pelo tribunal onde não deixarão de ser reconhecidos os direitos de defesa dos arguidos, nomeadamente quando atuaram a coberto de uma legítima defesa. Já as exigências de prevenção especial que no caso se fazem sentir são apenas moderadas uma vez que, embora não sendo claro que os arguidos tenham interiorizado totalmente a censurabilidade das condutas, ambos, sem antecedentes criminais, são pessoas plenamente integradas, com vidas pessoais, familiares e profissionais estruturadas e, até, de sucesso. Não obstante, há a atender que os arguidos, embora motivados pela atuação (também) ilícita do ofendido, atuaram com vontade firme e persistente de atacar e agredi-lo na sua integridade física, sabendo e desejando as lesões e sofrimento que lhe causavam, agravados pelo instrumento utilizado pelo AA (a viatura), agindo ambos com dolo direto, na sua modalidade mais intensa, embora com distinto desvalor das respetivas ações, dada a diferente gravidade das consequências causadas perante as quais ambos demonstraram indiferença e insensibilidade, apenas solicitando auxílio depois de cumprido o desígnio de recuperar os bens furtados, o que evidencia um grau de culpa agravado. É certo que ambos os arguidos são delinquentes primários, porém tal circunstância, embora abonatória, não traduz uma atenuante de significativo relevo já que corresponde, apenas, à obrigação geral, de todo e qualquer cidadão, de não cometer crimes e de viver de acordo com os padrões pré-estabelecidos em sociedade, não lesando o tecido social. Mais relevante a inserção familiar, social e profissional de ambos os arguidos, genericamente considerados como “pessoas de bem”, honestas, cumpridores das suas obrigações, o que nos leva a concluir ter este sido um episódio isolado numa vida, no essencial, conforme ao dever-ser jurídico. Finalmente, reforçar a crescente preocupação pelo aumento da frequência destes “crimes justiceiros”, fonte de intranquilidade e insegurança social pelo exemplo que incentiva, o que vale dizer que a pena deve exercer um fator de dissuasão, como forma de contenção de instintos primários, de potenciais delinquentes. E muito embora os arguidos sejam pessoas integradas socialmente, nada fazendo prever a sucumbência à reincidência, nem por isso as penas devem deixar de fazer-lhes sentir, interiorizando os seus efeitos, a gravidade dos seus atos. Tudo ponderado, julgamos justo, adequado, proporcional e necessário aplicar penas que se situam ainda na primeira metade da moldura, a saber: - ao arguido AA, a pena de 2 anos de prisão; - ao arguido BB, a pena de 15 meses de prisão.
Ora, em primeiro lugar cumpre averiguar se deve ou não ser atenuada especialmente a pena, tendo em conta que entendemos ser aplicável ao caso o disposto no artigo 33.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Atentemos no que prevê o Código Penal:
Artigo 72.º Atenuação especial da pena 1 - O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. 2 - Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes: a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência; b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida; c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados; d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta. 3 - Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo.
“Verifica-se excesso defesa sempre que o agente, numa situação de legítima defesa, se serve de um meio mais lesivo para o agressor do que aquele que seria necessário (art.º 33.º, 1), sempre que, por outras palavras, ele ultrapassa a medida da necessidade do meio (supra15.º Cap., § 26 e s.). Por isso se chama a este excesso – o único que aqui parece entrar em consideração – excesso nos meios de legítima defesa. Nos termos do art.º 33.º -2, o agente não será «se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto não censuráveis”.
O fundamento de toda esta regulamentação é, desde há muito, incontestado no essencial. É normal – e, ademais, compreensível – que uma agressão ilícita e atual provoque na vítima um estado de afeto (ou se preferirmos a designação antiga: um estado passional) que o conduza a uma reação (defesa) excessiva; o facto não preencherá então a causa justificativa da legítima defesa, pelo que, como bem afirma o art.º 33.º -1, ele é ilícito. Mas facilmente se aceitará que aquele estado de afeto possa não só diminuir porventura o conteúdo ilícito do facto, mas também – identicamente ao que vimos suceder no estado de necessidade desculpante: sura §10) – afetar ou estorvar o cumprimento das «intenções normais» do agente. Por isso, logo o artigo 33.º -1, 2.ª parte, estatui que o excesso pode conduzir a uma atenuação especial da pena (arts. 72.º e 73.º), na medida em que a atitude e as qualidades pessoais do agente manifestadas no facto se revelem menos cesuráveis.” Cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pag. 622.
Nesta mesma obra, e no mesmo local, o autor citado, embora discordando, dá-nos conta que Taipa de Carvalho, na senda do Insigne Castanheira Neves, in A Legítima Defesa, dissertação do Curso Complementar, não publicada, 1954, pag. 352 e segs, sustenta que a atenuação especial da pena deveria ser, em qualquer caso de excesso, obrigatória e não meramente facultativa; e isto porque, logo de acordo com um princípio vitimológico, o grau de ilícito praticado (independentemente dos efeitos que lhe possam ser assacados em tema de culpa) apareceria sensivelmente diminuído.
“O excesso na defesa também tem sido considerado como uma circunstância atenuante. E as duas perspetivas não se excluem. O crime cometido em excesso de legítima defesa é o crime cometido em defesa (não legítima). É um facto ilícito, mas em que a gravidade do facto ilícito é, em princípio, menor. Como circunstância atenuante era expressamente indicado o excesso no anterior Código, e nada obsta a que como tal se considere no Código atual, pois que na medida da pena se atenderá ao «grau de ilicitude do facto», isto é, à gravidade do facto ilícito art. 72.º, nºº, 2, a)]. Cfr. Cavaleiro de Ferreira, ob. ct., loc. cit., pag. 196.
Como vemos, são muitos os casos de autorizadas vozes na Doutrina a configurar a atuação excessiva em caso de defesa de modo menos áspero do que é feito na decisão recorrida, que faz até uso de expressões impróprias como contenção de instintos primários, considerando nós estes desmandos, tal como a lei, como perturbação, que pode ser ou não compreensível e, correspondentemente, ter ou não efeitos atenuadores ou excludentes da punição.
E, em relação ao seguinte algo desconcertante excerto: Isto posto, somos desde logo a considerar as prementes exigências de prevenção geral: dos atos dos arguidos, e das afirmações que se deixam escritas nos autos, propala a ideia de que a todos nós assiste o poder (a dado passo até parece o dever) de se substituir ao Estado na repressão de qualquer agressão de que sejamos vítima. Não precisamos esperar, nem sequer chamar, as autoridades, já que todos podemos defender o que é nosso, independentemente do seu valor, usando o que para o efeito tivermos disponível. Ora, alarmantemente, esta ideia de “justiça privada”, de “justiça pelas próprias mãos”, é cada vez mais recorrente, sendo este tribunal testemunha de múltiplos casos em que se passou da ideia à ação, sempre com resultados devastadores, tantas vezes mais graves do que as sequelas que o ofendido sofreu. Este discurso, muitas vezes alimentado por ódio, tem de merecer da Justiça uma resposta clara: as ações são julgadas em tribunal, os culpados são punidos pelo tribunal onde não deixarão de ser reconhecidos os direitos de defesa dos arguidos, nomeadamente quando atuaram a coberto de uma legítima defesa.
Cumpre lembrar vetusto ensinamento:
Há já muitos anos, dizia Ulrich Klug, in Culpa e Castigo, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. XXV, 1951, pag. 190: “Seja, todavia, notado que a pena, como mecanismo de segurança ao serviço do fim da prevenção especial, não funciona no âmbito da prevenção geral. Nem a ameaça da pena, nem o castigo podem impedir que o criminoso latente se transforme em criminoso propriamente dito. (…) A confiança na segurança da ordem social, abalada momentaneamente pelo crime, é reforçada com esse ato. Integração, eis, pois, o efeito produzido pela pena, no plano da prevenção geral. Efeito frequentemente esquecido, apesar da sua importância.”
Assim, nada justifica, nenhuma utilidade tem, a imolação do infrator no pelourinho da Justiça com o fim de dissuasão criminal – esta função pertence essencialmente à lei. A prevenção geral buscada pela pena é, essencialmente, a positiva, a reposição da confiança da comunidade no vigor do sistema jurídico como um todo, que deteta e reprime os que em relação a ele recalcitram. Até a própria lei enfrenta as maiores dificuldades na perseguição do tal desiderato puramente dissuasor – basta pensar, por exemplo, que mesmo nos lugares em que vigora a pena de morte, nem por isso os crimes por ela punidos desaparecem ou sequer diminuem, sendo alguns estados dos EUA exemplo típico disso.
No caso presente ocorre uma situação que não pode deixar de ser valorada nesta sede:
41. Pelo menos à data dos factos e desde há vários anos, o arguido AA vivia com a esposa e filhas na Rua ..., ..., em ..., ..., .... 42. Até à data dos factos, a aludida residência do arguido foi alvo de cerca de cinco assaltos, ou tentativa de assalto.
Esta factualidade deve ter implicações jurídico-penais, designadamente na apreciação do facto na sua globalidade, e no estado de afeto ou de paixão que isto representa em relação à conduta do arguido AA. Na verdade, diferente seria se fosse caso de um primeiro furto, e muito diferente seria se fosse caso de agressão tout court, ou seja, sem qualquer outro quadro subjacente – interrogamo-nos se neste último caso o tribunal teria optado pela pena máxima, já que aqui se ficou pela metade.
Esta factualidade diminui em nosso entender a culpa do agente e a necessidade da pena, reconhecendo ser mais duvidoso afirmar-se aqui uma diminuição da ilicitude objetiva, sendo certo, todavia, que toda a problemática da defesa se move essencialmente no campo da ilicitude, e que praticar um ato criminoso gratuitamente, por assim dizer, ou numa reação defensiva a uma agressão, tem diferente enquadramento legal como se viu já, mesmo ou principalmente do ponto de vista da ilicitude.
Entendemos, por isso, dever atenuar especialmente a pena do arguido AA.
A pena a este arguido aplicável passará, portanto, a ser de prisão de 1 mês a 2 anos e 8 meses, por foça do disposto no artigo 73.º, n.º 1, alínea a), e b), do Código Penal.
Outro dos passos fundamentais nas operações de dosimetria penal, e que o acórdão aborda de forma algo enxuta, é a fixação do grau de culpa, parâmetro essencial, atenta a limitação constante do artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal.
A culpa traduz-se, em síntese, no grau de censura ético-jurídica dirigida ao agente.
A este respeito, decisão recorrida apenas diz o que evidencia um grau de culpa agravado. Ora, agravado não se sabe muito bem em relação a quê ou a partir de onde. O grau de culpa deve ser fixado, por exemplo, pelo menos em baixo, médio ou elevado, eventualmente baixíssimo ou elevadíssimo, sem prejuízo de se poderem lobrigar graus intermédios, como médio/elevado ou baixo/mediano, mediano/elevado, etc., sendo assim mais fácil o estabelecimento de uma pantográfica relação deste com a medida da pena: v.g., mínimo, meio, primeiro terço, ultimo quarto, e, dentro destes últimos, limite inferior ou superior do último quarto, meio do primeiro terço, e por diante, consoante se considerar mais adequado.
Nós entendemos que o grau de culpa dos arguidos, atento todo o passado dos furtos em casa do AA existente, é baixo/mediano – e seria baixo se o destempero agressivo tivesse sido menor. É certo que o arguido BB não é lesado por esse passado, mas a paixão derivada do sangue comum, não deve ser desconsiderada nesta equação e no quadro concreto de atuação. Ver um irmão e família em desespero por atos deste jaez também justifica alguma perturbação.
Quanto à ilicitude, prevenção especial e demais parâmetros, não temos qualquer divergência de fundo com a decisão.
Assim sendo, as penas passarão a ser de prisão de 1 ano e 1 mês para ambos os arguidos, procedendo o recurso nesta parte – lembremos que a conduta do AA é mais grave, mas o limite máximo da moldura penal respetiva é mais brando.
Resta analisar o pedido de revogação do condicionamento da suspensão de execução da pena de prisão ao pagamento de metade da indemnização fixada, no prazo de seis meses.
“Estas regras e deveres (artigos 50.º e 51.º) têm claramente por intuito contribuir para a ressocialização do condenado” – cfr. Maria da C. F. da Cunha, As Reações Criminais no Direito Português, UCE, pag. 230.
Provou-se que até à prática dos factos: Das condições pessoais e sociais dos arguidos 58. Do certificado de registo criminal dos arguidos nada consta. 59. O arguido AA é casado, vive com a mulher e duas filhas, maiores de idade, estudantes universitárias; o agregado reside em moradia unifamiliar própria, tipologia 3, com boas condições de habitabilidade e conforto. 60. O arguido AA está habilitado com o 9º ano de escolaridade; trabalha desde os 18 anos na empresa da família, EMP02..., Lda, da qual é sócio-gerente; aufere €.2.637,74; a esposa, técnica administrativa na mesma empresa, aufere € 1.599,34. 61. O agregado do arguido AA apresenta como despesa mais relevante os encargos académicos das filhas, de cerca de € 650,00 mensais. 62. O arguido AA beneficia do apoio e suporte da família constituída e de origem; dispõe de uma imagem social ajustada, sendo considerado pessoa trabalhadora e honesta. 63. O arguido BB é casado, vive com a mulher, tem dois filhos maiores, já autonomizados; o agregado reside em moradia unifamiliar própria, tipologia 3, com boas condições de habitabilidade e conforto. 64. O arguido BB está habilitado com o 12º ano de escolaridade e tem o curso de afinador de máquinas industriais; trabalha na empresa da família, EMP02..., Lda, da qual é sócio-gerente; aufere € 2.611,74; a esposa, técnica administrativa na mesma empresa, aufere € 1.346,34. 65. O agregado do arguido BB apresenta como despesas as relativas aos consumos domésticos, de cerca de € 250,00 mensais. 66. O arguido BB beneficia do apoio e suporte da família constituída e de origem; dispõe de uma imagem social ajustada, sendo considerado pessoa trabalhadora e honesta.
Tudo isto justificou, e bem, um juízo de prognose favorável em relação à ressocialização dos condenados através e uma pena de substituição, neste caso, a pena de suspensão de execução da pena de prisão.
A normal inserção social, familiar e laboral dos arguidos, que os factos demonstram claramente, não suscita a menor dúvida de que se trata de pessoas que cumprem, em geral, as suas obrigações, salvo os arrebatados momentos que constituem objeto dos presentes autos.
Assim sendo, não há qualquer indício que aconselhe condicionar ao pagamento da indemnização (ou da sua metade) à dita suspensão, uma vez que estes deveres adjacentes se justificam principalmente nos casos em que a certeza prognóstica do tribunal em relação ao comportamento futuro do arguido não é plena, sentindo-se a prudente necessidade de o adstringir de modo suplementar ao alinhamento com a norma. Por outras palavras, estes deveres, e designadamente o que está aqui em causa, não devem intervir de forma automática, nem como uma espécie de punição acrescida, nem de modo acrítico, mas antes justificar-se por aquela necessidade suplementar de condicionamento do condenado, atendendo ao seu passado e presente criminal, ao seu comportamento social geral, às suas condições gerais de vida e hábitos, cumprindo a tribunal confiar que, em regra, os cidadãos cumprem as suas ordens, salvo se os autos demonstrem circunstâncias referentes aos aludidos parâmetros que autorizem alguma hesitação a esse respeito, a qual, contudo, não é, por seu turno, de tal forma grave que aconselhe a denegação da pena de substituição.
Assim sendo, também nesta parte, deve proceder o recurso.
Para finalizar, e se tal nos é permitido, neste contexto tão prosaico quão complexo dos furtos, dos seus agentes, das suas estratégias, modos de execução e objetivos, do seu castigo e das formas (justas/úteis) de os prevenir, nada melhor do que a leitura da notável obra Arte de Furtar, Fronteira do Caos, publicada como sendo da autoria do Padre António Vieira, mas que se entende pacificamente, atualmente, não o ser (Padre António Vieira, Obra Completa, Círculo de Leitores, Vol. I Tomo I, Cartas Diplomáticas, pag. 32), impagável em ironia mas também em tolerância, surpreendentemente interpeladora sobre os muitíssimos impercetíveis furtos de que somos diariamente alvos e em relação aos quais nem sequer esboçamos uma reação, de modo a ponderar, não só as vítimas destes, como os arguidos, mas todos nós, enquanto povo, a verdadeira importância do património e dos ataques contra eles desferidos pelos mais diversos agentes, tudo em ordem a colocar, ou procurar colocar, sempre as coisas no seu devido lugar, sem exageros, com moderação e temperança.
III DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedentes os recursos apresentados pelos arguidos AA e BB, e, em consequência:
A) Alterar o julgamento de facto e retirar dos factos dados como provados o segmento, cicatriz localizada no terço superior da face anterior da perna, com 3cm de comprimento, relativamente à qual o examinado não sabe se terá resultado do evento, constante do ponto 16.º daquela parte da decisão; B) Declarar que o comportamento do arguido AA foi praticado em excesso de legítima defesa; C) Atenuar especialmente a pena aplicável ao arguido AA; D) Fixar a pena a aplicar a cada um dos arguidos em prisão de 1 ano e 1 mês;
E) Revogar a decisão na parte em que condicionou a pena de suspensão de execução da pena de prisão ao pagamento ao ofendido CC de metade da indemnização que lhe vai fixada, no prazo de seis meses, a contar do respetivo trânsito; F) Confirmar a decisão no restante.
Sem tributação.
Guimarães, 16 de Setembro de 2025
Os Juízes Desembargadores
Bráulio Martins (Relator)
Paulo Correia Serafim (1.º Adjunto)
Pedro Cunha Lopes (2º Adjunto)
Ana Teixeira (Presidente)