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CONTRATO DE ARRENDAMENTO URBANO
OBRIGAÇÕES DO ARRENDATÁRIO
RESOLUÇÃO
INEXIGIBILIDADE
PAGAMENTO DA RENDA
Sumário
I – Constitui fundamento para a resolução do contrato de arrendamento, por incumprimento grave das obrigações emergentes do mesmo, o facto da arrendatária não permitir a visita e exame do locado pelos senhorios, após reporte de infiltrações em fracção vizinha e, assim, impedir a realização de obras urgentes no locado e a inspecção da instalação de gás. II – Para que se torne inexigível a manutenção do arrendamento, nos termos do n.º 3 do art.º 1083.º do Cód. Civil, mostra-se suficiente a falta de pagamento pelo arrendatário de uma única renda, desde que o período de mora no cumprimento da obrigação de pagamento seja igual ou superior a dois meses. III – O art.º 1036.º do Cód. Civil apenas permite a realização de obras urgentes por parte do locatário (com direito ao respectivo reembolso) em caso de mora por parte do locador (n.º 1), ou caso a urgência seja tal que não consinta o mínimo de dilação, independentemente de mora do locador, contanto que o avise ao mesmo tempo (n.º 2).
Texto Integral
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães,
I – Relatório
AA e BB, residentes na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., propuseram a presente acção declarativa sob a forma de processo comum
contra CC, residente na Rua ..., ... freguesia ..., ..., pedindo, a título principal, que seja declarada a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre Autores e Ré a 1 de Setembro de 2017, com fundamento na violação reiterada e grave das obrigações do locatário previstas no artigo 1038º, al.s a), b), e) e h), do Código Civil e que a mesma seja condenada a restituir-lhes o locado livre de pessoas e bens e a pagar-lhes as seguintes quantias:
- € 460,00 a título de rendas vencidas em 01.06.2022 e em 01.02.2023 e não pagas, acrescida de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento;
- € 230,00 mensais desde a data da propositura da ação até à restituição do locado;
- € 140,71, acrescida de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento, a título de despesas por estes suportadas com as deslocações de técnicos;
- todas as despesas, nomeadamente taxas de justiça, honorários de mandatário e agente de execução, a suportar com o presente pleito e que relegou para incidente de liquidação de sentença;
Subsidiariamente relativamente ao pedido de resolução, a considerar-se que a conduta da Ré não reveste gravidade tal que o justifique, pediu a condenação da Ré a permitir o acesso dos Autores ao locado para exame do mesmo, por forma a que estes possam verificar o seu estado e a necessidade de aí realizar reparações.
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Alegaram, para tal, ter celebrado com a Ré um contrato de arrendamento para fins habitacionais tendo por objecto uma fracção autónoma de que prédio, da qual são proprietários e que esta lhes recusou, por várias vezes e ao longo de mais de dois anos, o acesso à fracção locada (bem como a um perito de uma Seguradora e a técnicos convocados pelos Autores) com vista a apurarem a existência de infiltrações daí provenientes e que estariam a afectar um estabelecimento comercial situado por baixo da fracção, no rés-do-chão do prédio, não tendo também a Ré recebido cartas comunicando a data em que pretendiam deslocar-se à habitação para aquela finalidade, bem como para verificarem a instalação do gás.
Acrescentaram que a Ré procedeu, sem o consentimento dos Autores, a obras de reparação das infiltrações, mas que não cumpriram as legis artis, pois a fracção apresentou posteriormente problemas nas canalizações da água.
Por fim, invocaram que a Ré não pagou as rendas correspondentes aos meses de Junho de 2022 e Fevereiro de 2023, com o fundamento na compensação com as despesas alegadamente suportadas com as referidas obras de reparação
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Citada, a Ré contestou, arguindo a ineptidão da petição inicial e invocando não ter incumprido as suas obrigações como locatária, pois apenas reteve o pagamento da renda referente a fevereiro de 2023 a título de compensação pelas reparações efectuadas e que não negou aos Autores a possibilidade de examinarem a fracção, desde que avisada com antecedência para que pudesse fazer-se acompanhar por alguém da sua confiança como medida de segurança.
Alegou, também, que perante a inércia dos Autores teve que proceder à reparação das canalizações de água da casa de banho do locado, tendo por isso direito ao reembolso dos respectivos custos por si suportados, motivo pelo qual reteve o pagamento da renda.
Concluiu pela improcedência da acção.
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Notificados para o efeito, os Autores responderam à ineptidão arguida pela Ré, defendendo a sua inexistência.
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Em 20/06/2024 foi proferido despacho (Ref.ª ...23) que julgou “improcedente a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial”.
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Foi dispensada a realização da audiência prévia e a elaboração do despacho de fixação do objecto do litígio e de enunciação dos temas da prova.
Procedeu-se à prolação de despacho saneador tabular e realizou-se a audiência de julgamento.
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De seguida foi proferida sentença, na qual foi decidido o seguinte:
“Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, decide-se julgar a presente Ação Procedente, por provada, e, em consequência: A) Declara-se a resolução do contrato de arrendamento para habitação em questão nestes autos, celebrado entre Autores e Ré em 1 de Setembro de 2017, i.e., entre os ora senhorios e Autores AA e BB e a arrendatária e Ré CC, por incumprimento contratual imputável a esta última, por violação reiterada e grave das obrigações de locatária previstas no artigo 1.038º, alíneas a), b), e) e h) do Código Civil (CC); B) Condena-se a arrendatária e Ré CC a desocupar o imóvel e a restituí-lo aos Autores, deixando-o devoluto de pessoas e bens, no prazo de 30 (trinta) dias após o trânsito em julgado da presente Sentença; C) Condena-se a Ré CC a pagar aos Autores a quantia de € 460,00 (quatrocentos e sessenta euros) a título de rendas vencidas em 01.06.2022 e em 01.02.2023 e não pagas, acrescida de juros de mora à(s) respetiva(s) taxa(s) legal(ais) anual(ais) desde a citação até efetivo e integral pagamento; D) Condena-se a Ré CC a pagar aos Autores a quantia mensal de € 230,00 (duzentos e trinta euros) a título de rendas que entretanto se tenham vencido e se vençam desde a data da propositura da ação até à restituição do locado aos Autores; E) Condena-se a Ré CC a pagar aos Autores a quantia de € 140,71 (cento e quarenta euros, e setenta e um cêntimos) a título de despesas por estes suportadas com as deslocações de técnicos, acrescida de juros de mora à(s) respetiva(s) taxa(s) legal(ais) anual(ais) desde a citação até efetivo e integral pagamento;
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- A título subsidiário, no caso de tribunal superior entender que os fundamentos acima descritos não são suficientes para a resolução do contrato de arrendamento pelo senhorios e ora Autores, este Tribunal, desde já precavendo tal hipótese de entendimento, decide o seguinte: A) Condena-se a Ré CC a pagar aos Autores a quantia de € 460,00 (quatrocentos e sessenta euros) a título de rendas vencidas em 01.06.2022 e em 01.02.2023 e não pagas, acrescida de juros de mora à(s) respetiva(s) taxa(s) legal(ais) anual(ais) desde a citação até efetivo e integral pagamento; B) Condena-se a Ré CC a pagar aos Autores a quantia de € 140,71 (cento e quarenta euros, e setenta e um cêntimos) a título de despesas por estes suportadas com as deslocações de técnicos, acrescida de juros de mora à(s) respetiva(s) taxa(s) legal(ais) anual(ais) desde a citação até efetivo e integral pagamento; C) Condena-se a Ré CC a permitir o acesso dos ora Autores ao locado para exame do mesmo, de modo a que estes possam verificar o seu estado e a necessidade de realização de reparações no dito locado.
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- Condena-se em Custas a Ré CC, fixando-se a taxa de justiça nos termos tabelares do Regulamento das Custas Processuais (artigos 527º/1,1ªparte,2, 529º/2 e 607º/6 todos do Código de Processo Civil – CPC), tudo sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia a mesma Ré.”.
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Inconformada, a Ré interpôs recurso desta sentença, pugnando pela sua revogação e pela sua substituição por decisão que julgue a acção improcedente, absolvendo-a dos pedidos formulados, tendo apresentado as seguintes conclusões:
1. A douta sentença recorrida padece de erro de julgamento de facto e de direito, devendo ser revogada.
2. A petição inicial é inepta, nos termos do art. 186.º, n.º 2, al. c) CPC, por cumular pedidos substancialmente incompatíveis: a) resolução do contrato de arrendamento; b) condenação da Ré no pagamento de rendas vencidas; c) indemnização por atraso na restituição do locado, obrigação que apenas emerge após a cessação do contrato.
3. A ineptidão determina a nulidade de todo o processo, nos termos do art. 186.º, n.º 1, CPC.
4. Ainda que assim não se entenda, não se verificam os pressupostos de resolução do contrato previstos no art. 1083.º CC.
5. O não pagamento de rendas apenas respeitou a dois meses (junho/2022 e fevereiro/2023), não perfazendo o período mínimo de três meses consecutivos ou interpolados exigido pela lei e pela cláusula sexta do contrato.
6. A renda de fevereiro/2023 foi legitimamente retida pela Ré a título de compensação por reparações urgentes efetuadas no locado, nos termos do art. 1036.º, n.º 1, e 1074.º, n.ºs 3 e 5, CC.
7. Relativamente a junho/2022, não foi feita prova bastante da falta de pagamento, recaindo sobre os Autores o ónus probatório, nos termos do art. 342.º, n.º 1, CC.
8. A Ré é uma pessoa idosa de 77 anos, viúva, residente no imóvel desde 2013, com graves problemas de saúde que lhe limitam a autonomia, recebendo apenas € 550,00 de pensão de reforma, dos quais € 230,00 são destinados ao pagamento da renda.
9. A Ré não dispõe de filhos em Portugal nem de qualquer rede de apoio familiar, não tendo para onde ir caso seja despejada, circunstância social e humana que a sentença recorrida não valorou devidamente.
10. As dificuldades pessoais e económicas da Ré justificam a sua exigência de aviso prévio e acompanhamento por pessoa de confiança aquando da entrada de terceiros no locado, traduzindo-se em legítima salvaguarda da sua segurança e dignidade pessoal.
11. Tal conduta não configura incumprimento grave, mas exercício legítimo de direitos de personalidade e de proteção da integridade física e psicológica, conforme o art. 70.º CC.
12. A sentença recorrida desconsiderou as faturas comprovativas das reparações realizadas pela Ré, violando os arts. 1036.º, n.º 1, e 1074.º, n.ºs 3 e 5, CC.
13. O incumprimento contratual imputado à Ré não reveste a gravidade exigida pelo art. 1083.º CC, não sendo inexigível a manutenção da relação contratual.
14. Ao julgar procedente a ação e declarar resolvido o contrato, a douta sentença incorreu em erro de aplicação do direito, violando os arts. 186.º CPC, 342.º, 762.º, 1036.º, 1038.º, 1074.º e 1083.º CC.
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Os Autores apresentaram resposta às alegações de recurso da Ré, defendendo a improcedência do mesmo.
Invocaram que a nulidade por ineptidão da petição inicial já havia sido anteriormente decidida e que a matéria de facto dada como provada (que a Ré não impugnou) demonstra que lhes é inexigível a manutenção do contrato de arrendamento em face da gravidade das condutas adoptadas pela Ré e que perduram há mais de 2 anos.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos com efeito suspensivo.
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Nesta Relação foi considerado o recurso corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – Das questões a decidir
Antes de se proceder à delimitação, propriamente dita, das questões a decidir no presente recurso, importa fazer duas observações prévias.
Em primeiro lugar, nas suas conclusões de recurso (2.ª e 3.ª) a apelante invoca novamente a questão da ineptidão da petição inicial.
Trata-se, contudo, de questão que não pode ser objecto de apreciação no presente recurso.
Com feito, conforme salientam os apelados na sua resposta e como resulta do relatório deste Acórdão, esta nulidade foi suscitada pela recorrente na contestação e efetivamente decidida pela 1.ª instância no despacho de 20/06/2024 (Ref.ª ...23), que julgou “improcedente a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial”.
Houve, assim, decaimento da Ré no que diz respeito a esta questão por si suscitada, pelo que lhe incumbia, oportunamente, interpor recurso desse despacho, o que não fez.
Ora, ao não interpor recurso desse despacho proferido pelo tribunal de primeira instância, o mesmo transitou em julgado, tendo, consequentemente, força obrigatória dentro deste processo (art.º 620.º, n.º 1 do CPC – caso julgado formal).
Em segundo lugar, a apelante invoca, ainda, erro de julgamento de facto, que não foi feita prova bastante da falta de pagamento da renda respeitante a Junho de 2020 e que foram desconsideradas as facturas comprovativas das reparações (conclusões 1.ª, 7.ª e 12.º).
Porém, a mesma não impugnou a decisão relativa à matéria de facto, nos termos impostos pelo art.º 640.º do C.P.C., como lhe cabia com vista a eventualmente reverter essa decisão nos pontos focados.
Nesta conformidade, não há que conhecer destas questões (em concreto da ineptidão e do invocado erro de julgamento de facto), o que se decide.
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Passando, agora, às questões a decidir propriamente ditas, importa salientar que o âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.
Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).
Assim, a principal questão que importa apreciar e decidir é apenas a seguinte:
- saber se há fundamento para a resolução do contrato de arrendamento dos autos, pelo facto da recorrente não permitir a visita e exame do locado pelos recorridos, após reporte de infiltrações em fracção vizinha e, assim, impedir a realização de obras urgentes no locado e a inspecção da instalação de gás.
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III – Fundamentação III – I.Da Fundamentação de facto
Na sentença sob recurso foram considerados provados os seguintes factos:
1. Através de escritura pública celebrada a 25.08.2017, os ora Autores adquiriram a fração ... do prédio urbano destinada a habitação sita na Rua ..., freguesia ..., inscrita na matriz predial urbana sob o nº ...01 e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...70.
2. À data da celebração da referida escritura, a fração ora em causa encontrava-se arrendada à ora Ré.
3. Os ora Autores e a ora Ré celebraram a 01.09.2017 um novo contrato de arrendamento, através do qual os primeiros se comprometiam a dar de arrendamento à segunda a fração supradescrita.
4. Esse contrato foi celebrado pelo período de 1 (um) ano, com início a 01.09.2017 e o seu término a 31.08.2018, prorrogável por igual período.
5. O valor da renda acordado foi de € 230,00/mês.
6. Da cláusula sétima do referido contrato consta que a Ré se obrigou a, sob pena de indemnização a pagar aos Autores, a conservar as paredes, portas, janelas, soalho, instalações elétricas, canalizações de água, luz, gás e esgotos, rodapés, pinturas, vidro e caixilharias, mobiliário e equipamentos no estado em que os mesmos se encontravam à data da outorga do contrato de arrendamento ora em causa, bem como a suportar todos os custos de reparação de tais componentes se os mesmos se danificassem por responsabilidade da Ré.
7. A Ré comprometeu-se ainda, no corpo do contrato, a não realizar quaisquer obras no locado sem autorização escrita dos Autores.
8. À Ré ficou vedado, no corpo do contrato, o direito a exigir uma indemnização ou a invocar o direito de retenção sobre as obras realizadas com o consentimento dos Autores.
9. No dia 8 de Fevereiro de 2021, os ora Autores foram alertados pela administração de condomínio do prédio onde se situa a fração aqui em apreço de que existiam infiltrações de água na casa-de-banho do estabelecimento comercial denominado EMP01... e Publicidade que se situa no rés-do-chão do imóvel, onde se situa a fração que é pertença dos Autores, e que tais infiltrações tinham origem na fração dos ora Autores.
10. Como os ora Autores, logo após terem adquirido a fração aqui em apreço, celebraram com a Seguradora “EMP02..., S.A.” um contrato de seguros multirriscos, a Autora mulher participou o sinistro à referida Seguradora.
11. Depois de ter sido informada pelos Autores de que teria de permitir o acesso ao interior da habitação, a ora Ré não permitiu que os Autores e o perito da referida Seguradora acedessem ao interior da mesma por forma a apurar a origem das infiltrações e custos necessários à sua reparação,
12. A ora Ré, sem o conhecimento e o consentimento dos ora Autores, procedeu à reparação das infiltrações.
13. Os Autores desconhecem os moldes em que a Ré o fez, sendo que tais moldes não cumpriram as legis artis.
14. Em data não concretamente apurada, mas que se situa em Maio de 2022, os ora Autores foram informados pela Ré de que o apartamento onde a mesma reside estaria com problemas nas canalizações da água.
15. Dada a informação fornecida pela Ré e depois de previamente combinar com a mesma a data e hora em que um picheleiro se deslocaria ao local para averiguar o estado das canalizações, a Ré recusou-se, por duas vezes, mais concretamente a 11 de Maio de 2022 e a 19 de Maio de 2022, a abrir a porta à pessoa contratada pelos Autores.
16. Os Autores despenderam € 110,70 nas referidas deslocações.
17. Volvido cerca de um mês, os Autores foram novamente informados pela administração do condomínio, do prédio onde se situa a fração aqui em apreço, de que existiam infiltrações de água na casa-de-banho do estabelecimento comercial denominado EMP01... e Publicidade que se situa no rés-do-chão do imóvel onde se situa a fração que é pertença dos Autores, e de que tais infiltrações provinham da fração dos ora Autores.
18. Dada a necessidade urgente de proceder à deteção da origem e à reparação das infiltrações, o Autor marido, logo que tomou conhecimento da existência de tais infiltrações, deslocou-se à morada da Ré por forma a que esta lhe desse autorização para aceder ao interior da habitação e pudesse inteirar-se do estado em que a mesma se encontrava.
19. Apesar de a Ré se encontrar no interior da referida habitação, a mesma não abriu a porta da habitação.
20. Dada a recusa da Ré de permitir o acesso do Autor marido ao interior da fração, no dia 11 de Julho de 2022, o Autor marido comunicou à Ré, por meio de carta registada com aviso de receção, que se deslocaria à residência da ora Ré para se inteirar do estado da habitação e da proveniência das infiltrações, e para providenciar pela respetiva reparação.
21. Nessa mesma missiva, o ora Autor marido comunicou à Ré que, nessa visita, teria a companhia de um técnico credenciado em sistemas de condutas de gás para que este procedesse à inspeção da referida canalização.
22. A Ré não levantou a referida missiva junto dos serviços postais, sendo que a mesma foi devolvida aos ora Autores.
23. Dada a gravidade da situação, apesar da referida devolução, no dia 28 de Julho de 2022, pelas 18h00m, o Autor marido compareceu na morada da Ré juntamente com o técnico.
24. O Autor marido, juntamente com o técnico, não logrou, mais uma vez, aceder ao interior da fração, porque a Ré, apesar de se encontrar no interior da habitação, não lhes franqueou a entrada.
25. Nesse mês de Junho de 2022, a Ré não procedeu ao pagamento da renda vencida a 01.06.2022, no montante de € 230,00, alegando ter despendido o seu valor em obras de reparação do imóvel destinadas a reparar o problemas das infiltrações.
26. Apesar de a Ré não ter franqueado o acesso à sua habitação a 28.07.2022, os Autores tiveram de proceder ao pagamento dos custos do técnico que se deslocou ao local, no valor de € 30,00.
27. Como a Ré continuava a não permitir o acesso ao locado para que um técnico responsável procedesse à obrigatória vistoria do sistema de gás, bem como para permitir verificar o estado das canalizações de gás, em Janeiro de 2023 os Autores incumbiram a sua mandatária de remeter à Ré uma missiva a solicitar que a mesma designasse dia e hora para que os respetivos técnicos pudessem deslocar-se ao local, sob pena de resolução do contrato de arrendamento.
28. Mais uma vez, a Ré não procedeu ao levantamento da referida missiva.
29. No dia 17 de Fevereiro de 2023, a Ré remeteu aos Autores uma carta com o seguinte conteúdo:
“Bom dia Serve o sobrescrito, e outros para informar sobre o acerto de contas. 1º Junto a este sobrescrito, e outros inclusive fotos dos materiais colocados e também a fatura que inclui todos os serviços prestados. Pelo profissional: DD 2º O valor pago pelos “materiais novos” e “serviços prestados”: é referente ao ano de 2022. Os mesmos, assim como as deslocações do mesmo, era pago no próprio dia e momento. Devendo eu acrescentar que, o profissional em questão, deixa todos os serviços impecáveis. Pelo que, tenho a agradecer quem me recomendou o mesmo, dado ser eu cliente, e também pelo facto de ter entrado em contacto com o respetivo profissional de pichelaria. Informo, também que o valor de todas as reparações “por coincidência”, igualou-se ao valor do arrendamento que pago mensalmente. Não havendo este mês, lugar a qualquer valor que componha o exato valor do arrendamento, dado o mesmo já ter sido anteriormente disponibilizado para pagar ao prestador de serviços. Tendo o valor de 230,00 “como pagamento referente ao corrente mês - fevereiro 2023”.
30. Em anexo à referida missiva, a Ré juntou listagem das datas e dos serviços em que teriam ocorrido tais reparações:
a) 26.05.2022- reparação e substituição de autoclismo e acessórios;
b) 14.12.2022- reparação e substituição da torneira do lavatório;
c) 15.12.2022- reparação e substituição da torneira da banheira.
31. Em anexo à referida missiva, a Ré juntou também a fatura dos diferentes serviços no valor de € 230,00, e registos fotográficos dos serviços prestados.
32. Dum desses registos fotográficos consta o seguinte: “Há fuga de água na casa de banho do andar superior! É favor contactar quem habita no mesmo a fim de verificar problema. Após resolvido mando limpar mancha no teto”.
33. Porque a Ré se recusa a falar com os Autores de viva voz, os mesmos desconhecem se a mensagem se destina aos ora Autores, ou se foi mais um alerta dos titulares do estabelecimento comercial que fica no piso inferior sobre infiltrações na sua loja.
34. Ante a conduta da ora Ré, a qual procedeu à substituição de equipamentos sem dar prévio conhecimento da situação aos ora Autores, de molde a dissipar as suas dúvidas sobre a mensagem contida nos registos fotográficos, no dia 1 de Março de 2023, a Autora mulher remeteu à Ré nova missiva a agendar nova data para a realização da inspeção do sistema de gás e do estado das canalizações da água.
35. Uma vez que foram interpelados por escrito para apresentar a documentação comprovativa da realização da inspeção de gás e porque pretendiam comunicar à Ré que não aceitavam qualquer compensação com o valor devido a título de renda vencida, e não paga, a 1 de Fevereiro de 2023, os Autores mais informaram a Ré de que, caso a mesma não franqueasse o acesso de arrendamento à fração, era sua intenção proceder à resolução do contrato de arrendamento, não só por causa dos prejuízos que a ora Ré lhes estava a causar com a sua conduta, mas, sobretudo, porque a sua recusa de permitir a realização da inspeção do gás e das canalizações de água estava a pôr em causa a sua própria integridade física e bens de terceiros.
36. À semelhança das demais cartas remetidas pelos Autores à Ré, esta carta também não foi levantada pela Ré junto dos serviços postais.
37. No dia 11 de Março de 2023, pelas 10 horas, o Autor marido deslocou-se mais uma vez ao locado, sem qualquer sucesso, já que mais uma vez a Ré não permitiu o acesso à fração.
38. A conduta da ora Ré vem-se “arrastando” há mais de 2 anos.
39. Há mais de dois anos, os Autores não conseguem dialogar com a Ré, uma vez que esta, nas poucas vezes que contacta com os Autores, comunica com os mesmos via SMS.
40. Os Autores receiam que, atenta a idade do edifício e a falta de manutenção do mesmo e das necessárias inspeções, tais factos possam pôr em causa a integridade física de terceiros e os seus bens.
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41. Em meados de 2021, a aqui Ré recebeu a visita do aqui Autor marido que lhe pediu para aceder ao interior da sua habitação.
42. A Ré permitiu a entrada do senhorio e aproveitou o momento para o informar de que a casa de banho e a cozinha inundava, sofrendo com problemas de infiltrações, sendo necessárias reparações na canalização.
43. O Autor marido comprometeu-se a voltar com o propósito de resolver a questão.
44. Posteriormente, o Autor marido regressou ao apartamento com o propósito de resolver os problemas na casa de banho, para os quais já se encontrava alertado.
45. O Autor marido aplicou silicone na casa de banho.
46. Posteriormente, o Autor marido apresentou-se novamente no seu apartamento, mas desta vez acompanhado por outro homem.
47. A Ré negou o acesso ao interior da habitação.
48. Era de conhecimento dos Autores que a casa de banho da habitação padecia de problemas com infiltrações.
49. A Ré habita na fração em causa desde 2013.
50. Os problemas afetam o estabelecimento comercial do rés do chão.
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51. Aquando da aquisição do referido imóvel pelos aqui Autores, a Ré já era inquilina do mesmo, sendo que neste já operava um contrato de arrendamento entre ela e o anterior senhorio.
52. A Ré é uma pessoa de idade avançada.
53. À data desses factos, a Ré não conhecia o Autor marido e conhecia apenas a Autora mulher que já tinha visitado a fração na sua presença.
54. Foi a Ré chamada para assinar um novo contrato de arrendamento com os aqui Autores.
55. A Ré anuiu a tal pedido e assinou o presente contrato de arrendamento.
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56. A Ré vive sozinha.
57. Todos os técnicos que se deslocaram à habitação não passaram da porta da fração por impedimento da Ré.
58. O valor da renda vencido a 01.06.2022 não foi pago.
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Foram, por sua vez, dados como não provados os seguintes factos:
a) Em meados de 2021, quando a aqui Ré recebeu a visita do aqui Autor marido, este não a informou antecipadamente da visita nem dos seus motivos.
b) O Autor marido dirigiu-se ao quarto da Ré, sem o seu consentimento, onde desviou o mobiliário presente na divisão.
c) O Autor marido inspecionou toda a habitação, deixando parte do mobiliário fora do seu lugar e sem prestar esclarecimentos à Ré.
d) Após esse acontecimento, a Ré ficou bastante abalada e receosa quanto à postura do Autor marido.
e) No passado, a Ré sofreu com comportamentos abusivos, por parte do anterior senhorio, o qual se introduziu na sua habitação, sem o seu consentimento e contra a sua vontade.
f) Em consequência desses eventos traumáticos, além do estado de saúde debilitado da Ré, a mesma adota comportamentos extremamente protetores, pelo medo que sente.
g) A Ré é uma pessoa sem família nem amigos próximos, ficou órfã em tenra idade e viúva há mais de vinte anos, o que lhe causou diversos traumas e receios quanto à sua segurança enquanto mulher idosa.
h) A Ré, sentiu-se ameaçada pela presença de dois homens desconhecidos.
i) A Ré pediu aos Autores que futuras visitas fossem avisadas com a devida antecedência, quanto ao dia e à hora, de forma a ser possível que alguém da sua confiança estivesse presente.
j) A Ré nunca foi informada das visitas dos senhorios, atempadamente e tal como solicitado.
k) Por temer pela sua segurança enquanto mulher e com vários problemas debilitantes, a Ré sente medo quando é surpreendida com pessoas à porta da sua habitação.
l) A Ré não tem a intenção de vedar o acesso dos Autores ao locado, apenas exige que o acesso lhe seja comunicado para que esteja acompanhada por alguém da sua confiança, como medida de segurança.
m) Em nenhum momento, a Ré impediu que os Autores procedessem às reparações necessárias a serem realizadas no locado.
n) Era do interesse da Ré permitir que os problemas relacionados com as infiltrações fossem resolvidos na sua habitação.
o) A Ré solicitou que o acesso ao interior da sua fração apenas fosse realizado quando não se encontrasse sozinha, e que o mesmo acesso não fosse efetuado por pessoas desconhecidas.
p) Os problemas com infiltrações na casa de banho da habitação já existiam quando os Autores efetuaram a escritura pública do imóvel.
q) Quando os Autores visitaram o apartamento antes da celebração do contrato de compra e venda, alguns desses problemas já eram visíveis.
r) As reparações necessárias não foram efetuadas pelo anterior senhorio, e os aqui Autores também não procederam às mesmas.
s) Os problemas mantiveram-se e agravaram-se.
t) Essa situação foi dada a conhecer diretamente aos Autores pela administração do condomínio, mas não foi dado conhecimento à aqui Ré.
u) Quando o Autor marido se deslocou à fração para apurar se os danos existentes no estabelecimento comercial eram resultado de problemas na sua fração, a Ré informou mais uma vez que os problemas com infiltrações se tinham agravado.
v) A Ré apresenta vários problemas de saúde, inclusive cataratas oculares que já se manifestavam de forma grave à data da celebração do contrato de arrendamento com os aqui Autores.
w) À data desses factos, a Ré não conhecia o Autor marido, apenas conhecia a Autora mulher, a qual já tinha visitado a fração na sua presença.
x) Quando a Ré foi chamada para assinar um novo contrato de arrendamento com os aqui Autores, estes garantiram-lhe que o mesmo correspondia ao conteúdo do anterior contrato.
y) Quando a Ré assinou o atual contrato de arrendamento, fê-lo sem a análise e o preparo que tal ato carecia.
z) Em consequência dos seus problemas de visão, a Ré apenas consegue ler sob muito esforço, o que lhe causa cefaleias quase imediatas.
aa) A Ré acreditou na palavra dos Autores e assinou o presente contrato de arrendamento sem a devida análise.
bb) Os Autores sabiam que a casa de banho do locado apresentava problemas que careciam de reparação desde a data em que assinaram a escritura pública, mas nada fizeram.
cc) Após anos de inércia dos Autores e só no momento em que os vizinhos do rés do chão apresentaram reclamação quanto aos danos causados pelas infiltrações com origem na casa de banho da habitação da Ré, os mesmos Autores manifestaram interesse pela situação.
dd) A Ré em nenhum momento foi notificada de que os Autores iriam proceder a reparações no locado.
ee) A intenção dos Autores não é a realização de obras, mas é a de forçar a Ré a resolver o contrato de arrendamento.
ff) Com o agravamento dos problemas na casa de banho e a inércia dos Autores, a Ré contratou os serviços de pichelaria do Sr. DD, recomendado por uma pessoa da sua confiança.
gg) Dos serviços de pichelaria prestados resultam:
- Reparação e substituição de autoclismo e acessórios no dia 26/05/2022;
- Reparação e substituição da torneira do lavatório, no dia 14/12/2022;
- Reparação e substituição da torneira da banheira, no dia 15/12/2022.
hh) Por tais serviços foi emitida a fatura junta na petição inicial como Doc. N.º 10.
ii) Alguns acessórios foram substituídos.
jj) Foi efetuada uma chamada de atenção para uma possível fuga de água no andar superior ao do locado dos Autores, uma vez que surgiu uma mancha no teto da fração.
kk) Os Autores optaram por ignorar tal comunicação e desconheciam quem seria o seu autor.
ll) O documento encontrava-se anexo à missiva enviada pela aqui Ré, junto das fotografias dos acessórios de canalização que foram substituídos.
mm) Em consequência da inércia dos Autores quanto à reparação das canalizações de água presentes na casa de banho do locado, a Ré foi obrigada a proceder à sua realização.
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nn) A Ré apresenta vários problemas de saúde, especialmente na coluna, o que lhe limita a locomoção, tem cataratas oculares em estado grave e sofre com hipertensão arterial.
oo) Em consequência disso, a Ré faz medicação diária, extremamente forte.
pp) Os Autores foram, por várias vezes, informados, via sms, de que a Ré permitiria o acesso ao interior da habitação se fosse informada, atempadamente, dos dias, das horas e da identidade das pessoas que lá iriam deslocar-se.
qq) A Ré é uma pessoa bastante debilitada e que receia pela sua segurança.
rr) A medicação que a Ré toma causa-lhe vários efeitos secundários, principalmente sonolência.
ss) Os problemas de coluna da Ré, muitas vezes, não lhe permitem sair da cama nem se manter em pé sem dores excruciantes.
tt) A Ré não tem intenção de vedar o acesso dos Autores ao interior da fração.
uu) A intenção da Ré é apenas a de garantir a sua segurança, em consequência da sua situação física.
vv) A Ré nunca foi informada dos dias e das horas em que ocorreria a deslocação de técnicos à sua habitação.
ww) A presente demanda constitui mais uma tentativa de pressionar a Ré a aceitar a resolução do contrato de arrendamento.
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III - II. Do objeto do recurso
Conforme já foi anteriormente referido, a única questão que importa resolver no âmbito deste recurso está em saber se há fundamento para a resolução do contrato de arrendamento dos autos, pelo facto da recorrente não permitir a visita e exame do locado pelos recorridos, após reporte de infiltrações em fracção vizinha e, assim, impedir a realização de obras urgentes no locado e a inspecção da instalação de gás.
Nas suas alegações de recurso, a apelante defende a revogação da decisão de primeira instância e a sua absolvição dos pedidos, invocando que não se encontram preenchidos os fundamentos legais para a resolução do contrato, nos termos do disposto no art.º 1083.º do Cód. Civil, por não ter existido incumprimento grave, acrescentando que:
- a mora da Ré apenas respeitaria a duas rendas (junho de 2022 e fevereiro de 2023), quando a lei e a cláusula contratual exigem, no mínimo, três meses de incumprimento consecutivo ou interpolado;
- a renda de fevereiro de 2023 foi legitimamente retida pela Ré a título de compensação por reparações urgentes na canalização, realizadas às suas expensas;
- nunca recusou de forma absoluta o acesso dos Autores ao imóvel tendo apenas exigido aviso prévio e acompanhamento de pessoa da sua confiança, em virtude da sua idade avançada, problemas de saúde e episódios traumáticos anteriores;
- importa, ainda, ter presente a concreta situação pessoal da Ré (senhora idosa de 77 anos, viúva; residente no imóvel desde 2013; vive de uma pensão de € 550,00 mensais, da qual retira € 230,00 para pagamento da renda; sofre de graves problemas de saúde que limitam a sua autonomia; não possui filhos ou família em Portugal e não tem para onde ir caso seja despejada; neste contexto de fragilidade, a exigência da Ré de aviso prévio e acompanhamento por pessoa de confiança para entrada de terceiros no locado não configura incumprimento contratual, mas antes legítima salvaguarda da sua segurança e dignidade pessoal, tuteladas pelo artigo 70.º do Código Civil.
Vejamos:
Entre os Autores/recorridos e a Ré/Recorrente foi celebrado um contrato de arrendamento, mediante o qual os primeiros se comprometeram a dar de arrendamento à segunda a fracção ... do prédio urbano destinada a habitação sita na Rua ..., freguesia ....
Esse contrato foi celebrado pelo período de 1 (um) ano, com início a 01.09.2017 e o seu término a 31.08.2018, prorrogável por igual período, sendo o valor da renda acordado de € 230,00/mês.
Realçam-se as seguintes cláusulas com relevância directa para os presentes autos, indicadas nos factos provados:
- a Ré obrigou-se, sob pena de indemnização a pagar aos Autores, a conservar as paredes, portas, janelas, soalho, instalações elétricas, canalizações de água, luz, gás e esgotos, rodapés, pinturas, vidro e caixilharias, mobiliário e equipamentos no estado em que os mesmos se encontravam à data da outorga do contrato de arrendamento ora em causa, bem como a suportar todos os custos de reparação de tais componentes se os mesmos se danificassem por responsabilidade da Ré;
- a Ré comprometeu-se a não realizar quaisquer obras no locado sem autorização escrita dos Autores;
- à Ré ficou vedado o direito a exigir uma indemnização ou a invocar o direito de retenção sobre as obras realizadas com o consentimento dos Autores.
Haverá, no caso em apreço, fundamento para a resolução deste contrato, como decidiu a primeira instância?
Entre as várias formas de cessação do contrato de arrendamento previstas na lei (art.º 1079.º do Cód. Civil) encontra-se a resolução por iniciativa do senhorio, a qual se terá que fundar, neste caso, no incumprimento contratual por parte do arrendatário (art.º 1083.º n.º 1 do Cód. Civil).
No entanto, para justificar a resolução não basta um simples incumprimento contratual, exigindo-se que o mesmo seja de tal forma grave ou com consequências de tal forma nefastas que torne inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento (cfr. o corpo do n.º 2 do mesmo artigo).
Este dispositivo legal, para além de consagrar uma cláusula geral de incumprimento qualificado (como lhe chama Albertina Maria Gomes Pedroso (in Revista Julgar, n.º 19, 2013, pág. 45), estabelece nas suas várias alíneas um elenco meramente exemplificativo de causas de resolução por iniciativa do senhorio.
Em todos os casos, porém, o incumprimento das obrigações emergentes do contrato de arrendamento terá que assumir um carácter grave, o qual “há-de aferir-se quer pela própria natureza da infracção – actuação/omissão substancialmente grave – quer pelas consequências ou efeitos que provoca – e que tornam tal incumprimento grave – quer ainda pela reiteração da conduta violadora das obrigações assumidas – que, por essa via, também é qualificável como grave -, tudo de tal forma que não seja razoavelmente exigível à outra parte a manutenção do arrendamento” (cfr. ainda Albertina Pedroso, ob. e loc. cit.; no mesmo sentido: Fernando Baptista de Oliveira, A Resolução do Contrato no Novo Regime do Arrendamento Urbano, págs. 28 e 29; Ac. da RP, de 24-10-2024, Proc.º n.º 1764/21.3T8VNG.P1, Rel. José Manuel Correia, in www.dgsi.pt e toda a restante doutrina e jurisprudência citada neste acórdão).
Para além dos fundamentos de resolução previstos neste n.º 2, os restantes números do art.º 1083.º estabelecem, por seu turno, causas objectivas que, logo que verificadas, tornam inexigível a manutenção do arrendamento, estabelecendo o n.º 3 que tal acontece “… em caso de mora igual ou superior a dois meses no pagamento da renda, encargos ou despesas, que corram por conta do arrendatário, ou de oposição por este à realização de obra ordenada por autoridade pública, sem prejuízo do disposto nos n.os 3 a 5 do artigo seguinte.”.
Como resulta deste normativo, para o preenchimento desta cláusula mostra-se necessária a mora igual ou superior a dois meses, ou seja, basta para tanto a falta de pagamento pelo arrendatário de uma única renda, desde que o período de mora no cumprimento da obrigação de pagamento seja igual ou superior a dois meses (e não que estejam em falta duas rendas) – cfr., ainda, Albertina Pedroso, ob. cit., pág. 51).
Neste caso a lei considera, desde logo, esta situação como um incumprimento objectivamente grave, sem no entanto deixar de ter que passar pela avaliação casuística do n.º 2 (neste sentido, Maria Olinda Garcia, Arrendamento Urbano Anotado – Regime Substantivo e Processual (Alterações Introduzidas pela Lei nº. 31/2012), págs. 30 e 31).
Para a concretização da referida cláusula geral de incumprimento especialmente grave deverá ter-se em conta a própria natureza da infracção, como o carácter reiterado da conduta irregular e as consequências para o próprio arrendado e a segurança do arrendatário e do público em geral (vd. Ac. RL, de 09/09/2010, Proc.º n.º 2268/07.2TVLSB.L1-8, Rel. Teresa Prazeres Pais, in www.dgsi.pt).
Ou, como se decidiu no Ac. do STJ de 13-02-2014 (Proc.º n.º 43/09.9TCFUN.L1.S1, Rel. Lopes do Rego, in www.dgsi.pt), deverá fazer-se essa avaliação “com base num juízo objetivo e concreto de ponderação e proporcionalidade entre a intensidade concreta e o grau de censurabilidade da violação contratual cometida e a gravidade objetiva do efeito que lhe corresponde”.
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No caso em apreciação, a principal causa invocada para a resolução do contrato de arrendamento não se encontra prevista nas diversas alíneas do n.º 2 do art.º 1083.º do Cód. Civil, baseando-se antes na violação das obrigações do locatário previstas no art. 1038º, als. b) e e) do Cód. Civil: facultar ao locador o exame da coisa locada e tolerar as reparações urgentes, respectivamente.
Com a obrigação de facultar o exame do locado visa-se permitir ao senhorio controlar o bom estado do imóvel e, eventualmente, suprir deficiências ou exigir responsabilidade pelos danos a este causados. Trata-se de um direito do senhorio que, no entanto, tem que ser exercido em termos moderados, uma vez que constantes e sucessivos exames da coisa locada corresponderiam a uma perturbação do gozo pelo arrendatário (cfr. Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 9ª ed., págs. 98 e 99).
Ou, como escreveu Edgar Alexandre Valente (Manual de Arrendamento e Despejo, págs. 89 e 90): “deve o senhorio, após a celebração do contrato de arrendamento com o arrendatário, através do qual proporciona o gozo do imóvel a este, abster-se de perturbar a respectiva utilização que o inquilino faz do locado, constituindo tal dever de abstenção uma das suas obrigações mais elementares. Não obstante, tal obrigação conhece excepções uma vez que o senhorio tem o direito e, por vezes, o dever, de proceder ao exame do imóvel arrendado, sendo diversas as razões que presidem à realização de tal exame, com o qual o arrendatário, não se podendo opor, deverá colaborar e tolerar, uma vez que um dos principais motivos da sua realização respeita precisamente ao apuramento de necessárias obras ou reparações que deverão ser realizadas pelo senhorio e que o mesmo, apenas mediante a respectiva percepção presencial, poderá tomar as medidas adequadas à resolução efectiva do problema, sendo que após tal exame, também a respectiva mora do senhorio poderá ser valorada pelo arrendatário no sentido de se encontrar legitimado a realizar reparações e despesas urgentes, nos termos do artigo 1036.º e dos artigos 22.º -A e seguintes do RJOPA”.
Ora, esta excepção ao dever do senhorio não perturbar o gozo do imóvel pelo inquilino que não poderá deixar de ter aplicação ao caso dos presentes autos. Ou seja, está justificada, em concreto, a necessidade imperiosa do senhorio aceder ao interior do locado.
Com efeito, resulta da matéria de facto provada que, depois dos Autores terem sido alertados (no dia 8 de Fevereiro de 2021) pela administração do condomínio da existência de infiltrações provenientes do imóvel locado e de terem informado a Ré que teria que permitir o acesso ao interior da sua habitação, por forma a apurar a origem das infiltrações e custos necessários à sua reparação, esta última não permitiu tal acesso aos Autores e ao perito da Seguradora, a quem a Autora mulher havia participado o sinistro (pontos 9º, 10º e 11º).
Posteriormente, em Maio de 2022, na sequência de informação prestada pela própria Ré de que o apartamento onde a mesma reside estaria com problemas nas canalizações da água e não obstante os Autores terem previamente combinado com a mesma a data e hora em que um picheleiro se deslocaria ao local para averiguar o estado das canalizações, a Ré recusou-se, por duas vezes, mais concretamente a 11 de Maio de 2022 e a 19 de Maio de 2022, a abrir a porta à pessoa contratada pelos Autores (pontos 14º e 15º).
Volvido cerca de um mês, os Autores foram novamente informados pela administração do condomínio de que existiam infiltrações de água provenientes da fracção onde reside a Ré e, dada a necessidade urgente de proceder à deteção da origem e à reparação das infiltrações, o Autor marido deslocou-se à morada da Ré por forma a que esta lhe desse autorização para aceder ao interior da habitação e pudesse inteirar-se do estado em que a mesma se encontrava.
Porém, e apesar de se encontrar no interior da referida habitação, a Ré não abriu a porta da habitação (pontos 17º, 18º e 19º).
Perante todas estas recusas da Ré facultar aos Autores o acesso à fracção, os Autores enviaram à Ré três cartas registadas com aviso de recepção (em Julho de 2022, em Janeiro de 2023 através da sua mandatária e em Março de 2023) dando conta que se deslocariam à residência da Ré para se inteirarem do estado da habitação e da proveniência das infiltrações, e para providenciar pela respetiva reparação e, numa outra ocasião, para a realização da inspecção do gás, não tendo a Ré, porém, recebido tais cartas, que assim foram devolvidas ao remetente (pontos 20º a 22º, 27º, 28º e 34º a 36º).
O Autor marido voltou a comparecer na morada da Ré com aquela finalidade (em 28/07/2022 e em 11/03/2023, mas aquele comportamento da Ré repetiu-se, não tendo esta última franqueado o acesso ao interior da habitação (pontos 23º, 24º e 37º).
Apenas por duas vezes (em meados de 2021) a Ré permitiu a entrada do Autor marido no locado, informando-o da existência de infiltrações e da necessidade de reparação a canalização e permitindo que este tentasse resolver tais problemas (pontos 41º a 45º).
Porém, posteriormente, quando o Autor marido se apresentou acompanhado por outro homem (certamente de um especialista), a Ré negou o acesso ao interior da habitação (pontos 46º e 47º), após o que passou a adoptar o comportamento supra descrito.
Ora, de toda esta factualidade provada resulta à saciedade um comportamento por parte da Ré, reiterado e constante (apenas contrariado aquelas duas vezes em 2021), de impedir os Autores de proceder ao exame da coisa locada e proceder aos trabalhos necessários a debelar as infiltrações de água que afectam a fracção mencionada.
Além disso, impediu também a realização de uma inspecção ao sistema de gás e recusa-se, mesmo, a falar com os Autores de viva voz (ponto 33º).
Ora, esta conduta não pode deixar de ser considerada grave, pois coloca em risco não só a habitabilidade e a conservação da fracção locada, como também afecta uma fracção pertencente a terceiro (no caso um estabelecimento comercial que se situa no rés-do-chão do mesmo prédio), fazendo com que, previsivelmente, se avolumem os eventuais danos aí causados pelas infiltrações de água e o valor indemnizatório a pagar pelos Autores a esse terceiro.
Igualmente elevado é o risco decorrente da falta de inspecção do sistema de gás da fracção, que pode ter consequências de gravidade extrema agora para todo o prédio e mesmo para prédios vizinhos.
Resulta, ainda, dos factos provados que os Autores tudo fizeram para obter a permissão da Ré para acederem ao interior da fracção, nomeadamente marcando com a Ré uma data, deslocando-se por várias vezes ao local e, inclusive, enviando cartas registadas com aviso de recepção.
Inexplicavelmente, com excepção de duas ocasiões em 2021, a Ré impediu-lhes o acesso e optou por não receber as cartas, que assim foram devolvidas aos remetentes, obstando assim de forma ostensiva e injustificada que os senhorios procedessem às reparações necessárias e urgentes (o que também constitui violação reiterada e grave da obrigação imposta na al. e) do art.º 1038.º do Cód. Civil) e, ainda, que procedessem à inspecção do sistema de gás, cuja importância é também inegável.
Não obstante o alegado pela recorrente quanto à sua situação pessoal, a verdade é que esta, por muito precária que seja, não justifica a sua conduta, nem a pode legitimar ou fazer diminuir o seu grau de culpa.
Contudo, a verdade é que essa factualidade alegada pela Ré não ficou provada, apenas se tendo apurado de tudo o alegado que a mesma é uma pessoa de idade avançada e vive sozinha (pontos 52º e 56º).
Assim, perante todas estas circunstâncias e nada mais podendo os Autores fazer para tentar aceder ao interior da fracção locada, há que concluir que se tornou inexigível a manutenção do contrato de arrendamento, sendo por isso legítima a resolução do mesmo, face ao preceituado no art. 1083º, nºs 1 e 2, 1ª parte do Cód. Civil (no mesmo sentido e versando sobre situações equivalentes, cfr. os Acs. da RP, de 14/01/2020, Proc.º n.º 5544/19.8T8PRT.P1, Rel. Rodrigues Pires e da RC, de 14/03/2023, Proc.º n.º 301/21.4T8MGR.C1, ambos in www.dgsi.pt).
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Acresce a toda esta conduta – gravemente violadora das descritas obrigações da locatária – que a mesma procedeu, ainda, a obras no locado para reparação de infiltrações (que não terão sido correctamente executadas, pois as infiltrações que afectam o rés-do-chão mantiveram-se).
Mas fê-lo sem o conhecimento e o consentimento dos Autores, o que viola o disposto no contrato de arrendamento (ponto 7º) e o preceituado no art.º 1074.º n.º 2 do Cód. Civil.
Também não procedeu ao pagamento de duas rendas (vencidas em 01/06/2022 e 01/02/2023 (pontos 25º, 29º e 58º) alegando a compensação do valor das rendas com obras por si realizadas, nos termos do disposto no art.º 1036.º do Cód. Civil.
Analisado este dispositivo legal conclui-se, no entanto, que o mesmo não é aplicável à situação dos autos.
Com efeito, o art.º 1036.º do Cód. Civil apenas permite a realização de obras urgentes por parte do locatário (com direito ao respectivo reembolso) em caso de mora por parte do locador (n.º 1), ou caso a urgência seja tal que não consinta o mínimo de dilação, independentemente de mora do locador, contanto que o avise ao mesmo tempo (n.º 2).
Ora, nenhum destes pressupostos ficou demonstrado: não se provou a existência de mora dos Autores, nem que a urgência fosse tal que as obras tivessem que ser realizadas de imediato e que os Autores tivessem sido avisados da sua execução.
Ao invés, provou-se que os Autores fizeram tudo para que eles próprios pudessem realizar tais obras, por sua conta, sem a intervenção da Ré, mas foram impedidos várias vezes de o fazerem.
Dos factos provados e não provados (cuja decisão, relembre-se, não foi objecto de impugnação) conclui-se que a Ré não pagou as rendas vencidas em Junho de 2022 e em Fevereiro de 2023 e, por sua vez, que não foi feita prova do custo das reparações promovidas pela Ré.
Assim, terá que se concluir que a Ré violou também o disposto nos arts.º 1074.º n.º 2 e 1083.º n.º 3 do Cód. Civil, agravando com esta sua conduta o incumprimento anteriormente mencionado, improcedendo as conclusões do recurso no sentido da licitude da retenção da renda.
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Concluindo, a gravidade de todo o incumprimento da Ré é fundamento bastante para a resolução do contrato de arrendamento.
O presente recurso – com o qual a Ré pretendia que se declarasse a improcedência da acção – improcede, assim, na totalidade, sendo por conseguinte de confirmar a sentença recorrida (mas apenas quanto ao seu segmento principal, uma vez que a condenação a título subsidiário incluída na sentença não faz qualquer sentido, dado que as decisões judiciais apenas podem, obviamente, dirimir o litígio existente entre as partes apenas num único sentido).
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As custas do presente recurso ficam integralmente a cargo da Ré (art.º 527.º n.º 1 do CPC).
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IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida, nos seguintes termos:
A) Declara-se a resolução do contrato de arrendamento para habitação em questão nestes autos, celebrado entre Autores e Ré em 1 de Setembro de 2017, i.e., entre os ora senhorios e Autores AA e BB e a arrendatária e Ré CC;
B) Condena-se a arrendatária e Ré CC a desocupar o imóvel e a restituí-lo aos Autores, deixando-o devoluto de pessoas e bens, no prazo de 30 (trinta) dias após o trânsito em julgado da presente decisão;
C) Condena-se a Ré CC a pagar aos Autores a quantia de (quatrocentos e sessenta euros) a título de rendas vencidas em 01.06.2022 e em 01.02.2023 e não pagas, acrescida de juros de mora à(s) respetiva(s) taxa(s) legal(ais) anual(ais) desde a citação até efetivo e integral pagamento;
D) Condena-se a Ré CC a pagar aos Autores a quantia mensal (duzentos e trinta euros) a título de rendas que entretanto se tenham vencido e se vençam desde a data da propositura da ação até à restituição do locado aos Autores;
E) Condena-se a Ré CC a pagar aos Autores a quantia de (cento e quarenta euros, e setenta e um cêntimos) a título de despesas por estes suportadas com as deslocações de técnicos, acrescida de juros de mora à(s) respetiva(s) taxa(s) legal(ais) anual(ais) desde a citação até efetivo e integral pagamento.
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Custas do recurso pela Ré.
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Notifique.
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04/11/2025
Relator: João Paulo Pereira 1.º Adjunto: José Manuel Flores 2.ª Adjunta: Elisabete Coelho de Moura Alves (assinado eletronicamente)