ABUSO DE CONFIANÇA A SEGURANÇA SOCIAL
CRIME CONTINUADO
CASO JULGADO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
DEVER DE REPOSIÇÃO DA VERDADE FISCAL
RAZOABILIDADE
NULIDADE DE OMISSÃO DE PRONÚNCIA
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
EXECUÇÃO FISCAL
LITISPENDÊNCIA
Sumário


I – Como tem entendido a corrente jurisprudencial dominante no Supremo Tribunal de Justiça, a sentença que incidiu sobre infracções parcelares integradas num crime continuado não constitui caso julgado impeditivo do julgamento das que só posteriormente foram descobertas, porquanto o princípio ne bis in idem (art. 29º, nº5, da CRP), constituindo obstáculo a que uma pessoa seja condenada duas vezes pelos mesmos factos, não se erige como fundamento para que permaneçam por punir factos que nunca foram julgados.
II – No que concerne à disciplina sancionatória do crime continuado plasmada no art. 79º do Código Penal, o legislador da Reforma Penal de 2007, que introduziu o nº2, refere na exposição de motivos do Projeto subjacente à Proposta de Lei nº 98/X, de 7 de setembro de 2006, geradora da Lei nº 59/2007, de 4 de setembro: «Ao nível sancionatório prescreve-se que o conhecimento superveniente de novo crime que integre a continuação criminosa ou o concurso acarreta sempre a substituição da pena anterior, mesmo que já executada, depois de se ter procedido ao correspondente desconto, no caso de a nova pena única ser mais grave. Deste modo, assegura-se o máximo respeito pelo princípio non bis in idem, consagrado no nº5 do artigo 29º da Constituição».
III - Nos casos em que ocorre pluralidade de resoluções criminosas, há situações em que esta é meramente aparente, sendo que a justiça e a economia processual aconselham a verificação de um só crime, na forma continuada.
IV – Para que ocorra continuação criminosa, é necessário que os plúrimos atos preencham o mesmo tipo legal de crime ou tipos legais de crime que essencialmente protejam o mesmo bem jurídico. Pressuposto capital do crime continuado é também a existência de uma relação que, de maneira considerável, facilitou a repetição da atividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito, dessa forma diminuindo consideravelmente o grau de culpa do agente.
V - Não obstante a conexão espacial e temporal das condutas perpetradas não se arvore em circunstância decisiva para se aquilatar da existência de um crime continuado, tal fator não é despiciendo, relevando para a indiciação de uma conexão interior de ligação factual entre os diversos atos (derivando esta de a motivação de cada facto estar ligada à dos outros).
VI – No ajuizado caso, apesar de todas as condutas do arguido consubstanciarem uma violação plúrima do mesmo bem jurídico e terem sido executadas de forma idêntica, mediante não entrega pelo agente ao legítimo beneficiário (I.S.S., IP) das prestações/cotizações retidas pela sociedade arguida, não se descortina uma conexão temporal estreita entre todas as atuações que permita afirmar que a motivação subjacente a cada uma delas está intimamente ligada à das restantes. O longo intervalo de tempo que intercede entre a prática do último ato integrador da continuação criminosa julgada no primeiro processo – em agosto de 2017 – e o cometimento do primeiro ato que compõe o crime continuado ajuizado nestes autos – em maio de 2018 – não permite razoavelmente deduzir a partir do contexto em que são praticados os factos quer diminuição da exigibilidade de outra conduta, ou uma menor culpa do arguido/recorrente.
VII - No domínio da criminalidade tributária, vigora ao nível da suspensão da execução da pena de prisão a norma específica vertida no art. 14º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT, aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de junho.
VIII – Em consonância com tal norma, interpretada também à luz da jurisprudência fixada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência nº 8/2012, publicado no DR, 1ª Série, nº 206, de 24.10.2012, o tribunal não deve suspender a pena de prisão concretamente determinada, pela qual tivesse optado primitivamente, quando a concreta situação económica do arguido não permita prognosticar que ele irá satisfazer ao Estado ou Segurança Social a prestação tributária e legais acréscimos, circunstância que nos termos do artigo 14.º n.º 1, do RGIT condiciona obrigatoriamente a suspensão da pena. Nessas hipóteses, como decorre da fundamentação do citado AFJ, o tribunal deve voltar a ponderar a aplicação da pena principal de multa ou a aplicação de pena de substituição diversa da suspensão da prisão quando a pena de prisão concretamente definida o permita.
IX – A jurisprudência fixada no AFJ nº 8/2012, forçando a realização de um juízo acerca da plausibilidade de adimplemento da condição legalmente prevista, vigora somente para os casos em que o tipo legal de crime preveja, em alternativa à pena de prisão, sanção penal não privativa da liberdade, ou, prevendo somente àquela, o Tribunal entenda ser de aplicar pena de prisão em medida concreta que permita, nos termos da lei, a aplicação de pena de substituição não privativa da liberdade. Se for unicamente aplicável pena de prisão e em medida que não possibilite a sua substituição por pena não privativa da liberdade, então o julgador, caso considere ser de suspender a execução da pena, deve obrigatoriamente condicionar a suspensão ao pagamento ao Estado ou à Segurança Social pelo condenado das prestações tributárias em dívida e legais acréscimos.
X - O Tribunal Constitucional tem-se pronunciado de modo concordante e reiterado pela não inconstitucionalidade do art. 14.º do RGIT, enquanto condiciona obrigatoriamente a suspensão da execução da pena ao pagamento das quantias em dívida, jurisprudência recentemente reafirmada no acórdão nº 546/2024, de 11.07.2024, publicado no Diário da República de 13.11.2024, Série II, nº 220, com a seguinte decisão: «(…) Não julgar inconstitucional o artigo 14.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05.06, interpretado no sentido de que a suspensão da execução da pena de prisão é sempre condicionada ao pagamento da prestação tributária, independentemente da ponderação das circunstâncias do caso concreto.(…)»
XI - Potencialmente violadora do princípio da igualdade previsto no art. 13º da CRP, seria a circunstância de um agente do crime com satisfatória situação económica poder beneficiar da suspensão da execução da pena de prisão em detrimento de outro com precária situação económica, que, caso a norma incriminadora não previsse outro tipo de pena que não de prisão e a medida concreta desta não permita a aplicação de pena de substituição não privativa da liberdade, teria de cumprir pena de prisão efetiva por previsível impossibilidade de adimplemento da condição legal de pagamento ao lesado das cotizações retidas e não entregues e legais acréscimos.
XII - No presente caso, não obstante ter subordinado a suspensão da execução da pena de 2 (dois) anos de prisão ao cumprimento pelo arguido da condição de pagamento ao I.S.S., IP, do valor global retido e não entregue, o Tribunal a quo não efetuou na sentença qualquer juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, para efeitos de aquilatar sobre a (in)viabilidade de aplicação da condição. Devia, porém, ter feito tal casuística ponderação, visto que a medida concreta da pena (2 anos) permitia a aplicação de pena de substituição não privativa da liberdade, designadamente, prestação de trabalho a favor da comunidade (art. 58º do CP).
XIII – Assim, mostrava-se necessário que o Tribunal recorrido procedesse àquela avaliação para aferir se o condenado podia cumprir o dever que condicionava a pena de suspensão da execução da pena que pretendia cominar; caso concluísse negativamente, impunha-se que avaliasse se a pena de substituição de PTFC satisfazia adequadamente as finalidades punitivas; na hipótese de considerar que acautelava convenientemente os fins das penas, devia optar pela substituição da pena de prisão (2 anos) por esta pena substitutiva; distintamente, caso emitisse um juízo negativo sobre tal compatibilidade e entendendo que não se revelava necessária a execução da pena de prisão em estabelecimento prisional ou em regime de permanência na habitação, independentemente do juízo de prognose que realizasse sobre a capacidade económico-financeira do condenado, atual e futura (razoavelmente previsível), para cumprir o dever legalmente estabelecido, teria de optar pela suspensão de execução da pena, forçosamente condicionada ao pagamento à ofendida Segurança Social das prestações devidas a título de cotizações não entregues (no valor global de € 225.520,85).
XIV – Em conformidade, a sentença é nula nessa parte, por omissão de pronúncia quanto ao imperioso juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação pelo condenado da condição legal de ressarcimento ao I.S.S., IP das quantias em débito a título de cotizações retidas e não entregues (cf. art. 379º, nº1, al. c), do CPP).
XV - Para efeitos da alegada litispendência, não existe repetição quanto à causa de pedir relativamente ao pedido de indemnização civil apresentado nestes autos e em eventual ação executiva ou administrativa movida contra o arguido, ora recorrente, pelo demandante I.S.S., IP, uma vez que no processo tributário/administrativo de jaez executivo a causa de pedir documentada pelo título é o incumprimento da obrigação legal de entrega à Segurança Social das cotizações que foram descontadas nos salários dos trabalhadores pela entidade empregadora que as recebe e se encontra vinculada a tais ações de retenção e entrega das prestações à legítima titular, enquanto no pedido de indemnização enxertado no processo criminal a causa de pedir é a responsabilidade civil emergente da prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social.
XVI - Acresce que a existência de título executivo ou título com igual valor - a lei tributária atribui força executiva aos títulos de cobrança das contribuições e impostos -, não impede que se demande o devedor/responsável em acção declarativa, designadamente no pedido de indemnização civil enxertado na ação penal. O que não pode suceder é duplicação de recebimento pela Segurança Social das mesmas quantias em questão em ambos os processos, sob pena de se verificar enriquecimento sem causa. Daí que, uma vez liquidados pelo devedor os montantes em dívida no âmbito de qualquer um dos procedimentos de cobrança, deve requerer-se a extinção da outra instância por inutilidade superveniente da lide (cf. art. 277º, al. e), do CPC), dessarte se assegurando a harmonia e unidade do sistema jurídico.
XVI – Atenta a causa de pedir no pedido de indemnização civil contra si formulado, a responsabilidade do arguido recorrente, enquanto gerente de facto da sociedade que reteve aos seus colaboradores e, indevidamente, não entregou ao ISS, IP as contribuições que lhe era devidas, é principal e solidária com a codevedora “EMP01..., Lda.”, e não meramente subsidiária ou secundária, dependente de reversão, figura que somente opera em sede de execução fiscal e depende da verificação (para além de violação culposa de um ou mais deveres fiscais por parte do representante da devedora principal) da insuficiência do património da empresa.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório:
           
I.1 – Decisão recorrida:

No âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) nº 3763/22.9T9BRG, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo Local Criminal de Vila Nova de Famalicão – Juiz ..., por sentença proferida e depositada no dia 09.05.2013 (referências ...51 e ...36, respetivamente), foi decidido:

“7.1.- Condenar a sociedade arguida EMP01..., Lda, pela prática de crime de abuso de confiança à Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 5.º, n.º 2, 7.º, nºs 1 e 3, 107.º, n.ºs 1 e 2 e 105.º, n.ºs 4 e 5 do RGIT, na pena de quinhentos dias de multa, à taxa diária de nove euros.
7.2.- Condenar o arguido AA pela prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 5.º, n.º 2, 7.º, nºs 1 e 3, 107.º, n.ºs 1 e 2 e 105.º, n.ºs 4 e 5 do RGIT, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução, com a condição do arguido pagar o valor retido e não entregue ao demandante no prazo de 4 (quatro) anos.
7.3.- Condenar cada um dos arguidos no pagamento de 5 UC de taxa de justiça, e nas demais custas do processo.
7.4.- Julgar procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo ISS contra os arguidos/demandados EMP01..., Lda., e AA e, em consequência, condenar solidariamente os demandados a pagar ao demandante Instituto da Segurança Social, S.A., a quantia de 225.520,85 € (duzentos e vinte e cinco mil, quinhentos e vinte euros e oitenta e cinco cêntimos), acrescida dos juros de mora vencidos, calculados à taxa legal em vigor, até efetivo pagamento.
7.5.- Custas do pedido de indemnização civil a cargo dos demandados.”
     
I.2 – Recurso:

Inconformado com a decisão condenatória contra si proferida, dela veio o arguido AA interpor recurso, cuja motivação culmina com as seguintes conclusões e petitório (referência ...45):
           
1- No processo comum (tribunal Singular) que sob o n.º 2352/19.0T9VNF correu termos pelo Juízo Criminal de Vila Nova de Famalicão – Juiz ... - o arguido/recorrente, foi igualmente acusado e condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime de Abuso de Confiança contra a Segurança Social p. e p. pelos arts 105º n.º 1, 4 e 7 do RGIT, na qualidade de gerente da Sociedade co-arguida “EMP01..., Lda”, e reportado ao período de Agosto de 2015 e Março a Julho de 2017, conforme está certificado nos autos.
2- O cerne e a essência dos factos imputados ao Arguido, quer do ponto de vista objectivo, quer do ponto de vista subjectivo, seja neste processo, seja naquele que correu termos no Juízo Criminal de Vila Nova de Famalicão – Juiz ... – são os mesmos.
3- O princípio do ne bis in idem, com assento constitucional, radica na figura do caso julgado e proíbe a instauração de um segundo procedimento ao mesmo sujeito pelo mesmo objecto e com o mesmo fundamento.
4- Nos casos de crime continuado existe um só crime porque, verificando-se embora a violação repetida do mesmo tipo legal ou a violação plúrima de vários tipos legais de crime, a culpa está tão acentuadamente diminuída, que só é possível formular um único juízo de censura e não vários.
5- Desta forma, se algumas actividades que fazem parte de uma continuação criminosa foram já objecto de sentença definitiva, ter-se-á de considerar consumido o direito de acusação relativamente a quaisquer outras que pertençam a esse mesmo crime continuado, ainda que elas de facto tivessem permanecido estranhas ao conhecimento do juiz.
6- Relativamente à acusação deduzida nestes autos, verifica-se, quanto aos períodos de Abril de 2018 a Dezembro de 2021, que o mesmo facto - falta de entrega de cotizações à Segurança Social, na qualidade de representante da Sociedade co-arguida – foram já objecto de julgamento no âmbito do processo assinalado – proc. n.º 2352/19.0T9VNFonde foi proferida sentença que já transitou em julgado.
7- Assim, tal como configurado na supra mencionada acusação – proc. n.º 2352/19.0T9VNF - os factos imputados ao arguido relativo à falta de entrega de quotizações à Segurança Social, ao período de 2015 a 2017 e de 2018 a 2021 são produto de uma alegada e única resolução criminosa, o que significa que a sua consumação se prolongou no tempo, podendo classificar-se a imputada conduta em causa como crime de execução continuada.
8- Ou seja, a unificação de vários actos em um só crime, por existência de uma unidade resolutiva e conexão temporal entre os actos realizados.
9- «Existe unidade de resolução criminosa, quando, segundo o senso comum sobre a normalidade dos fenómenos psicológicos, se puder concluir que os vários actos são o resultado de um só processo de deliberação, sem serem determinadas por nova motivação e que, por outro lado desde que haja uma única resolução a presidir a toda esta actuação, não existe crime continuado, mas um só crime» – sublinhados nossos - Ac. do STJ de 88/05/11, BMJ 377- 431.
10- De concurso de crimes, salvo o devido respeito, também não se pode falar uma vez que o bem jurídico violado com a execução daquela única resolução é o mesmo.
11- Por tudo isto e no que ao confronto com os supra citados autos e decisão transitada em julgado proferida no âmbito do processo nº 2352/19.0T9VNF que correram termos no Juiz Criminal, Juiz ..., deste Tribunal, ocorre uma situação de caso julgado.

Acresce dizer,                   
12- O princípio do “ne bis in idem” radica na figura do caso julgado e proíbe a instauração de um segundo procedimento ao mesmo sujeito pelo mesmo objecto e com o mesmo fundamento – art. 29º nº 5 da Constituição.
13- Trata-se de uma disposição que preenche o núcleo fundamental de um direito: o de que ninguém pode ser duplamente incriminado e punido pelos mesmos factos sob o império do mesmo ordenamento jurídico.
14- "A preclusão, contudo, não diz apenas respeito ao que foi conhecido, pois também abrange o que podia ter sido conhecido no processo anterior. Para este efeito, teremos de recorrer aos poderes de cognição do acto que procedeu à delimitação originária do processo, a acusação em sentido material, tendo em conta um objecto unitário do processo. Desde logo, como neste acto não existe qualquer limitação à qualificação jurídica dos factos no mesmo descritos, pode concluir- se que não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objecto, diversamente qualificados. De igual modo, neste acto podiam ter sido conhecidos factos que traduzem uma alteração, substancial ou não substancial, dos que nele foram incluídos, uma vez que, em qualquer dos casos, estamos ainda dentro dos limites do mesmo objecto processual. Por esta razão, não é possível a instauração de novo processo que os tenha por objecto.» - Henrique Salinas, in "Os Limites Objectivos do ne bis in idem (Dissertação de Doutoramento - Fevereiro de 2012), página,686”.
15- Assim, e tendo em conta o caso concreto, ou seja, os factos investigados nestes autos e os constantes do proc. n.º 2352/19.0T9VNF é notório, que se tem em vista a apreciação dos mesmos comportamentos espácio temporalmente determinados, e com a mesma qualificação jurídica: crime de Abuso de Confiança em relação à Segurança Social na forma continuada.
16- Do princípio ne bis in idem” decorre a proibição de aplicar mais de uma sanção com base na prática do mesmo crime mas também a de realizar uma pluralidade de julgamentos criminais com base no mesmo facto delituoso.
17- Excepção de caso julgado esta que foi invocada no processo e que por não ter sido atendida pelo tribunal “a quo”, deve ser conhecida e declarada por este Venerando Tribunal “ad quem”, com todas as devidas e legais consequências, designadamente, respeitando a força de caso julgado daquela Sentença proferida no Tribunal Criminal de Vila Nova de Famalicão no âmbito do processo proc. n.º 2352/19.0T9VNF e transitada em julgado, o que, obrigatoriamente, deve determinar a total e integral absolvição do arguido – art. 29.º n.º 5 da Constituição.

SEM PRESCINDIR,

18- Analisando a Sentença proferida, verifica-se que o Tribunal “a quo”, salvo o devido respeito, não se pronunciou sobre as circunstâncias  factuais que impunham uma decisão quanto às situações exteriores, que diminuem consideravelmente a culpa do arguido/recorrente.
Pois,
19- Os documentos que foram juntos aos autos e que diziam respeito à actividade e conduta do arguido que, enquanto foi possível tudo fez para lutar pela sobrevivência da empresa, que os economistas e gestores contratados diziam ser economicamente viável e com sustentabilidade futura, visando a salvaguarda da mesma e a manutenção das centenas de postos de trabalho que então ainda albergava, a saber:   
- Autos de Penhora das contas bancárias da sociedade levados a cabo ao longo dos meses de 2017 e comprovativos de pagamentos efectuados pelo próprio arguido a titulo pessoal à Segurança Social, e ainda as certidões da aprovação e homologação do Plano de Revitalização aprovado pela maioria de credores da sociedade devedora, “EMP01..., Lda.” nos PER’s a que a mesma se sujeitou, e Cópia do voto favorável da Segurança Social para aprovação desses PER’s e demais documentos.

20- O que nos transporta para uma mesma e continuada, tal como muito prolongada situação exterior de continuadas e recorrentes dificuldades económicas e financeiras da sociedade e das sua centenas de trabalhadores, que diminui consideravelmente a culpa do arguido, que tudo fazia e fez para tentar manter a sociedade em actividade, na expectativa que o ciclo económico se alterasse e permitisse o retorno da sociedade ao equilíbrio de exploração. 
21- O que fundamenta uma diminuição considerável da culpa é a “existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da atividade criminosa, tornando cada vez menos exigível que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito” - Prof. Eduardo Correia, no livro Direito Criminal, Vol. II, pág. 209,
22- O descrito ambiente em que ocorreram as várias omissões, dentro de uma continuada situação de «dificuldades financeiras» da empresa e, constante opção do recorrente pela continuidade do giro da empresa para permitir o pagamento dos salários aos trabalhadores, revela  as terríveis condições de permanência do «fracasso psíquico», perante cada situação de facto e cada renovação da obrigação de entrega das contribuições deduzidas, em circunstâncias em que se manifesta uma sensível diminuição da culpa, quer pelas dificuldades empresariais, que pelas opções que o recorrente tomou perante as dificuldades financeiras.
23- Houve, eventualmente, a «realização plúrima do mesmo tipo de crime», «executada por forma homogénea», «no quadro de uma mesma solicitação exterior», que diminuiu «consideravelmente a culpa do agente», como dispõe o art. 30.º, n.º 2, do CP, tudo a justificar que as condutas se considerem como crime continuado, a punir nos termos do art. 79.º, n.º 1, do CP.
24- Nas descritas circunstâncias, o esforço de manter a solvabilidade da empresa, e em última instância a sua sobrevivência, arrastou o arguido para a conduta desviante, em termos de tornar sucessivamente mais difícil e menos exigível contrariar o recurso a esse expediente, diminuindo, por isso, consideravelmente a culpa.
25- E, por esse motivo, percute-se, está-se  face a um único crime: um crime continuado.
26- A diminuição considerável da culpa exigida pelo artigo 30.º, n.º 2, do CP, pressupõe uma menor exigibilidade de conduta diversa do agente.

27- Perante uma sentença condenatória anterior do agente pela prática de um crime continuado – em concreto, um crime continuado de abuso de confiança contra a segurança social – o momento temporal a considerar para a inversão do sentido de culpa do agente, de uma diminuição considerável para a sua agravação, é a do trânsito em julgado daquela decisão.
28- Compulsados os autos, verifica-se que as condutas imputadas ao arguido/Recorrente se situam todas antes do trânsito em julgado – que ocorreu em 2 de maio de 2022 - da decisão condenatória proferida no âmbito do assinalado processo n.º 2352/19.0T9VNF.
29- Não tendo ocorrido, por isso, a partir desse marco temporal, qualquer quebra na verificação do requisito “diminuição considerável da culpa”.
30- Deste modo, verifica-se, salvo o devido respeito, uma diminuição considerável da culpa, porquanto, percute-se, verifica-se uma continuação criminosa que supõe a repetição da conduta no quadro de uma mesma situação exterior que atenua a culpa do arguido.
31- Todavia esta factualidade que ficou documentalmente demonstrada e não foi contrariada por qualquer meio de prova,  não foi levado em conta pelo Tribunal “ a quo” que omitiu, a este respeito, qualquer pronuncia.
32- Verificando-se, no caso, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto ou o vicio de omissão de pronúncia.
33- que exista o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, é necessário que a matéria de facto fixada se apresente insuficiente para a decisão sobre o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos legais de crime verificáveis e dos demais requisitos necessários à decisão de direito e seja de concluir que o tribunal “a quo” podia ter alargado a sua investigação a outro circunstancialismo fáctico suporte bastante dessa decisão.
34- Por outro lado, tratando-se de factos relevantes que constavam dos autos e que poderiam conduzir a diferente decisão, sobre os quais a decisão recorrida não se pronunciou, pode dizer-se que esta  padece do vício de omissão de pronúncia.
35- O arguido/recorrente entende que esta falta preenche concomitantemente ambos os vícios.
36- Por isso, salvo o devido respeito, há que declarar a nulidade da sentença recorrida, que deve ser substituída por outra que se pronuncie sobre as referidas questões, designadamente, realizando um juízo fundamentado sobre as circunstâncias  factuais, que impunham uma decisão quanto às situações exteriores que diminuem consideravelmente a culpa do arguido/recorrente.

POR OUTRO LADO E SEM PRESCINDIR,
                                            
37- Em face de tudo o supra exposto, invocado e da factualidade apurada nos autos, verifica-se, na atuação do arguido/Recorrente referente ao período do mês de Abril de 2018 ao mês de Dezembro de 2021 uma acentuada diminuição da culpa.
38- E quanto às atenuantes que a lei penal prevê, entende-se que o Tribunal “a quonão as valorou de forma adequada nem justa.
39- Ficou evidenciado que o arguido se encontra bem inserido socialmente, quer a nível social, quer a nível familiar, não apresentando qualquer perigo para a sociedade.
40- Não parece ter sido tido em conta que o arguido está reformado e incapaz do exercício de qualquer actividade profissional, atenta a sua já avançada idade – 77 anos –, aliada ao seu gravíssimo estado de saúde – já sofreu dois AVC e padece de doença de foro oncológico a qual ultimamente se tem agravado como os certificados médicos juntos aos autos e que conduziram a sucessivos adiamentos das sessões da audiência de julgamento certificam -.
41- Não foi tido em conta que o arguido foi declarado Insolvente, por Sentença transitada em julgado, sendo-lhe permitido reter apenas a quantia mensal de €.900,00 da sua pensão de reforma – o que é insuficiente para fazer face às despesas com tratamentos médicos e medicamentos -.
42- O Tribunal “a quo” condenou o Arguido/Recorrente, na assinalada pena, sem ter em conta as descritas circunstâncias, bem como e sobretudo as circunstâncias em que decorreram os factos.
43- Salvo o devido respeito o Tribunal “a quo” não aplicou correctamente os princípios Constitucionais directamente aplicáveis, na medida em que não foram tidos em conta os princípios da proporcionalidade, exigibilidade e razoabilidade na aplicação da pena ao arguido/recorrente.

Acresce dizer,
44- No caso dos autos, a pena concretamente aplicada é manifestamente exagerada e desajustada, podendo e devendo o Tribunal “a quo” ter optado por uma pena menos gravosa, uma vez que esta claramente realizava de forma adequada e suficiente a finalidade da punição.
45- Tanto mais que o Tribunal “a quo” ainda subordinou a suspensão da pena de prisão, ao cumprimento do dever de pagamento, pelo Arguido, no prazo de 4 anos, do elevadíssimo montante de €.225.520,85!!!
46- Condição esta que, para além de se mostrar inexequível como qualquer juízo de prognose demonstra, atenta a situação pessoal em que se encontra o arguido – declarado insolvente, reformado, com um rendimento disponível de €.900,00, quase igual ao do salário mínimo nacional, gravemente doente e diariamente dependente de medicamentos e tratamentos médicos é ilegal e é manifestamente desproporcional.
47- Decorre do art. 51º n.º 2 do Cód. Penal que a decisão de aplicação em concreto de deveres ao condenado, como condição de suspensão da sua pena, está delimitada pela necessidade de efectuar, no caso concreto, um juízo de exigibilidade e de prognose positiva da exequibilidade de tais deveres, exercício que deve ter em conta a adequação e proporcionalidade dos mesmos com relação ao fim preventivo visado, o que só pode ser efectuado por reporte directo e imediato à natureza do dever a fixar.
48- Por outro lado, a asserção legislativa que repousa no artigo 14º do RGIT não pode ser de aplicação automática, despido do juízo obrigatório de conformidade, adequação e proporcionalidade a que aludem as normas dos artigos 50º, nº 1 e 2, 51º, 52º e 53º do Código Penal.
49- Ora, percute-se o arguido tem 77 anos de idade, foi declarado insolvente, todo o seu património foi apreendido para a insolvência, encontra-se reformado e devido aos gravíssimos problemas de saúde de que padece – sucessivos AVC e doença de foro oncológico – encontra-se impossibilitado de exercer no presente e no futuro tarefas profissionais.
50- Não possui qualquer bem movel ou imóvel e não aufere outro rendimento para além da sua pensão de reforma, que está sujeita às reduções impostas pelo Tribunal de Comercio no âmbito da insolvência.
51- Para cumprir as condições da suspensão da pena de prisão quer lhe foi aplicada e desse modo poder evitar ir parar à prisão, o pagamento da quantia total de €.225.520,85, num espaço de quatro anos, importaria um encargo mensal, para o arguido apenas para este efeito de €.4.698,35, durante esse período de 48 meses o que, como é bom de ver, se revela absolutamente impossível de concretizar.
52- Tendo em consideração a situação económica do Arguido, actual e futura, não é minimamente razoável ou minimamente expectável que o arguido consiga cumprir com a condição que lhe foi imposta.
53- Deste modo, salvo o devido respeito percebe-se que o Tribunal “a quo” não aplicou correctamente o constante no artigo 51.º n.º 2 do Código Penal, que estipula que “Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir.”
54- Tal como não realizou o Tribunal “a quo” qualquer juízo de prognose e razoabilidade conforme é imposto pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2012 que dispõe:
“No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no art. 105.°, n. ° 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do art. 50.°, n. ° 1, do CP, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o art. 14.°, n. ° 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia."

55- Avaliando-se, objectivamente, o contexto financeiro, actual e expectável no futuro do arguido, é manifesto ser a total e absolutamente inverisímil que o arguido/recorrente venha a ter condições para poder cumprir a condição de pagamento do montante de €.225.520,85 para suspensão da execução da pena de prisão e, por conseguinte, foi violado o princípio da proporcionalidade em qualquer das suas vertentes de adequação, necessidade ou justa medida.
56- Daí que, sempre em modesto, mas convicto entendimento do Recorrente, se deva interpretar conjugadamente o mencionado artigo 14º nº 1 do R.G.I.T. e o artigo 51º nº 2, do Código Penal, do que resulta que nos crimes tributários, tal como acontece com os restantes crimes, só pode ser imposto o dever de pagamento quando do juízo de prognose realizado resulte existirem condições para que essa obrigação possa ser cumprida.
57- No caso em apreço, tendo em conta o montante da dívida, a situação actual económica e de saúde do Recorrente, a inexistência de rendimentos, o montante dos seus encargos fixos e o facto de não ser conhecida a titularidade de qualquer bem de fortuna, não se pode exigir que o mesmo pague no prazo para o efeito estabelecido a quantia em dívida e os legais acréscimos ou mesmo uma pequena parte dela.
58- Daí que se conclua que, neste caso, a suspensão da execução da pena não deve ficar condicionada ao pagamento dos montantes em dívida à Segurança Social.
59- Até porque, no caso de crime de abuso de confiança previsto e punido do nº 1 do artigo 105º do R.G.I.T., que permitiu a aplicação de uma pena de prisão de acordo com critérios e fatores dos artigos 71º do Cód. Penal e 13º do R.G.I.T., a falta de capacidade económica do arguido não pode permitir que este vá cumprir prisão por esse simples facto, afastando a suspensão da execução em função da sua medida, a possibilidade de a substituir por outra pena não privativa da liberdade.
60- Representando tal situação um prejuízo em razão da situação económica do Arguido, em violação do artigo 2º e 13º da C.R.P.

Finalmente, - Pedido de indemnização civil -
61- Nos termos do expressamente dito e articulado no respectivo pedido de indemnização cível, os alegados “prejuízos” são exacta e unicamente os decorrentes da não entrega das referidas quantias de “cotizações”.
62- Parece ao Recorrente, serem os presentes autos, uma situação, na qual em bom rigor, não se deve dar cumprimento ao “Principio da Adesão”, na medida em que por um lado, o pedido feito pelo I.S.S., I.P. já se encontra em curso noutras “instâncias” (cíveis – falência - e fiscais) e por outro, são essas mesmas instâncias, as materialmente competentes para conhecer do pedido civil deduzido.
Pois,
63- Os tribunais judiciais são, nos termos da Constituição e da lei (artigo 202º, nº 1, da Constituição e artigo 1º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo.
64- A cobrança dos tributos e impostos de que a Fazenda pública seja titular, integram actos objectivamente conexos ou teleologicamente subordinados à relação jurídica fiscal dos arguidos/recorrentes com o Estado, integrando questões tipicamente fiscais,
65- Estando a competência para a cobrança dos tributos e impostos de que seja titular a Fazenda publica, expressamente cometida aos órgãos de execução fiscal, ou seja, aos denominados “serviço periférico local da administração tributária” – arts. 149º e 150º do C.P.P.T. –.
66- Pelo que o presente processo – no que à particular questão do pedido de indemnização civil diz respeito - só pode ser objecto de apreciação pelos Tribunais Tributários, “ex- vi” do disposto no artº. 212º da C.R.P., no artº 3º do ETAF e no artº. 144º da LOSJ

Por outro lado,
67- O direito que o I.S.S. pretende ver reconhecido nos presentes autos em relação à sociedade arguida/demandada foi já declarado, por sentença de graduação de créditos proferida nos autos de insolvência da sociedade “EMP01..., Lda.”.
68- Com efeito, o pedido cível deduzido nos presentes autos contra a sociedade arguida está contido no pedido da reclamação de créditos deduzida no supra referido processo de falência e a causa de pedir, como já dissemos, tem por base parcialmente o mesmo direito (a mesma dívida).
69- Fica apurado que se encontram reunidas as condições essenciais de que depende a verificação da excepção de litispendência.
Ainda sem prescindir,
70- O responsável tributário é a Sociedade, que surge como responsável na certidão de dívida fiscal que constitui título executivo (arts. 88º, 162º e 163º do Código de Procedimento e de Processo Tributário – CPPT), obtido unilateralmente e em termos céleres pela própria Administração Tributária, independente da propositura de uma qualquer acção judicial nesse sentido.
71- Sendo a pessoa colectiva a responsável tributária, é à mesma que a lei imputa a acção ou omissão em que se cifre o não cumprimento de algum desses deveres de que resulte um prejuízo, real ou presumido, para o credor.
72- A responsabilidade dos gerentes, neste campo, afirma-se subsidiária ou secundária, sendo chamados à execução quando haja a violação culposa de um ou mais deveres fiscais por parte destes representantes, que releva apenas quando dela resulta a insuficiência do património da empresa, que se afirma como causa próxima da não satisfação da dívida fiscal.

Pelo que,
73- Salvo o devido respeito a Sentença recorrida viola e, ou faz incorrecta interpretação do conjugadamente disposto, por um lado, do art.379º nº 1 do CP e, por outro lado, do conjugadamente disposto nos arts. 2º, 13º, 18º, 29º e 32 da Constituição da República Portuguesa e ainda dos arts. 30º nº 1 e 2, 40º, 70º e 71º do CP tal como do art. 51º do RGIT e das demais normas legais supra citadas.

NESTES TERMOS E COM O DOUTO SUPRIMENTO DE V. EXAS. VENERANDOS DESEMBARGADORES, DEVE SER DADO INTEIRO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, REVOGANDO-SE A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA, JULGANDO PROCEDENTE A EXCEPÇÃO DE CASO JULGADO – NE BIS IN IDEM - POR PROVADA, COM TODAS AS DEVIDAS E LEGAIS CONSEQUÊNCIAS,

OU, E QUANDO ASSIM NÃO SE ENTENDER,

SER A SENTENÇA RECORRIDA ALTERADA QUANTO À MEDIDA DA PENA E A CONDIÇÃO SUSPENSIVA, TAMBÉM COM TODAS AS DEVIDAS E LEGAIS CONSEQUÊNCIAS,
POR SER DE INTEIRA, JUSTIÇA,

I.3 – Contra-alegações:

Na primeira instância, a Digna Magistrada do Ministério Público, notificada do despacho de admissão do recurso, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou resposta em que defende seja negado provimento ao recurso e mantida a sentença recorrida (referência ...34).
Formulou as seguintes conclusões:
“1. No presente caso não existe violação do princípio ne bis in idem consagrado no artigo 29.º, n. º5, da Constituição da República Portuguesa.
2. Não se verificam os pressupostos de aplicação da figura da continuação criminosa entre os factos de ambos os processos.
3. Face ao espaço temporal existente entre a pratica dos factos de ambos os processos (cerca de 8 meses -agosto de 2017 e maio de 2018), não se verifica unidade de dolo, no sentido de que as resoluções criminosas correspondentes aos factos de ambos os processos não se conservam dentro de uma “linha psicológica continuada”.
4. Caso se verificasse os pressupostos da aplicação do crime continuado teria de se decidir sobre a aplicação do disposto no artigo 79.º, n. º2, do Código Penal.
5. Não se verifica qualquer dos vícios a que alude o artigo 410.º, n. º2, do Código de Processo Penal, designadamente o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
6. Nem nulidade da sentença por omissão de pronúncia sobre as circunstâncias factuais que impunham uma decisão quanto às situações exteriores que diminuem consideravelmente a culpa do arguido/recorrente, tendo estas sido dadas como provadas.
7. No que concerne à medida da pena, pelos fundamentos invocados na sentença recorrida, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os feitos legais, consideramos que a pena aplicada ao arguido não é excessiva, nem desproporcional.
8. Face ao disposto no o artigo 14.º, n.º 1 do RGIT, a condição imposta como suspensão da execução da pena de prisão resulta automaticamente da lei.
9. Assim, o juízo de prognose positivo que a lei exige visa, apenas, concluir ou não se a simples censura do facto e a ameaça de prisão acompanhadas do sacrifício de reparação do mal do crime através do pagamento da prestação tributária de que se apropriou e legais acréscimos realizam de forma adequada as necessidades de prevenção geral e especial.
10. A questão sobre se o arguido terá ou não condições de efectuar o pagamento da prestação tributária e legais acréscimos, como condição de suspensão, prende-se com a sua execução e cumprimento.
11. O Tribunal Constitucional tem vindo a pronunciar-se sobre esta questão e afirmado a inexistência de inconstitucionalidade na parte em que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento pelo arguido do imposto em dívida e respetivos acréscimos (neste sentido, acórdão do Tribunal Constitucional nº 546/2024, de 11 de julho de 2024).
12. É de ter em consideração que mesmo que, aquando da sentença pareça pouco provável o cumprimento da obrigação que condiciona a suspensão da execução da pena, pode suceder que, posteriormente, durante o período da suspensão da execução da pena, se altere a situação económica e financeira do condenado e, como tal, venha a ser possível o cumprimento da condição.
13. Por outo lado, a revogação da suspensão da execução da pena de prisão não é automática, ocorrendo nos casos de infração grosseira ou repetida dos deveres ou regras de conduta impostas ou no cometimento de crime pelo qual o agente venha a ser condenado durante o período de suspensão da execução da pena, reveladoras de que as finalidades que estiveram na base dessa suspensão não foram por ela alcançadas, tendo falhado o juízo de prognose favorável ao condenado (cfr. Artigos 14.º, n.º2-c), e 3.º-a), do RGIT, e artigos 55.º e 56.º, do Código Penal).
14. Face ao exposto, afigura-se-nos que o recurso interposto não merece provimento, devendo a douta sentença recorrida ser mantida nos seus precisos termos.”

I.4 – Posição dos sujeitos processuais neste Tribunal ad quem e tramitação subsequente:

Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que conclui pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida (referência ...42).

Cumprido o disposto no art. 417º, nº 2, do CPP, não foi deduzida resposta ao sobredito parecer.
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.

*
*
II – Âmbito objetivo do recurso (thema decidendum):

É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no art. 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (doravante designado, abreviadamente, CPP)[1].
           
Assim sendo, no caso vertente, as questões que importa decidir são as seguintes:

-  Arguidos vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410º, nº2, al. a), do CPP) e/ou nulidade da sentença por omissão de pronúncia (art. 379º, nº1, al. c), do CPP) quanto à factualidade atinente à diminuição considerável da culpa do agente;
- Alegada verificação da exceção de caso julgado (continuação criminosa) - violação do princípio ne bis in idem;
- Invocada excessividade da medida da pena;
- Ilegalidade, por inadequação e desproporcionalidade, da condição de suspensão de execução da pena consistente na obrigação de pagamento dos montantes em dívida à Segurança Social (sob pena de violação dos artigos 2º e 13º da Constituição da República Portuguesa);
- Incompetência material do Tribunal criminal comum para conhecer do pedido de indemnização civil deduzida nos autos, que, por outro lado, já se encontra em curso noutras instâncias (cíveis – falência – e fiscais); responsabilidade meramente subsidiária, secundária, do demandado recorrente, enquanto gerente da sociedade arguida/demandada.     
*
*
III – Apreciação:       

III.1 – Dada a sua relevância para o enquadramento e decisão das questões suscitadas pelos recursos, importa verter aqui a factualidade que o Tribunal a quo deu como provada.
           
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
             
«1.- A sociedade EMP01..., Lda. é uma sociedade comercial por quotas, encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial ..., com o contribuinte n.º ...18, com o contribuinte da Segurança Social n.º ...80, tem sede na Rua ..., ..., em ..., e tem como objeto social a “indústria e comércio de malhas e confeções”. 2.- A administração da referida sociedade era exercida pelo arguido AA, a quem competia, a gestão, administração e representação de toda a atividade exercida, a decisão de afetação dos seus recursos financeiros à satisfação das respetivas necessidades, a responsabilidade pelo pagamento aos fornecedores, pelo pagamento de contribuições e impostos, bem como salários aos trabalhadores e respetivas quotizações ao Instituto da Segurança Social.
3.- Nessa qualidade, o arguido AA estava obrigado a descontar nas remunerações pagas aos trabalhadores e ao sócio-gerente registado as quotizações de 11%, bem como a entregar o seu valor nos serviços da Segurança Social.
4.- Sucede que, nos meses de abril de 2018 a dezembro de 2021, a sociedade EMP01..., Lda. entregou, através do arguido AA, no Instituto da Segurança Social as declarações de remunerações dos trabalhadores e do sócio-gerente.
5.- Todavia, embora tivessem autoliquidado as quotizações devidas à Segurança Social nas remunerações pagas aos trabalhadores e ao sócio-gerente, arguido AA, em representação daquela, não procedeu à entrega dos respetivos valores, que ascendem à quantia global de 225.520,85 € (duzentos e vinte e cinco mil, quinhentos e vinte euros e oitenta e cinco cêntimos), entre os dias 10 e 20 do mês seguinte àquele a que respeitam.
6.- Nem regularizaram a dívida nos 90 dias volvidos aquelas datas.
7.- Assim, o arguido AA deveria ter entregue à Segurança Social os montantes a seguir melhor discriminados que deduziram do valor das remunerações pagas aos trabalhadores e ao sócio-gerente e que integraram no património da sociedade arguida.

8.- Em 07.09.2022, os arguidos AA e a sociedade arguida foram notificados pela Segurança Social para procederem ao pagamento da quantia em dívida, no prazo de 30 dias, nos termos do artigo 105.º, n.º 4, al. b) do RGIT, não o tendo feito.
9.- A entrega das contribuições à Segurança Social configura uma obrigação legal que nasce no ato do pagamento dos salários, sendo pela sua retenção e pagamento responsável a entidade empregadora.
10.- Após efetuar a retenção das quotizações acima indicadas, o arguido AA ingressou os respetivos valores no património da sociedade e no seu próprio património, bem sabendo que não eram sua pertença mas sim da Segurança Social.
11.- Pelo que arguido AA agiu sempre, de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de obter para si e para a sociedade que representa uma vantagem patrimonial a que sabiam, não ter direito, apossando-se em proveito próprio e da sociedade que representava do valor das quotizações supra indicado, atuando de forma homogénea e no quadro da mesma solicitação exterior, bem sabendo ser as suas condutas proibidas e punidas por lei.
12.- Acresce ainda que o arguido AA atuou sempre motivado pelas dificuldades económico-financeiras da sociedade que geria, beneficiando ainda da falta de fiscalização dos serviços da Segurança Social.
13.- O arguido AA atuou sempre na qualidade de representantes da sociedade, em seu nome e no interesse coletivo da mesma.
14.- O arguido AA foi declarado insolvente.
15.- A sociedade arguida atravessou dificuldades económicas e acabou por ser declarada insolvente.
16.- O arguido não possui qualquer bem em seu nome pessoal e tem o 4.º ano de escolaridade.
17.- Por sentença proferida no âmbito do processo crime n.º 2352/19.0T8VNF, já transitada em julgado no passado dia 09-05-2022, o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de abuso contra a segurança social, previsto e punido pelos artigos 5.º, n.º 2, 7.º, nºs 1 e 3, 107.º, n.ºs 1 e 2 e 105.º, n.ºs 4 e 5 do RGIT, na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de 8 euros.
«18.- Nos factos provados nessa douta sentença proferida no âmbito do processo crime n.º 2352/19.0T8VNF, consta a seguinte factualidade:
“1. A sociedade comercial por quotas EMP01..., Limitada, com o NIPC ...18, com sede na Rua ..., ..., ..., com início de atividade a 4/11/1981, tem como objeto a indústria e comércio de malhas e confeções, a que corresponde o CAE ...-R3, e está inscrita na SS com o n.º ...80, estando vinculada ao cumprimento das obrigações que, na qualidade de contribuinte, lhe cabem perante a Segurança Social;
2. Pelo menos desde o início da referida sociedade e até ao final do ano de 2017, o arguido AA (além de sócio) foi o gerente, de facto e de direito, da mesma, sendo que, ao longo de todo o período em que a atividade da sociedade foi exercida, a administração e gestão daquela esteve a cabo do arguido AA, que sempre chamou a si a iniciativa e a total responsabilidade pelas decisões tomadas, celebrando os contratos inerentes, cobrando e pagando débitos, como salários aos trabalhadores, efetuando pagamentos a fornecedores, recebendo os lucros, e assumindo os prejuízos relativos aos exercícios;
3. No período referido infra, aquele arguido, AA, atuando em representação e no interesse da sociedade arguida, e nas respetivas datas, e como o responsável pela condução da vida da sociedade, colocou ao seu serviço diversos trabalhadores, em regime de trabalho subordinado, pagando regularmente os salários aos mesmos, bem como descontado nestes as contribuições pelos mesmos devidos à Segurança Social, auferindo ainda o arguido AA, enquanto, assim gerente de facto e também gerente de direito/membro de órgão estatutário, a respetiva remuneração, e efetuando depois os respetivos descontos devidos à Segurança Social.
(…)
4.- Porém, o arguido AA, apesar de ter remetido as declarações de remunerações respetivas, nunca entregou as quantias respeitantes àquelas cotizações, referentes aos meses devidamente assinalados (Agosto de 2015, Dezembro de 2015, Março de 2016 a Janeiro de 2017, e Maio a Julho de 2017) e nos termos acima referidos, cuja obrigação surge no final de cada mês de prestação de trabalho efetivo;”»
*
III.2 – Análise das concretas questões suscitadas no recurso pelo arguido/demandado AA, conhecidas por ordem de precedência lógica:

III.2.1 – Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e/ou nulidade da sentença por omissão de pronúncia:

Neste segmento do recurso, o arguido/recorrente alega, em súmula:
- A factualidade atinente à diminuição considerável da culpa que acompanha uma continuação criminosa, que ficou documentalmente demonstrada e não foi contrariada por qualquer meio de prova, não foi levada em conta pelo Tribunal “a quo”, que omitiu, a este respeito, qualquer pronuncia. Verificando-se, no caso, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto ou o vicio de omissão de pronúncia;
- Por outro lado, tratando-se de factos relevantes que constavam dos autos e que poderiam conduzir a diferente decisão, sobre os quais a decisão recorrida não se pronunciou, pode dizer-se que esta padece do vício de omissão de pronúncia;
- O arguido/recorrente entende que esta falta preenche concomitantemente ambos os vícios, pelo que há que declarar a nulidade da sentença recorrida, que deve ser substituída por outra que se pronuncie sobre as referidas questões, designadamente, realizando um juízo fundamentado sobre as circunstâncias factuais, que impunham uma decisão quanto às situações exteriores que diminuem consideravelmente a culpa do arguido/recorrente.

Preceitua o art. 410º do Código de Processo Penal [na parte aqui pertinente]:
“1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum:
a) Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
[…]”
O predito vício decisório há de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si ou em conjugação com as regras da experiência comum, isto é, sem apelo a outros elementos externos à decisão, designadamente prova gravada ou documentada.
A existência do vício previsto na alínea a) do nº2 do citado normativo implica que a matéria de facto provada, na sua globalidade, se revela inidónea ou escassa para suportar a decisão tomada pelo Tribunal. Verifica-se quando o Tribunal deixe de indagar e de conhecer sobre facto que se revele necessário para a decisão do objeto do processo.
Assim entendido o vício em questão, é óbvio que a sentença recorrida não padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Na verdade, a matéria de facto considerada provada pelo Tribunal recorrido contém os factos pertinentes para a apreciação objetiva sobre a existência ou não da alegada continuação criminosa subjacente às condutas ajuizadas nestes autos, bem assim entre estas e os comportamentos do arguido que foram julgados naqueloutro processo nº 2352/19.0T9VNF, que correu termos no Juízo Local Criminal de Vila Nova de Famalicão – Juiz ..., designadamente no que concerne ao elemento relativa à atuação no quadro da solicitação de uma mesma «situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente» (cf. art. 30º, nº2, parte final, do Código Penal).

Tal factualidade encontra-se plasmada nos seguintes pontos da matéria de facto provada:      
“12.- Acresce ainda que o arguido AA atuou sempre motivado pelas dificuldades económico-financeiras da sociedade que geria, beneficiando ainda da falta de fiscalização dos serviços da Segurança Social.
13.- O arguido AA atuou sempre na qualidade de representantes da sociedade, em seu nome e no interesse coletivo da mesma.
14.- O arguido AA foi declarado insolvente.
15.- A sociedade arguida atravessou dificuldades económicas e acabou por ser declarada insolvente.
16.- O arguido não possui qualquer bem em seu nome pessoal e tem o 4.º ano de escolaridade.”

Destarte, verifica-se que a mencionada questão fática relevante para a decisão final foi efetivamente averiguada pelo Tribunal a quo e, nessa sequência, adequada e suficientemente vertida na decisão sobre da matéria de facto.
Por conseguinte, não se verifica o apontado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Prescreve o art. 379º, nº1, alínea c), do CPP [na parte que ora releva]:
“1 - É nula a sentença:
[…]
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…)”.
Como reiteradamente tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça, a omissão de pronúncia a que se reporta o sobredito preceito legal significa, essencialmente, a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. Tais questões correspondem àquelas que os sujeitos processuais interessados colocam à apreciação do tribunal, concernentes ao objeto processual – excetuando aquelas cuja decisão se mostre prejudicada pela solução dada a outra(s) – e bem assim às que, na falta de alegação, sejam de conhecimento oficioso. Por outro lado, a pronúncia cuja omissão determina a nulidade da sentença é referida ao concreto objeto ou tema que é submetido à cognição do tribunal e não aos motivos ou razões arrazoados.[2]
In casu, constata-se que nem no douto requerimento de abertura de instrução nem na douta contestação que deduziu nos autos o arguido AA suscitou a questão de ocorrer uma continuação criminosa entre as condutas que lhe são imputadas nos presentes autos e aquelas que fundamentaram a condenação que sofreu no Processo nº 2352/19.0T9VNF. Limitou-se o ora recorrente a invocar nessas peças processuais que não praticou os factos que lhe são imputados e não cometeu o crime de que vem acusado/pronunciado, peticionando sejam julgados improcedentes a “acusação” e o pedido de indemnização civil [cf. referências ...71 e ...47].
Competia ao arguido/contestante alegar toda a factualidade imprescindível para o conhecimento da questão da existência de um só crime continuado de abuso de confiança à Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 5.º, n.º 2, 7.º, nºs 1 e 3, 107.º, n.ºs 1 e 2 e 105.º, n.ºs 4 e 5 do RGIT, que ulteriormente veio a alegar no requerimento ad hoc de 26-11-2024, a coberto da invocação da violação do princípio ne bis in idem, por entender verificar-se a exceção de caso julgado [referência ...53].
Neste contexto, o Tribunal a quo decidiu sobre a matéria de facto que foi alegada e/ou resultou provada na audiência de julgamento e pronunciou-se expressamente sobre a sobredita questão, considerando que não foi comprovada a pretensa continuação criminosa, subsistindo uma situação de concurso efetivo de infrações.
Fê-lo nos seguintes termos:    
«In casu, nada indicia ter havido uma só resolução que se iniciou em agosto de 2015, ou seja, um só ato de vontade criminosa, um só processo de deliberação, o que aponta para a existência de uma violação plúrima do tipo legal em questão.
Nestes termos, considerando que a atividade dos arguidos é passível de um plúrimo juízo de censura, dada a sucessiva renovação do ato de vontade traduzido na não entrega das referidas contribuições à segurança social, renovação esta que não custa aceitar ter existido, atendendo à específica natureza – de índole periódica – da obrigação não cumprida.
Não subsistem, assim, quaisquer dúvidas de que estamos perante uma situação de concurso efetivo entre os factos julgados no âmbito do processo crime n.º 2352/19.0T8VNF e os factos em apreço nos presentes autos.
Na verdade, não basta mostrar que o elemento unificador da conduta criminosa não implica maior gravidade penal das diversas atividades, é preciso também demonstrar que esse elemento importa uma reprobabilidade menor que justifique o tratamento das diferentes atividades como se fossem uma só - cfr. Eduardo Correia, in “Unidade e Pluralidade de Infracções”, Almedina,1983, pág. 171.
Tem ainda de se conjugar todo o circunstancialismo homogéneo, avaliado à luz de um critério espaço - temporal, com o circunstancialismo externo ou exógeno que diminua a culpa do agente.
Fala a doutrina em linha psicológica continuada para dar solidez à construção do crime continuado.
Necessário é que o lapso de tempo verificado entre cada uma das condutas em causa não seja de ordem a quebrar aquela linha psicológica, que exista uma certa conexão temporal que permita presumir uma menor reflexão sobre a ação criminosa anterior, facilitadora do repetido sucumbir - cfr. Ac. do STJ de 17.02.83, in B.M.J. n.º 324, pág. 447.
Voltando ao caso em apreço, não podemos deixar de registar que existe uma quebra temporal significativa entre julho de 2017 (ultima omissão imputada aos arguidos na douta sentença proferida no âmbito do processo crime 2352/19.0T8VNF) e a data da primeira omissão imputada aos arguidos nos presentes autos, ou seja, abril de 2018.
E tal quebra temporal, salvo melhor entendimento, permite-nos concluir que essa “linha psicológica criminosa dos arguidos” foi quebrada em julho de 2017 e depois renovada em abril de 2018.
Estamos, assim, perante um concurso efetivo de crimes e não perante uma atuação desenvolvida sob a mesma resolução criminosa.
Neste contexto, é nosso entendimento que a exceção invocada pelo arguido tem de ser julgada improcedente.»

Assim, independentemente de o recorrente discordar da decisão emitida pelo Tribunal, dúvidas não sobejam de que o Mmo. Juiz se pronunciou, de modo cabal, sobre o tema introduzido na discussão pelo arguido.
Em conformidade, inexiste a arguida nulidade da sentença por omissão de pronúncia, pelo que improcede, nesta parte, o recurso do arguido.  

III.2.2 - Exceção de caso julgado - princípio ne bis in idem:

Neste conspecto, invoca o recorrente, resumidamente:
- No processo comum (tribunal Singular) que sob o n.º 2352/19.0T9VNF correu termos pelo Juízo Criminal de Vila Nova de Famalicão – Juiz ... - o arguido/recorrente, foi igualmente acusado e condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime de Abuso de Confiança contra a Segurança Social p. e p. pelos arts 105º n.º 1, 4 e 7 do RGIT, na qualidade de gerente da Sociedade co-arguida “EMP01..., Lda”, e reportado ao período de Agosto de 2015 e Março a Julho de 2017, conforme está certificado nos autos.
- O cerne e a essência dos factos imputados ao Arguido, quer do ponto de vista objectivo, quer do ponto de vista subjectivo, seja neste processo, seja naquele que correu termos no Juízo Criminal de Vila Nova de Famalicão – Juiz ... – são os mesmos.
- O princípio do ne bis in idem, com assento constitucional, radica na figura do caso julgado e proíbe a instauração de um segundo procedimento ao mesmo sujeito pelo mesmo objecto e com o mesmo fundamento.
- Nos casos de crime continuado existe um só crime porque, verificando-se embora a violação repetida do mesmo tipo legal ou a violação plúrima de vários tipos legais de crime, a culpa está tão acentuadamente diminuída, que só é possível formular um único juízo de censura e não vários. Desta forma, se algumas actividades que fazem parte de uma continuação criminosa foram já objecto de sentença definitiva, ter-se-á de considerar consumido o direito de acusação relativamente a quaisquer outras que pertençam a esse mesmo crime continuado, ainda que elas de facto tivessem permanecido estranhas ao conhecimento do juiz.
- Relativamente à acusação deduzida nestes autos, verifica-se, quanto aos períodos de Abril de 2018 a Dezembro de 2021, que o mesmo facto - falta de entrega de cotizações à Segurança Social, na qualidade de representante da Sociedade co-arguida – foram já objecto de julgamento no âmbito do processo assinalado – proc. n.º 2352/19.0T9VNF – onde foi proferida sentença que já transitou em julgado.
- Como configurado na acusação do proc. n.º 2352/19.0T9VNF, os factos imputados ao arguido relativo à falta de entrega de quotizações à Segurança Social, ao período de 2015 a 2017 e de 2018 a 2021 são produto de uma alegada e única resolução criminosa, o que significa que a sua consumação se prolongou no tempo, podendo classificar-se a imputada conduta em causa como crime de execução continuada.
- Existe a unificação de vários actos em um só crime, por existência de uma unidade resolutiva e conexão temporal entre os actos realizados.
- De concurso de crimes também não se pode falar uma vez que o bem jurídico violado com a execução daquela única resolução é o mesmo.
- Resulta do confronto com a decisão transitada em julgado proferida no âmbito do processo nº 2352/19.0T9VNF, que correram termos no Juízo Local Criminal de Vila Nova de Famalicão - Juiz ..., que ocorre uma situação de caso julgado. Tendo em conta os factos investigados nestes autos e os constantes daquele outro processo, é notório que se tem em vista a apreciação dos mesmos comportamentos espácio temporalmente determinados e com a mesma qualificação jurídica: crime de Abuso de Confiança em relação à Segurança Social na forma continuada.
- No caso verifica-se uma mesma e continuada, tal como muito prolongada situação exterior de continuadas e recorrentes dificuldades económicas e financeiras da sociedade e das suas centenas de trabalhadores, que diminui consideravelmente a culpa do arguido, que tudo fazia e fez para tentar manter a sociedade em actividade, na expectativa que o ciclo económico se alterasse e permitisse o retorno da sociedade ao equilíbrio de exploração. E, por esse motivo, percute-se, está-se  face a um único crime: um crime continuado.
- Perante uma sentença condenatória anterior do agente pela prática de um crime continuado – em concreto, um crime continuado de abuso de confiança contra a segurança social – o momento temporal a considerar para a inversão do sentido de culpa do agente, de uma diminuição considerável para a sua agravação, é a do trânsito em julgado daquela decisão. Compulsados os autos, verifica-se que as condutas imputadas ao arguido/Recorrente se situam todas antes do trânsito em julgado – que ocorreu em 2 de maio de 2022 - da decisão condenatória proferida no âmbito do assinalado processo n.º 2352/19.0T9VNF.

Na sentença ora sob sindicância, o Tribunal recorrido pronunciou-se sobre estas questões nos seguintes moldes:
           
«Exceção “Ne bis in idem”:
No requerimento datado de 26-11-2024, veio o arguido AA invocar o a exceção “Ne bis in idem” com a seguinte argumentação:
1.- Nos presentes autos, o arguido vem acusado da prática de um crime, na forma continuada, de abuso de confiança à Segurança Social p. e p. pelas disposições conjugadas nos arts. 5º, n.º 2, 7.º n.ºs 1 e 3, 107º n.s 1 e 2 e 105º n.ºs 4 e 5 do RGIT e reportado ao período do mês de Abril de 2018 ao mês de Dezembro de 2021.
2.- Sucede, porém, que, no processo comum (tribunal Singular) que sob o n.º 2352/19.0T9VNF correu termos pelo Juízo Criminal de Vila Nova de Famalicão – Juiz ... - o arguido, foi igualmente acusado e condenado pela prática de um crime de Abuso de Confiança contra a Segurança Social p. e p. pelos arts 105º nºs1, 4 e 7 do RGIT.
3.- Na acusação deduzida nesse processo era imputado ao arguido a prática do mesmo crime, na qualidade de gerente da Sociedade co-arguida “EMP01..., Lda”, reportado ao período de agosto de 2015 e Março a Julho de 2017.
4.- Nesse processo, foi proferida Sentença Judicial em 31/03/2022, a qual transitou em julgado em 2 de maio de 2022, e que condenou o arguido naquele crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, conforme tudo melhor se alcança da copia da Sentença proferida, documento que aqui dá por integralmente reproduzida para todos os devidos e legais efeitos – doc. n.º 15
5.- O cerne e a essência dos factos imputados ao arguido, quer do ponto de vista objetivo, quer do ponto de vista subjetivo, seja neste processo, seja naquele que correu termos no Juízo Criminal de Vila Nova de Famalicão – Juiz ... - são os mesmos
6.- Aqui chegados, cumpre assinalar que o princípio do ne bis in idem, com assento constitucional, radica na figura do caso julgado e proíbe a instauração de um segundo procedimento ao mesmo sujeito pelo mesmo objeto e com o mesmo fundamento.
Cumpre decidir:
Conforme resulta da factualidade provada e foi doutamente alegado pelo arguido AA no seu último requerimento, este arguido e a sociedade arguida já foram condenados pela prática do mesmo tipo de ilícito criminal.
Com efeito, conforme resulta da douta sentença condenatória proferida no âmbito do processo crime n.º 2352/19.0T8VNF, no período compreendido entre Agosto de 2015, Dezembro de 2015, Março de 2016 a Janeiro de 2017, e Maio a Julho de 2017, este arguido não restituiu as respetivas cotizações à segurança social.
Nesta esteira poder-se-á, então, equacionar, a verificação da exceção ne bis in idem.
Ora, é consabido que nos termos do artigo 29.º, n.º 5 da CRP, ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.
O instituto do caso julgado não se encontra, hoje em dia, regulado quer no C.P., ou no C.P.P., mas a ele é feita referência no artigo 29.º, n.º 5, da CRP.
Trata-se de um princípio de Direito Constitucional Penal que configura um direito subjetivo fundamental, enunciado no n.º 5 do art.º 29.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Aliás, tal principio consta também do art.º 47º-7. do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 e do artigo 4.º do protocolo n.° 7 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 22 de novembro de 1984, que conheceu a sua redação definitiva com o Protocolo n.° 11, a partir de 1 de novembro de 1998.
Como se diz no Ac. do STJ de 18-6-98, in CJ, S, T3, 167, “Em processo penal não é possível o recurso ao processo civil, como lei potencialmente subsidiária, para se determinar a natureza da excepção de caso julgado. Por isso, transitada em julgado a decisão proferida, verifica-se a extinção definitiva da lide processual penal e perempção do direito-dever do Estado de voltar a julgar o mesmo acusado.
No seguimento do Ac. do STJ de 18-2-97, in CJ, S, T3, 259, pode dizer-se que no atual CPP, a ausência de regulamentação sobre caso julgado, só pode significar que o legislador não quis, pura e simplesmente, firmar regras rígidas no processo penal em tal matéria, dada a natureza deste ramo de Direito.
No caso em apreço, os arguidos não foram julgados no âmbito dos presentes autos pela não entrega ao ISS das cotizações supra identificadas nos factos provados no mesmo período a que alude a douta sentença proferida no processo crime n.º 2352/19.0T8VNF.
Por este motivo, esta exceção estaria votada à sua improcedência.
Acontece que, nos termos do disposto no artigo 79.º, n.º 2, do C.P., se, depois de uma condenação transitada em julgado, for conhecida uma conduta mais grave que integre a continuação, a pena que lhe for aplicável substitui a anterior.
À luz deste preceito legal, poder-se-á então questionar se, dada a existência dessa aparente reiteração da mesma conduta criminosa dos arguidos, a conduta destes arguidos integra a prática de um só crime continuado de abuso de confiança fiscal, incluindo, assim, também o período a que alude a douta sentença proferida no processo crime n.º 2352/19.0T8VNF.
Ora, de acordo com o consignado no artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crimes for preenchido pela conduta do agente.
Estamos, assim, na presença de um concurso de crimes quando o agente comete mais do que um crime, quer mediante o mesmo facto, quer mediante vários factos1.
De acordo com o critério proposto pelo Prof. Eduardo Correia haverá concurso de crimes quando se puder afirmar uma “pluralidade de juízos de censura”, traduzida por uma pluralidade de resoluções autónomas (de resoluções de cometimento dos crimes, em caso de dolo; de resoluções donde derivaram as violações do dever de cuidado, em caso de negligência).
«In casu, nada indicia ter havido uma só resolução que se iniciou em agosto de 2015, ou seja, um só ato de vontade criminosa, um só processo de deliberação, o que aponta para a existência de uma violação plúrima do tipo legal em questão.
Nestes termos, considerando que a atividade dos arguidos é passível de um plúrimo juízo de censura, dada a sucessiva renovação do ato de vontade traduzido na não entrega das referidas contribuições à segurança social, renovação esta que não custa aceitar ter existido, atendendo à específica natureza – de índole periódica – da obrigação não cumprida.
Não subsistem, assim, quaisquer dúvidas de que estamos perante uma situação de concurso efetivo entre os factos julgados no âmbito do processo crime n.º 2352/19.0T8VNF e os factos em apreço nos presentes autos.
Na verdade, não basta mostrar que o elemento unificador da conduta criminosa não implica maior gravidade penal das diversas atividades, é preciso também demonstrar que esse elemento importa uma reprobabilidade menor que justifique o tratamento das diferentes atividades como se fossem uma só - cfr. Eduardo Correia, in “Unidade e Pluralidade de Infracções”, Almedina,1983, pág. 171.
Tem ainda de se conjugar todo o circunstancialismo homogéneo, avaliado à luz de um critério espaço - temporal, com o circunstancialismo externo ou exógeno que diminua a culpa do agente.
Fala a doutrina em linha psicológica continuada para dar solidez à construção do crime continuado.
Necessário é que o lapso de tempo verificado entre cada uma das condutas em causa não seja de ordem a quebrar aquela linha psicológica, que exista uma certa conexão temporal que permita presumir uma menor reflexão sobre a ação criminosa anterior, facilitadora do repetido sucumbir - cfr. Ac. do STJ de 17.02.83, in B.M.J. n.º 324, pág. 447.
Voltando ao caso em apreço, não podemos deixar de registar que existe uma quebra temporal significativa entre julho de 2017 (ultima omissão imputada aos arguidos na douta sentença proferida no âmbito do processo crime 2352/19.0T8VNF) e a data da primeira omissão imputada aos arguidos nos presentes autos, ou seja, abril de 2018.
E tal quebra temporal, salvo melhor entendimento, permite-nos concluir que essa “linha psicológica criminosa dos arguidos” foi quebrada em julho de 2017 e depois renovada em abril de 2018.
Estamos, assim, perante um concurso efetivo de crimes e não perante uma atuação desenvolvida sob a mesma resolução criminosa.
Neste contexto, é nosso entendimento que a exceção invocada pelo arguido tem de ser julgada improcedente.»

Concordamos com a argumentação e sentido da decisão a este propósito prolatada pelo Tribunal a quo (posição comungada pelo Ministério Público em ambas as instâncias).
             
Preceitua o art. 29º, nº5, da Constituição da República Portuguesa que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, assim estabelecendo o efeito negativo do caso julgado penal, correspondente ao princípio conhecido pelo brocardo ne bis in idem.[3]
Deste princípio decorre que a existência de caso julgado impede novo julgamento sobre o mesmo crime.

Como menciona Germano Marques da Silva [ibidem, p. 41], «por mesmo crime deve considerar-se a mesma factualidade jurídica e o seu aspeto substancial, os elementos essenciais do tipo legal pelos quais o arguido foi julgado. […] o crime deve considerar-se o mesmo quando exista uma parte comum entre o facto histórico julgado e o facto histórico a julgar e que ambos os factos tenham como objeto o mesmo bem jurídico ou formem, como ação que se integra na outra, um todo do ponto de vista jurídico.»

Henrique Salinas[4], reportando-se aos limites objetivos da proibição inerente ao ne bis in idem, refere: «[…] estes devem corresponder aos poderes de cognição do ato que procede à delimitação do objeto do processo, ou seja, «à acusação em sentido material», donde que não é possível a instauração de novo processo pelos factos conhecidos no processo anterior e ainda por aqueles que podiam ter sido conhecidos, tendo em conta os poderes de cognição que assistiam ao seu autor, para cada objeto processual unitário». O autor descreve ainda o objeto do processo como sendo constituído por «um pedaço de vida do agente, descrito tendo em conta a valoração e a imagem social do seu comportamento, recortado na acusação em sentido material, com vista à imputação de um determinado crime.»        
Urge ainda ter presente que, não obstante a Constituição da República Portuguesa (CRP) apenas proibir expressamente o duplo julgamento pelo mesmo facto – ne bis in idem na vertente processual -, a proibição abarca também a aplicação de novas sanções penais pela prática do mesmo crime – ne bis in idem na vertente penal. Ou seja, o princípio assume o dúplice sentido de proibição de duplo julgamento de uma infracção penal e de proibição de dupla punição.

Por outro lado, segundo a corrente jurisprudencial dominante no Supremo Tribunal de Justiça, referenciada no acórdão do STJ de 08-03-2006, proferido no processo n.º 05P4401, «a sentença que incidiu sobre infracções parcelares integradas num crime continuado, não constitui caso julgado impeditivo do julgamento das que só posteriormente foram descobertas, pois o princípio ne bis in idem, se constitui obstáculo a que uma pessoa seja condenada duas vezes pelos mesmos factos, não pode constituir fundamento para que fiquem por punir factos que nunca foram julgados» - cf. acórdão do STJ de 06.06.2018, proferido no Processo nº 1/15.4GAMTS.S1, relator Conselheiro Manuel Augusto de Matos.
Dito isto, cumpre concluir que no caso vertente o arguido/recorrente AA não foi julgado nos presentes autos pelos “mesmos factos” que motivaram a sua condenação por decisão transitada em julgado proferida no Processo nº 2352/19.0T9VNF, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Vila Nova de Famalicão – J..., igualmente pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 6.º, n.º 1, 7.º, nº 1, 107.º, n.ºs 1 e 2 e 105.º, n.ºs 1, 4 e 7 do RGIT e 30º, nº2, e 79º, do CP, enquanto gerente, de facto, da sociedade arguida “EMP01..., Lda.”, na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de 8 euros.
Com efeito, o objeto processual definido pelas respetivas acusações/pronúncias introduzidas em juízo em ambos os processos, entendido aquele como o conjunto factual circunstanciado com pertinência jurídica, coincide no que tange ao tipo de crime imputado ao arguido – crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social –, mas é diferente relativamente à factualidade integradora da tipicidade objetiva e subjetiva do ilícito criminal que sustenta cada libelo acusatório e, a final, cada uma das condenações em causa. A não entrega das contribuições à Segurança Social é reportada nos processos em cotejo a datas distintas: naqueloutro, refere-se às cotizações dos meses de agosto de 2015, dezembro de 2015, março de 2016 a janeiro de 2017 e maio a julho de 2017, cuja obrigação surge no final de cada mês de prestação de trabalho efetivo; neste, funda-se na apropriação das cotizações retidas nos meses de abril de 2018 a dezembro de 2021, cujas respetivas liquidações deviam ter sucedido nos meses imediatamente seguintes aquele a que respeitassem.
Não se pode, neste conspecto, falar do julgamento em ambos os processos do mesmo comportamento, do mesmo «pedaço de vida».
           
Mas será caso de aplicação do disposto no art. 79º, do Código Penal (CP), que contende com a punição do crime continuado?

Preceitua o art 79º do CP:
“1 - O crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação.
2 - Se, depois de uma condenação transitada em julgado, for conhecida uma conduta mais grave que integre a continuação, a pena que lhe for aplicável substitui a anterior.”
A Reforma Penal de 2007 introduziu o nº2, referindo o legislador, a propósito, na exposição de motivos do Projeto subjacente à Proposta de Lei nº 98/X, de 7 de setembro de 2006, geradora da Lei nº 59/2007, de 4 de setembro: «Ao nível sancionatório prescreve-se que o conhecimento superveniente de novo crime que integre a continuação criminosa ou o concurso acarreta sempre a substituição da pena anterior, mesmo que já executada, depois de se ter procedido ao correspondente desconto, no caso de a nova pena única ser mais grave. Deste modo, assegura-se o máximo respeito pelo princípio non bis in idem, consagrado no nº5 do artigo 29º da Constituição.» 
Conforme mencionam Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, in “Código Penal, Anotado e Comentado”, 2ª Edição, anotações 6 e 7 ao art. 79º, pág. 265, «O novo nº2 é uma norma que merece aplauso: por razões de justiça e de segurança. Razões de justiça, enquanto se assegura, na medida do possível, uma efetiva punição de todo o crime continuado. Razões de segurança, em virtude de ficar adquirido que o conhecimento superveniente de crime integrado na continuação, desde que mais grave, não é prejudicado por caso julgado anterior. O ponto era suscetível de dar lugar a dúvidas, que a intervenção legislativa em causa abortou.
[…]
Quando se refere o conhecimento superveniente de conduta mais grave, alude-se a uma conduta à qual corresponde pena aplicável mais grave do que a moldura penal antes utilizada para se punir a continuação, na sentença já transitada. (Se se curasse, com efeito, do conhecimento superveniente de conduta menos grave – no sentido de que não altera a moldura penal, já anteriormente considerada -, a inserção da mesma na continuação, face ao caso julgado entretanto ocorrido, não determinaria correspondente punição, certo como esta, então, deveria considerar-se realizada e absorvida por aquele ou mesmo já contida.)»  
Todavia, como é óbvio, a aplicabilidade dos sobreditos normativos legais pressupõe que a factualidade conhecida ulteriormente ao trânsito em julgado da anterior condenação por crime continuado integre essa continuação criminosa, o que não sucede in casu.
A factualidade apurada nos presentes autos - definitivamente estabilizada face à ausência de impugnação ampla da decisão da matéria de facto, nos termos e para efeitos do disposto nos arts. 412º, nºs 3 e 4, e 431º, al. b), ambos do CPP - não permite a integração dos factos ora julgados na continuação criminosa determinada no Processo 2352/19.0T9VNF.

Estatui o art. 30º do Código Penal, com a epígrafe «concurso de crimes e crime continuado»:
“1 - O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2 - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
3 - O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.” [redação da Lei nº 40/2010, de 03.09, com entrada em vigor em 03.10.2010]    
           
Nos casos em que ocorre pluralidade de resoluções criminosas, há situações em que esta é meramente aparente, sendo que a justiça e a economia processual aconselham a verificação de um só crime, na forma continuada.
Eduardo Correia (in “Direito Criminal”, Tomo II, Reimpressão, 1971, p. 203 e ss.) elenca como situações exteriores típicas da unidade criminosa da continuação, sem esgotar o domínio dessa continuação, e tendo sempre a “diminuição considerável da culpa” como ideia fundamental, as seguintes:
a) A circunstância de se ter criado, através da primeira atividade criminosa, uma certa relação, um acordo entre os sujeitos;
b) A circunstância de voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime, que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa;
c) A circunstância da perduração do meio apto para realizar um delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira conduta criminosa; e
d) A circunstância de o agente, depois de executar a resolução que tomara, verificar que se lhe oferece a possibilidade de alargar o âmbito da sua atividade criminosa.
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.10.2010, Processo nº 78/07.6JAFAR.E2.S1, disponível em www.dgsi.pt., a conexão espacial e temporal das atividades continuadas, não assume papel de especial relevo, apenas podendo ter interesse quando puder afastar a conexão interior de ligação factual entre os diversos atos (derivando esta de a motivação de cada facto estar ligada à dos outros). Decisivo é, pelo contrário, que as diversas atividades preencham o mesmo tipo legal de crime, ou pelo menos, diversos tipos legais de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico.
Frisa-se que pressuposto fundamental da continuação criminosa é a existência de uma relação que, de maneira considerável, facilitou a repetição da atividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito, dessa forma diminuindo consideravelmente o grau de culpa do agente.
Como se adverte no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.11.2010, Processo nº 126/09.5GJBJA.S1, disponível em www.dgsi.pt, não basta qualquer solicitação exterior mas é necessário que ela facilite de maneira apreciável a reiteração criminosa. Por outro lado, não poderá ser também suficiente que se verifique uma situação exterior normal ou geral que facilite a prática do crime. Sendo normais ou gerais, deve justamente o agente contar com elas para modelar a sua personalidade de maneira a permanecer fiel aos comandos jurídicos.
Ademais, relativamente a este último pressuposto, urge ainda ter presente que é mister distinguir entre a reiteração criminosa que resulta de uma situação externa subsistente ou renovada sem que o agente para tal tenha contribuído e aquela que resulta de uma situação criada pelo próprio agente: se foi este que procurou, provocou ou organizou as condições para a renovação da sua atividade criminosa, sem qualquer circunstancialismo exterior que facilite essa reincidência, já não haverá qualquer diminuição acentuada da sua culpa e, por conseguinte, crime continuado – Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 26.05.2010, Processo nº 1330/06.3TAGDM.P1, e de 20.10.2004, Processo nº 0414655, disponíveis em www.dgsi.pt.
Assim, a propósito do significado deste pressuposto, verte-se no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.04.2011, Processo nº 250/06.6PCLRS.L1-3, relator Rui Gonçalves, acessível em www.dgsi.pt:
«(…) O cerne do crime continuado, o seu traço distintivo, à luz do qual todos os outros orbitam parece situar-se na existência de uma circunstância exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. O quid essencial está em saber em que medida a solicitação externa diminui a censura que determinada(s) conduta(s) merece(m). Só ocorrerá diminuição sensível da culpa do agente, tradutora de uma menor exigibilidade para que o agente actue de forma conforme ao direito, quando essa tal circunstância exógena se lhe apresenta, nas palavras impressivas de Eduardo Correia, de fora, não sendo o agente o veículo através do qual a oportunidade criminosa se encontra de novo à sua mercê. Sempre que as circunstâncias exógenas ou exteriores não surgem por acaso, em termos de facilitarem ou arrastarem o agente para a reiteração da sua conduta criminosa é de concluir pela existência de concurso real de crimes.»
Posto isto, dir-se-á que entendemos não estarmos no presente caso perante uma continuação criminosa entre as condutas perpetradas pelo arguido que foram ajuizadas nestes autos aqueloutras que foram julgadas no Processo nº 2352/19.0T9VNF, por sentença transitada em julgado em 09.05.2022 (cf. certidão junta com o requerimento correspondente à referência ...53).
Primeiramente, cabe notar que a posição do arguido/recorrente na defesa da verificação de um crime continuado apresenta fatal incongruência quando pugna pela existência de uma única resolução criminosa, inicial, que se prolongou por todo o tempo da sua atuação.
Ora, a conceção do crime continuado pressupõe necessariamente que existam várias resoluções criminosas do arguido; no caso, tantas quantas as vezes em que, mensalmente, resolveu não entregar à Segurança Social as quantias pecuniárias que ia retendo aos seus colaboradores, com destino ao pagamento das cotizações devidas ao respectivo instituto público ou, pelo menos, relativamente a cada período em que, após pagamentos efetuados, reincidiu no incumprimento dessas obrigações contributivas.
Ademais, não obstante todas as condutas do arguido consubstanciarem uma violação plúrima do mesmo bem jurídico[5] e terem sido executadas de forma idêntica, mediante não entrega pelo agente ao legítimo beneficiário (I.S.S., IP) das prestações/cotizações retidas pela sociedade arguida, não se descortina uma conexão temporal estreita entre os ajuizadas atuações autónomas que permita afirmar que a motivação subjacente a cada uma delas está intimamente ligada à das restantes.
O longo intervalo de tempo que intercede entre a prática do último ato integrador da continuação criminosa julgada no primeiro processo – em agosto de 2017 – e o cometimento do primeiro ato que compõe o crime continuado ajuizado nestes autos – em maio de 2018 – não permite razoavelmente deduzir a partir do contexto em que são praticados os factos quer diminuição da exigibilidade de outra conduta, ou uma menor culpa do arguido/recorrente AA.
Como também se entendeu na decisão recorrida, cremos que a predita quebra temporal permite concluir que a “linha psicológica criminosa do arguido” foi quebrada em agosto de 2017 e depois renovada em maio de 2018, mediante a formulação de uma nova resolução criminosa.
Conforme expresso no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15.05.2013, Processo nº 1209/10.4JAPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt, «a realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir um só crime se, ao longo de toda a realização, tiver persistido o mesmo dolo, a mesma resolução inicial».
Por conseguinte, in casu, não se verifica também a prática de um único crime por via da existência de uma única resolução criminosa, inicial, executada ao longo do tempo em que decorreu a totalidade dos factos ilícitos considerados em ambos os processos, sem reiterações nem formulação de novas deliberações criminosas.
Além disso, sublinha-se - por ser circunstância de crucial relevância - que para que vingasse a pretensão recursiva do arguido AA necessário era que estivesse provado que as suas atuações discutidas e autonomamente punidas no presente processo, assim como todas as ajuizadas no mencionado processo 2352/19.0T9VNF, derivassem da mesma e única resolução criminosa originariamente por ele tomada, pelo menos, em setembro de 2015 (referente à primeira omissão de entrega das cotizações retidas referentes ao antecedente mês de agosto), o que notoriamente não sucede. Contrariamente, encontra-se provado em ambas as sentenças que cada comportamento omissivo mensalmente adotado pelo condenado se estribou numa autónoma e diferenciada resolução criminosa, ainda que essas plúrimas resoluções consubstanciem, em cada um dos casos, a prática de apenas um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social por força da unificação legalmente ficcionada resultante da figura do crime continuado.
Donde, não tendo sido impugnada pelo recorrente – pelo menos, de modo eficaz – a matéria de facto nesse conspecto dada por provada nestes autos (cfr. factos provados nos pontos 11 e 12), nem se mostrando possível alterar o decidido naqueloutro processo, atento o trânsito em julgado da respetiva sentença, sempre teria de sucumbir a reivindicação do recorrente de ser considerado um único crime, já julgado nesse processo, todos os comportamentos apreciados nos dois processos em cotejo.
Pelo exposto, é de manter a qualificação jurídica dos factos operada na sentença recorrida, não procedendo a deduzida exceção de caso julgado nem ocorrido violação do princípio ne bis in idem.    
Nesta parte, o recurso não obtém provimento.

III.2.3 – Excessividade da medida da pena:

O recorrente consubstancia este fundamento recursivo, em resumo, nas seguintes alegações:
- Em face da factualidade apurada nos autos, verifica-se, na atuação do arguido/Recorrente referente ao período do mês de abril de 2018 ao mês de dezembro de 2021, uma acentuada diminuição da culpa.
- E quanto às atenuantes que a lei penal prevê, entende-se que o Tribunal “a quo” não as valorou de forma adequada nem justa.
- Ficou evidenciado que o arguido se encontra bem inserido socialmente, quer a nível social, quer a nível familiar, não apresentando qualquer perigo para a sociedade.
- Não parece ter sido tido em conta que o arguido está reformado e incapaz do exercício de qualquer actividade profissional, atenta a sua já avançada idade – 77 anos –, aliada ao seu gravíssimo estado de saúde – já sofreu dois AVC e padece de doença de foro oncológico a qual ultimamente se tem agravado.
- Não foi tido em conta que o arguido foi declarado Insolvente, por Sentença transitada em julgado, sendo-lhe permitido reter apenas a quantia mensal de €.900,00 da sua pensão de reforma – o que é insuficiente para fazer face às despesas com tratamentos médicos e medicamentos.
- A pena concretamente aplicada é manifestamente exagerada e desajustada, podendo e devendo o Tribunal “a quo” ter optado por uma pena menos gravosa, uma vez que esta claramente realizava de forma adequada e suficiente a finalidade da punição. 

Vejamos.
Nos presentes autos, o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 5.º, n.º 2, 7.º, nºs 1 e 3, 107.º, n.ºs 1 e 2 e 105.º, n.ºs 4 e 5 do RGIT, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução, com a condição do arguido pagar o valor retido e não entregue ao demandante no prazo de 4 (quatro) anos.
A moldura legal aplicável é de pena de prisão de 1 (um) a 5 (cinco) anos – cf. art. 105º, nº5, ex vi do art. 107º, ambos do RGIT (redação conferida pela Lei nº 66-B/2012, de 31.12).
Conforme decorre do art. 40º, nº 1, do Código Penal, a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (nº2 do art. 40º do C.P.).

Segundo Figueiredo Dias[6], quanto aos fins das penas, predomina «a ideia de que só as finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reações específicas. Num contexto em que a prevenção geral assume o primeiro lugar, como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação, do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida, em suma, na expressão de Jackobs, como estabilização contrafática das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida».   

O mesmo insigne autor, após expor a teoria penal por si defendida no que tange ao problema dos fins das penas, conclui do seguinte modo[7]:
«(1) Toda a pena serve as finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial; (2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; (3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; (4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função das exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais».      

Idêntico ensinamento é fornecido por Maria João Antunes, in “Penas e Medidas de Segurança”, Almedina, 2020 (reimpressão), p. 45, nos seguintes termos:
«A medida da pena tem de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, em face do caso concreto, num sentido prospetivo de tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da vigência da norma infringida. Um critério de necessidade da pena que não fornece, contudo, um quantum exato de pena. Fornece somente a medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expetativas comunitárias e o ponto abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função de tutela do ordenamento jurídico. Ponto que não tem de coincidir com o limite mínimo da moldura legal, podendo situar-se acima dele. Neste sentido, é a prevenção geral positiva (e não a culpa) que fornece uma moldura dentro da qual vão atuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que, em última instância, vão determinar a medida da pena. Constituindo a culpa o limite inultrapassável de quaisquer considerações preventivas – em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (art. 40º, nº2, do CP) -, a culpa fornece somente o limite máximo da pena.»
Assim, na proteção de bens jurídicos está ínsita uma finalidade de prevenção de comportamentos danosos que afetem tais bens e valores (prevenção geral) como também a realização de finalidades preventivas que sejam aptas a impedir a prática pelo agente de futuros crimes (prevenção especial negativa).
As finalidades das penas na sua vertente de prevenção positiva geral e de integração ou prevenção especial de socialização conjugam-se na prossecução do objetivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime.[8]

Casuisticamente, a finalidade de tutela e proteção de bens jurídicos há de constituir o motivo fundamento da medida da pena, da tutela da confiança das expectativas da comunidade na validade das normas e especificamente na validade e integridade das normas e dos correspondentes valores concretamente afetados.

Por seu turno, a finalidade de reintegração do agente na sociedade há de ser casuisticamente prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades.
Nos limites da prevenção geral de integração e de prevenção especial de socialização deverá ser encontrada a medida concreta da pena, sempre de acordo com o princípio da culpa que, como vimos, nos termos do art. 40º, nº 2, do Código Penal, constitui limite inultrapassável da prevenção a realizar através da pena.

A operação de fixação da pena, dentro dos sobreditos limites, faz-se, segundo o art. 71º, nº 1, do Código Penal, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Atendendo-se, conforme prescreve o nº 2 do mesmo preceito legal, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, nomeadamente:

- Ao grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente – al. a); 
- À intensidade do dolo ou da negligência – al. b);
- Aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram- al. c);
- Às condições pessoais do agente e a sua situação económica – al. d);
- À conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime – al. e); e
- À falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena – al. f).
           
No presente caso, no que tange à determinação da medida da pena aplicada ao recorrente, o Tribunal a quo fundamentou a decisão nos seguintes termos [transcrição]:
«No que concerne à concretização da medida da pena, o artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal diz-nos que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.
A pena deverá, ainda, tomar como critério a necessidade de reintegração do agente na sociedade (prevenção especial de ressocialização), sempre sem ultrapassar a culpa deste.
Importa trazer, igualmente, à colação o disposto no artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal que estabelece: “Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente e contra ele (...)”, elencando seguidamente, a título meramente exemplificativo, alguns desses fatores.
No caso, contra os arguidos depõe o valor da dívida ao ISS.
As exigências de prevenção geral que se fazem sentir neste tipo de criminalidade são elevadas, desde logo pelo elevado nível de desrespeito de que este tipo legal é objeto.    
Por sua vez, em seu beneficio, temos apenas a integração social do arguido AA.
Note-se que este arguido não confessou os factos nem mostrou qualquer arrependimento pela sua conduta criminosa.
Neste contexto, tudo ponderado, condenamos o arguido AA na pena de dois anos de prisão, pela prática de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 6.º, 107.º e 105.º, n.ºs 1, 4, 5 e 7, 16.º, e 17.º, al. b), c) e g) do Regime Geral das Infrações Tributárias, suspensa na sua execução com a condição do arguido pagar o valor retido e não entregue ao demandante no prazo de 4 (quatro) anos – cfr. artigo 14., do RGIT;»

Consideramos que as objeções vertidas no douto recurso, não sendo despiciendas face à extrema concisão da fundamentação expressa na sentença, ainda assim não colhem, por distintas razões.

A mitigada culpa do arguido foi valorada pelo Tribunal ao condená-lo pela prática do crime que lhe era imputado na forma continuada (embora não invocando expressamente o art. 30º, nº2, do CP) - como, aliás, o recorrente admite ter sucedido (cfr. conclusões 1 a 6, 15 e 20 a 27) -, não podendo ser novamente considerada como atenuante geral, sob pena de violação da proibição legal da dupla valoração da mesma circunstância (cf. nº2 do art. 71º do CP).  
O Tribunal recorrido também não deixou de considerar como circunstância atenuante a integração social do condenado.
Por outro lado, a alegada integração familiar do arguido não consta da factualidade tida como apurada, não podendo por isso ser valorada, sendo que o recorrente não invoca, neste conspecto, a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, invocando a respetiva possibilidade de indagação de tal facto pelo Tribunal recorrido e, simultaneamente, a sua imprescindibilidade para a fixação do exato quantum da pena de prisão. Ora, tais conclusões não ressumam sem mais da decisão recorrida pela estrita análise do seu texto, sem recurso a elementos externos.    
E o mesmo se diga a propósito da também invocada situação de reforma em que se pretensamente o arguido se encontra, com incapacidade para o exercício de qualquer actividade profissional, atenta a sua avançada idade – 77 anos –, gravíssimo estado de saúde, e situação de insolvência que lhe foi judicialmente decretada, sendo-lhe permitido reter apenas a quantia mensal de € 900,00 da sua pensão de reforma (insuficiente para fazer face às despesas com tratamentos médicos e medicamentos). Na verdade, tais alegadas circunstâncias não integram os factos dados como provados na sentença recorrida, não podendo, desse modo, serem consideradas como verificadas para efeitos de apreciação da justeza da dosimetria penal. Além disso, o arguido/recorrente não alega, nesse segmento, a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, invocando a respetiva possibilidade de indagação de tal facto pelo Tribunal recorrido e, concomitantemente, a sua relevância para a determinação da medida da pena de prisão. Sucede que, tais conclusões não decorrem, per se, do texto da decisão recorrida, sem recurso à prova gravada ou documentada. Aliás, segundo cremos, a pertinência da predita matéria de facto, a fazer-se prova da mesma, revelaria, quando muito, para a questão da adequabilidade e proporcionalidade da fixada condição da suspensão da execução da pena [a qual será infra apreciada].   
 
Em conformidade, considerado o concreto circunstancialismo verificado, precedente, contemporâneo e ulterior aos factos, a medida da pena de prisão cominada ao arguido AA (2 anos), situando-se relativamente próxima do mínimo legal, em 1/4 do intervalo da moldura penal, mostra-se adequada, suficiente e proporcional a acautelar os fins de jaez preventivo que subjazem à aplicação da sanção criminal e dentro do limite imposto pela diminuída culpa manifestada pelo arguido.
Sopesados os enunciados factos e considerações, em especial as atinentes à ilicitude dos factos e à necessidade da pena, exsuda que a pena aplicada pelo tribunal de primeira instância adequa-se e revela-se idónea à satisfação das necessidades de afirmação dos bens jurídicos violados, bem como à finalidade de procurar que o arguido não volte a delinquir.
Ou seja, a pena concretamente aplicada respeita o exigido pela tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, pelo que a redução da mesma, como preconizado pelo arguido recorrente, não é sustentável, sob pena de se colocar em causa a crença da comunidade na validade das normas jurídicas violadas e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico penais, bem como a finalidade de reintegração social do condenado.
Aliás, como ensina o Professor Figueiredo Dias [“Direito Penal Português II, As Consequências Jurídicas do Crime”, 3ª Reimpressão, Coimbra Editora, 2011, p. 197] a propósito da controlabilidade da pena em sede de recurso, na determinação do seu quantum, a sindicância recursória deverá reservar-se para as hipóteses em que tiveram sido violadas regras de experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada, o que não sucede.
A determinação da medida da pena operada pelo Tribunal a quo não violou qualquer norma legal, nomeadamente as invocadas pelo recorrente.
Improcede a pretensão recursória de abaixamento da medida da pena.

III.2.4 – Da alegada inexequibilidade/inaplicabilidade, no caso concreto, da condição fixada para a suspensão da execução da pena (art. 14º do RGIT):

O arguido/recorrente AA funda este argumento recursório, em suma, nas seguintes circunstâncias:

- O Tribunal “a quo” subordinou a suspensão da pena de prisão ao cumprimento do dever de pagamento, no prazo de 4 anos, do elevadíssimo montante de €.225.520,85, condição esta que, para além de se mostrar inexequível como qualquer juízo de prognose demonstra, atenta a situação pessoal em que se encontra o arguido – declarado insolvente, reformado, com um rendimento disponível de €.900,00, quase igual ao do salário mínimo nacional, gravemente doente e diariamente dependente de medicamentos e tratamentos médicos – é ilegal e é manifestamente desproporcional.
- Invocando o disposto no do art. 51º n.º 2 do Cód. Penal, alega que a asserção legislativa que repousa no artigo 14º do RGIT não pode ser de aplicação automática, despida do juízo obrigatório de conformidade, adequação e proporcionalidade a que aludem as normas dos artigos 50º, nº 1 e 2, 51º, 52º e 53º do Código Penal.
- Ora, o arguido tem 77 anos de idade, foi declarado insolvente, todo o seu património foi apreendido para a insolvência, encontra-se reformado e devido aos gravíssimos problemas de saúde de que padece – sucessivos AVC e doença de foro oncológico – encontra-se impossibilitado de exercer no presente e no futuro tarefas profissionais. Não possui qualquer bem móvel ou imóvel e não aufere outro rendimento para além da sua pensão de reforma, que está sujeita às reduções impostas pelo Tribunal de Comércio no âmbito da insolvência.
- Para cumprir as condições da suspensão da pena de prisão quer lhe foi aplicada e desse modo poder evitar ir parar à prisão, o pagamento da quantia total de €.225.520,85, num espaço de quatro anos, importaria um encargo mensal, para o arguido apenas para este efeito de €.4.698,35, durante esse período de 48 meses o que, como é bom de ver, se revela absolutamente impossível de concretizar.
- Tendo em consideração a situação económica do Arguido, actual e futura, não é minimamente razoável ou minimamente expectável que o arguido consiga cumprir com a condição que lhe foi imposta.
- Deste modo, o Tribunal “a quo” incumpriu o preceituado no artigo 51.º n.º 2 do Código Penal, tal como não realizou qualquer juízo de prognose e razoabilidade conforme é imposto pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2012.
- No caso, avaliando-se, objectivamente, o contexto financeiro, actual e expectável no futuro do arguido, é manifesto ser a total e absolutamente inverosímil que o arguido/recorrente venha a ter condições para poder cumprir a condição de pagamento do montante de €.225.520,85, ou mesmo uma pequena parte dele, para suspensão da execução da pena de prisão e, por conseguinte, foi violado o princípio da proporcionalidade em qualquer das suas vertentes de adequação, necessidade ou justa medida.
- Daí que se deva concluis que, neste caso, a suspensão da execução da pena não deve ficar condicionada ao pagamento dos montantes em dívida à Segurança Social, sendo que a falta de capacidade económica do arguido não pode permitir que este vá cumprir prisão por esse simples facto, afastando a suspensão da execução em função da sua medida, a possibilidade de a substituir por outra pena não privativa da liberdade. Representando tal situação um prejuízo em razão da situação económica do Arguido, em violação do artigo 2º e 13º da C.R.P.
 
Conhecendo.
Estatui o artigo 50º, nº 2 do Código Penal: “O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.”

Por seu turno, prescreve o artigo 51º do mesmo diploma legal, na parte que ora releva:  
“1 - A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente:
a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea;
[…]
2 - Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir.
3 - Os deveres impostos podem ser modificados até ao termo do período de suspensão sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tiver tido conhecimento.
[…]”

Como é consabido, a suspensão da execução da pena assenta na formulação de um juízo de prognose favorável quanto ao futuro comportamento do arguido, ou seja, na formulação de um juízo de que ele não praticará novos crimes. A aplicação desta pena de substituição implica a ponderação da personalidade do agente, as condições de vida de que dispõe, a sua conduta anterior e posterior ao crime e circunstâncias do mesmo, e pressupõe que tal aplicação sustente e viabilize os desígnios de prevenção especial - apoiando e promovendo a reinserção social do condenado - e geral - na perspectiva em que, defendendo o ordenamento jurídico, a comunidade não encare a suspensão como um sinal de impunidade.
Nessa decorrência, a imposição de regras de conduta surge como coadjuvante na satisfação das preditas finalidades subjacentes à suspensão da execução da pena, devendo essas regras demostrarem adequação e proporcionalidade para o efeito.
Conforme se menciona no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.07.2015, proferido no Processo nº 129/14.8GAVLC.P1, disponível in www.dgsi.pt, «I. A imposição de deveres e regras de conduta, condicionantes da pena suspensa, constitui um poder/ dever, sendo quanto aos deveres condicionado pelas exigências de reparação do mal do crime e quanto ás regras de conduta vinculado á necessidade de afastar o arguido da prática de futuros crimes. II. A exigibilidade de tais deveres e regras deve ser apreciada tendo em conta a sua adequação e proporcionalidade em relação com o fim preventivo visado.»
Idêntica posição é igualmente veiculada no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19.04.2004, processo nº 2145/03-1: «A obrigação de suspensão da execução da pena de prisão pode ser simples ou com imposição de deveres (artigo 50°, n. 2 e 3, do Código Penal), devendo no entanto tal imposição de deveres responder à ideia da exigibilidade e ao princípio da proporcionalidade que são ideias básicas do Estado de Direito.»
Como assertivamente observa José Alberto Vaz Carreto, in “A Suspensão Parcial da Pena de Prisão e a Reparação do Dano”, 2017, Almedina, p. 73, «Nesse caso a reparação surge como condição de suspensão da pena de prisão e reveste especial importância penal, pois por um lado desfaz o mal praticado, tornando inútil a prática do crime na medida em que, nos casos em que o crime visa a apropriação da coisa ou seu valor, com a condição deve ser resposto esse valor pelo que devia ter eficácia preventiva acentuada, quer, em geral, repondo a paz social que a violação da ordem jurídica pelo crime e a justiça sofreram, manifestando desse modo a vigência da norma infringida, quer, em especial, por revestir acentuado valor ressocializador por exigir do arguido uma conduta contrária ao crime, de regresso aos valores da Ordem Jurídica, através do apelo à própria vontade para se reintegrar na sociedade, no que tem como dissuasor a ameaça da execução futura da pena em caso de incumprimento.»  
Daí o entendimento de Figueiredo Dias[9] de que a reparação reveste aqui uma «função adjuvante da realização da finalidade da punição.»[10]
Conforme se extrai do disposto no nº2 do art. 51º, a imposição de deveres é balizada pela sua exigibilidade, não podendo ser imposto um dever que careça de razoabilidade, do que decorre a necessidade de adequação e proporcionalidade dos deveres à concreta situação do arguido.
Conforme tem sido entendimento sedimentado da jurisprudência dos tribunais superiores, para ser eficaz, a condição que envolva a atribuição de uma prestação pecuniária terá de revestir alguma onerosidade, devendo representar para o condenado um sacrifício, mas sempre em termos razoáveis, que lhe permitam o cumprimento. Donde, a obrigação exigida não pode exceder determinados limites: não deve ser superior ao dano real; deve respeitar a capacidade económico-financeira do condenado, pelo que se admite, em determinadas circunstâncias, que o montante a reparar seja inferior ao dano produzido; e o seu cumprimento deve ser “razoavelmente” de exigir ao arguido. [11]
Ou seja, o valor da reparação a suportar pelo arguido como condição da suspensão da execução da pena não pode ser tão gravoso que, na prática, signifique somente um inevitável adiamento da execução da prisão, nem tão brando que se mostre inidóneo a cumprir a sua função de reforço do conteúdo reeducativo da pena de substituição.  
Ainda quanto ao alcance do denominado princípio da proporcionalidade previsto no art. 51º, nº2, do CP, refere-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.12.2006, in www.dgsi.pt/jstj, que «significa que a decisão de imposição do dever ali previsto deve ter na devida conta “as forças” do destinatário, de modo a não frustrar, à partida, o efeito reeducativo e pedagógico que se pretende extrair da medida, sem contudo se cair no extremo de tudo se reconduzir e submeter às possibilidade económicas e financeiras oferecidas pelos proventos certos e conhecidos do condenado, sob pena de ser inviabilizar, na maioria dos casos, o propósito que lhe está subjacente, qual seja o de dar ao arguido margem de manobra suficiente para desenvolver diligências que lhe permitam obter recursos indispensáveis à satisfação do dever ou condição.»          

No domínio da criminalidade tributária, vigora ao nível da suspensão da execução da pena de prisão a norma específica vertida no art. 14º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT, aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de junho, que reza assim:
“1 - A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
2 - Na falta do pagamento das quantias referidas no número anterior, o tribunal pode:
a) Exigir garantias de cumprimento;
b) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas sem exceder o prazo máximo de suspensão admissível;
c) Revogar a suspensão da pena de prisão.”.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência nº 8/2012, publicado no DR, 1ª Série, nº 206, de 24.10.2012, decidiu-se: «No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia.»
Em consonância com a predita uniformização de jurisprudência, o tribunal não deve suspender a pena de prisão concretamente determinada, pela qual tivesse optado primitivamente, quando a concreta situação económica do arguido não permita prognosticar que ele irá satisfazer ao Estado ou Segurança Social a prestação tributária e legais acréscimos, circunstância que nos termos do artigo 14.º n.º 1, do RGIT condiciona obrigatoriamente a suspensão da pena. Nessas hipóteses, como decorre da fundamentação do citado AFJ, o tribunal deve voltar a ponderar a aplicação da pena principal de multa ou a aplicação de pena de substituição diversa da suspensão da prisão quando a pena de prisão concretamente determinada o permita.
Cumpre salientar que a jurisprudência fixada no AFJ nº 8/2012, forçando a realização de um juízo acerca da plausibilidade de adimplemento da condição legalmente prevista, vigora somente para os casos em que o tipo legal de crime preveja, em alternativa à pena de prisão, sanção penal não efetivamente privativa da liberdade, ou, prevendo somente àquela, o Tribunal entenda ser de aplicação pena de prisão em medida concreta que permita, nos termos da lei, a aplicação de pena de substituição não privativa da liberdade.
Se não suceder esta hipótese, isto é, se for unicamente aplicável pena de prisão e em medida que não possibilite a sua substituição por pena não privativa da liberdade, então o julgador, caso considere ser de suspender a execução da pena, deve obrigatoriamente condicionar a suspensão ao pagamento ao Estado ou à Segurança Social pelo condenado das prestações tributárias em dívida e legais acréscimos.
O Tribunal Constitucional tem-se pronunciado de modo concordante e reiterado pela não inconstitucionalidade do art. 14.º do RGIT, enquanto condiciona obrigatoriamente a suspensão da execução da pena ao pagamento das quantias em dívida – assim, v.g., os Acórdãos nº 335/03, de 06.07.2003, Processo nº 282/03 [relatado pelo Exmo. Conselheiro Gil Galvão], 376/03, de 15.07.2003, Processo nº 3/2003 – 2ª Secção [relatado pelo Exmo. Conselheiro Mário Torres, com voto de vencido da Exma. Conselheira Maria Fernanda Palma], 500/05, de 04.10.2005, Processo nº 51/05 [relatado pelo Exmo. Conselheiro Vítor Gomes], 543/06, de 27.09.2006, Processo nº 612/06 – 2ª Secção [relatado pelo Exmo. Conselheiro Paulo Mota Pinto, com voto de vencido da Exma. Conselheira Fernanda Palma], 29/07, de 17.01.2007, publicado no DR, II Série, de 26.02.2007 [relatado pelo Exmo. Conselheiro Paulo Mota Pinto], 61/07, publicado no DR, II Série, de 20.03.2007 [relatado pela Exma. Conselheira Maria dos Prazeres Beleza], 587/09, de 18.11.2009, Processo nº 1110/2006 – 3ª Secção [relatado pela Exma. Conselheira Maria Lúcia Amaral], e 237/11, de 05.05.2011, Processo nº 766/10-3ª Secção [relatado pela Exma. Conselheira Ana Guerra Martins], todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt.
Ainda o acórdão do Tribunal Constitucional nº 556/2009, de 27-10-2009, Processo nº 1005/2008 [relatado pelo Exmo. Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro], disponível in www.tribunalconstitucional.pt, onde se decidiu: «Não julgar inconstitucional a norma do artigo 14º do RGIT, em conjugação com os artigos 50º e 51º do Código Penal, na redação dada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, interpretada no sentido de que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de duração da pena de prisão concretamente determinada, de prestação tributária e acréscimos legais».
Tal jurisprudência do Tribunal Constitucional foi reafirmada no acórdão nº 546/2024, de 11.07.2024, publicado no Diário da República de 13.11.2024, Série II, nº 220, com a seguinte decisão:    
«(…) Não julgar inconstitucional o artigo 14.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05.06, interpretado no sentido de que a suspensão da execução da pena de prisão é sempre condicionada ao pagamento da prestação tributária, independentemente da ponderação das circunstâncias do caso concreto.(…)»

Verte-se na fundamentação do sobredito aresto:   
«(…) Esclarecido este aspeto, seguidamente se reproduz um trecho do Acórdão n.º 51/2020 com o seguinte teor:
“[…]
7. Defende o recorrente que a interpretação do «art. 14.º do R.G.I.T., devidamente conjugado com os arts. 50.º e 5l.º do C.P., no sentido de que a suspensão da execução da pena de prisão (…) deverá ficar obrigatoriamente condicionada ao pagamento das prestações tributárias em dívida e respectivos acréscimos legais, limitado ao pedido de indemnização civil formulado pelo Estado, sem que o Tribunal proceda a um juízo de prognose de razoabilidade acerca da possibilidade da satisfação dessa condição», «é inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, ínsitos ao Estado de Direito Democrático e consagrados pelos artigos 2.º, 13.º e 18.º da CRP».
O recorrente dá ênfase à impossibilidade de proceder a um juízo de prognose sobre a possibilidade da satisfação das condições impostas pelo artigo 14.º do RGIT, para criticar a opção legislativa de condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das quantias em dívida ao Estado em qualquer caso – aí incluídos os casos em que os arguidos não detêm os meios necessários para satisfazer essa condição.
Ora, este Tribunal já teve oportunidade de se pronunciar, em face de diversos casos, pela não inconstitucionalidade do artigo 14.º do RGIT. Desde logo, no Acórdão n.º 256/2003, em que o problema foi apreciado em face da jurisprudência constitucional sobre questões afins, o Tribunal Constitucional concluiu (cf. II – Fundamentação, n.º 10.8 e seguintes):
«(…) [P]odendo a realização dos fins do Estado – dependente do cumprimento do dever de pagar impostos – justificar a adopção do critério da vantagem patrimonial no estabelecimento dos limites da pena de multa, não há qualquer motivo para censurar, como desproporcionada, a obrigação de pagamento da quantia em dívida como condição da suspensão da execução da pena. As razões que, relativamente à generalidade dos crimes, subjazem ao regime constante do artigo 51º, n.º 2, do Código Penal (supra, 10.6.), não têm necessariamente de assumir preponderância nos crimes tributários: no caso destes crimes, a eficácia do sistema fiscal pode perfeitamente justificar regime diverso, que exclua a relevância das condições pessoais do condenado no momento da imposição da obrigação de pagamento e atenda unicamente ao montante da quantia em dívida. Dito de outro modo, o objectivo de interesse público que preside ao dever de pagamento dos impostos justifica um tratamento diferenciado face a outros deveres de carácter patrimonial e, como tal, uma concepção da suspensão da execução da pena como medida sancionatória que cuida mais da vítima do que do delinquente (sobre a suspensão da execução da pena como medida que «permite cuidar ao mesmo tempo do delinquente e da vítima», veja-se Manso-Preto, “Algumas considerações sobre a suspensão condicional da pena”, in Textos, Centro de Estudos Judiciários, 1990-91, p. 173).
10.9. As normas em apreço não se afiguram, portanto, desproporcionadas, quando apenas encaradas na perspectiva da automática correspondência entre o montante da quantia em dívida e o montante a pagar como condição de suspensão da execução da pena, atendendo à justificável primazia que, no caso dos crimes fiscais, assume o interesse em arrecadar impostos.
Cabe, todavia, questionar se não existirá desproporção quando, no momento da imposição da obrigação, o julgador se apercebe de que o condenado muito provavelmente não irá pagar o montante em dívida, por impossibilidade de o fazer.
Esta impossibilidade, que não chegou a ser declarada pelo tribunal recorrido – pois que este analisou a questão em abstracto, sem averiguar se o ora recorrente efectivamente estava impossibilitado de cumprir (supra, 10.5.) –, não altera, todavia, a conclusão a que se chegou.
Em primeiro lugar, porque perante tal impossibilidade, a lei não exclui a possibilidade de suspensão da execução da pena.
Dir-se-á que tal exclusão se encontra implícita na lei, atendendo a que não seria razoável que a lei permitisse ao juiz condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de um dever que ele próprio sabe ser de cumprimento impossível.
Todavia, tal objecção não procede, pois que traz implícita a ideia de que o juiz necessariamente elabora um prognóstico quanto à possibilidade de cumprimento da obrigação, no momento do decretamento da suspensão da execução da pena. Ora, nada permite supor a existência de um tal prognóstico: sucede apenas que a lei – bem ou mal, mas este aspecto é, para a questão de constitucionalidade que nos ocupa, irrelevante –, verificadas as condições gerais de suspensão da execução da pena (nas quais não se inclui a possibilidade de cumprimento da obrigação de pagamento da quantia em dívida), permite o decretamento de tal suspensão. O juízo do julgador quanto à possibilidade de pagar é, para tal efeito, indiferente.
Em segundo lugar, porque mesmo parecendo impossível o cumprimento no momento da imposição da obrigação que condiciona a suspensão da execução da pena, pode suceder que, mais tarde, se altere a fortuna do condenado e, como tal, seja possível ao Estado arrecadar a totalidade da quantia em dívida.
A imposição de uma obrigação de cumprimento muito difícil ou de aparência impossível teria assim esta vantagem: a de dispensar a modificação do dever (cfr. artigo 51º, n.º 3, do Código Penal) no caso de alteração (para melhor) da situação económica do condenado. E, neste caso, não se vislumbra qualquer razão para o seu tratamento de favor, nem à luz do princípio da culpa, nem à luz dos princípios da proporcionalidade e da adequação.
Em terceiro lugar, e decisivamente, o não cumprimento não culposo da obrigação não determina a revogação da suspensão da execução da pena. Como claramente decorre do regime do Código Penal para o qual remetia o artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA, bem como do n.º 2 do artigo 14º do RGIT, a revogação é sempre uma possibilidade; além disso, a revogação não dispensa a culpa do condenado (supra, 10.4.).
Não colidem, assim, com os princípios constitucionais da culpa, adequação e proporcionalidade, as normas contidas no artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA, e no artigo 14º do RGIT.»
Ora, este juízo é inteiramente transponível para o caso dos autos. Aliás, o recorrente não aduz qualquer argumento que motive a reapreciação desta posição, que foi reafirmada nos Acórdãos n.os 335/2003, 376/2003 e em diversas pronúncias posteriormente adotadas por este Tribunal (v., entre outros, os Acórdãos n.os 309/2006, 327/2008, 587/2009 e, mais recentemente, as Decisões Sumárias n.os 312/2011, 522/2012, 68/2015 e 606/2016).
[…]”.»

A posição que ora pugnamos foi a defendida também no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20.02.2013, Processo nº 131/08.9IDPRT.P1, relator Desembargador Pedro Vaz Pato:
«O artigo 14º, nº 1, do R.G.I.T. impõe obrigatoriamente a sujeição da suspensão de execução da pena de prisão relativa a crimes tributários ao pagamento da prestação tributária e legais acréscimos, bem como dos montantes indevidamente obtidos.
Foi isso que se verificou no caso em apreço.
O arguido recorrente foi condenado a pagar a quantia correspondente aos benefícios indevidamente obtidos não na qualidade de sujeito passivo da relação jurídica de imposto (pois sujeito passivo dessa relação não é ele, mas a sociedade de que era sócio-gerente), mas como responsável pelo crime de fraude fiscal qualificada por ele praticado, de onde decorre também a responsabilidade civil pelos danos emergentes da prática desse crime. Por isso, essa condenação não é merecedora de reparo.
E a sujeição da suspensão da pena de prisão em que o arguido foi condenado à condição do pagamento da quantia em causa decorre obrigatoriamente do citado artigo 14º, nº 1, do R.G.I.T.
Poder-se-á dizer que, face à precária situação económica do arguido, a sujeição dessa suspensão a tal pagamento é irrealista, irrazoável e desproporcional, porque claramente incompatível com as suas capacidades financeiras.
A questão da eventual desconformidade deste regime (que supõe a obrigatoriedade da sujeição da suspensão da pena de prisão ao pagamento das quantias em causa, independentemente da situação económica do condenado) com os princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da necessidade e proporcionalidade da pena foi já objeto de múltiplas decisões do Tribunal Constitucional no sentido da conformidade. O Tribunal Constitucional tem salientado, em apoio desta posição, o facto de ser sempre possível a alteração para melhor da situação económica do condenado e, sobretudo, o facto de a possível revogação da suspensão da pena pelo não pagamento nunca ser automática, mas depender sempre de uma avaliação judicial da culpa do condenado, não podendo um incumprimento não culposo ser fundamento de revogação dessa suspensão. Neste sentido podem ver-se os acórdãos do Tribunal Constitucional nº 256/03, 335/03, 376/03, 500/05, 309/06, 543/06, 29/07, 61/07, 360/07, 377/07, 327/08, 427/08, 563/08, 244/09, 556/09, 587/09 e 237/11, in www.tribunalconstitucional.pt. Assim, e quanto ao caso ora em apreço, se é certo que. face à atual situação económica do arguido recorrente, se afigura muito difícil o pagamento das quantias por ele devidas, as repercussões futuras de uma eventual falta de pagamento sobre a suspensão da execução da pena sempre dependerão de um juízo futuro a respeito do caráter culposo, ou não, dessa falta de pagamento.
Veio o Ministério Público junto desta instância invocar a doutrina do recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 8/2012 (publicado no Diário da República nº 206, Iª série, de 24 de outubro de 2012). Este acórdão veio fixar jurisprudência no sentido seguinte:
«No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105º, nº 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50º, nº 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14º, nº 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado de prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade por omissão de pronuncia.»

Ao contrário do que parece sustentar o Ministério Público junto desta instância no seu parecer, a doutrina deste acórdão não permite ultrapassar a obrigatoriedade da sujeição da suspensão de execução da pena de prisão ao pagamento das quantias devidas, nos termos do artigo 14º, nº 1, do R.G.I.T. Tal decorre, clara e inequivocamente, do próprio texto da parte dispositiva do acórdão e da sua fundamentação.
O que resulta do acórdão é, antes, que, a prévia opção por pena de prisão suspensa na sua execução (com o que isso implica de obrigatória sujeição dessa suspensão ao pagamento das quantias devidas, nos termos do artigo 14º, nº 1, do R.G.I.T.) em face da opção por outra pena (deve subentender-se, pena não privativa da liberdade), designadamente a pena de multa, está dependente de um juízo de prognose sobre a capacidade de o condenado pagar tais quantias, tendo em conta a sua situação económica presente e futura. A omissão desse juízo acarreta a nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
Esta jurisprudência, diretamente aplicável ao crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, nº 1, do R.G.I.T. - crime punível com pena de prisão (eventualmente suspensa na sua execução, nos termos indicados) ou pena de multa -, poderá ser aplicável a outros crimes tributários também puníveis com pena de prisão (também eventualmente suspensa na sua execução, nos termos indicados) ou pena de multa. No caso em apreço, em que está em causa um crime de fraude fiscal tributária, punível apenas com pena de prisão, não se coloca a possibilidade de opção entre pena de prisão suspensa na sua execução e pena de multa. É certo que se o arguido tivesse sido condenado em pena de prisão inferior a dois anos, poderia esta (em vez de ser suspensa na sua execução com a necessárias sujeição à condição de pagamento em causa) ser substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade, nos termos gerais do artigo 58º do Código Penal. Mas a medida da pena fixada pela douta sentença recorrida é superior a dois anos. A pena fixada, de três anos, não permitiria a opção por outra pena não privativa de liberdade que não a pena de prisão suspensa na sua execução com a condição referida. Assim sendo, a doutrina do acórdão em questão não tem aplicação ao caso vertente, não sendo exigível que a douta sentença recorrida formulasse um juízo de prognose sobre a capacidade de o arguido recorrente pagar as quantias em que é condenado, tendo em conta a sua situação económica, presente e futura.
Em conclusão, podemos dizer que a necessidade do juízo de prognose a que se reporta o acórdão de fixação de jurisprudência nº 8/2012 só se verifica quando o crime tributário em questão é punível com pena de prisão (eventualmente suspensa na sua execução nos termos do artigo 14º, nº 1, do R.G.I.T.) ou outra pena não privativa da liberdade.».
Pronunciaram-se no mesmo sentido, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 08.10.2014, Processo nº 63/10.0IDPRT.P1, relatora Desembargadora Maria Luísa Arantes, e de 29.04.2015, Processo nº 290/07.8IDPRT.P1, relatora Desembargadora Elsa Paixão, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
A constitucionalidade da norma do art. 14º, nº1, do RGIT foi ainda defendida no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30.04.2018, Processo nº 7815/15.3T9PRT.P2, relatora Desembargadora Eduarda Lobo, disponível em www.dgsi.pt, nos seguintes sumariados termos:
«I – A exigência de pagamento da prestação tributária como condição de suspensão da pena à margem da avaliação do quadro económico do responsável tributário, nada tem de desmedida, mostrando-.se inteiramente justificada pelo interesse preponderantemente publico que acautela e pela necessidade de eficácia do sistema penal tributário.
II – Pelo crime de fraude fiscal o prejuízo patrimonial causado à AT traduziu-se num efectivo enriquecimento do devedor tributário e o dever de restituição é exigível de toda e qualquer pessoa sancionada pelo cometimento de uma infracção criminal tributária.
III – Não ofende os princípios constitucionais da culpa, da adequação, da proporcionalidade e da igualdade e o princípio da necessidade das sanções penais, não sofrendo de inconstitucionalidade o artº 14º RGIT que obriga que a suspensão da execução da pena de prisão fique sujeita à condição do pagamento da indemnização.»
Aliás, potencialmente violadora do princípio da igualdade previsto no art. 13º da CRP, seria a circunstância de um agente do crime com satisfatória situação económica poder beneficiar da suspensão da execução da pena de prisão em detrimento de outro com precária situação económica que, caso a norma incriminadora não previsse outro tipo de pena que não de prisão e a medida concreta desta não permita a aplicação de pena de substituição não privativa da liberdade, teria de cumprir pena de prisão efetiva por previsível impossibilidade de adimplemento da condição legal de pagamento ao lesado das cotizações retidas e não entregues e legais acréscimos.

No presente caso, não obstante ter subordinado a suspensão da execução da pena de 2 (dois) anos de prisão ao cumprimento pelo arguido AA da condição de pagamento ao I.S.S., IP, do valor retido e não entregue, no montante global de € 225.520,85, no prazo de 4 (quatro) anos, o Mmo. Juiz não efetuou na sentença qualquer juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, para efeitos de aquilatar sobre a (in)viabilidade de aplicação da condição.
Devia, porém, ter feito tal casuística ponderação, visto que a medida concreta da pena (2 anos) permitia a aplicação de pena de substituição não privativa da liberdade, designadamente, prestação de trabalho a favor da comunidade (art. 58º do CP). Logo, mostrava-se necessário que o Tribunal recorrido procedesse àquela avaliação para aferir se o condenado podia cumprir o dever que condicionava a pena de suspensão da execução da pena que pretendia cominar; caso concluísse negativamente, impunha-se que avaliasse se a pena de substituição de PTFC satisfazia adequadamente as finalidades punitivas; na hipótese de considerar que acautelava convenientemente os fins das penas, devia optar pela substituição da pena de prisão (2 anos) por esta pena substitutiva; distintamente, caso emitisse um juízo negativo sobre tal compatibilidade e entendendo que não se revelava necessária a execução da pena de prisão em estabelecimento prisional ou em regime de permanência na habitação, independentemente do juízo de prognose que realizasse sobre a capacidade económico-financeira do condenado, atual e futura (razoavelmente previsível), para cumprir o dever legalmente estabelecido, teria de optar pela suspensão de execução da pena, forçosamente condicionada ao pagamento à ofendida Segurança Social das prestações devidas a título de cotizações não entregues (no valor global de € 225.520,85).
Por conseguinte, a sentença é, nessa parte, nula, por omissão de pronúncia quanto ao imperioso juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação pelo condenado AA da condição legal de ressarcimento ao I.S.S., IP das quantias em débito a título de cotizações retidas e não entregues (cf. art. 379º, nº1, al. c), do CPP). 
Note-se que o Tribunal a quo, erradamente, não incluiu no dever de pagamento os acréscimos legais a que alude o art. 14º, nº1, do RGIT (juros de mora e eventuais custas do processo tributário). Contudo, sob pena de violação da proibição de reformatio in pejus, prevista no art. 409º, nº1, do CPP, tal decisão não pode ser alterada agora nem futuramente, no contexto do presente recurso ou em sede de suprimento da verificada nulidade.
A apontada nulidade há-de ser suprida pelo mesmo Tribunal (Juiz) que proferiu a decisão recorrida, não se mostrando viável o suprimento por banda deste Tribunal ad quem, desde logo porque a matéria de facto provada não contém os factos relevantes para a formulação do mencionado juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação por parte do condenado da condição legal de suspensão da execução da pena, tendo em conta a sua concreta situação económico-financeira, presente e, em termos de razoável probabilidade, futura. Todavia, este vício (410º, nº2, al. a), do CPP), pode, in casu, ser igualmente sanado pelo Tribunal a quo, sem necessidade de se determinar o reenvio do processo (cfr. art. 426º, nº1, do CPP).   
Como se menciona no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27.02.2013, processo nº 68/10.1IDVIS.C1, «tratando-se de matéria reconduzível à pena, com vista à sanação da nulidade, não está o tribunal inibido de produzir prova suplementar, através da reabertura da audiência (artigos 369.º e 371.º, do Código de Processo Penal).»  

Nos termos preditos, procede parcialmente o ajuizado recurso.

III.2.5 – Sobre o pedido de indemnização civil deduzido pelo ISS, IP:

III.2.5.1(In)competência material do Tribunal criminal comum para conhecer do pedido de indemnização civil e (ir)relevância da sua pendência em outras instâncias:

Invoca o demandado/recorrente AA, resumidamente:
- Nos termos do expressamente dito e articulado no respectivo pedido de indemnização cível, os alegados “prejuízos” são exata e unicamente os decorrentes da não entrega das referidas quantias de “cotizações”.
- Parece ao Recorrente, serem os presentes autos, uma situação não se deve dar cumprimento ao “Principio da Adesão”, na medida em que, por um lado, o pedido feito pelo I.S.S., I.P. já se encontra em curso noutras “instâncias” (cíveis – falência - e fiscais) e por outro, são essas mesmas instâncias, as materialmente competentes para conhecer do pedido civil deduzido, pois a competência para a cobrança dos tributos e impostos de que seja titular a Fazenda publica está expressamente cometida aos órgãos de execução fiscal, ou seja, aos denominados “serviço periférico local da administração tributária” – arts. 149º e 150º do C.P.P.T., pelo que o presente processo – no que à particular questão do pedido de indemnização civil diz respeito - só pode ser objecto de apreciação pelos Tribunais Tributários, “ex- vi” do disposto no artº. 212º da C.R.P., no artº 3º do ETAF e no artº. 144º da LOSJ.
Por outro lado,
- O direito que o I.S.S. pretende ver reconhecido nos presentes autos em relação à sociedade arguida/demandada foi já declarado, por sentença de graduação de créditos proferida nos autos de insolvência da sociedade “EMP01..., Lda.”.
- O pedido cível deduzido nos presentes autos contra a sociedade arguida está contido no pedido da reclamação de créditos deduzida no supra referido processo de falência e a causa de pedir tem por base parcialmente o mesmo direito (a mesma dívida).
- Assim, fica apurado que se encontram reunidas as condições essenciais de que depende a verificação da excepção de litispendência.

Apreciando.
Quanto à primeira questão:
O Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2013, de 15/11.2012, publicado no DR. I Série, nº4, de 07.01.2013, p. 44, fixou a seguinte jurisprudência (cujo argumentário se mantém válido face ao enquadramento jurídico entretanto vigente e merece a nossa concordância):
«Em processo penal decorrente de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. no artº 107º nº 1, do R.G.I.T., é admissível, de harmonia com o artº 71.º, do C.P.P., a dedução de pedido de indemnização civil tendo por objecto o montante das contribuições legalmente devidas por trabalhadores e membros dos órgãos sociais das entidades empregadoras, que por estas tenha sido deduzido do valor das remunerações, e não tenha sido entregue, total ou parcialmente, às instituições de segurança social.»

Nesse douto aresto seguiu-se o entendimento da jurisprudência até então quase unânime no sentido de que a competência do tribunal criminal para conhecer da acção penal e da conexa acção cível enxertada não se confunde com a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, em processo de execução, tendo o tribunal criminal competência em razão da matéria para julgar a acção cível interposta pelo Instituto de Segurança Social (ISS.IP).
Isto porque as ações que têm por objecto os actos tributários de liquidação e execução de tributos, e as ações de indemnização resultante da prática de crimes fiscais, têm causas de pedir e pedidos diferentes.
Como ali se menciona, «[P]elos danos causados pelos crimes tributários respondem os agentes do crime não nos termos da Lei Geral Tributária, mas nos termos da lei civil.
No pedido civil deduzido em processo penal, atinente à prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social [artigo 107.º, do RGIT], a fonte da obrigação é a responsabilidade civil decorrente da prática de um crime e não a lei que define a obrigação de entregar certas quantias à Segurança Social.
A qualificação como crime do acto do agente confere uma substancial especificidade à causa de pedir do enxerto cível: o facto jurídico concreto que a enforma não se identifica com o mero incumprimento de uma obrigação fiscal, mas com o incumprimento portador dos elementos objectivo-subjectivos do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.»
Aliás, o Tribunal Constitucional já se pronunciou em diversos acórdãos, entre os quais o Ac. 522/2008, de 29.10.2008, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, acerca do artigo 212.º, n.º 3, da Constituição, segundo o qual “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”
Como se referiu nesse Acórdão:
«Este preceito constitucionalizou uma jurisdição administrativa autónoma, tornando os tribunais administrativos e fiscais os tribunais comuns para o julgamento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.
O Tribunal Constitucional já foi várias vezes chamado a pronunciar-se sobre o alcance desta reserva constitucional de jurisdição administrativa, tendo reiteradamente sustentado o entendimento, assim resumido no Acórdão n.º 211/07:
«(…) a introdução, pela revisão constitucional de 1989, no então artigo 214.º, n.º 3, da Constituição, da definição do âmbito material da jurisdição administrativa, não visou estabelecer uma reserva absoluta, quer no sentido de exclusiva, quer no sentido de excludente, de atribuição a tal jurisdição da competência para o julgamento dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. O preceito constitucional não impôs que todos estes litígios fossem conhecidos pela jurisdição administrativa (com total exclusão da possibilidade de atribuição de alguns deles à jurisdição “comum”), nem impôs que esta jurisdição apenas pudesse conhecer desses litígios (com absoluta proibição de pontual confiança à jurisdição administrativa do conhecimento de litígios emergentes de relações não administrativas), sendo constitucionalmente admissíveis desvios num sentido ou noutro, desde que materialmente fundados e insusceptíveis de descaracterizar o núcleo essencial de cada uma das jurisdições.»
Assim, neste contexto, como sapientemente se salienta no AFJ nº 1/2013, não é a adequação do meio ao fim visado, nem a natureza da relação jurídica que são pressupostos do pedido de indemnização civil.
O objecto do pedido de indemnização civil não é a obrigação de pagamento das contribuições e acréscimos legais a favor da Segurança Social, que emerge de relação jurídica administrativa-tributária especial e rege-se pela legislação de direito público, antes a indemnização pelo valor do dano, que corresponde, direta e causalmente, ao montante em dívida pelo incumprimento dessas prestações. Dito de outra forma: não é a natureza das dívidas ou dos valores pecuniários em dívida, que define o princípio da adesão ao processo penal, mas sim o dano, mais especificamente o concreto dano emergente de crime.
Como também ali se observa:
«O artigo 129º do Código Penal ao referir que «a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil» significa de forma clara que permite a indemnização por perdas e danos, quando esta indemnização seja emergente de crime, sendo essa indemnização regulada pela lei civil.
Não é a natureza da prestação que constitui o dano.
O dano tem origem no prejuízo, in casu, causado pelo incumprimento da prestação em falta, e identificado no seu valor ou montante, e que por esse incumprimento constitui crime.»
É inequívoco que a privação das contribuições, cuja entrega foi omitida, representa sempre um prejuízo, por diminuição de receita, para a Segurança Social.
Donde, a dedução do pedido de indemnização civil em processo penal pelo lesado I.S.S., IP, não está dependente do “aval” de outros ordenamentos jurídicos, que não determinam quer a legitimidade do demandante quer a viabilidade do pedido.
É de concluir que a competência material exclusiva da jurisdição criminal para o julgamento de processos penais, além de convocar o princípio da adesão (art. 71º do CPP), afirma o princípio da suficiência penal, nos termos do artº 7º do CPP.
Neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27.06.2017, Processo nº 1370/10.8TALLE.E1, relator Desembargador Clemente Lima,
Inexiste, destarte, a invocada exceção de incompetência material do tribunal comum criminal para julgar o pedido de indemnização civil formulado nos autos pelo Instituto da Segurança Social, IP contra os arguidos “EMP01..., Lda.” e AA.  

Quanto à segunda questão:
Por outro lado, não colhe a arguição da exceção de litispendência, em virtude de, alegadamente, o pedido feito pelo I.S.S., I.P. já se encontrar em curso noutras “instâncias” (cíveis – falência - e fiscais), e de o direito que o I.S.S. pretende ver reconhecido nos presentes autos em relação à sociedade arguida/demandada já ter sido declarado por sentença de graduação de créditos proferida nos autos de insolvência da sociedade “EMP01..., Lda.”. Segundo o recorrente, o pedido cível deduzido nos presentes autos contra a sociedade arguida está contido no pedido da reclamação de créditos deduzida referido processo de falência, sendo que a causa de pedir tem por base parcialmente o mesmo direito (a mesma dívida).
A exceção de litispendência pressupõe a repetição de uma causa estando a anterior ainda a decorrer e visa obstar a que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior - cf. art. 580º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (CPC), ex vi do art. 4º do CPP.
Dispõe o art. 581º do CPC:
“1 - Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. (…)”

Em primeiro lugar, cabe referir que a apreciação sobre a invocada exceção de litispendência, questão inovadoramente introduzida nesta segunda instância, pressupunha que a matéria de facto relevante para o efeito constasse dos factos tidos como provados ou não provados na sentença recorrida, o que não sucede, desconhecendo-se assim se pende outra ação judicial, intentada contra o arguido recorrente pelo ISS, IP, ainda que em foro especial, com vista à cobrança das mesmas quotizações cujo ressarcimento é reclamado no pedido de indenização civil deduzido nos presentes autos.
Dessarte, sempre estaria votada ao insucesso a arguição desta exceção dilatória.
De todo o modo, cumpre adiantar que a suposta preexistência de ação com o mesmo objeto em relação à sociedade arguida/demandada por o crédito do I.S.S., IP ter sido declarado por sentença de graduação de créditos proferida nos autos de insolvência da sociedade “EMP01..., Lda.”, é insuscetível de consubstanciar a clamada litispendência porquanto não ocorre identidade de sujeitos no que tange aos demandados/requeridos – o aqui demandado AA não é o sujeito da insolvência requerida noutros autos e da respetiva graduação de créditos, processo autónomo que, como invoca o próprio recorrente, tem como requerida a sociedade “EMP01..., Lda.”.
Acresce que, em qualquer caso, não se vislumbra repetição quanto à causa de pedir relativamente ao pedido de indemnização civil apresentado nestes autos e em eventual ação executiva ou administrativa movida contra o arguido, ora recorrente, pelo demandante I.S.S., IP.
Como acima se adiantou, no processo tributário/administrativo de jaez executivo a causa de pedir documentada pelo título é o incumprimento da obrigação legal de entrega à Segurança Social das cotizações que foram descontadas nos salários dos trabalhadores pela entidade empregadora que as recebe e se encontra vinculada a tais ações de retenção e entrega das prestações à legítima titular, enquanto no pedido de indemnização enxertado no processo criminal a causa de pedir é a responsabilidade civil emergente da prática do crime de abuso de confiança contra a segurança social. Assim, apesar de existirem coincidentes factos fundadores dos pedidos – a conduta omissa dos obrigados à entrega das prestações à Segurança Social –, não existe identidade de causas de pedir porquanto são distintas as fontes de responsabilidade dos demandados/executados, isto é, não coincidem os institutos jurídicos de onde derivam diretamente para os lesantes as obrigações legais de ressarcimento à ofendida Segurança Social do prejuízo causado, os quais obedecem a pressupostos e regimes diversos.

Acresce que a existência de título executivo ou título com igual valor - a lei tributária atribui força executiva aos títulos de cobrança das contribuições e impostos -, não impede que se demande o devedor/responsável em acção declarativa, designadamente no pedido de indemnização civil enxertado na ação penal.
O que não pode suceder é duplicação de recebimento pela Segurança Social das mesmas quantias em questão em ambos os processos, sob pena de se verificar enriquecimento sem causa. Daí que uma vez liquidados pelo devedor os montantes em dívida, no âmbito de qualquer um dos procedimentos de cobrança, deve requerer-se a extinção da outra instância por inutilidade superveniente da lide (cf. art. 277º, al. e), do CPC), assim se assegurando a harmonia e unidade do sistema jurídico.
Como se menciona no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.09.2023, Processo nº 1321/22.7T9CLD-A.C1, relator Desembargador Pedro Lima:
«I – A lei não veda ao credor que já tenha um título executivo de deduzir pedido de indemnização civil no processo penal contra o mesmo devedor e por valor que se contém nos limites daquele título, apenas determinando que no caso as respectivas custas ficarão a seu cargo, nos termos do artigo 535.º, n.º 1 e 2, alínea c), do C.P.C.
(…)
III – «O facto de existir a possibilidade legal de a administração fiscal ou a Segurança Social dispor de duas vias de cobrança, uma com base no título executivo por si emitido e outra com base no título executivo civil, não significa que possa haver um duplo recebimento».
Como pertinentemente aduz Germano Marques da Silva, in “Direito Tributário, UCE, p. 236, «A indemnização corresponde sempre ao pagamento do imposto evadido e consequentemente pago o imposto não é mais devida a indemnização ou paga a indemnização não é mais devido o imposto. Tenha-se em conta que o credor da obrigação é o mesmo e que a responsabilidade civil se destina a satisfazer o interesse do credor da prestação tributária que foi frustrado pela prática do facto ilícito criminal.»

Em conformidade, não há que fazer cotejo de ordenamentos jurídicos, nomeadamente do processo penal com outros ramos do direito, nomeadamente com processo tributário, de execução fiscal, para aquilatar da legalidade do pedido de indemnização civil em processo penal.

Pelo exposto, improcede a invocada exceção dilatória de litispendência.

III.2.5.2- Responsabilidade meramente subsidiária, secundária, do demandado recorrente, enquanto gerente da sociedade arguida/demandada:

Neste segmento recursório, conclui o recorrente AA:
- O responsável tributário é a Sociedade, que surge como responsável na certidão de dívida fiscal que constitui título executivo (arts. 88º, 162º e 163º do Código de Procedimento e de Processo Tributário – CPPT).
- Sendo a pessoa coletiva a responsável tributária, é à mesma que a lei imputa a acção ou omissão em que se cifre o não cumprimento de algum desses deveres de que resulte um prejuízo, real ou presumido, para o credor.
- A responsabilidade dos gerentes, neste campo, afirma-se subsidiária ou secundária, sendo chamados à execução quando haja a violação culposa de um ou mais deveres fiscais por parte destes representantes, que releva apenas quando dela resulta a insuficiência do património da empresa, que se afirma como causa próxima da não satisfação da dívida fiscal.

Ajuizando.
Em termos da legislação aplicável às relações entre a Segurança Social e os sujeitos da obrigação contributiva, a sociedade arguida, enquanto entidade empregadora dos colaboradores, devedores principais, surge como devedor substituto tendo a obrigação tributária de deduzir à remuneração do trabalhador o montante da contribuição por este devida à Segurança Social, e de proceder à sua entrega a esta.
Como predito, a natureza tributária do crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, atenta a natureza da prestação indevidamente apropriada pelo agente do crime, cuja omissão de entrega o consubstancia, não impede que o montante do dano emergente, imediatamente integrado pelo valor da prestação tributária em falta e respectivo acréscimos legais, não possa ser deduzido em acção penal tendo por objecto crime tributário, sob pena de inutilização de toda a teleologia e dogmática do princípio da adesão em processo penal.
Se o incumprimento da prestação causador do dano é de natureza tributária, e fundamento de crime, o ressarcimento do dano, pode ser feito em processo de execução fiscal, mas havendo processo penal, o pedido de indemnização civil emergente de crime deve ser deduzido em processo penal, tendo este a primazia, pois se o dano resulta do incumprimento e se o incumprimento constitui crime, o dano é-lhe conexo, ainda emergente de crime.
Em conformidade, no contexto do pedido de indemnização enxertado na ação penal, os demandados, agentes do ajuizado crime, respondem pelos danos causados pelo ilícito criminal cometido consoante o regime da legislação civil e não nos termos da Lei Geral Tributária (cf. art. 129º do CP).
Ressuma do art. 483º do Código Civil que são elementos da responsabilidade civil extracontratual: o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Como estatui o art. 486º deste diploma legal, “as simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando, independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei ou de negócios jurídicos, o dever de praticar o acto omitido”.
Sapientes as seguintes considerações produzidas no já citado AFJ nº 1/2013:
«Os critérios da lei civil são critérios substantivos, de natureza obrigacional, na fixação da indemnização que, por esse facto, não se confundem com a natureza da relação jurídica, a que são alheios na sua forma e concretização.
[…]
Da mesma forma que a natureza da prestação em dívida não se altera pela interposição de um processo criminal, a dedução neste do pedido de indemnização civil referente ao valor dessa prestação, não perde a validade e viabilidade próprias daquela prestação, tanto mais que o próprio artº9.º do RGIT determina que «o cumprimento da sanção aplicada não exonera do pagamento da prestação tributária devida e acréscimos legais».
“A obrigação tributária é autónoma relativamente à responsabilidade penal pela prática do crime tributário e autónoma é também da obrigação de indemnização pelos danos emergentes do crime tributário, ainda que entre a dívida tributária, a responsabilidade pelo crime e pela indemnização dos danos provocados pelo crime existam estreitas conexões” [Germano Marques da Silva, idem, p. 314 e ss.].
A omissão do dever de pagamento da prestação tributária e acréscimos legais, subsiste e constitui a ilicitude.
Ao incumprimento da relação contributiva é atribuída dignidade penal, pressupondo a ilicitude a definição - determinação - da dívida tributária, cujo valor gera imediatamente dano, a liquidar pela lei fiscal e a ser reclamado em processo penal, havendo-o.
[…]
O objecto do pedido de indemnização civil não é a dívida tributária qua tale, mas o prejuízo, gerador de responsabilidade civil e do dever de indemnizar, nela fundamentado, emergente da conduta danosa e imputada, integrante da prática do crime de abuso de confiança fiscal, constitutiva de responsabilidade por factos ilícitos, submetida ao regime dos artºs 129º do CP e 483º, e segs do CC. e consubstanciada na não entrega à Segurança Social, entrega essa legalmente obrigatória, de determinada quantia integrante da prestação tributária, e que, por omissão dolosa, lhe provocou, assim, o prejuízo correspondente.
A responsabilidade por factos ilícitos, decorrente da prática de um crime, não se confunde assim, com a responsabilidade administrativa-tributária.

O pedido de indemnização civil em processo penal, no crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, não tem por objecto a definição e exequibilidade de acto tributário, mas sim a obrigação de indemnização por danos emergentes da conduta danosa que o integra, com fundamento na responsabilidade por factos ilícitos que daí surge nos termos dos artºs 483 e segs. do Código Civil.»
E adiante, com notório interesse para a questão que ora nos ocupa [negrito nosso]:
«Nem a questão das diferentes responsabilidades tributárias – solidária e subsidiária – se coloca, uma vez que a reversão é privativa do processo tributário, aplicável apenas quando o processo de execução fiscal for accionado, e de harmonia com os respectivos pressupostos ou condicionantes.
[…]
Como se sustenta nos Acórdãos do STJ de 11/12/2008 e de 29/10/2009 a indemnização pedida nos processos crime por abuso de confiança contra a segurança social não se destina a liquidar uma obrigação tributária para com a segurança social, sendo antes fixada segundo critérios da lei civil, apesar de os factos geradores da obrigação de indemnizar e da obrigação tributária poderem ser parcialmente coincidentes, não podendo naturalmente ser confundidos os seus fins e regimes.
Por outro lado, na responsabilidade civil por facto ilícito o arguido gerente, como co-autor, responde solidariamente com a sociedade arguida pelo pagamento da indemnização por danos causados à segurança social, nos termos do art. 497.° do Código Civil, art.º 3.º do RGIT, arts. 8.° e 129.° do CP, razão pela qual, para obter título executivo contra todos os arguidos - incluindo os não susceptíveis de figurar originariamente no titulo na SPE - sempre o ISS, IP terá que formular o pedido civil contra todos no processo crime (Neste sentido, (CC. António Santos Abrantes Geraldes, Temas Judiciários, vol. I, Almedina, 1998, págs. 232-234, e Abílio Neto, Código de Processo Civil Anotado, 16.8. ed., pág. 630, nota 15.)).»
Estamos perante causas de pedir diferentes no processo executivo e no pedido de indemnização civil no processo-crime, os sujeitos a quem é imputada responsabilidade são distintos.
Nos termos do art.° 162.° do CPPT a execução na SPE só pode ser intentada contra a sociedade, devedora originária, só depois é que poderá reverter.
E isto, faz toda a diferença em termos de garantias de exequibilidade patrimonial por parte da Segurança Social.
[…]
Em processo penal, para efeitos do princípio da adesão, “Deve considerar-se que qualquer terceiro que viole uma obrigação ou de alguma forma colabore com o devedor em tal violação, é responsável, nos termos gerais, pelos prejuízos causados, desde que se verifiquem os requisitos da imputação delitual.” [Germano Marques da Silva, ibidem, p. 318]
Na verdade, o pedido de indemnização civil pode ser deduzido contra pessoas com responsabilidade meramente civil e estas podem intervir voluntariamente no processo penal, mas a intervenção voluntária impede as pessoas com responsabilidade meramente civil de praticarem actos que o arguido tiver perdido o direito de praticar. [art. 73º, nºs 1 e 2, do CP]
Em síntese, como salienta GERMANO MARQUES DA SILVA [ibidem, págs. 121 a 124]:
“(…) pelos danos causados pelos crimes tributários respondem os agentes dos crimes e respondem não nos termos da Lei Geral Tributária, mas nos termos da lei civil.
Assim, o administrador da empresa que seja também agente do crime, não responderá subsidiariamente, mas solidariamente, como solidariamente respondem todos os demais agentes nos termos do que dispõe o artº 497º do Código Civil.
[…]
O tribunal criminal tem competência em razão da matéria para julgar a acção cível interposta pelo ISS, não havendo lugar neste tipo de processos à figura da reversão. A substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte.
A substituição tributária é efectivada através do mecanismo da retenção na fonte do imposto devido.
A responsabilidade subsidiária efectiva-se por reversão do processo de execução fiscal.
A reversão contra o responsável subsidiário depende da fundada insuficiência dos bens penhoráveis do devedor principal e dos responsáveis solidários, sem prejuízo do benefício da excussão.
A reversão, mesmo nos casos de presunção legal de culpa, é precedida de audição do responsável subsidiário nos termos da presente lei e da declaração fundamentada dos seus pressupostos e extensão, a incluir na citação.
As pessoas colectivas e as sociedades são criminalmente responsáveis pelas infracções previstas no RGIT, quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo, responsabilidade que não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes (art. 7.º, n.°s 1 e 3, do RGIT).
[…]
A figura de reversão, própria do processo executivo tem por objectivo chamar à acção executiva quem à luz do título executivo não é parte (cfr. arts. 55.º, n.º 1, do CPC, e 153.º, n.ºs 1 e 2, do CPPT), situação completamente diversa daquela em que há demandado ab initio, numa acção com estrutura declarativa, sendo contra si invocada uma concreta causa de pedir e formulado um pedido concreto, que pode impugnar nos termos gerais consentidos em processo penal.
Na execução fiscal o devedor substituto não figura no título de cobrança do tributo.
Ao optar pelo exercício da acção conjunta o demandante pretende obter decisão condenatória que, transitada em julgado, assume o papel de título executivo, com a configuração própria do art. 467.º do CPP.
Aqui o devedor é demandado a título principal, tendo por base a autoria de um crime de que emerge uma conexa responsabilidade civil delitual – art. 6.º do RGIT – sendo o pedido baseado na obrigação de indemnizar pelos danos causados pela prática de facto ilícito e culposo – art. 483.º do CC.”

No mesmo sentido, que merece a nossa inteira concordância, pronunciou-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.05.2016, Processo nº 417/09.5TAVFR.P1, relatora Desembargadora Elsa Paixão:

«I – Objecto do pedido de indemnização no processo penal por crime de abuso de confiança fiscal, é o prejuízo, gerador de responsabilidade civil e da obrigação de indemnizar, emergente da conduta danosa que integra aquele crime e consubstanciado na não entrega à SS da quantia integrante da prestação tributária devida e que lhe provocou o prejuízo correspondente àquela não entrega.
II – Em virtude dessa responsabilidade civil o arguido gerente da sociedade, como co-autor responde solidariamente com aquela pelo pagamento dessa indemnização (artºs 497º CC, 3º RGIT, e artºs 8º e 129º CP), razão pela qual para obter título executivo contra ambos deve formular o pedido de indemnização contra os mesmos.»

Aqui chegado, cumpre, pois, concluir pela falta de razão do recorrente neste conspecto, na medida em que, contrariamente ao que ele defende, a sua responsabilidade, atenta a causa de pedir no pedido de indemnização civil contra si formulado, é principal e solidária com a codevedora “EMP01..., Lda.”, e não meramente subsidiária ou secundária, dependente de reversão, figura que somente opera em sede de execução fiscal e depende da verificação (para além de violação culposa de um ou mais deveres fiscais por parte do representante da devedora principal) da insuficiência do património da empresa.
Soçobra, nesta parte, o douto recurso.
*

IV - Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente o douto recurso deduzido pelo arguido AA, nos seguintes termos:

IV.1Declarar nula a douta sentença recorrida, por omissão de pronúncia quanto ao juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação pelo condenado AA da condição legal de ressarcimento ao I.S.S., IP das quantias em débito a título de cotizações retidas e não entregues (cf. art. 379º, nº1, al. c), do CPP), nulidade que deve ser suprida pelo mesmo Tribunal (Juiz) que proferiu a decisão, recorrendo para o efeito, se assim entender necessário, à produção de prova suplementar, através da reabertura da audiência. 

IV.2 Quanto ao mais, julgar improcedente o recurso.


Sem custas (arts. 513º, nº1 e 514º, ambos do CPP, a contrario).
*
Notifique (art. 425º, nº 6, do CPP).
*
Guimarães, 16 de setembro de 2025,

Paulo Correia Serafim (Relator)
[assinatura eletrónica]
Anabela Varizo Martins (1ª Adjunta)
[assinatura eletrónica]
Isilda Pinho (2ª Adjunta)
[assinatura eletrónica]

(Acórdão processado e revisto pelo relator, com recurso a meios informáticos, encontrando-se assinado eletronicamente pelos Desembargadores subscritores – cfr. art. 94º, nºs 2 e 3, do CPP)


[1] Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 335; o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que mantém atualidade.
[2] A título exemplificativo, vejam-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.10.2010, Processo nº 70/07.0JBLSB.L1.S1, de 21.01.2009, Processo nº 111/09, e de 21.12.2005, Processo nº 4642/02, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[3] O princípio ne bis in idem, constituindo um princípio estruturante do nosso Estado de Direito, encontra-se igualmente consagrado nos textos internacionais concernentes à salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, nomeadamente no art. 4º, nº1, do Protocolo nº7 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.      
[4] In “Os Limites Objetivos do Ne Bis In Idem”, Lisboa, 2014, pp. 655 e 659.
[5] O bem jurídico protegido pela incriminação (o seu objeto de tutela) coincide com o conjunto das receitas de que a Segurança Social é titular. O tipo em questão tutela o sistema tributário na perspetiva patrimonial: a arrecadação dos tributos recebidos ou retidos pelo substituto do beneficiário das contribuições/quotizações – cfr. Germano Marques da Silva, in “Direito Penal Tributário”, UCE, 2009, p. 243.

[6] “Direito Penal Português, Tomo II - As Consequência Jurídicas do Crime”, 1993, pp. 72-73.
[7] “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, 2007, pp.78-85.
[8] Conforme menciona Manuel Augusto Barros Lopes, in “Sobre Um Caminho Para a Pena”, 2022, p.110, a finalidade da pena «(…) no modo de prevenção geral positiva ou integração, aposta no reforço da confiança ou consciência comunitária na validade da ordem jurídica. Existindo pertinência do bem jurídico a pena exerce uma função pedagógica dirigida à interiorização dos bens jurídico-penais pela consciência jurídica comunitária, uma função de pacificação social. (…) Por seu turno, a prevenção especial assume natureza acautelar a prática de futuros crimes, quer pelo mesmo agente no polo em que fulmina enquanto negativa, quer por possíveis agentes diversos no polo em que atrai como positiva. (…) no modo de especial positiva adota a regeneração, reeducação, ressocialização ou reinserção social como desígnio.»  
[9] “Direito Penal Português, Parte Geral II, As Consequências Jurídicas do Crime”, reimpressão 2005, Coimbra Editora, pp. 352 e 353. 
[10] O Tribunal Constitucional, no acórdão nº 305/2001, de 27.06/2001, publicado no DR, Série II, de 19/11/2001, defendeu igual entendimento, expendendo que a indemnização devida ao lesado a que alude o art. 51º, nº1, al. a), do CP assume natureza distinta da que é objeto do pedido de indemnização civil, consubstanciando em tertium genus, com uma natureza jurídica própria, cumprindo a “função adjuvante da realização da punição”.
[11] Neste sentido, a título exemplificativo, os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 05.10.2015, Processo nº 457/13.0GAFAF.G1, e do Tribunal de Relação de Évora de 07.02.2012 e de 14.07.2015, Processo nº 4249/99, todos acessíveis in www.dgsi.pt,