IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA GRAVADA
PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
ÓNUS IMPUGNATÓRIOS
REJEIÇÃO DO RECURSO
Sumário


1- Sendo as conclusões de recurso que delimitam o objeto do recurso de que o tribunal ad quem não se pode apartar, sob pena de incorrer em nulidade por excesso de pronúncia, salvo se se tratar de questão que seja de conhecimento oficioso, para que o recorrente possa beneficiar do alongamento do prazo de recurso de dez dias do n.º 7 do art. 638º do CPC, é necessário que aquele, nas conclusões de recurso, impugne o julgamento de facto, indicando concretos pontos da matéria de facto julgada provada e/ou julgada não provada que impugna, e depois resulte da motivação de recurso (ou, embora erroneamente, das conclusões) que impugna essa facticidade, total ou parcialmente, com base em prova gravada.
2- A extensão do prazo de recurso do n.º 7 do art. 638º, não está dependente do cumprimento pelo recorrente dos ónus impugnatórios do julgamento de facto, taxativamente enunciados no art. 640º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CPC, que são meros pressupostos de que depende a possibilidade do tribunal de recurso de entrar na apreciação da impugnação do julgamento de facto operada pela recorrente, e muito menos está dependente do mérito ou demérito da impugnação do julgamento de facto.

Texto Integral


I- Relatório

No processo especial de inventário, a que se procede por óbito de AA, falecida em ../../2004, e marido, BB, falecido em ../../2007, em que são únicos interessados diretos na partilha, como seus herdeiros legitimários, os filhos, CC e DD, em que CC exerce o cargo de cabeça de casal, esta, em 22/04/2020, juntou aos autos a relação de bens.

O interessado DD reclamou contra a relação de bens apresentada em que requereu:
I- A exclusão:
i- das verbas n.ºs 1 e 2 relacionadas sob a rúbrica “Créditos”, alegando que os pretensos créditos nelas relacionados, além de não serem rendimentos da herança, não são partilháveis, dado tratar-se de subsídios que o IFAP concede a quem cultiva terrenos rústicos, e não ao proprietário dos mesmos e, bem assim, ser o próprio quem vem cultivando os terrenos agrícolas, o que faz desde que os pais ainda eram vivos e, posteriormente à morte destes, a pedido da cabeça de casal;
ii- da verba n.º 3 relacionada sob a rúbrica “Créditos”, advogando que os rendimentos da herança aí relacionados não são créditos e que as despesas tidas para obter esses pretensos rendimentos são superiores aos últimos;
iii- das verbas n.ºs 4, 5, 6 e 7 relacionadas sob a rúbrica “Dinheiros”, sustentando que, logo após o falecimento do inventariado BB, foram liquidadas as contas deste e a cabeça de casal recebeu a sua quota parte no dinheiro; a conta NIPC ...82, aberta junto do Banco 1..., com o montante de 10.185,70 euros, apesar do falecido BB figurar como cotitular dessa conta, pertence a EE; a conta identificada na verba n.º 5, apesar de ter como cotitular o falecido BB, pertence apenas à falecida FF; e as contas relacionadas sob as verbas n.ºs 6 e 7, apesar de também serem cotituladas pelo falecido BB, pertencem apenas a GG;
iv- da verba n.º 8 relacionada sob a rúbrica “Bens Móveis”, alegando que o trator nela relacionado é propriedade do reclamante, posto que a cabeça de casal assinou um documento para que pudesse registar o trator em seu nome e onde declarou que desiste da sua quota parte a favor do herdeiro DD, seu irmão, ou seja, do reclamante;
v- da verba n.º 10 relacionada sob a rúbrica “Bens Móveis”, advogando que o reboque é sua propriedade, em virtude de ter sido ele quem o mandou fazer, comprou e pagou à EMP01... Lda., com dinheiro seu;
vi- das verbas n.ºs 15 e 16 relacionadas sob a rúbrica “Bens Móveis”, alegando que o pulverizador e a ganhadeira relacionados são propriedade de HH, que foi quem os adquiriu e pagou no âmbito de um projeto agrícola;
vii- da verba n.º 20 relacionada sob a rúbrica “Bens Móveis”, sustentando que as duas motosserras relacionadas são sua propriedade, que foi quem as comprou e pagou, uma à EMP02..., CRL, há mais de 25 anos, e a outra a EMP03..., Lda., em data mais recente;
viii- das verbas n.ºs 36, 38, 39, 40 e 41 relacionadas sob a rúbrica “Bens Móveis”, alegando que os bens nelas relacionados pertencem ao próprio, que foi quem os comprou num leilão que teve lugar no tribunal, há mais de vinte anos, quando foi remodelado o mobiliário do Tribunal de Mogadouro;
ix - da verba n.º 104 relacionada sob a rúbrica “Bens Imóveis”, alegando que o prédio nela relacionado não é propriedade das heranças abertas por óbito dos pais, pertencendo a II, a quem a cabeça de casal e o reclamante o doaram verbalmente, há mais de cinco anos;
II- A retificação da descrição da verba n.º 87 relacionada sob a rúbrica “Bens Imóveis”, alegando que apenas uma muito pequena parte do prédio nela relacionado integra as heranças abertas por óbito dos pais, em virtude da maior parte do terreno que integrava o prédio ter sido expropriado pela EDP e a cabeça de casal ter outorgado a escritura e recebido a sua quota parte da indemnização e que, “portanto, não é ½, devendo ser corrigida”;
III- A falta de relacionamento dos seguintes bens:
i- setenta sacos de linho de recolha de cereal, com capacidade de 50 Kgs., no valor global de 1.400,00 euros;  
ii- seis colchas de linho, no valor global de 300,00 euros;
iii- quatro colchas de renda, no valor global de 500,00 euros;
iv- talheres em prata, no valor global de 100,00 euros;
v- três caldeiras de cobre, no valor global de 300,00 euros; e
vi- três braseiras de cobre, no valor global de 200,00 euros.
A cabeça de casal respondeu, impugnando praticamente toda a facticidade alegada pelo reclamante e mantendo a relação de bens que tinha apresentado nos seus precisos termos. Pediu a condenação do reclamante como litigante de má-fé, no pagamento de multa e de indemnização não inferior a 2.000,00 euros.
Na sequência, o reclamante respondeu concluindo que “todos os factos alegados na resposta à reclamação são falsos e destituídos de fundamento”, e requereu que se condenasse a cabeça de casal como litigante de má-fé.
Em 26/04/2021, realizou-se audiência prévia em que, uma vez frustrada a conciliação dos interessados, se determinou que se oficiasse às entidades identificadas no requerimento de fls. 134 do processo físico para que prestassem as informações aí requeridas pela cabeça de casal e se designou data para inquirição das testemunhas arroladas pelos interessados.

Inquiridas as testemunhas, proferiu-se sentença, em 12/03/2025, em que se julgou a reclamação apresentada contra a relação de bens parcialmente procedente, da qual consta a seguinte parte dispositiva:
“Termos em que se julga a reclamação parcialmente procedente, por provada, e na mesma medida e, em consequência, se determina:
a) A manutenção da verba n.º 4 da relação de bens, correspondente ao saldo bancário de €10.185,70 (dez mil cento e oitenta e cinco euros e setenta cêntimos) e referente à conta de depósitos à ordem com o n.º ...07, sediada no Banco 1...;
b) A eliminação da relação de bens do trator agrícola da marca ..., com a matrícula ..-..-DQ, relacionado sob a verba n.º 8;
c) A eliminação da relação de bens do reboque, relacionado sob a verba n.º 10;
d) A eliminação da relação de bens de um pulverizador de trator, relacionado sob a verba n.º 15;
e) A eliminação da relação de bens de uma gadanheira de pente duplo, relacionada sob a verba n.º 16;
f) A eliminação da relação de bens de uma motosserra, relacionada sob a verba n.º 20;
g) A manutenção na relação de bens de uma motosserra, relacionada sob a verba n.º 20;

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Valor do incidente: valor da causa principal (artigo 304.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
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Custas do incidente a cargo do reclamante e da cabeça-de-casal, na proporção de 1/3 para aquele e 2/3 para esta (artigo 527.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil).
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Registe e notifique, sendo a cabeça-de-casal para apresentar, no prazo de 10 dias, nova relação de bens em conformidade com a decisão ora proferida, bem como com o determinado e acordado nas audiências que decorreram nos dias 15/11/2022 e 13/06/2024, ou seja: na eliminação das verbas n.os 1 a 3 da relação de bens, uma vez que foram remetidas para processo especial de prestação de contas; na eliminação das verbas n. os  5, 6, 7, 36, 38, 39, 40, 41 e 104, tal como acordado entre as partes; na correção da verba n.º 87, no que tange à proporção do bem, de acordo com a certidão permanente junta aos autos”.

Inconformada com o decidido a cabeça de casal interpôs recurso, em que formulou as seguintes conclusões:

1- Os factos dados como provados em 8), 9) e 10), estão incorretamente julgados.
2- Assim como os factos dados como não provados em D), E), F), e G), estão incorretamente julgados.
3- Quem preencheu o formulário que permitiu a transferência de propriedade do trator ..., não foi a cabeça de casal, mas o interessado DD, basta atentar no sobredito documento, de onde se alcança que o tipo de caligrafia é o mesmo.
4- A cabeça de casal, limitou-se a apor a sua assinatura, onde escreveu, CC no espaço para o efeito, que estava completamente em branco e nada mais.
5- Sendo que a menção “declaro que desisto da minha quota parte a favor do co-herdeiro DD, não foi escrito nem aposto pelo punho da cabeça de casal, CC.
6- Nem tão pouco autorizou, quem quer que fosse, a escrevê-lo.
7- O mesmo resulta das declarações do interessado, ali arguido, DD, no Proc. nº 175/20.2 T9MGD, cuja certidão se encontra junta aos presentes autos, “que lhe foi fornecido um impresso em branco, onde foi colocado por um dos funcionários daquela conservatória cuja identidade não sabe precisar a frase, declaro que desisto da minha quota-parte a favor do co-herdeiro DD”.
8- Tendo em conta o disposto nos art.ºs 363º, n.ºs 1 e 2, 369º, 371º, n.ºs 1 e 2, 372º, n.ºs 1, 2 e 3, do C.C., o Tribunal podia e devia, tal como foi requerido, declarar o dito documento falso, e nesta constância ter mantido na relação de bens o trator agrícola de marca ..., com a matrícula ..-..-DQ, por fazer parte do acervo hereditário por morte dos Inventariados.
9- Assim como o reboque, o pulverizador de trator, a gadanheira e a motosserra.
10- Quer com base nas declarações de parte prestadas pela cabeça de casal, tal como consta da ata do dia 13.06.024, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, na aplicação informática em uso neste Tribunal, com início pelas 11h40m e fim pelas 12h38m, do depoimento da testemunha DD, ouvido a 21.05.024, cfr. ata para que se remete, gravado, com início pelas 15h27m e fim pelas 16h08m, do depoimento da testemunha JJ, datado de 21.05.024, cfr. ata para que se remete, com início pelas 16h11m e o seu termo pelas 17h02m, do depoimento prestado por JJ, no dia 13.06.024, cfr. ata para que se remete, gravado, com início pelas 10h44m e termo pelas 11h24m, e da testemunha KK, prestado no dia 13.06.024, cfr. ata para que se remete, gravado, com início pelas 11h25m e o seu termo pelas 11h40m.
11- Tem, pois, o Tribunal, dados mais do que suficientes, documentos, depoimentos de testemunhas e declarações de parte da cabeça de casal, para manter na relação de bens, o trator, verba nº 8, o reboque, verba nº 10, o pulverizador de trator, verba nº 15, a gadanheira de pente duplo, verba nº 16, e a motosserra, verba nº 20.
Termos em que, nos melhores de direito aplicável, e com o sempre mui douto suprimento de V/Exas., deve o presente recurso ser considerado inteiramente procedente por provado, substituindo-se a decisão recorrida por outra em que acolhendo-se aos argumentos aduzidos pela Recorrente, cabeça de casal e interessada, mantenha na relação de bens o trator agrícola da marca ..., o reboque, o pulverizador de trator, a gadanheira de pente duplo e a motosserra, por fazerem parte do acervo hereditário a dividir, pertencente aos inventariados, assim fazendo a acostumada Justiça.

O reclamante e interessado DD contra-alegou, e concluiu as suas contra-alegações nos termos que se seguem:
1- A interposição do presente recurso é extemporânea, pois a recorrente para poder aproveitar o prescrito no n.º 7 do artigo 638º, tinha que ter cumprido cabalmente o n.º 1 do artigo 640º ambos do C.P.Civil.
2- Por outro lado, a matéria de facto dada como provada e como não provada, resultou da análise crítica e conjugada, dos vários meios probatórios produzidos em sede de audiência final, de toda a prova documental constante dos autos, tendo como pano de fundo o princípio da livre apreciação da prova, estribado nas regras da experiência comum, da normalidade do acontecer, contido no artigo 607.°, n.º 5 do Código de Processo Civil, que a Recorrente não conseguiu com os seus argumentos colocar em crise.
3- A Meritíssima Juíza “a quo” foi bem explícita na sua motivação, no entanto e em termos hipotéticos, tal como a lei refere, poderá o Tribunal da Relação, alterar a matéria de facto, nos pontos provados, factos 8, 9 e 10 e não provados, alíneas D), E) e F), com base nos registos das gravações, que a recorrente não transcreveu, por isso não pode esse Venerando Tribunal, só com base na gravação (sem os concretos pontos em que devia ter resposta diferente) alterar a decisão sobre a matéria de facto que pretende a recorrente, pois nas gravações não ficam registados, elementos que são tidos em conta pelo julgador, por causa da imediação, como sejam, “gestos e mimica dos depoentes”, as reações, quase reações, as hesitações, que o julgador percebe, analisa e pondera e decide de acordo como seu critérios e estribado no princípio da livre apreciação da prova.
4- Entende o recorrido, sem a recorrente ter dado cabal cumprimento ao n.º 1 do artigo 640º do C.P.Civil, que dos depoimentos das testemunhas, que não transcreveu, deveriam ter sido dados como provadas as alíneas D), E) e F), que foram pela Meritíssima juíza “a quo” dados como não provados, quando foi devidamente explicado e fundamentado o porquê dessa resposta.
5- Pretende a Recorrente que o douto Tribunal da Relação faça um segundo julgamento, para lhe dar a razão que não tem nem nunca teve, foram apenas postos em causa os artigos 8, 9 e 10 dos factos provados, mas não concretizou os pontos da matéria de facto, nem os transcreveu para o tribunal de recurso poder apreciar e dar uma conclusão diferente.
6- A Meritíssima Juiz “a quo”, apreciou livremente a prova, fez uma análise crítica, livre e conjugada, quer da prova documental, quer da prova testemunhal, portanto, decidiu e bem segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, por isso elencou os factos dados como provados e os factos dados como não provados.
7- A Meritíssima Juíza, perante os factos dados como provados não podia ter decidido de maneira diferente, daí que nenhum reparo haja a fazer à douta sentença, nem muito menos foram violadas as normas jurídicas que a Apelante alega.
8- Também não pode a Recorrente ignorar que para o douto Tribunal superior alterar a matéria de facto dada como provada ou não provada, esta tem que cumprir cabalmente em primeiro lugar o prescrito no artigo 640º do C.P.Civil e não o fez.
Termos em que deve ser rejeitado liminarmente o presente recurso, por violação do prescrito no artigo 640º do C.P.Civil e negado provimento ao presente recurso, por carecer de absoluto fundamento, mantendo a douta sentença recorrida, fazendo V. Exas. deste modo, sã e serena e objetiva Justiça.
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A 1ª Instância admitiu o recurso como sendo de apelação, a subir imediatamente e em separado e, nos termos do n.º 3 do art. 1123º do CPC, atribuiu-lhe efeito suspensivo, por entender que aquele “pode fazer claudicar a utilidade prática das diligências a realizar na conferência de interessados”, o que não foi alvo de modificação no tribunal ad quem.
No despacho de admissão do recurso fixou o valor da causa em 257.446,05 euros.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Acresce que, o tribunal ad quem também não pode conhecer de questão nova, isto é, que não tenha sido, ou devesse ser, objeto da decisão sob sindicância, salvo se tratar de questão que seja do conhecimento oficioso, dado que, sendo os recursos os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, mediante o reexame de questões que tenham sido, ou devessem ser nelas apreciadas, visando obter a anulação da decisão recorrida (quando padeça de vício determinativo da sua nulidade) ou a sua revogação ou alteração (quando padeça de erro de julgamento, seja na vertente de erro de julgamento da matéria de facto e/ou na vertente de erro de julgamento da matéria de direito), nos recursos, salvo a já enunciada exceção, não podem ser versadas questões de natureza adjetivo-processual e/ou substantivo material sobre as quais não tenha recaído, ou devesse recair, a decisão recorrida[1].
No seguimento desta orientação cumpre ao tribunal ad quem apreciar as seguintes questões:
a- Se o recurso deve ser rejeitado por extemporaneidade, dado que a recorrente não cumpriu com os ónus impugnatórios do julgamento de facto do art. 640º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CPC e, por isso, não pode beneficiar da extensão do prazo de dez dias para recorrer do n.º 7 do art. 638º do mesmo diploma;
b- No caso negativo, se a impugnação do julgamento da matéria de facto operada pela recorrente deve ser rejeitada, por incumprimento dos ónus impugnatórios do julgamento de facto;
c- No caso negativo, se o julgamento de facto realizado pela 1ª Instância padece de erro de julgamento quanto à facticidade que julgou provada nos pontos 8º, 9º e 10º e quanto à julgada não provada nas alíneas D, E, F e G;
d- No caso de procedência da impugnação do julgamento de facto operada pela recorrente, se a decisão de mérito constante da sentença recorrida (no segmento em que ordenou a eliminação da relação de bens apresentada pela cabeça de casal – recorrente - das verbas n.ºs 8, 10, 15, 16 e 20 da rúbrica “Bens Móveis”) padece de erro de direito e se, em consequência, se impõe a sua revogação e substituição por outra em que se ordene a manutenção dessas verbas na relação de bens que apresentou.
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III- DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A 1ª Instância julgou provada a seguinte facticidade com relevância para a decisão de mérito a proferir no âmbito da reclamação apresentada contra a relação de bens:
1- AA, faleceu no dia ../../2004, no estado de casada com BB (cfr. assento de óbito, junto com o requerimento inicial).
2- BB, faleceu no dia ../../2007, no estado de viúvo de AA (cfr. assento de óbito, junto com o requerimento inicial).
3- CC, interessada nos presentes autos, nasceu no dia ../../1956, e está registada como sendo filha dos inventariados mencionados em 1) e 2).
4- DD, interessado nos presentes autos, nasceu no dia ../../1957, e está registado como sendo filho dos inventariados mencionados em 1) e 2).
5- Por óbito do inventariado mencionado em 2), foi entregue o modelo 1 do imposto de selo sobre as transmissões gratuitas, registado sob o n.º ...80, no dia 27/03/2008, aí se identificando como cabeça de casal o interessado mencionado em 4) e da mesma constando, entre outras, as seguintes verbas: a) verba n.º 51, um trator agrícola marca ..., com a matrícula ..-..-DQ; b) verba n.º 53, um crédito no valor de €10.185,70 (cfr. modelo 1 junto com os requerimento datado de 23/04/2020 – referência citius n.º 1564741).
6- O inventariado mencionado em 2), era o único titular da conta de depósitos à ordem com o n.º ...07, sediada no Banco 1..., a qual apresentava, à data do seu óbito, o saldo de €10.185,70, tendo sido encerrada em 12 de novembro de 2020 (cfr. ofício do Banco 1..., datado de 15/04/2024 – referência citius n.º 2449637).
7- Através da Ap. ...12, a propriedade do trator agrícola da marca ..., com a matrícula ..-..-DQ, encontra-se registada, desde o dia ../../2008, a favor do interessado mencionado em 4) dos factos provados (cfr. documento n.º 1, junto com a reclamação contra a relação de bens e certificado de matrícula junto com o requerimento datado de 22/10/2020).
8- O registo de propriedade mencionado em 7), foi efetuado através do preenchimento e assinatura do respetivo formulário por parte dos interessados mencionados em 3) e 4) dos factos provados, nomeadamente, do preenchimento e assinatura individual do Modelo n.º 4 – Requerimento de registo de propriedade referente a outras causas de aquisição da propriedade, onde cada um dos interessados preencheu os campos referentes: ao veículo objeto de transmissão (identificando o referido trator); ao adquirente, identificando-se a si próprio, sendo que no caso da interessada mencionada em 3) dos factos provados, além da assinatura por si exarada no referido formulário, consta a menção “declaro que desisto da minha quota parte a favor do co-herdeiro DD”, menção esta que está exarada logo acima do campo da assinatura; ao transmitente, identificando o inventariado mencionado em 2) dos factos provados; ao ato que deu origem à aquisição, tendo os interessados indicado sucessão por morte (cfr. tudo o que antecede, conforme documento n.º 1, junto com a reclamação contra a relação de bens).
9- A menção “declaro que desisto da minha quota parte a favor do co-herdeiro DD” já constava do referido formulário aquando da assinatura da interessada mencionada em 3).
10- O pulverizador e a gadanheira (cfr. verbas n.os 15 e 16, da relação de bens) foram adquiridos por EE, no âmbito de um projeto agrícola cujo beneficiário era o apontado EE.
11- Do acervo hereditário dos inventariados mencionados em 1) e 2), fazia parte, pelo menos, uma motosserra.
12- Com base na menção inserida no formulário mencionado em 8), foi apresentada, pela interessada mencionada em 3), queixa-crime contra o interessado mencionado em 4), vindo a ser instaurado o inquérito com n.º 175/20.2T9MGD, onde figurou como arguido o interessado mencionado em 4) e se investigou a prática de factos suscetíveis de configurar a prática de um crime de falsificação de documento e/ou um crime de burla, tendo o referido inquérito vindo a ser arquivado por falta de indícios suficientes e, ainda, por força de o procedimento criminal referente aos aludidos crimes ter sido declarado extinto, por efeito da prescrição (cfr. certidão do mencionado processo – referência citius n.º 2496189).
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E julgou não provada a facticidade que se segue:
A- Após a morte do inventariado mencionado em 2), os interessados mencionados em 3) e 4) dividiram o saldo existente na conta mencionada em 6) dos factos provados.
B- Da conta mencionada em 6) dos factos provados constava como titular EE (cfr. ofício do Banco 1..., datado de 15/04/2024 – referência citius n.º 2449637).
C- O interessado mencionado em 4) dos factos provados, procedeu ao levantamento da quantia mencionada em 6) dos factos provados, utilizando para o efeito um cheque emitido pelo seu próprio punho, forjando a assinatura do inventariado mencionado em 2).
D- Na sequência do óbito do inventariado mencionado em 2) dos factos provados, havia a necessidade legal, no âmbito da apresentação da relação de bens na repartição das finanças, de fazer a transição do trator para os interessados mencionados em 3) e 4) dos factos provados.
E- A transferência de propriedade do referido trator só ocorreu no ano de 2020, tendo sido o interessado mencionado em 4) ou alguém a seu mando que, na data referida, acrescentou, no formulário mencionado em 8), a menção “declaro que desisto da minha quota parte a favor do co-herdeiro DD”.
F- A menção “declaro que desisto da minha quota parte a favor do co-herdeiro DD” não foi exarada no formulário referido em 8) dos factos provados pelo punho da interessada mencionada em 3).
G- Do acervo hereditário dos inventariados mencionados em 1) e 2), fazia parte um reboque no valor de €300,00 (cfr. verba n.º 10 da relação de bens), o qual foi pago pelos inventariados.
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IV- DA FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

A- Da rejeição do recurso por extemporaneidade
Advoga o recorrido que o presente recurso é extemporâneo, uma vez que não lhe é aplicável “o acréscimo dos 10 dias prescrito no nº 7 do artigo 638º do C.P.Civil”, pois “não basta apenas à recorrente não concordar com a fundamentação e o julgamento da matéria de facto dada como provada e não provada”, sendo necessário que cumpra com os ónus impugnatórios prescritos do art. 640º, sob pena do recurso quanto à impugnação do julgamento de facto ter de ser rejeitado.  Adianta que aquela consequência tem de ser extraída “sob pena de, desprezando-se a sindicância dos fundamentos e crivos legais que resultam da conjugação dos requisitos impostos pelos arts. 640º, nº 1 e 638º, nº 7 do CPC, o excecional acréscimo de dez dias ao prazo de recurso de 30 ou 15 dias se tornar no prazo regra de recurso (posto que, assim, qualquer decisão proferida após instrução da causa através de meios de prova oralmente produzidos permitiria sempre, sem exceção, invocar uma alegada impugnação à decisão da matéria de facto).
Em abono da posição jurídica que propugna invoca os ensinamentos doutrinários de Abrantes Geraldes e vária jurisprudência que a corroborarão, o que, antecipe-se, desde já, não é certo, conforme decorre da simples leitura da obra e dos acórdãos que identifica.
Está em causa saber se a recorrente pode beneficiar do alongamento do prazo de recurso do n.º 7 do art. 638º do CPC (diploma a que se respeitam todas as normas legais que se venham a citar sem referência em contrário), em que se estabelece que: “Se o recurso tiver por objeto a reapreciação da prova gravada, ao prazo de interposição e de resposta acrescem 10 dias”.
O presente recurso vem interposto da decisão que recaiu sobre a reclamação apresentada pelo recorrido contra a relação de bens apresentada pela cabeça de casal (recorrente) no âmbito do processo de inventário a que se procede por óbito dos pais de ambos.
Nos termos do art. 1123º, n.º 1, aplicam-se ao processo de inventário as disposições gerais do processo de declaração sobre a admissibilidade, os efeitos, a tramitação e o julgamento dos recursos, o que significa que, sem embargo das especificidades que decorrem da natureza, da estrutura e das finalidades do processo de inventário que demandam a regulação especial constante dos n.ºs 2 a 5 daquele art. 1123º, em matéria de recurso, em tudo o que não se encontre especialmente regulado nesses preceitos, são  aplicáveis ao processo de inventário as normas gerais previstas no CPC para o processo declarativo, onde se incluem as dos arts. 627º a 643º sobre os pressupostos e os requisitos formais a que obedece a impugnação de decisões judiciais, assim como todas as normas que regulam os efeitos, a tramitação e o julgamento dos recursos ordinários dos arts. 644º a 695º.
No âmbito do CPC de 1961, constituía entendimento geral que a decisão sobre a reclamação contra a relação de bens apresentada pela cabeça de casal não era qualificada como incidente autónomo para efeitos de interposição de recurso com subida imediata, pelo que se considerava que essa decisão não admitia recurso autónomo e imediato.
Acontece que o referido entendimento foi expressamente afastado pelo atualmente vigente art. 1123º, n.º 2, al. b), onde se consagrou a solução de que cabe apelação autónoma das decisões de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar e da forma à partilha, por se ter entendido que incidem sobre matérias que se revelam cruciais para a subsequente fase do processo de inventário e que, por isso, devem ficar sujeitas a reapreciação imediata, como forma de conferir utilidade e eficácia à tramitação processual subsequente do processo de inventário[2].
A decisão recorrida conheceu da reclamação apresentada pelo recorrido contra a relação de bens apresentada pela cabeça de casal e, por isso, conheceu do mérito do inventário, ao determinar os bens que integram as heranças abertas por óbito dos neles inventariados e, assim, quais os concretos bens que nele terão de se partilhar. Daí que, nos termos do art. 644º, n.º 1, al. b), ex vi art. 1123º, n.º 1, o recurso a interpor da decisão recorrida se encontra submetido ao prazo geral de recorribilidade de trinta dias fixado no art. 638º, n.º 1, 1ª parte.
Acontece que a esse prazo geral de 30 dias, conforme antes já enunciado, acresce o prazo de 10 dias nos casos em que o recurso interposto tenha por objeto a reapreciação da prova gravada (n.º 7 do art. 638º).
Essa extensão do prazo para recorrer destina-se a permitir ao recorrente o cumprimento dos especiais ónus impugnatórios do art. 640º, n.ºs 1 e 2, al. a) quando o recurso por ele interposto tenha por objeto a reapreciação de prova gravada[3].
Por outro lado, estabelecendo o n.º 3 do art. 635º que nas conclusões da alegação pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objeto inicial do recurso, daqui deriva que são as conclusões de recurso que delimitam o objeto deste, em que o recorrente enuncia as questões de facto e/ou direito pelas quais pretende que o tribunal ad quem anule, revogue ou modifique a decisão recorrida e assim delimita o campo de cognição e de decisão do último, ou seja, o thema decidendum a que vê a sua atividade cognitiva e decisória circunscrita e do qual não se pode apartar, sob pena de incorrer em nulidade por excesso de pronúncia, salvo se se tratar de questão que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, n.º 2 e 615º, n.º 1, al. d), parte final) [4].
Sendo assim as conclusões que delimitam o campo de cognição e de decisão do tribunal de recurso, daqui deriva que, para que o recorrente possa beneficiar da extensão do prazo de recurso do n.º 7 do art. 638º, por um lado, nas conclusões de recurso tem de indicar os concretos pontos da matéria de facto julgada provada ou não provada pelo tribunal recorrido que impugna (sob pena da impugnação do julgamento de facto não fazer parte do thema decidendum colocado à apreciação e decisão do tribunal de recurso e, por isso, não poder beneficiar da dita extensão do prazo de recurso daquele n.º 7, ainda que na antecedente motivação do recurso resulte ser seu propósito impugnar o julgamento de facto realizado pelo tribunal a quo mediante recurso a prova gravada) e, por outro, tem de resultar da  sua alegação que funda aquela impugnação em prova gravada.
Destarte, contrariamente ao entendimento sufragado pelo recorrido, desde que a recorrente indique nas conclusões de recurso os concretos pontos da matéria de facto que impugna (com o que elege esses concretos pontos do julgamento de facto como questão a apreciar e a decidir pelo tribunal de recurso e, por isso, como integrando o thema decidendum que pretende que aquele aprecie e decida), e na antecedente motivação de recurso (ou indevidamente, nas conclusões) apele a prova gravada como fundamento da impugnação daqueles concretos pontos da matéria de facto que indicou nas conclusões, tanto bastará para que seja aplicável ao recurso que interpôs a extensão do prazo de recurso de dez dias do n.º 7 do art. 638º, independentemente de cumprir ou não os ónus impugnatórios do julgamento de facto enunciados, de modo taxativo, no art. 640º, n.ºs 1 e 2, al. a) ou do mérito ou demérito dessa impugnação.
Com efeito, o único requisito legal fixado pelo n.º 7 do art. 638º para a aplicação da extensão do prazo de dez dias que prevê é que o recurso tenha “por objeto a reapreciação da prova gravada”, o que exige: primo – que do thema decidendum que o recorrente submete à apreciação e decisão do tribunal de recurso faça parte a impugnação do julgamento de facto realizado pelo tribunal a quo (o que demanda que tenha necessariamente incluído nas conclusões de recurso a impugnação do julgamento de facto, indicando nelas os concretos pontos da facticidade julgada provada e/ou julgada não provada que impugna); e secundo: que essa impugnação do julgamento de facto assente na reapreciação de prova gravada (o que exige que nas conclusões ou, mais corretamente  - conforme infra se demonstrará -, na antecedente motivação apele a prova gravada como fundamento da impugnação do julgamento de facto que opera), independentemente de cumprir ou não com os ónus impugnatórios do julgamento de facto do art. 640º, n.ºs 1 e 2, al. a) (que são meros pressupostos ou requisitos processuais de que depende a possibilidade do tribunal de recurso entrar na apreciação daquela impugnação[5]) ou do mérito ou demérito dessa impugnação, os quais não são pressupostos de que o n.º 7 do art. 638º faça depender a concessão da extensão do prazo de recurso que prevê.
Entendimento contrário seria, aliás, confundir o prazo legal que é concedido ao recorrente  para recorrer quando impugne o julgamento de facto com base em prova gravada, com os ónus impugnatórios do julgamento de facto enunciados de modo taxativo no art. 640º, n.ºs 1 e 2, al. a), os quais, conforme antedito, constituem requisitos ou pressupostos de ordem processual para que seja consentido ao tribunal de recurso entrar na apreciação da impugnação do julgamento de facto[6].
Neste sentido expende Abrantes Geraldes que “o recorrente apenas poderá beneficiar deste prazo alargado se integrar no recurso conclusões que envolvam efetivamente a impugnação da decisão da matéria de facto tendo por base depoimentos gravados, nos termos do art. 640º, n.º 2, al. a), independentemente da verificação dos demais requisitos legais da impugnação ou sequer do respetivo mérito”[7] (destacado nosso).
No mesmo sentido se tem pronunciado a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, indicando-se, a título exemplificativo, os seguintes arestos, cujos sumários constam do seguinte:
 - Ac. STJ., de 03/11/2023, Proc. 11973/20.7T8PRT.P1
 “Sempre que o recurso tenha por objeto a reapreciação da prova gravada o recorrente deve beneficiar do prazo geral de dez dias concedido pelo art. 80º, n.º 3 do CPT (equivalente ao art. 638º, n.º 7 do CPC), mesmo que, porventura, não cumpra com os ónus previstos no art. 640º do CPC e, por hipótese, não indique com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, nem proceda a transcrições, desde que nas conclusões do recurso invoque depoimentos de testemunhas”;
Ac. STJ., de 30/03/2022, Proc. 23234/18.7T8LSB.L1.S1
“O acréscimo de 10 dias no prazo para interpor recurso previsto no art. 80º, n.º 3 do CPT não depende do cumprimento dos ónus de impugnação e muito menos do mérito da impugnação, dependendo sim de a impugnação da matéria de facto visar a reapreciação da prova gravada”.
Ac. STJ., de 14/09/2021, Proc. 18853/17.1T8PRT.P1.S1
“Na avaliação da tempestividade de um recurso, tendo sido feito uso do alargamento do prazo previsto no art. 638º, n.º 7 do CPC, há que se verificar se faz parte do objeto desse recurso a reapreciação de prova gravada, o que é independente da observância dos ditames do art. 640º do CPC”;
Ac. STJ., de 30/06/2020, Proc. 310/17.8T8CBT.G1-S1
“A extensão do prazo de 10 dias para a interposição de recurso de apelação prevista no n.º 7 do art. 638º do CPC pressupõe que no objeto do recurso sejam integradas questões atinentes à impugnação da decisão da matéria de facto com base em prova que tenha sido gravada. O objeto do recurso é definido essencialmente pelas conclusões do recurso, incluindo nos casos em que seja deduzida a impugnação da matéria de facto”; e
Ac. STJ., de 11/04/2018, Proc. 4053/15.9T8CSC.L1-S1
“O incumprimento pelo recorrente dos ónus previstos no art. 640º, n.º 1 do CPC não acarreta necessariamente que o recurso seja considerado como versando apenas sobre matéria de direito, com a consequente exclusão da aplicação do n.º 3 do art. 80º do CPT havendo, antes, que aplicar tal preceito e conceder o prazo adicional nele previsto quando resulte do recurso intentado, mormente das suas alegações, que o mesmo tinha por objeto a reapreciação da prova gravada”[8].
Dito por outras palavras, a apreciação do modo como foram preenchidos pelo recorrente os ónus impugnatórios do julgamento de facto enunciados no art. 640º, n.ºs 1 e 2, al. a) poderá naturalmente condicionar (e condiciona) o conhecimento dessa impugnação por parte do tribunal de recurso, mas não coloca em crise a tempestividade do recurso de apelação que tenha sido apresentado dentro do prazo alargado quando o recorrente, nas alegações de recurso, proceda à efetiva impugnação do julgamento da matéria de facto com fundamento, total ou parcial, em prova gravada, independentemente de, posteriormente, se impor a rejeição dessa impugnação, por incumprimento daqueles ónus impugnatórios[9].
Assentes nas premissas que se acabam de enunciar, nas conclusões de recurso a recorrente impugnou o julgamento de facto quanto à facticidade julgada provada nos pontos 8º, 9º e 10º e a julgada não provada nas alíneas D, E, F e G (cfr. conclusões 1ª e 2ª), com o que submeteu expressamente a impugnação dessa facticidade à apreciação do tribunal de recurso, a qual integra, assim, o objeto do presente recurso, ou seja, o thema decidendum que lhe submeteu e que, em princípio, este terá de apreciar sob pena de incorrer em nulidade por omissão de pronúncia.
Por outro lado, basta a simples leitura do teor das conclusões 10ª e 11ª, mas igualmente a antecedente motivação de recurso apresentada pela recorrente, para se concluir linearmente que aquela funda a impugnação do julgamento da matéria de facto na reapreciação de prova gravada, mais concretamente, nas declarações de parte prestadas pela própria e nos depoimentos prestados pelas testemunhas que identifica, tanto bastando para que ao presente recurso seja aplicável a extensão do prazo de recurso de dez dias do n.º 7 do art. 638º, independentemente da recorrente ter (ou não) cumprido com os ónus impugnatórios do julgamento de facto do art. 640º, n.ºs 1, als. b) e c) e 2, al. a) ou do mérito ou demérito dessa impugnação.
A decisão recorrida foi notificada à mandatária da recorrente via Citius, em 26/03/2025, pelo que, tendo em consideração o disposto nos arts. 247º, n.º 1 e 248º, presume-se que essa decisão foi notificada à recorrente em 31/03/2025, pelo que o prazo de 40 dias (30 dias + 10 dias) para aquela dela interpor recurso (excluído o período de férias judiciais de Páscoa, atento o preceituado no art. 138º, n.º 1 e a consideração que o processo de inventário não tem natureza urgente) terminou em 20 de maio de 2025, data em que deu entrada em juízo o requerimento de interposição do recurso.
Decorre do que se vem dizendo que, contrariamente ao pretendido pelo recorrido, o presente recurso foi interposto em tempo, devendo, por isso, improceder a questão prévia por ele suscitada quanto à sua pretensa extemporaneidade, o que se decide.   

B- Do (in)cumprimento dos ónus impugnatórios do julgamento de facto
Sustenta o recorrido que a recorrente não deu cumprimento aos ónus impugnatórios do julgamento de facto, pelo que, na sua perspetiva, se impõe a imediata rejeição do recurso quanto ao julgamento de facto por ela impugnado, urgindo, por isso, verificar se lhe assiste razão, uma vez que, em caso de incumprimento daqueles ónus impugnatórios, tal impede que o tribunal de recurso possa entrar no conhecimento da impugnação, determinando a imediata rejeição do recurso quanto a ela.

Estabelece o art. 640º que:
“1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (sublinhado nosso).
As disposições acabadas de transcrever enunciam os ónus impugnatórios do julgamento de facto quanto a facticidade submetida ao princípio regra (no âmbito do processo civil nacional) da livre apreciação da prova, cujo cumprimento é imposto ao recorrente com a finalidade de evitar a interposição de recursos de pendor genérico e à salvaguarda cabal do princípio do contraditório[10], uma vez que o recorrido apenas ficará habilitado de todos os elementos necessários para organizar a sua defesa, em sede de contra-alegações, quando lhe seja dado a conhecer: a concreta materialidade fáctica julgada provada e/ou não provada que é impugnada pelo recorrente; qual a concreta decisão que, na sua perspetiva, deverá recair sobre essa matéria; quais os específicos elementos de prova em que funda a impugnação; e, bem assim, qual a lógica de raciocínio percorrida na valoração e conjugação daqueles meios de prova, de modo a evidenciar que o raciocínio probatório seguido pela 1ª Instância é injustificado e consubstancia um exercício incorreto da hierarquização dos parâmetros de credibilização dos meios de prova, ou seja, que é inconsistente, e antes inculca a versão dos factos que propugna, por ser a que atinge o patamar da probabilidade prevalecente[11].
A propósito dos ónus impugnatórios do julgamento de facto, cumpre enfatizar ser entendimento consolidado do STJ impor-se distinguir entre: ónus impugnatórios primários e ónus impugnatórios secundários.
Os ónus impugnatórios primários são os que se encontram tipificados no n.º 1 do art. 640º e relacionam-se com o mérito ou demérito do recurso. Em relação a eles entende-se que a sua apreciação deve ser feita de acordo com um critério de rigor em sentido estrito, impondo-se a imediata rejeição do recurso quanto à matéria de facto impugnada quando o recorrente incumpra com qualquer um deles, sem prejuízo das atenuações infra indicadas em nota de rodapé quanto ao enunciado critério de rigor.
Por sua vez, os ónus impugnatórios secundários encontram-se discriminados na al. a) do n.º 2 do art. 640º e prendem-se com a observância de requisitos formais, destinados a facilitar a localização da prova pessoal gravada no suporte técnico que contenha a gravação em que o recorrente funda a impugnação do julgamento de facto. O não cumprimento perfeito ou exato destes não tem como efeito automático a rejeição do recurso, uma vez que a falta cometida deverá ser apreciada à luz dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da proibição do excesso, não se justificando a rejeição do recurso quando não exista dificuldade relevante na localização (pelo recorrido e pelo tribunal de recurso) dos excertos da gravação em que o recorrente funda a impugnação[12].
Acresce precisar que, atento o disposto no n.º 4 do art. 635º, as conclusões exercem a função essencial de delimitação do objeto do recurso, sendo nelas fixado o thema decidendum a que o tribunal ad quem vê a sua atividade decisória balizada. Dito por outras palavras, o recorrente tem, nas conclusões, de indicar, de forma rigorosa, os concretos pontos da matéria de facto julgada provada e/ou julgada não provada que impugna. Ou seja, nas conclusões de recurso o recorrente tem de dar cumprimento ao ónus impugnatório primário da al. a) do n.º 1 do art. 640º, especificando os concretos pontos da matéria de facto que impugna, sob pena de se ter de rejeitar a impugnação do julgamento de facto, por falta de objeto.
Quanto aos restantes ónus impugnatórios primários das als. b) e c) do n.º 1, e secundários da al. a) do n.º 2, ambos do art. 640º, na medida em que não exercem uma função individualizadora das questões submetidas pelo recorrente ao tribunal ad quem, não têm/devem constar das conclusões de recurso, mas sim da motivação[13].
Revertendo ao caso dos autos, a recorrente deu cumprimento cabal ao ónus impugnatório primário da al. a) do n.º 1 do art. 640º, na medida em que, nas conclusões de recurso, indicou a concreta matéria de facto que impugna (os pontos 8º, 9º e 10º dos factos julgados provados e as alíneas D, E, F e G dos factos julgados não provados).
No que respeita ao ónus impugnatório primário da al. b), do n.º 1 daquele art. 640º, a recorrente também deu cumprimento a esse ónus impugnatório, na medida em que indicou na motivação do recurso (e, inclusivamente, erroneamente – vide fundamentos jurídicos supra – nas conclusões), os concretos meios de prova em que funda a impugnação (a impugnação que opera quanto à facticidade julgada provada nos pontos 8º e 9º e da julgada não provada nas als. D, E e F - os quais, porque versam sobre a mesma realidade fáctica e, por isso, a impugnação do julgamento de facto por ela operada se funda naturalmente nos mesmos meios de prova, sendo, por isso, de aceitar que, nessas específicas situações, a impugnação seja feita em bloco[14] - funda-se nas declarações prestadas pelo recorrido no âmbito dos autos de inquérito n.º 175/20.2T9MGD; nas declarações de parte prestadas pela própria recorrente e nos depoimentos prestados pelas testemunhas DD, JJ e JJ, enquanto a impugnação da facticidade julgada provada no ponto 10º e a julgada não provada na al. G, se funda nos mesmos elementos de prova, a que acresce o depoimento prestado pela testemunha KK).
No entanto, a recorrente não deu cumprimento ao ónus impugnatório primário da al. c) do n.º 1 do art. 640º, na medida em que não indicou a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto que impugnou (provado que…; não provado que…), ou seja, qual a resposta que deveria recair quanto à facticidade julgada provada pelo tribunal a quo em relação a cada um dos pontos 8º e 9º e em cada uma das alíneas D, E e F dos factos que julgou não provada e cujo julgamento de facto assim realizado impugna.
Com efeito, na motivação de recurso (e, bem assim, nas conclusões), a recorrente limitou-se alegar que: “Contudo, estamos em crer que os factos dados como provados em 8, 9 e 10, estão incorretamente julgados. E os factos dados como não provados em D, E, F e G estão de igual modo incorretamente julgados”.
Debruçando-se especificamente sobre a facticidade julgada provada nos pontos 8 e 9 na sentença recorrida, a recorrente limitou-se a alegar: “Com efeito, os pontos 8 e 9 dos factos provados estão incorretamente julgados, porque (…)”, passando de seguida a enunciar os meios de prova que, na sua perspetiva, serão demonstrativos dessa sua ilação conclusiva e, concluiu: “Assim como, os factos dados como não provados nas alíneas D, E e F, pelas mesmas razões acima e anteriormente expostas”.
Em suma, a recorrente apenas se limitou a alegar de forma conclusiva que a facticidade julgada provada pela 1ª instância nos pontos 8 e 9 e a que julgou não provada nas alíneas D, E e F está incorretamente julgada, a identificar os concretos meios de prova que fundam/alicerçam essa ilação conclusiva, sem que nunca tivesse chegado a indicar qual a resposta que, em seu entender, esses meios de prova que identifica impõem que fosse dada quanto à matéria fática que consta de cada um dos identificados pontos 8 e 9 dos factos julgados provados e nas alíneas D, E e F dos factos julgados não provados que impugna, com o que incumpriu, inequívoca e frontalmente, o ónus impugnatório da al. c) d n.º 1 do art. 640º.
O que se acaba de dizer é igualmente aplicável à facticidade julgada provada no ponto 10º e a julgada não provada na alínea D, em relação à qual a recorrente também se limitou a alegar que: “Também o ponto 10 dos factos provados está incorretamente julgado. Assim como o facto vertido na al. G dos factos não provados”. Após, a recorrente passou a enunciar os concretos meios de prova que ilustram essa sua ilação e em que, consequentemente funda a impugnação, a propósito do que, na motivação do recurso escreveu:
“Pois, o pulverizador e a gadanheira, não foram adquiridos por EE, no âmbito de um projeto agrícola cujo beneficiário era o apontado EE. E o reboque, e uma segunda motosserra faziam parte do acervo hereditário dos inventariados, pais da cabeça de casal e do interessado. Pelo que, ao invés de os ter eliminado, als. c), d), e) e f) da decisão, devia tê-los mantido, na relação de bens. Com base, no depoimento das testemunhas já indicadas, e da testemunha KK, ouvida no dia 13.06.2024,  cfr. ata para que se remete, com início pelas 11h25m e fim pelas 11h24m, gravado no sistema integrado de gravação digital, em uso neste tribunal. Os Inventariados, ab initio da compra do primeiro trator, sempre tiveram pulverizadore gadanheira, utensílios que o EE nunca teve, porque nunca comprou, tratando-se de uma fatura falsa para efeitos de IFADAP, tal como explicou a testemunha da cabeça de casal JJ, as demais testemunhas por si arroladas e a própria.
Procedeu-se à produção da prova arrolada, sendo que as testemunhas do Interessado, LL, MM e NN, nada demonstraram saber acerca dos factos, escudando-se num depoimento pouco credível, ténue, falacioso, que o tribunal por certo, não deveria ter tido em atenção, e valorado, como valorou. O LL, ouvido em 21.05.024, cfr. ata para que se remete, depoimento gravado, com início pelas 14h25m e fim pelas 14h45m, referiu que os pais tinham um trator agrícola, o pai trocou o ... para o .... O pouco que eu sei, tem estado em casa do meu padrinho. Consta-se as alfaias pertencem ao EE. O MM, ouvido em 21.05.024, cfr. ata para que se remete, com início pelas 14h55m e fim pelas 15h10m, referiu que não sabe quem comprou as motosserras, quando faleceram os pais que havia bens a partilhar, não sabe, não foram partilhados, era dos pais dela, por causa de ter visto os documentos. A testemunha NN, ouvida em 21.05.2024, cfr. ata para que se remete, depoimento gravado no sistema em uso no Tribunal, referiu dar-se mais do que com a irmã, que vive em ..., vinha todos os fins de semana, e chegou a vê-la em dia que não era fim de semana, morreu o pai, o trator foi para casa dele, os documentos não os viu. O atomizador está no projeto do EE.
Ao invés, as testemunhas arroladas pela cabeça de casal, e ouvidas, a cujos depoimentos já fizemos referência, identificando-os com remessa para as atas, a que respeitam, DD, BB, JJ e KK, mostraram conhecimento direto dos factos, depondo de modo sereno, objetivo, credível e que deveria ter sido valorado, assim como o depoimento prestado pela cabeça de casal em sede de declarações de parte.
Com efeito, a cabeça de casal, conhecia bem, todas as alfaias agrícolas propriedade dos Inventariados, designadamente as que relacionou, e que existiam à data da morte dos seus pais, o reboque, o pulverizador de trator, a gadanheira de pente duplo, a motosserra. Que o pulverizador e a gadanheira foram pagos com dinheiro dos seus pais, e que a fatura foi emitida em nome do EE porque tais bens tinham integrado um projeto agrícola do mesmo, e que o EE nunca se tinha arrogado proprietário dos mesmos. O mesmo resulta do depoimento da testemunha DD, que conhecia a casa agrícola dos avós e as alfaias agrícolas que tinham, enumerando as relacionadas, e referindo que o interessado DD, tirou tudo da curralada, que os avós tinham umas charruas, duas motosserras, reboque, pulverizador, gadanheira. Também do depoimento prestado pela testemunha JJ, resultou que os bens dos avós, desapareceram, utilizando a expressão “inexistentes”. A verdade é que não há alfaias, saíram da curralada, sim, toda a vida, eram do meu avô, tinha muito gosto pela agricultura. De igual modo, resulta das declarações prestadas por JJ, que os Inventariados tinham reboques, pulverizador de trator, até lho chegaram a emprestar para utilizar na aldeia dele, gadanheira de pente duplo, motosserras, e que já se encontravam em casa dos Inventariados em momento anterior ao projeto do EE, apenas os integraram no projeto deste, pagando apenas o IVA da fatura, com vista a fazer integrar a mesma no projeto, mas na prática o EE não adquiriu esses bens. Por fim, a testemunha KK, vizinha dos pais, inventariados, sabia que tinham bens, o Inventariado ia à lenha e cortava-a com a motosserra.
Tinha, pois, o Tribunal, dados mais do que suficientes, para ter mantido na relação de bens, o trator, verba n.º 8, o reboque, verba n.º 10, o pulverizador de trator, verba n.º 15, a gadanheira de pente duplo, verba n.º 16, e a motosserra, verba n.º 20. Considerando a impugnação do inventário, como lhe chama o Interessado, e a reclamação de bens, apresentada, nesta matéria improcedente por não provada, com as legais consequências”.
Conforme decorre da alegação da recorrente que se acaba de transcrever, quanto à facticidade julgada provada na sentença no ponto 10º e a nela julgada não provada na alínea G, aquela não indicou qual a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre aqueles ponto e alínea, incumprindo também quanto a eles o ónus impugnatório primário da al. c) do n.º 1 do art. 640º.
Aliás, quanto à verba n.º 20 da relação de bens que apresentou, a recorrente pretende que se julgue a reclamação apresentada pelo recorrido quanto a essa verba improcedente e, em consequência, se mantenham as duas motosserras nela relacionadas como integrando o património das heranças a partilhar, quando sobre essa matéria versa a facticidade julgada provada no ponto 11ª da sentença sob sindicância que aquela não impugnou e que, por isso, se encontra definitivamente estabilizada, levando necessariamente à improcedência dessa pretensão.
Decorre do que se vem dizendo que, quanto ao julgamento da matéria de facto que impugna (pontos 8, 9 e 10 dos factos julgados provados na sentença recorrida e alíneas D, E, F e G dos factos nela julgados não provados), a recorrente não cumpriu com o ónus impugnatório primário da al. c) do n.º 1 do art. 640º, o que determina a imediata rejeição do recurso quanto à impugnação desse julgamento.
Acresce que a impugnação do julgamento de facto operada pela recorrente tem também de ser rejeitada com fundamento no incumprimento do ónus impugnatório secundário da al. a) do n.º 2 do art. 640º, na medida em que não indicou o início e o termo dos excertos (isto é, das passagens) das declarações de parte prestadas pela própria e dos depoimentos testemunhais em que funda a impugnação, conforme lhe era imposto pela norma acabada de referir, mas o que fez foi indicar o início e o termo das declarações de parte e dos depoimentos prestados por cada uma das testemunhas em que funda a impugnação.
Não obstante o incumprimento do referido ónus impugnatório secundário não tenha como consequência necessária a rejeição do recurso quanto ao julgamento de facto impugnado, uma vez que a falta cometida tem de ser apreciada à luz dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da proibição do excesso, que vedam aquela rejeição quando não existam dificuldades relevantes na localização pelo recorrido (e pelo tribunal de recurso) dos excertos em que funda a impugnação, essa não é a situação dos autos. É que neles a recorrente não procedeu à transcrição do(s) excerto(s) das declarações de parte que prestou e dos depoimentos das testemunhas em que funda a impugnação – isto é, não transcreveu ipsis verbis a passagem ou passagens quanto ao que por ela e pelas testemunhas foi dito, respetivamente, em sede de declarações de parte e depoimentos testemunhais em que funda a impugnação, por serem demonstrativos em ter o julgador a quo incorrido em erro, por esses  excertos, quando submetidos às regras do normal acontecer, imporem julgamento de facto diverso do por ele realizado, por ser o que atinge o patamar da probabilidade prevalecente.  A recorrente limitou-se a enunciar aquilo que, na sua perspetiva, por ela e pelas testemunhas que identifica terá sido dito em audiência, fazendo, por isso, uma interpretação subjetiva daquilo que se extrai dessas suas declarações e depoimentos testemunhais, o que, para além de não consubstanciar “transcrição dos excertos que considera relevantes” e, em que funda a impugnação, impede naturalmente que o tribunal do recurso e o recorrido possam detetar o(s) concreto(s) excerto (s) daquelas declarações e depoimentos que permitam (ou não) extrair a interpretação subjetiva que lhes é dada pela recorrente.
Decorre do exposto, impor-se rejeitar o recurso do julgamento de facto impugnado pela recorrente, por incumprimento do ónus impugnatório primário da al. c) do n.º 1 e do ónus impugnatório secundário da al. a) do n.º 2, ambos do art. 640º, o que se decide, pelo que o julgamento de facto realizado pela 1ª Instância se mantém inalterado.

C- Mérito – prejudicado

Os erros de direito que a recorrente assacou à decisão de mérito constante da sentença recorrida (no segmento em que julgou a reclamação à relação de bens por si apresentada, enquanto cabeça de casal, parcialmente procedente e, em consequência, ordenou a eliminação daquela relação de bens do trator agrícola da marca ...”, com a matrícula ..-..-DQ, relacionado sob a verba n.º 8; do reboque, relacionado sob a verba n.º 10; de um pulverizador de trator, relacionado sob a verba n.º 15; de uma gadanheira de pente duplo, relacionada sob a verba n.º 16, e de uma motosserra, relacionada sob a verba n.º 20), encontrava-se dependente do êxito da impugnação do julgamento da matéria de facto, com exceção da motosserra (verba n.º 20), uma vez que a recorrente não impugnou a facticidade julgada provada pela 1ª Instância no ponto 11º, pelo que, à partida, aquele erro de direito por ela assacado quanto à motosserra estava votado ao fracasso.
Ora, pelos fundamentos acima indicados, tendo-se rejeitado a impugnação do julgamento de facto operada pela recorrente, mantendo-se, em consequência, inalterado o julgamento de facto realizado pela 1ª Instância, encontra-se necessariamente prejudicado o conhecimento dos erros de direito que aquela assaca à sentença recorrida, o que se declara.
Decorre do excurso antecedente, impor-se julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

D- Das custas

Nos termos do disposto no art. 527º, n.ºs 1 e 2, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento, quem do recurso tirou proveito. Entende-se que dá causa às custas do recurso a parte vencida, na proporção em que o for.
No caso, a recorrente ficou totalmente vencida, pelo que as custas do recurso devem ficar a seu cargo.
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V- Decisão

Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, acordam em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
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As custas do recurso ficam a cargo da recorrente, dado ter ficado vencida (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.
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Guimarães, 04 de novembro de 2025

José Alberto Moreira Dias – Relator
Rosália Cunha – 1ª Adjunta
Susana Raquel Sousa Pereira – 2ª Adjunta
           

[1] Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, vol. II, 2015, Almedina, págs. 395 e 396.
[2] Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, “O Novo Regime do Processo de Inventário e outras Alterações na Legislação Processual Civil”, Almedina, 2020, págs. 138 e 139.
[3] Ac. STJ., de 01/03/2007, Proc. 06S979, in base de dados da DGSI, onde constam todos os acórdãos que se venham a citar sem referência em contrário.
[4] Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., Almedina, pág. 147.
[6] Ac. do STJ., de 28/04/2016, CJ/STJ, tomo I, pág. 213, em que cujo sumário se lê: “A extensão do prazo de 10 dias previsto no art. 638º, n.º 7, para apresentação do recurso de apelação quando tenha por objeto a reapreciação de prova gravada depende unicamente da apresentação de alegações em que a impugnação da decisão da matéria de facto seja sustentada, no todo ou em parte, em prova gravada, não ficando dependente da apreciação do modo como foi exercido o ónus de alegação. Tendo o recorrente demonstrado a vontade de impugnar a decisão da matéria de facto com base na reapreciação de prova gravada, a verificação da tempestividade do recurso de apelação não é prejudicada ainda que houvesse motivos para rejeitar a impugnação da matéria de facto com fundamento na insatisfação de algum ónus previstos no art. 640º, n.º 1”. E na fundamentação desse aresto adianta-se: “Tendo o recurso sido apresentado dentro do prazo acrescido, a sua tempestividade ficou unicamente dependente da inserção nas respetivas alegações de um segmento em que, independentemente do seu mérito, seja efetivamente impugnada uma parte da decisão da matéria de facto com sustentação em prova gravada. Ao invés do que foi decidido pela Relação, não pode ser feita qualquer associação entre a admissibilidade formal da impugnação da decisão da matéria de facto e a tempestividade do recurso de apelação”.
[7] Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 140.
No mesmo sentido Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., Almedina, pág. 793, em que defendem: “Na apelação, pretendendo impugnar a decisão da matéria de facto a partir da reapreciação de meio de prova gravados (e apenas neste caso), o recorrente beneficia de um acréscimo de 10 dias. Para o efeito, é necessário que a alegação apresentada pelo recorrente, ou seja, a peça que define o objeto do recurso, contenha alguma impugnação da decisão proferida acerca de matéria de facto a partir da reponderação de meios de prova que, tendo sido prestados oralmente, tenham ficado registados, independentemente do juízo que ulteriormente seja feito acerca do cumprimento do ónus de indicação das passagens da gravação ou de qualquer outro requisito previsto no art. 640º”.
[8] Acs. STJ., de 24/10/2019, Proc. 3150/13.0TBPTM.E1.S1; de 09/02/2018, Proc. 471/10.7TTCSC.L1.S1; de 28/04/2016, Proc. 1006/12.2TBPRD.P1.S1; R.G., de 28/09/2023, Proc. 2000/22.0T8VCT.G1; RC., de 12/07/2023, Proc. 1274/18.6T8LMG.C1; RP., de 13/07/2022, Proc. 25666/19.4T8PRT-B.P1; RL, de 27/10/2022, Proc. 7241/18.2T8LRS-A.L1-2.
[9] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 793.
[10] Ac. STJ., de 13/01/2023, Proc. 417/18.4T8PNF.P1.S1.
[11] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., Almedina, pág. 797.
[12] Ac. STJ., de 29/10/2015, Proc. 233/09.4TBVNG.G1.S1.
[13] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 798, em que salientam ser “objeto de debate saber se os requisitos do ónus impugnatório devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também devem ser levados às conclusões sob pena da rejeição do recurso”. Adiantam: “O Supremo tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm de reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objetividade e de certeza, com os concretos pontos de facto sobre que incide a impugnação (STJ 9/6/16, 6617/07, STJ 31/05/16, 1572/12, STJ 28/04/16, 10006/12, STJ 11/04/16, 449/410, STJ 19/02/15, 299/05 e STJ. 27/01-15, 1060/07). O STJ. tem afirmado que na verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no artigo 640º, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (STJ. 03/10/19, 77/06, STJ 12/07/18, Proc. 167/11 e STJ 21/03/18, 5074/15)” (sublinhado e destacado nosso”.
No mesmo sentido: Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 147, em que se lê: “A lei exige que o recorrente condense em conclusões os fundamentos por que pede a revogação, a modificação ou anulação da decisão. Com as necessárias distâncias, tal como a motivação do recurso pode ser associada à causa de pedir, também as conclusões, como proposições sintéticas, encontram paralelo na formulação do pedido que deve integrar a petição inicial. (…). As conclusões exercem ainda a importante função de delimitação do objeto do recurso, como clara e inequivocamente resulta do art. 635º, n.º 3.” A fls. 152 a 159, conclui que: “A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações: a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, n.º 3 e 641º, n.º 2, al. b); b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, n.º 1, al. a)); c- Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); d- Falta de especificação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e- Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação” (sublinhado e destacado nosso).
Frise-se que o principal pomo da controvérsia jurisprudencial ao nível do Supremo Tribunal de Justiça prendia-se em saber se, a par dos concretos pontos da matéria de facto, o recorrente tinha também de incluir nas conclusões de recurso o resultado pretendido relativamente a cada um dos pontos que impugna. A referida polémica jurisprudencial encontra-se atualmente, pelo menos parcialmente, ultrapassada pelo acórdão uniformizador de jurisprudência (AUJ) n.º 12/2023, de 17/10/2023, Proc. 8344/16.6T8STB.E1-A.S1, publicado no D.R., n.º 220/2023, Série I, de 14/11/2029, em que se uniformizou a seguinte jurisprudência: “Nos termos da alínea c), do n.º 1, do artigo 640º do Código de Processo Civil, o recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”.
[14] Acs. STJ., de 01/06/2022, Proc. 1104/18.9T8LMG.C1.S1; de 19/05/2021, Proc. 4925/17.6T8OAZ.P1.S1.