Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
INVENTÁRIO SUBSEQUENTE A DIVÓRCIO
RECLAMAÇÃO À RELAÇÃO DE BENS
ENQUADRAMENTO JURÍDICO
Sumário
I - Uma vez que a requerida se apropriou de 42.200,00 € do património comum do casal, este é credor dela por esse valor. II - A circunstância de na reclamação à relação de bens o requerente ter extraído dos factos que alegou que é credor de 21.100,00 € do património comum não impede o tribunal de enquadrar juridicamente essa mesma realidade como tratando-se, sim, de um crédito de 42.200,00 € do património comum do casal contra a requerida, uma vez que desta forma não se ultrapassa o efeito prático-jurídico por aquele pretendido. III - A ausência ou insuficiência de motivação da decisão da matéria de facto não constitui uma nulidade da sentença. Esse vício enquadra-se, sim, na previsão da alínea d) do n.º 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil e é por essa via que é sanado.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I
No presente processo de inventário subsequente a divórcio, que corre termos no Juízo de Competência Genérica de Mirandela, em que é requerente AA e requerida e cabeça de casal BB, foi por aquele apresentada reclamação à relação de bens.
Produzida a prova oferecida para esse efeito, foi pelo Meritíssimo Juiz proferida a seguinte decisão:
"Por todo o exposto, decide-se julgar o presente incidente parcialmente procedente e em consequência: 1. Determina-se a exclusão da relação de passivo do património conjugal do montante de 13.420,00 € (treze mil, quatrocentos e vinte euros), decorrente da amortização, pela cabeça-de-casal, das prestações do crédito habitação. 2. Julga-se, no demais, improcedente o presente incidente."
Inconformado com esta decisão, dela o requerente interpôs recurso findando a respetiva motivação com as seguintes conclusões:
A) O Tribunal a quo julgou como não provado o facto «O montante referido em 4.» Eur. 41.380,00 (quarenta e um mil trezentos e oitenta euro) a que alude a matéria de facto decidida como provada] «foi utlizado na aquisição, a CC, do prédio rústico onde o dissolvido casal construiu o prédio urbano relacionado sob verba 1 da relação de bens».
B) O Recorrente impugna para todos os efeitos legais o único facto julgado não provado da decisão recorrida, recorrendo de facto nos termos do disposto no art.º 640.º do CPC, uma vez que os meios probatórios – documental e testemunhal – impunham que tal facto fosse julgado provado, pela conjugação destes meios de prova com recurso às regras da experiência comum, aliás, tal como a este critério o Tribunal a quo se socorreu para fundamentar e alicerçar a decisão, uma vez que, dos referidos meios de prova resultam os factos seguintes:
C) o Recorrente, em 1994 era um jovem de 21 (vinte e um) anos de idade, casado há menos de 1 (um) ano – cfr. certidão do assento de nascimento do Recorrente junta ao requerimento deduzido em 17/03/2022 sob ref.ª ...48 e documentação em ata, da audiência de 24/09/2024, testemunha DD, registadas entre os minutos 00:00:01 e 00:30:06, entre as 11:03:00 e as 11:34:00, neste facto a minuto 00:12:00 até 00:14:00;
D) nesse mesmo ano de 1994 perdeu os seus pais em sinistro rodoviário e por conta de tais óbitos recebeu, pelo menos, cerca de 13.500.000,00 (treze milhões e quinhentos mil escudos) que à moeda atual corresponderão a cerca de Eur. 67.337,71 (sessenta e sete mil trezentos e trinta e sete euro e setenta e um cêntimos) – cfr. documentos bancários juntos sob n.º 2, n.º 3, n.º 4 e n.º 5 do requerimento deduzido em 02/11/2022 sob ref.ª ...30; documentos bancários alusivos aos extratos bancários de 1995 até 2002 da Banco 1... e de 1995 e 1996 do Banco 2... juntos em 24/01/2023 com o requerimento deduzido sob ref.ª ...69, e; documentação em ata, da audiência de 24/09/2024, testemunha DD, registadas entre os minutos 00:00:01 e 00:30:06, entre as 11:03:00 e as 11:34:00, neste facto de minutos 00:06:00 a 00:10:00 os valores recebidos, de minutos 00:10:00 até 00:11:00 a razão de ciência do conhecimento de tais factos;
E) tal dinheiro foi depositado numa conta bancária, sendo que, as contas e as questões financeiras do casal ora dissolvido, o património, era gerido conjuntamente pelo Recorrente e Recorrida – cfr. documentos bancários juntos sob n.º 2, n.º 3, n.º 4 e n.º 5 do requerimento deduzido em 02/11/2022 sob ref.ª ...30; documentos bancários alusivos aos extratos bancários de 1995 até 2002 da Banco 1... e de 1995 e 1996 do Banco 2... juntos em 24/01/2023 com o requerimento deduzido sob ref.ª ...69, e; documentação em ata, da audiência de 24/09/2024, testemunha DD, registadas entre os minutos 00:00:01 e 00:30:06, entre as 11:03:00 e as 11:34:00, neste facto de minuto 00:12:00 até 00:14:00, de minuto 00:21:30 até 00:24:00 a razão de ciência de como lhe adveio o conhecimento destes factos e de minuto 00:24:00 até final reitera o destino dado aos dinheiros recebidos pelo Recorrente por óbito dos progenitores e a forma como o casal ora dissolvido geria a vida financeira e patrimonial;
F) no ano de 2000 foi pago o terreno onde o casal ora dissolvido edificou a sua casa de morada de família – cfr. documentos bancários juntos sob n.º 2, n.º 3, n.º 4 e n.º 5 do requerimento deduzido em 02/11/2022 sob ref.ª ...30 (em particular o n.º 5), e; documentação em ata, da audiência de 24/09/2024, testemunha DD, registadas entre os minutos 00:00:01 e 00:30:06, entre as 11:03:00 e as 11:34:00, neste facto de minuto 00:12:00 até 00:14:00;
G) no lapso temporal compreendido entre o final do ano de 1994 e início de 2000, não lograram as partes fazer prova que além desta quantia de cerca de Eur. 67.337,71 (sessenta e sete mil trezentos e trinta e sete euro e setenta e um cêntimos) recebida pelo Recorrente por óbito dos seus pais, tivesse o casal ora dissolvido, amealhado através de outras fontes de rendimento, capitais para a aquisição do terreno em crise – cfr. documentos bancários juntos sob n.º 2, n.º 3, n.º 4 e n.º 5 do requerimento deduzido em 02/11/2022 sob ref.ª ...30; documentos bancários alusivos aos extratos bancários de 1995 até 2002 da Banco 1... e de 1995 e 1996 do Banco 2... juntos em 24/01/2023 com o requerimento deduzido sob ref.ª ...69; documentação em ata, da audiência de 24/09/2024, testemunha DD, registadas entre os minutos 00:00:01 e 00:30:06, entre as 11:03:00 e as 11:34:00, neste facto minuto 00:12:00 até 00:14:00, minuto 00:24:00 até final, e, ainda; documentação em ata, da audiência de 24/09/2024, testemunha EE, registadas entre os minutos 00:00:01 e 00:34:07, entre as 10:27:00 e as 11:01:00, quanto a este facto nada sabe dado que de minutos 00:02:00 até 00:03:00 expressa que frequentou a casa do casal dissolvido nos últimos 10 (dez) anos, posteriormente ao facto.
H) O Recorrente, mais impugna a fundamentação de direito da decisão recorrida, invocando, em primeira linha, erro na determinação da norma aplicável, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 639.º, n.º 2, al. c) do CPC.
I) É que, o Tribunal a quo, com fundamento no disposto no art.º 1689.º, n.º 1 e art.º 1722.º ambos do CC, indeferiu: 1- a reclamação à relação de bens quer no que concerne que no passivo seja relacionada verba alusiva a metade das quantias de depósitos bancários levantadas pela Recorrida entre Maio e Agosto de 2021, num total de Eur. 21.100,00 (vinte e um mil e cem euro); 2- a quantia de Eur. 24.939,89 (vinte e quatro mil novecentos e trinta e nove euro e oitenta e nove cêntimos) que o Recorrente herdou/recebeu pelo óbito dos seus progenitores, invocando o órgão jurisdicional quanto ao primeiro montante não estar em causa património de afetação comum aos ex-cônjuges e quanto ao segundo montante, em virtude da natureza do bem se tratar de bem próprio de apenas um ex-cônjuge, não se tratando de passivo conjunto do património conjugal.
J) Todavia, é de aplicar a estes dois segmentos da reclamação à relação de bens o disposto no art.º 1689.º, n.º 3 do CC, dado que, decorre desta norma que dá-se pagamento aos créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro, pela meação do cônjuge devedor no património comum, isto depois de se ter reintegrado o que for desfalcado (n.º 1) e depois de pagar as dívidas comuns e comunicáveis (n.º 2) – vide Ac. TRG de 27/01/2022, exarado no processo n.º 4218/21.4T8BRG-A.G1, acessível in www.dgsi.pt.
K) Por último, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC, a decisão recorrida padece do vício de nulidade, o que se invoca para todos os efeitos e consequências legais, em particular no que concerne à fundamentação do facto julgados como não provado, alicerçando-se a decisão deste na mera invocação de conceitos jurídicos ou factos genéricos e abstratos, não circunstanciados, nem elencados casuisticamente, o que por força desta norma não é admissível.
L) Sucede que o facto julgado como não provado que «O montante referido em 4.» [Eur. 41.380,00 (quarenta e um mil trezentos e oitenta euro) a que alude a matéria de facto decidida como provada] «foi utlizado na aquisição, a CC, do prédio rústico onde o dissolvido casal construiu o prédio urbano relacionado sob verba 1 da relação de bens» assim foi decidido com os fundamentos genéricos e abstratos das expressões feitas constar na sentença de «convicção do julgador», «apreciação crítica da prova documental», «testemunhal», «regras da experiência comum».
M) E, nomeadamente, quanto aos meios de prova, dado que apenas foi feito constar que as testemunhas mostraram «distanciamento em relação às posições em confronto», «relato desinteressado e merecedor de credibilidade», a «confissão efetuada pela cabeça-de-casal no seu articulado (confissão judicial espontânea), quanto aos factos que lhe são desfavoráveis», tanto não consubstancia um único facto em que se traduzem tais conclusões de facto genéricas e abstratas.
N) Como tal, uma vez que o Tribunal a quo exarou decisão sem que tenha logrado concretizar os factos concreto – p. e. em que se traduziu a confissão judicial espontânea, qual o facto em concreto desfavorável – não fundamentou a decisão de facto quanto ao facto decidido como não provado, posto que se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade a que alude o art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC, dado que impende sobre o MM. Juiz a quo o dever de, nos termos do disposto no art.º 154.º do CPC fundamentar a decisão e concretiza o comando constitucional contido no n.º 1 do artigo 205.º da CRP, o que não se verificou quanto ao aresto ora recorrido – vide Ac. TRL de 22/01/2008, proc. n.º 5705/2007.1; Acs. TRP de 19/10/2015, proc. n.º 1643/15 e de 23/05/2024, exarado no processo n.º 1804/03.7TBPVZ-B.P1; Acs. STJ de 9/10/2019, no processo n.º 2123/17.8LRA.C1.S1, de 15/05/2019, no processo n.º 835/15.0T8LRA.C3.S1 e de 2/06/2016, no processo n.º 781/11.6TBMTJ.L1.S1.
O) Foram violadas as normas jurídicas seguintes:
- art.º 205.º, n.º 1 da CRP;
- art.º 154.º e art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC;
- art.º 1689.º, n.º 1 e n.º 3 do CC;
- art.º 1722.º do CC.
A requerida contra-alegou sustentando que "deve ser negado provimento ao recurso e, consequentemente, confirmada na íntegra a sentença recorrida".
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635.º n.º 4, 637.º n.º 2 e 639.º n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil[1], delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:
a) "para os efeitos do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC, a decisão recorrida padece do vício de nulidade";
b) há erro no julgamento do facto julgado não provado;
c) "devem ser incluídas como verbas do passivo os valores" de 21.100,00 € e de 41.380,00 €.
II
1.º
Foram julgados provados os seguintes factos:
1. Por decisão proferida em ../../2021, já transitada em julgado, foi declarado dissolvido o casamento celebrado entre BB e AA, na data de 09-07-1994.
2. Entre junho e agosto de 2021, a cabeça de casal procedeu ao levantamento do montante de 35.000,00 € (trinta e cinco mil euros), aplicado em certificados de tesouro/aforro.
3. Em 14-05-2021, a cabeça de casal procedeu ao levantamento da quantia de 7.200,00 € (sete mil e duzentos euros), à data existente na conta bancária com o NIB ...15 e sediada no Banco 3..., S.A.
4. Pelo óbito do seu progenitor, AA recebeu a quantia de 41.380,00 € (quarenta e um mil, trezentos e oitenta euros).
5. Por óbito dos seus progenitores, AA recebeu, a título de herança, o montante de 24.939,89 € (vinte e quatro mil, novecentos e trinta e nove euros e oitenta e nove cêntimos).
*
E foi julgado não provado o seguinte facto:
i. O montante referido em 4. foi utilizado na aquisição, a CC, do prédio rústico onde o dissolvido casal construiu o prédio urbano relacionado sob a verba 1 da relação de bens.
2.º
Segundo o requerido, "para os efeitos do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC, a decisão recorrida padece do vício de nulidade, o que se invoca para todos os efeitos e consequências legais, em particular no que concerne à fundamentação do facto julgado como não provado, alicerçando-se a decisão deste na mera invocação de conceitos jurídicos ou factos genéricos e abstratos, não circunstanciados, nem elencados casuisticamente, o que por força desta norma não é admissível".
No que se refere ao facto julgado não provado, o Meritíssimo Juiz, depois de se referir aos depoimentos das testemunhas DD e EE, deixou dito que "não se retira qualquer associação entre os valores entregues pelo reclamante a CC e a aquisição do terreno onde foi erigida a casa de habitação do dissolvido casal". Sendo assim logo se conclui que não é verdade que na sua fundamentação o julgador se tenha limitado à "mera invocação de conceitos jurídicos ou factos genéricos e abstratos, não circunstanciados, nem elencados casuisticamente". Significa isso que falta o pressuposto em que se funda o apontado vício.
De qualquer forma, convém lembrar que, "como é jurisprudência corrente, a falta de especificação dos fundamentos da decisão de facto ou a omissão de pronúncia no mesmo plano, não afetam a sentença de nulidade, nos termos da al. b) ou da al. d) do n.º 1 do art. 615.º do CPC. As patologias ocorridas no plano da decisão de facto, que resultam do disposto no art. 607.º, n.ºs 1 a 4 do CPC (…) não configuram as nulidades previstas no art. 615.º do CPC"[2]. Efetivamente, "a decisão da matéria de facto está sujeita a um regime diferenciado de valores negativos - a deficiência, a obscuridade ou contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação - a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação: qualquer destes vícios não é causa de nulidade da sentença, antes é suscetível de lugar à atuação pela Relação dos seus poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da 1ª instância (art.º 662.º, n.º 2, c) e d) do nCPC). Assim, no caso de a decisão da matéria de facto daquele tribunal se não mostrar adequadamente fundamentada, a Relação deve - no uso de uma forma mitigada de poderes de cassação - reenviar o processo para a 1ª instância para que a fundamente (art.º 662.º, n.º 2 do nCPC)."[3]
Por conseguinte, a ausência ou insuficiência de fundamentação sobre o julgamento de algum facto essencial para a decisão da causa enquadra-se na previsão da alínea d) do n.º 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil e é por essa via que esse vício, a existir, será sanado.
3.º
O requerente entende que, face à prova produzida, devia ser julgado provado o facto que o tribunal de 1.ª instância julgou não provado.
Para tal invoca prova documental e testemunhal.
Quanto à prova documental a que o requerente se refere constata-se que nela nada consta quanto à (eventual) utilização dos 41.380,00 € na "aquisição, a CC, do prédio rústico onde o dissolvido casal construiu o prédio urbano relacionado sob a verba 1 da relação de bens".
Já no que se refere à prova testemunhal a que o requerente apela, regista-se que DD[4], ao ser-lhe perguntado pela Ilustre Mandatária da requerida se "sabe se esse dinheiro das indemnizações serviu para comprar o terreno", respondeu "não sei". E relativamente ao depoimento de EE o requerente limita-se a dizer que dele resulta que a testemunha "frequenta a casa do casal dissolvido nos últimos 10 (dez) anos".
Neste cenário é evidente que não se demonstrou qualquer relação entre os 41.380,00 € e "a aquisição do terreno onde foi erigida a casa de habitação do dissolvido casal"; isto é, não se pode julgar provado o facto em causa.
4.º
Na perspetiva do requerente "devem ser incluídas como verbas do passivo os valores" de 21.100,00 € e de 24.939,89 €, em conformidade com o disposto no artigo 1689.º n.º 3 do Código Civil.
Dos factos 2 e 3 emerge que a requerida levantou, de duas contas bancárias, numa delas onde estavam depositados certificados de tesouro/aforro, um total de 42.200,00 €.
Nesta parte o Meritíssimo Juiz fundamentou a sua posição dizendo, em síntese, que, "uma vez que tal alegação é suscetível de fundar, unicamente, um eventual direito de crédito do património comum em relação à cabeça-de-casal (por forma a compensar o enriquecimento obtido à custa do património comum) e nunca uma dívida a ser relacionada enquanto passivo do património conjugal, cumpre julgar, nesta parte - e não olvidando a vinculação do tribunal ao princípio do pedido - improcedente a reclamação à relação de bens".
Se bem se interpreta o raciocínio do ilustre magistrado, a pretensão do requerente foi indeferida porque este reclamou uma "dívida a ser relacionada enquanto passivo do património conjugal" e porque existe "a vinculação do tribunal ao princípio do pedido". Fica, assim, a ideia de que se considerou que, tendo sido reclamada uma dívida sobre o património comum, não se pode, com base nos mesmos factos, mandar relacionar um crédito desse mesmo património, por, desse modo, se estar a conceder algo que não foi pedido.
Vejamos.
Na sua reclamação à relação de bens o requerente disse que:
«(…) é credor da Herança[5] no montante de (17.500,00 porquanto a Cabeça de Casal procedeu, entre junho e agosto de 2021, ao levantamento da quantia de € 35.000,00, que pertencia a ambos, que estava aplicada em Certificados de Tesouro/Aforro no "Banco 4..., S.A,", O Requerente é credor da Herança no montante de € 3.600,00 porquanto a Cabeça de Casal em 14/05/2021 procedeu ao levantamento da quantia de € 7200,00, que pertencia a ambos, da conta bancária com o NIB ...15 do Banco 3..., S.A.", conta essa titulada em nome da Cabeça de Casal e Requerente».
Na resposta a esta reclamação, a requerida, não questionando que os dois são titulares das contas bancárias, afirmou que levantou os certificados de aforro "para fazer face a despesas inesperadas e incomportáveis"[6], acrescentando que "a quantia monetária acumulada (…) [na] conta bancária, no Banco 4..., decorre do depósito por parte da Cabeça de Casal de doações efetuadas pelo seu pai, todos os anos". Mais disse que "procedeu ao levantamento, a 14 de maio de 2021, do montante de € 7.200,00" da conta no Banco 3... S.A., mas que esta "respeita exclusivamente ao negócio da Cabeça-de-casal". Agora, no âmbito deste recurso, a requerida sustenta que não "logrou (…) enriquecer à custa do património comum", porque os valores em causa devem ser "qualificados como bens próprios da Requerida, pois são provenientes de liberalidades, mormente, doações de seu pai" e "de rendimentos gerados pela requerida de forma totalmente autónoma e exclusiva, no exercício da sua atividade profissional".
Sucede que estes factos não se provaram. Somente se provou que foram efetuados os levantamentos descritos factos 2 e 3 e que as partes aceitam que as contas no Banco 3... e Banco 5... eram tituladas por ambos.
Ora, conforme a jurisprudência tem vindo a decidir, "ao saldo das contas bancárias aplica-se o disposto no art. 516º, do CCivil, e daí que nas relações internas entre os vários contitulares presume-se que todos têm uma pretensão a idêntica percentagem do saldo, quer este seja positivo, quer seja negativo. (Margarida Lima Rego, in Código Civil Anotado, I, Almedina, 2017, p. 680, e na jurisprudência, entre outros, os acórdãos do STJ de 22.11.2011, P. 1561/07 e de 24.05.2022, P. 4482/21). Assim também dispõe o art. 166º, nº 4, alínea d) do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo DL nº 298/92 de 31.12., "na ausência de disposição legal em contrário, presumem-se pertencerem em partes iguais aos titulares os saldos das contas coletivas, conjuntas ou solidárias."»[7]
Portanto, no cenário apurado nos autos temos de concluir que os 35.000,00 € e os 7.200,00 € eram bens comuns do casal.
Na sua reclamação é claro que o requerente, com o segmento em apreço, pretende ser ressarcido do prejuízo que sofreu com a apropriação, por parte da requerida, de 42.000,00 € da massa conjugal. E para tal, em termos de enquadramento jurídico, considerou que da realidade descrita resulta que é credor do património comum. Dentro desta linha de pensamento, se ele é credor do património comum, este seria seu devedor.
Contudo, salvo melhor juízo, tendo em consideração exatamente os mesmos factos, o crédito que efetivamente existe não é do requerente (21.100,00 €) contra o património comum[8], mas sim da massa conjugal (42.000,00 €) contra a requerida. Na verdade, "na partilha, devem ser relacionados não só os bens existentes no património coletivo do casal à data da propositura da ação de divórcio (se a momento anterior não deverem retrotrair os seus efeitos), mas também aqueles que a esse património cada cônjuge deve conferir, por lho dever. Deve ser conferido ao património coletivo do casal, para ulterior partilha, aquele bem ou direito de que um dos cônjuges se apropriou sem que a tal tivesse qualquer direito, e por via do que engrandeceu o seu património próprio à custa desse património coletivo."[9]
E reconhecendo-se esse crédito de 42.000,00 € alcança-se o objetivo subjacente a esta parte da reclamação sem se ir para além do efeito prático-jurídico pretendido pelo requerente. Pois, sendo ele titular de ½ do património comum, o crédito de 42.000,00 € traduzir-se-á para si num benefício de (apenas) 21.100,00 €.
Ora, o n.º 3 do artigo 5.º do Código de Processo Civil consagra o princípio "iura novit curia", ao estabelecer que "o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito". Neste contexto, "incumbe ao tribunal proceder à qualificação jurídica que julgue adequada (…) nos limites do efeito prático-jurídico pretendido"[10], sendo que "o que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da ação, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exata caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objeto diverso do peticionado. Assim, é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter."[11]
Aqui chegados, deve ser relacionado um crédito de 42.000,00 € da massa conjugal contra a requerida.
5.º
O requerente pretende ainda que seja aditado à relação de bens um crédito seu de 24.939,89 €.
Na sua reclamação afirmou (unicamente) que é credor «no montante de € 24.939,89, quantia essa que adveio para o Requerente por herança à morte de seus pais, sendo por isso bem próprio do Requerente, quantia essa que foi transferida à morte dos pais para uma conta do "Banco 6..."».
É certo que, como dispõe o artigo 1722.º n.º 1 b) do Código Civil, os bens que advierem a um dos cônjuges por sucessão têm a natureza de bens próprios. Porém, na situação em análise não há qualquer facto que aponte no sentido de que esses 24.939,89 € se encontram, direta ou indiretamente, refletidos nos bens relacionados. A circunstância de se ter provado que, por morte dos seus pais, o requerente recebeu, "a título de herança, o montante de 24.939,89 €" e de eventualmente essa quantia ter sido «transferida à morte dos [seus] pais para uma conta do "Banco 6..."» é claramente insuficiente para se saber o percurso desses 24.939,89 € ao longo dos anos que se seguiram a tais mortes. Desconhecemos se essa quantia ainda existe, e em caso afirmativo onde se encontra, ou se já foi utilizada, e em caso afirmativo em quê.
Não há, portanto, factos que sustentem a alegação de que o requerente é credor do património comum de 24.939,89 €.
III
Com fundamento no atrás exposto julga-se parcialmente procedente o recurso, pelo que:
a) se determina que seja aditado à relação de bens um crédito do património comum do casal de 42.000,00 € contra a requerida.
b) se mantém no mais a decisão recorrida;
Custas na proporção de metade pelo requerente e pela requerida.
Notifique.
António Beça Pereira
Ana Cristina Duarte
Afonso Cabral de Andrade
[1] São deste código todos os artigos mencionados adiante sem qualquer outra referência. [2] Ac. STJ de 4-6-2024 no Proc. 1098/20.0T8BRG.G1.S1. Neste sentido veja-se Ac. STJ de 25-5-2021 no Proc. 384/16.9YHLSB.L1.S1 e Ac. STJ de 10-12-2020 no Proc. 4390/17.8T8VIS.C1.S1, todos em www.gde.mj.pt. [3] Ac. Rel. Coimbra de 20-01-2015 no Proc. 2996/12.0TBFIG.C1, em www.gde.mj.pt. [4] A qualidade da gravação é má, possivelmente por estar a ser ouvida por videoconferência. [5] Por manifesto lapso faz alusão à herança quando se queria referir ao património comum do casal. [6] Sem, no entanto, especificar qualquer uma dessas concretas "despesas inesperadas e incomportáveis". [7] Ac. STJ de 29-10-2024 no Proc. 431/19.2T8AND.P1.S1 [8] Se fosse assim, uma vez que que o requerente tem direito a ½ do património comum, se deste se retirassem os 21.100,00 € para ser pago o seu crédito, na prática ele estaria a pagar a si próprio metade deste montante (10.550,00 €). [9] Ac. Rel. Porto de 16-4-2013 no Proc. 133/08.5TBMGD-C.P1, www.dgsi.pt. [10] Ac. STJ de 19-1-2017 no Proc. 873/10.9T2AVR.P1.S1, www.gde.mj.pt. [11] Ac. STJ de 7-4-2016 no Proc. 842/10.9TBPNF.P2.S1. No mesmo sentido veja-se Ac. STJ de 5-11-2009 no Proc. 308/1999.C1.S1, ambos em www.gde.mj.pt.