RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
DESOBEDIÊNCIA
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
DOLO
RECUSA
PESQUISA DE ÁLCOOL
IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I. No caso presente, quer se entenda que se aplica ao caso a jurisprudência consignado no AUJ n° 1/2015, ou não, não subsistem dúvidas que, ao inverso do que é afirmado em sede de decisão da 1ª instância, resulta da leitura dos factos dados como assentes, que o arguido actuou de forma consciente, pese embora esse preciso adjectivo não conste do rol dos factos provados.
II. A sentença de 1ª instância funda-se num equívoco – o de que apenas a inserção da palavra tabelar “consciente” determina e possibilita que se extraia da matéria factual, tal actuação consciente.
III. O uso de certas frases tabulares ou frases de bordão, não determina que apenas se mostrando as mesmas inseridas num texto, se possa entender que os elementos constitutivos do dolo se mostrem preenchidos, uma vez que a nossa lei não impõe o uso obrigatório e forçoso de tal tipo de recurso estilístico, ainda para mais quando tal vocábulo é um adjectivo, sendo certo que a adjectivação é algo a evitar em sede de matéria de facto, já que os adjectivos servem para qualificar ou caracterizar um substantivo, atribuindo-lhe um estado, qualidade, defeito ou modo de ser.
IV. Se é verdade que à afirmação do dolo não basta o conhecimento e vontade de realização do tipo, sendo preciso, igualmente, que esteja presente o conhecimento e a consciência, por parte do agente, do carácter ilícito da sua conduta, o que resulta – quanto a nós claramente – é que a consciência da mesma se verifica e se mostra demonstrada, não apenas pelo jargão final, mas reforçada ainda por excertos da própria matéria de facto provada.
V. Assim, ainda que se entenda que a consciência corresponde a um elemento emocional do dolo, independente ou complementar do conhecimento, como alguns autores defendem, a verdade é que, no caso concreto, a matéria factual, pese embora não recorra expressamente ao adjectivo “consciente”, descreve em plenitude tal conceito, com recurso à riqueza própria da nossa língua, essencialmente através do uso de substantivos e de verbos.
VI. Como se afirma no AUJ acima referido, “a acusação, enquanto delimitadora do objecto do processo, tem de conter os aspectos que configuram os elementos subjectivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido acima referido, englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso”.
VII. No caso presente, a consciência ética cuja narração se mostra exigida subsume-se à consciência dos valores e à atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso, que se mostra dada como assente.

Texto Integral

Acordam em conferência na 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I – relatório

1. Por sentença de 20 de Março de 2025, foi proferida a seguinte decisão:

Absolve-se o Arguido AA da imputada prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal.

2. Inconformado, interpôs o MºPº recurso para o Tribunal da Relação de Évora, alegando que os factos provados na sentença preenchem todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de desobediência p. e p. pelo art. 348.°, n.° 1, al. a) do CP, por remissão do art. 152.°, n.° 3 do CE, pelo que a absolvição do arguido, viola o disposto nos artigos 14.°, 69.°, n.° 1, al. c), e 348.°, n.° 1, al. a) do Código Penal, no artigo 152.°, n.°s 1, al. a) e 3 do Código da Estrada, e nos artigos 283.°, n.° 3, al. b) e 311.° do Código de Processo Penal, bem como a correcta interpretação do AUJ n.° 1/2015.

3. Por acórdão de 25 de Junho de 2025, veio tal recurso a ser julgado procedente e, em consequência, foi proferido, pelo Tribunal da Relação de Évora, a seguinte decisão:

a.1) condenar AA, pela autoria de um crime de desobediência, previsto no artigo 348., § 1., al. a) CP, com referência aos artigos 152., § 1', al. a) e § 3. e 156., § 1. do CE e ainda o artigo 69.º, § 1.º al. c) CP, na pena de 100 dias de multa, à razão diária de 5€, o que perfaz o montante global de 500€.

a.2) Mais o condenando na pena acessória de proibição de conduzir todo e qualquer veículo motorizado pelo período de 12 meses, nos termos do artigo 69.º, do C.P, devendo o arguido entregar o respetivo título de condução na secretaria do tribunal (Juízo Local de Setúbal), ou em qualquer posto policial, no prazo de 10 dias, a contar do trânsito em julgado do presente acórdão, sob pena de, não o fazendo, ser determinada a apreensão daquele título, de harmonia com o disposto no artigo 500.º, § 2.º e 3.º CPP e de incorrer na prática de um crime de desobediência. a.1) condenar AA, pela autoria de um crime de desobediência, previsto no artigo 348., § 1., al. a) CP, com referência aos artigos 152., § 1., al. a) e § 3. e 156., § 1. do CE e ainda o artigo 69.º, § 1.º al. c) CP, na pena de 100 dias de multa, à razão diária de 5€, o que perfaz o montante global de 500€.

a.2) Mais o condenando na pena acessória de proibição de conduzir todo e qualquer veículo motorizado pelo período de 12 meses, nos termos do artigo 69.º, do C.P, devendo o arguido entregar o respetivo título de condução na secretaria do tribunal (Juízo Local de Setúbal), ou em qualquer posto policial, no prazo de 10 dias, a contar do trânsito em julgado do presente acórdão, sob pena de, não o fazendo, ser determinada a apreensão daquele título, de harmonia com o disposto no artigo 500.º, § 2.º e 3.º CPP e de incorrer na prática de um crime de desobediência.

4. Inconformado agora com esta decisão, veio o arguido AA interpor recurso para este STJ, peticionando a revogação do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, mantendo-se na íntegra a douta Sentença proferida pelo Tribunal da 1ª Instância.

5. O recurso foi admitido.

6. O MºPº junto do tribunal “a quo” pronunciou-se no sentido de que o recurso não merece provimento.

7. Neste tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em idêntico sentido.

II – questão a decidir.

Errada apreciação jurídica.

iii – fundamentação.

Errada apreciação jurídica.

1. O tribunal de 1ª instância deu como assentes os seguintes factos:

1. No dia 16.02.2025, cerca das 03.30H, o Arguido AA conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros, da marca Mercedes, com matrícula V1, na Localização 1, em Palmela, tendo ingerido bebidas alcoólicas previamente.

2. Instado por militares da GNR a efectuar exame para detecção de condução de veículo sob influência de álcool, através de teste quantitativo ao ar expirado, o Arguido AA recusou realizar o referido teste.

3. Questionado pelo militar se possuía alguma limitação física que o impedisse de realizar o teste de ar expirado quantitativo, o Arguido AA respondeu negativamente.

4. O Arguido AA foi advertido que, em caso de recusa à realização do exame de pesquisa de álcool, incorreria na prática de um crime de desobediência.

5. Apesar de ter recebido e compreendido a ordem que lhe fora transmitida por militar da GNR, que sabia ser legítima, o Arguido AA recusou submeter-se à realização do referido teste de pesquisa de álcool, bem sabendo que não possuía qualquer impossibilidade física que o impedisse a realizar o referido teste, o que quis e conseguiu.

6. O Arguido AA agiu de forma livre e deliberada, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

7. O Arguido:

- encontra-se desempregado, nada auferindo;

- vive com a sua esposa - que não trabalha - em casa de familiares, nada pagando para o efeito;

- tem um filho de um ano; tem a licenciatura.

8. O Arguido já foi julgado e condenado por:

-sentença proferida em 08/10/2009, transitada em julgado em 04/05/2015, no âmbito dos autos n.º 575/06.0TASTB, que correram termos pelo Juízo Local Criminal de Setúbal -Juiz 3, pela prática, em 26/04/2004, de um crime de desobediência, na pena de 75 dias de multa, à taxa diária de € 5,00;

-sentença proferida em 10/11/2015, transitada em julgado em 18/02/2019, no âmbito dos autos n.º 3480/12.8TASTB, que correram termos pelo Juízo Local Criminal de Setúbal -Juiz 3, pela prática, em 19/11/2012, de um crime de ameaça, na pena de seis meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de um ano;

- sentença proferida em 27/06/2014, transitada em julgado em 17/04/2015, no âmbito dos autos n.º 154/14.9PFSTB, que correram termos pelo Juízo Local Criminal de Setúbal -Juiz 4, pela prática, em 27/06/2014, de um crime de desobediência, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pela prática de quatro meses;

- sentença proferida em 24/03/2022, transitada em julgado em 27/04/2022, no âmbito dos autos n.º 196/20.5PGSXL, que correram termos pelo Juízo Local Criminal do Seixal -Juiz 1, pela prática, em 29/10/2020, de um crime de violência doméstica, na pena de dois anos de prisão suspensa na sua execução, por igual período de tempo, com regime de prova.

2. O Tribunal de 1ª instância procedeu à apreciação jurídica dos factos, nos seguintes termos:

Comete um crime de desobediência quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente se uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples ou na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação (348.º, n.º 1 do Cód. Penal).

Começando por identificar o bem jurídico protegido pela presente norma, diremos que esta pretende acautelar a autonomia intencional do Estado.

Da leitura do artigo 348.º, n.º 1 do Cód. Penal constata-se que o elemento objectivo do tipo-de-ilícito preenche-se com o não cumprimento de uma ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente.

O dever de obediência que se violou deve resultar de uma disposição legal que comine, no caso, a sua punição ou, na ausência desta, a correspondente cominação feita pela autoridade ou funcionário competente para o efeito.

A ordem e o mandado são legítimos quando não contrariam a ordem jurídica no seu todo - Neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal (…), 2008, página 825.

A ordem e o mandado são regularmente comunicados quanto transmitidos aos respectivos destinatários de forma compreensível para que estes fiquem cientes da mesma e da consequência da sua falta de cumprimento - incorrer num crime de desobediência.

A autoridade ou funcionário é competente quando detentores do poder legal para proferir a ordem ou o mandado em causa.

Este crime pode revestir a forma activa ou omissiva, sendo que a consumação do mesmo depende da forma assumida, ou seja, revestindo a forma activa consuma-se com a prática do acto proibido, revestindo a forma passiva consuma-se com a omissão do acto imposto.

Quanto ao elemento subjectivo, o mesmo admite qualquer uma das modalidades de dolo previstas no artigo 14.º do Cód. Penal.

O elemento subjectivo do presente tipo-de-ilícito preenche-se, então, com o incumprimento consciente e voluntário de uma ordem ou mandado voluntário, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente.

Resultou da factualidade dada como provada que foi emitida uma ordem legítima de autoridade competente, uma vez que os militares da GNR solicitaram ao Arguido a sujeição às provas legalmente estabelecidas para a detecção do estado de influência pelo álcool, através de teste quantitativo de alcoolemia no sangue.

O Arguido foi regulamente notificado da referida ordem, porquanto foi advertido pessoalmente que devia submeter-se aos testes legalmente previstos para a detecção de álcool no sangue, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência.

Sucede, porém, que o Arguido não cumpriu a referida ordem, já que se recusou a efectuar o teste quantitativo.

O Arguido sabia que os elementos da GNR se encontravam no exercício de funções e que lhe incumbia a obrigação legal de se submeter aos testes legalmente previsto para a detecção de álcool no sangue.

Aqui chegados, e analisados os factos alegados na acusação quanto ao elemento subjectivo consta tão só o seguinte “O Arguido AA agiu de forma livre e deliberada, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”.

De acordo com o disposto no artigo 14.º do Código Penal, do qual se extraem os vários tipos de dolo, retira-se que o tipo subjetivo de ilícito “conceitualiza-se na sua formulação mais geral, como conhecimento e vontade da realização do tipo objetivo de ilícito, o mesmo será dizer, o dolo do tipo decompõe-se no conhecimento (momento intelectual) e vontade (momento punitivo) de realização do facto. (…) do que no elemento intelectual do dolo verdadeiramente e antes de tudo se trata é da necessidade para que o dolo do tipo se afirme, que o agente conheça, saiba, represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias de facto que preenche um tipo de ilícito objectivo”- [vide Figueiredo Dias, apud Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15-05-2019, relatado por Vasques Osório, disponível em www.dgsi.pt]. - Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20/02/2024, processo n.º 119/20.1PBELV.E1, disponível in www.dgsi.pt.

Por outro lado e reproduzindo aqui a fundamentação constante da jurisprudência fixada “a acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo, tem de conter os apetos que configuram os elementos subjetivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa (…), englobando, [além do mais], a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso (…)” - [cfr. AUJ n.º 1/2015, publicado no Diário da República, 1ª Série, nº 18, de 27 de janeiro de 2015]. - idem.

Ora, e citando o Acórdão do STJ, de 28-03-2019, proc. n.º 373/15.0JACBR.C1.S1, relator Nuno Gomes da Silva “num crime doloso da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua ação), deliberada (…) e conscientemente (…), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”. - [apud acórdão do TRC de 01-06-2011, proc. n.º 150/10.5T3OVR.C1, relatora Maria Pilar Oliveira]. - idem.

Assim sendo, impõe-se concluir que não foram alegados, na acusação, a determinação consciente do Arguido, enquanto elemento subjectivo do dolo do tipo de culpa.

Ora, afigura-se-nos ser incontornável que, na situação concreta, importa ter em conta o que se determinou no acórdão uniformizador de juriprudência nº 1/2015, de 20 de Novembro, no qual podemos ler relativamente ao dolo, que a sua alegação deverá ser feita através de uma «fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo rpresentado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).». - idem.

Destarte, reportando-nos de novo à jurisprudência uniforme, impõe-se concluir que“[a] falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e da vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art.º 358.º do Código de Processo Penal”. - [Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015, publicado no Diário da República, 1ª Série, nº 18, de 27 de janeiro de 2015]. - idem.

Pelo exposto, por não constar da acusação o dolo do tipo de culpa, nada mais resta que não seja absolver o Arguido da prática do crime que lhe vem imputado, face à atipicidade da conduta provada.

3. O acórdão do Tribunal da Relação de Évora, sem proceder a qualquer alteração factual, pronunciou-se, no que toca ao enquadramento jurídico dos factos, nos seguintes termos:

2.1 Da responsabilidade criminal do arguido

Entende o recorrente que o modo como se descrevem os factos na acusação e se vieram a provar, tal como se mostram nos pontos 4., 5. e 6. do elenco dos factos provados na sentença recorrida, é suficiente para descrever os elementos intelectual, volitivo e a consciência da ilicitude.

Já o arguido, sustentando o entendimento vertido na sentença, considera que a acusação não alega os factos necessários à imputação «da determinação consciente do arguido, enquanto elemento subjetivo do dolo do tipo de culpa.»

Vejamos.

É certo – como assinala a Mm.a Juíza - que o bordão utilizado na acusação para descrever o elemento subjetivo do tipo de ilícito não é tão amplo como outros do mesmo jaez. O que falta saber é se dos factos provados se não infere o dolo do tipo de culpa ou o «tipo-de-culpa dolosa».

2 Cf. acórdão do STJ n.° 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.

Em boa verdade, todas as formulações que gizam uma síntese, são sempre incompletas. O que importa realmente é saber se deixam de fora algo essencial.

A teoria do direito reparte o dolo num duplo enquadramento: em sede de tipo (em que expressa o sentido jurídico-social da ação - o desvalor da conduta); e em sede de culpa do agente, enquanto expressão da decisão de contrariar o direito ou de ser indiferente ao valor – ao bem jurídico - lesado pela conduta (a atuação consciente de que a conduta em causa é prevista e punida por lei). Para Jorge de Figueiredo Dias o dolo da culpa expressa «uma atitude pessoal de contrariedade ou indiferença» perante o dever-ser jurídico-penal.3

Como é que em cada caso ressalta dos factos provados o dolo da culpa (ou o «tipo de culpa dolosa»)?

Pode ressaltar das formas as mais variadas, o que tem é de transmitir, de modo inequívoco, que a atitude assumida pelo arguido giza, efetivamente, contrariar ou ser indiferente ao dever-ser jurídico-penal. Isto é, encontrando-se numa posição em que sendo conhecedor dos elementos objetivos da norma penal e em que podia determinar-se de modo diverso (agir de acordo com o dever-ser jurídico-penal), toma livre e intencionalmente a opção de o não respeitar.

No dia em referência, referido nos factos provados, o arguido conduzia um veículo automóvel na via pública quando foi interpelado pelos agentes da autoridade policial a realizar o exame de pesquisa de álcool no sangue. E ele recusou fazê-lo. Perguntado então se a razão dessa recusa tinha a ver com algum comprometimento de natureza fisiológica (porque podia haver algum constrangimento dessa natureza ou outra), o arguido respondeu negativamente.

3 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais; A doutrina Geral do Crime 3ª edição, outubro de 2019, p. 323.

Nessa sequência foi advertido que, perante essa circunstância, recusando cumprir a ordem de realização do referido exame de pesquisa de álcool, isso o faria incorrer na prática de um crime de desobediência. E bem ciente de que praticaria um crime de desobediência o arguido escolheu praticá-lo.

A fórmula (o bordão) que se expressa no ponto 6.° dos factos provados, com o complemento dos factos dos pontos 4.° e 5., preenche, a nossos olhos, quer o dolo do tipo (atuação com conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo de ilícito) quer o dolo da culpa (a atuação consciente de que a conduta em causa é prevista e punida por lei) : i.e. que o arguido se determinou livre e conscientemente a violar a norma penal (com o que se afastam as causas de exclusão da culpa); que «agiu de modo deliberado» (i.e. que praticou o facto ilícito sendo conhecedor do dever de realizar o exame), bem ciente dos elementos objetivos do tipo de ilícito. E que, ao assim agir, o fazia contra o direito. Escolhendo determinar-se de modo contrário ao dever imposto pela norma penal, i.e. contra o dever de agir de certo modo.

Em abono da tese sustentada na sentença invoca-se o Acórdão Uniformizador da Jurisprudência n.° 1/2015, cujo dispositivo é o seguinte: «a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.° do Código de Processo Penal.»

Diremos sobre isto duas coisas:

1. A interpretação normativa afirmada neste aresto talvez não resolva a questão em equação neste processo.

Para bem se compreender a conclusão tirada neste acórdão uniformizador da jurisprudência, deverá atentar-se na globalidade da sua, aliás proficiente, fundamentação. Mormente no que nele se refere no § 6.° do ponto 10.2.3.1, sobre a consciência da ilicitude, afirmando-se que ela se coloca no plano dogmático a um nível diferente da avaliação do dolo na realização do facto típico, porque tem a ver com a questão da relevância do erro sobre a ilicitude ou sobre a proibição. Acrescentando-se que, não se tratando de caso em que se possa afastar a censurabilidade do ato, o facto praticado sem consciência da ilicitude é equiparável ao praticado com essa consciência.

E para ilustrar essa ideia faz-se uma menção expressa à excelente síntese tirada noutro acórdão do mesmo Supremo Tribunal4, no qual se faz luz sobre a controvérsia aqui suscitada, na circunstância a propósito (dir-se-ia, enfaticamente) do crime de homicídio, do seguinte modo: «a consciência da ilicitude está implícita no conhecimento do próprio facto, sendo impensável que alguém, provido de razão, desconheça que a lei proíbe e pune o homicídio.»

4 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, julgado a 7out1992, proc. 042918, Cons. Noel Pinto.

2. Esta questão vem sendo recorrentemente resolvida nos tribunais superiores nos seguintes termos:

Nos acórdãos do TRCoimbra, de 13set2017 (proc. 146/16), em que faltava na acusação por crime de injúria a expressão «sabia que a sua conduta era proibida e punida»; e do TRLisboa, de 10mar2022 (proc. 8467/19.7T9LSB.L1), em que faltava expressão equivalente à anterior, num crime de difamação, tendo-se decidido que as acusações deviam ser rejeitadas precisamente por adesão à fundamentação do acórdão uniformizador acima referido.

Trata-se, porém, de jurisprudência que está longe de ser consensual, nem mesmo maioritária. Veja-se p. ex., em sentido contrário: acórdão TRÉvora, de 19dez2019 (processo 219/18), considerou-se que a falta de narração do facto «falta de consciência da ilicitude» não inviabilizava a condenação por crime de coação; no acórdão TRÉvora, de 26out2021 (processo 89/98.0TBELV.E1), decidiu-se que a omissão do facto «bem sabia o agente que a sua conduta era proibida» não era imprescindível para a imputação de um crime de dano; no acórdão TRÉvora, de 10jan2023 49/21.0GTEVR-C.E15, considerou-se que a consciência da ilicitude está implícita no conhecimento do próprio facto, sendo impensável que alguém, provido de razão, desconhecer que é proibido matar outra pessoa ou fazer uma condução grosseira e perigosa de veículo na via pública; no acórdão do TRÉvora, de 22fev2023 (processo 11/21.2PBFAR.E1), entendeu-se que a falta de idêntica expressão não impedia a condenação por crime de ameaça; e no acórdão do TRÉvora, de 25jun2025, proc. 214/23.5T9EVR.E16, considerou-se que a alegação «bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida» era suficiente para integrar a imputação de uma atuação com consciência da ilicitude penal.

5 Do qual foi relator o que neste acórdão tem essa mesma qualidade.

6 No qual foi adjunto o presente relator.

Conforme bem sintetiza o acórdão deste Tribunal da Relação: «tratando-se o crime de desobediência, previsto pelos artigo 348.°, n.° 1, al. a) do CP e 152.°, n.° 1 al. a) e n.° 3 do CE, de um crime de direito penal clássico, cuja existência e respetivos elementos integradores se presumem conhecidos da normalidade dos cidadãos, a consciência da ilicitude decorre da própria representação e vontade de praticar os factos que preenchem objetivamente o tipo penal, encontrando-se pois associada ao dolo.»7

A mesma ideia ressalta da bem elaborada síntese de Hannah Arendt: «o sentido de justiça enraizado no coração de todos os homens não é mais que um substituto do conhecimento da lei.»8

Consideramos, enfim, que o «bordão» da acusação (integralmente transposto para os factos provados da sentença), no qual se afirma que o arguido «agiu de forma livre e deliberada, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei», significa que estava não apenas ciente dos elementos objetivos do tipo de ilícito como da proibição de agir em contrário. Isto é, também ciente da proibição de nas concretas circunstâncias do caso recusar realizar o exame de pesquisa de álcool no sangue, tendo-se livremente determinando a agir contra a norma penal.

Ora, consciência e vontade não podem ser vistos isoladamente, pois, só se pode querer aquilo que se conhece. E atuar sabendo que uma conduta não é permitida é o mesmo que atuar sabendo que a conduta é proibida.

7 Acórdão TRÉvora, de 28mar2023, proc. 242/22.8PFSTB.E1, Rel. Maria Clara Figueiredo.

8 Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém (Relógio D’Água Editores, 2024, p. 399).

E se o arguido está acusado de um crime (e não de uma infração disciplinar ou de um ilícito civil) não pode ter qualquer dúvida sobre a proibição da recusa em realizar o exame que lhe fora solicitado.

Conforme se dispõe o artigo 152.° do Código da Estrada, no âmbito do «Procedimento para a fiscalização da condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas»:

1 - Devem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas:

a) Os condutores;

(...)3 - As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.° 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência.

(....)»

Preceituando-se depois no artigo 248.°, § 1.° do CP, sob a epígrafe «desobediência», que:

«1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:

a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou

b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.»

Da conjugação destas normas decorre o dever jurídico de os condutores se submeterem à realização das provas de deteção de álcool no sangue, quando a tal solicitados pelos agentes de fiscalização do trânsito rodoviário, sob pena de cometimento do crime de desobediência.

Apesar de conhecedor da obrigação legal de realizar o exame de pesquisa de álcool no sangue e que a sua recusa o faria incorrer num crime de desobediência (até porque isso lhe foi expressamente comunicado pelo agente da autoridade), o recorrente assumiu a sua atitude de recusa. Não o realizou porque não quis, apesar de bem ciente que essa atitude o faria incorrer na prática de um crime.

Nestas circunstâncias, perante uma consciente e intencional rebeldia em cumprir a norma prescritiva do direito penal, torna-se indubitável a prática pelo arguido do crime de desobediência.

4. O recorrente alega, em sede conclusiva, a propósito desta questão, o seguinte:

I. O Arguido concorda com a fundamentação do Tribunal da 1ª Instância, não se conformando com o douto Acórdão condenatório proferido pelo Tribunal a quo.

II. A Sentença proferida pelo Tribunal da 1ª Instância, não merece qualquer reparo, bem andou o Tribunal ao absolver o Arguido.

III. A Acusação deve descrever, pela narração dos respectivos factos, todos os elementos em que se decompõe o dolo.

IV. O elemento intelectual implica a previsão ou representação pelo agente das circunstâncias do facto logo,

V. o conhecimento dos elementos constitutivos do tipo objectivo, sejam descritivos sejam normativos.

VI. O elemento volitivo consiste na vontade do agente de realização do facto depois de ter previsto ou representado os elementos constitutivos do tipo objectivo

VII. A circunstância de o arguido saber que essa conduta era punida por lei, releva para consciência da ilicitude.

VIII. Faltando todos ou algum dos elementos caracterizadores do dolo na narração da acusação, o conjunto dos factos nela descritos não constituirá crime e assim sendo, torna-a inviável e, consequentemente, manifestamente infundada.

IX. A Acusação é omissa quanto a um dos elementos subjetivos do tipo de crime que vem imputado ao Arguido, ou seja, tão só consta que “o Arguido AA agiu de forma livre e deliberada, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”.

X. Não foram alegados, na Acusação, a determinação consciente do Arguido AA, enquanto elemento subjectivo do dolo do tipo de culpa,

XI. pois, por não constar da Acusação o dolo do tipo de culpa, bem andou o Tribunal da 1ª Instância, em absolver o Arguido da prática do crime que lhe vem imputado, face à atipicidade da conduta provada, não merecendo qualquer reparo.

XII. Nesta esteira veja-se o Ac. do TRP de 15-11-2017, relatado pelo Exmo. Sr Desembargador Pedro Vaz Pato, in www.dgsi.pt, que se decidiu que “Com efeito, nos crimes dolosos, a verificação do tipo subjectivo de ilícito pressupõe o conhecimento e vontade de realização de um tipo legal de crime por parte do agente, ou seja, pressupõe que estejam presentes o elemento intelectual e o elemento volitivo. Mas além disso, o dolo exige o chamado elemento emocional. Na verdade, o dolo não se esgota no conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo. É necessário, ainda, que àquele conhecimento e vontade, acresça um elemento emocional na caracterização da atitude pessoal do agente, exigida pelo tipo-de-culpa doloso. Por outras palavras: à afirmação do dolo não basta o conhecimento e vontade de realização do tipo, sendo preciso, igualmente, que esteja presente o conhecimento e a consciência, por parte do agente, do carácter ilícito da sua conduta. Assim, o elemento intelectual do dolo “só poderá ser afirmado quando o agente actue com todo o conhecimento indispensável para que a sua consciência ética se ponha e resolva correctamente o problema da ilicitude do seu comportamento”, isto é, quando o agente actue com conhecimento da factualidade típica. Já o elemento volitivo traduz a “vontade do agente dirigida à realização do tipo legal de crime”. Finalmente, o elemento emocional representa o “conhecimento ou consciência do carácter ilícito” da conduta, estando ligado, pois, ao chamado tipo de culpa doloso. Com efeito, este elemento emocional é dado “através da consciência da ilicitude” e “é um elemento integrante da forma de aparecimento mais perfeita do delito doloso”. Daí que só possa afirmar-se que o agente actuou dolosamente quando, nomeadamente, esteja assente que o mesmo actuou com conhecimento ou consciência do carácter ilícito e criminalmente punível da sua conduta. Em suma: o dolo só existirá quando o agente actue com conhecimento e vontade de realização do tipo-de-ilícito e com conhecimento ou consciência da ilicitude da sua actuação, ou seja, “sempre que o ilícito típico seja fundamentado por uma censurável posição da consciência-ética do agente perante o desvalor do facto, pressuposto que aquela se encontrava correcta e suficientemente orientada para esta” - cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 199 a 204, e Pressupostos da Punição e Causas que Excluem a Ilicitude e a Culpa in “Jornadas de Direito Criminal”, Ed. do Centro de Estudos Judiciários, pp. 72 e 73.

XIII. Resulta claríssimo do Acórdão STJ 1/2015, de 27 de Janeiro de 2015, que constitui uma peça jurídica de elevada qualidade, no qual se fixou a seguinte Jurisprudência: “a falta de descrição, na acusação, a dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da actualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente valor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358 código de processo penal.”

XIV. Ali se escreveu, também, entre o mais:

XV. “ora, a acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação o, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objetivo do ilícito; A intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo direto, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo, nos crimes desta natureza, como consequência necessária da sua conduta, tratando-se de dolo necessário, ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando se o agente com a realização do evento, se se tratar de dolo eventual.”

XVI. A acrescer a esses elementos teríamos o tal elemento emocional, traduzido na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma e fazendo parte, como vimos, do tipo de culpa doloso, na doutrina do Senhor Professor Dr. Figueiredo Dias.

Por isso, que tradicionalmente se engloba nos elementos subjetivos do crime, costuma ser expresso na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado de forma livre, isto é podendo agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever ser jurídico, voluntária e deliberadamente, querendo a realização do facto, conscientemente isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto e sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, consciência e da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude.

Em conclusão: a acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo, tem de conter os aspetos que configuram os elementos subjetivos do crime, nomeadamente os caracterizam, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido acima referido englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente da indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo agir de modo diverso; o conhecimento a representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção representação do evento como consequência necessária, ou a representação desse evento como possível, conformando o agente com a sua produção, dolo eventual, atuando, assim, conscientemente contra o direito.”

XVII. Nos termos do consagrado no artigo 283º, nº.3 alínea b) do Código de Processo Penal a Acusação contém, sob pena de nulidade (sublinhado e negrito nosso),

XVIII. a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, ou lugar, o tempo e a motivação da sua prática,

XIX. o grau de participação que o agente neles teve, e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deva ser aplicada.

XX. Caso estes factos não constem da Acusação a mesma não se afigura como fundada,

XXI. porque porquanto é insuscetível de suportar a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança,

XXII. não sendo os elementos subjetivos passíveis de serem considerados objetivamente resultantes dos elementos objetivos.

XXIII. Neste sentido que o Supremo Tribunal de Justiça fixou a seguinte jurisprudência: “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente os que se traduzem no conhecimento, representação ou provisão de todas as circunstâncias da actualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente valor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358º do Código de Processo Penal” , cfr. Acórdão do S. T. J. Número 1/2015 publicado no D. R. Série 1, de 27. 01. 2015.

XXIV. Mais se acrescentou em tal Acórdão que “a acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo, tem de conter os aspetos que configuram os elementos subjetivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, e de culpa no sentido acima referido, englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo agir de modo diverso, o conhecimento da representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto este carácter descritivo, como este cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação de um evento como consequência necessária, dolo necessário ou representação desse evento como possível conformando-se o agente com a sua produção, dolo eventual, atuando, assim conscientemente contra o direito.”

XXV. Não consta da Acusação, a vontade do arguido em realizar os factos típicos referidos, ou seja,

XXVI. o conhecimento por parte do arguido de que a sua conduta é proibida e punida por lei penal, a denominada consciência da ilicitude.

XXVII. Assim, somos de parecer, com mui respeito, que mal andou o Tribunal a quo a condenar o Arguido, devendo manter-se a Sentença proferida pelo Tribunal da 1ª Instância, nos seus precisos termos, uma vez que não merece qualquer reparo.

5. Apreciando.

Como se depreende da leitura dos excertos transcritos e como resulta igualmente, de um profundo e elaborado estudo vertido pelo MºPº, quer na resposta ao recurso apresentada, quer no parecer elaborado, o debate em torno dos presentes autos reporta-se (como afirma o Exº PGA no seu parecer), à questão básica que leva à oposição de entendimentos reside na (des)necessidade de, em sede de acusação (ou de decisão instrutória), constar expressamente a chamada «consciência da ilicitude» do arguido aquando da prática dos factos.

Tanto o acórdão recorrido, como a decisão de 1ª instância, como como ainda o referido pelo Ministério Público na motivação de recurso, na resposta, e no parecer emitido no Tribunal da Relação de Évora referem a divergência de opiniões que acerca dessa questão existe e que se aguarda ver-se tratada em sede de recurso de fixação de jurisprudência por este STJ.

6. É verdade que, em certa medida, assim é, mas, salvo o devido respeito, no caso presente, a questão é francamente mais simples, como aliás resulta da 1ª parte da fundamentação prolatada pelo acórdão do TRÉvora que, apenas já de modo subsidiário, faz depois apelo à questão da aplicabilidade ou não ao caso do AUJ n° 1/2015, cujo dispositivo é o seguinte: A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.° do Código de Processo Penal.

7. De facto, quer se entenda que se aplica ao caso tal jurisprudência ou não (nos termos que o Exº PGA exaustivamente expõe), no caso concreto cremos não subsistirem dúvidas que, ao inverso do que é afirmado em sede de decisão da 1ª instância, resulta cristalino da leitura dos factos dados como assentes, que o arguido actuou de forma consciente.

8. Efectivamente, e mais uma vez salvaguardando o respeito devido, cremos que a sentença de 1ª instância se funda num equívoco – o de que apenas a inserção da palavra tabelar “consciente” determina e possibilita que se extraia da matéria factual, tal actuação consciente.

É manifesto, quanto a nós, que assim não é.

9. O uso de determinadas frases tabulares, frases de bordão, como as denomina o acórdão revidendo, não determina que apenas se mostrando as mesmas inseridas num texto, se possa entender que os elementos constitutivos do dolo se mostrem preenchidos.

De facto, nada obriga, em sede criminal, o recurso obrigatório e forçoso a tal tipo de recurso estilístico, ainda para mais quando tal vocábulo é um adjectivo (que se transforma em advérbio quando usado na forma conscientemente), sendo certo que a adjectivação é algo a evitar em sede de matéria de facto, precisamente porque a mesma deve ser essencialmente composta por substantivos e verbos, sendo que os adjectivos servem para qualificar ou caracterizar um substantivo, atribuindo-lhe um estado, qualidade, defeito ou modo de ser.

10. Tornou-se um hábito o recurso a tal tipo de jargão, é um facto, mas nada na lei determina ou impede que, ao invés do uso do mesmo, se descreva, com recurso à riqueza própria da nossa língua, tais elementos caracterizadores do dolo, por outro modo, essencialmente através do uso de substantivos.

E, no caso, o que se nos afigura flagrante é que o tribunal de 1ª instância, ao dar pela ausência de uma palavra que costuma constituir o jargão final da acusação – consciência (O Arguido AA agiu de forma livre e deliberada, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.) – daí partiu para a ausência de caracterização factual da mesma.

Mas sem razão.

11. Se é verdade que à afirmação do dolo não basta o conhecimento e vontade de realização do tipo, sendo preciso, igualmente, que esteja presente o conhecimento e a consciência, por parte do agente, do carácter ilícito da sua conduta, o que resulta – quanto a nós claramente – é que a consciência da mesma se verifica e se mostra demonstrada, não apenas pelo jargão final, mas reforçada ainda por excertos da própria matéria de facto provada.

Desde logo, no que consta no ponto 6. dos factos provados - 6. O Arguido AA agiu de forma livre e deliberada, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei., em conjugação com os pontos 4 e 5 - 4. O Arguido AA foi advertido que, em caso de recusa à realização do exame de pesquisa de álcool, incorreria na prática de um crime de desobediência. 5. Apesar de ter recebido e compreendido a ordem que lhe fora transmitida por militar da GNR, que sabia ser legítima, o Arguido AA recusou submeter-se à realização do referido teste de pesquisa de álcool, bem sabendo que não possuía qualquer impossibilidade física que o impedisse a realizar o referido teste, o que quis e conseguiu.)

Como correctamente assinala o acórdão ora posto em crise, A fórmula (o bordão) que se expressa no ponto 6.° dos factos provados, com o complemento dos factos dos pontos 4.° e 5., preenche, a nossos olhos, quer o dolo do tipo (atuação com conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo de ilícito) quer o dolo da culpa (a atuação consciente de que a conduta em causa é prevista e punida por lei) : i.e. que o arguido se determinou livre e conscientemente a violar a norma penal (com o que se afastam as causas de exclusão da culpa); que «agiu de modo deliberado» (i.e. que praticou o facto ilícito sendo conhecedor do dever de realizar o exame), bem ciente dos elementos objetivos do tipo de ilícito. E que, ao assim agir, o fazia contra o direito. Escolhendo determinar-se de modo contrário ao dever imposto pela norma penal, i.e. contra o dever de agir de certo modo.

Consideramos, enfim, que o «bordão» da acusação (integralmente transposto para os factos provados da sentença), no qual se afirma que o arguido «agiu de forma livre e deliberada, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei», significa que estava não apenas ciente dos elementos objetivos do tipo de ilícito como da proibição de agir em contrário. Isto é, também ciente da proibição de nas concretas circunstâncias do caso recusar realizar o exame de pesquisa de álcool no sangue, tendo-se livremente determinando a agir contra a norma penal.

Ora, consciência e vontade não podem ser vistos isoladamente, pois, só se pode querer aquilo que se conhece. E atuar sabendo que uma conduta não é permitida é o mesmo que atuar sabendo que a conduta é proibida.

Nestas circunstâncias, perante uma consciente e intencional rebeldia em cumprir a norma prescritiva do direito penal, torna-se indubitável a prática pelo arguido do crime de desobediência.

12. Mais, dir-se-á: se o arguido sabia que não possuía qualquer impossibilidade física que o impedisse de realizar o referido teste e manteve a recusa – isto é, não realizou a acção que lhe competia (soprar para a máquina) -essa recusa é absolutamente consciente, querida e voluntariamente mantida, pese embora soubesse que era um comportamento proibido e punido por lei.

Assim, ainda que se entenda que a consciência corresponde a um elemento emocional do dolo, independente ou complementar do conhecimento, como alguns autores defendem, nomeadamente, como se refere nas alegações de recurso, a verdade é que, no caso concreto, a matéria factual, pese embora não recorra expressamente ao adjectivo “consciente”, descreve em plenitude tal conceito.

13. Acresce que, ainda que se entenda aplicável ao caso o vertido no AUJ acima referido, a verdade é que, lido o mesmo e ultrapassada a discussão a propósito de uma série de outras questões e conceitos, aí se afirma:

10.2.4. Em conclusão: a acusação, enquanto delimitadora do objecto do processo, tem de conter os aspectos que configuram os elementos subjectivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido acima referido, englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), actuando, assim, conscientemente contra o direito.

14. Ora, o que resulta do que se mostra transcrito é que, em sede de tal decisão, a consciência ética cuja narração se mostra exigida se subsume à consciência dos valores e à atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso.

Face à factualidade provada nos presentes autos, cremos que não restam dúvidas que, mesmo no âmbito deste AUJ, se teria de concluir pela inexistência de lacuna ou falta de descrição, em sede acusatória (sendo que foram os factos que aí constavam, caracterizadores da sua actuação, que vieram a ser dados como assentes na sentença), uma vez que qualquer leitor incauto se apercebe, ao ler a matéria fáctica apurada, que o arguido sabia, tinha conhecimento, tinha consciência de que o seu comportamento não era permitido por lei e, apesar disso, resolveu assim actuar, demonstrando indiferença pela lei criminal, o que fez porque quis, sendo que lhe era perfeitamente possível actuar de modo diverso, já que não padecia de nenhuma incapacidade física que o impedisse de soprar para um aparelho medidor quantitativo.

Acresce que, no caso, não só o arguido já havia soprado anteriormente em aparelho similar (aparelho qualitativo), não apresentando o mesmo, nesse aspecto, qualquer diferença para com o aparelho quantitativo, que se recusou a soprar e, como consta do seu CRC, até já havia sido anteriormente condenado pela prática de dois outros crimes de desobediência…

15. Concluímos, pois, que a matéria de facto dada como assente preenche todos os elementos subjectivos do tipo, pelo que a decisão tomada pelo acórdão prolatado pelo TRÉvora deve ser mantido, não merecendo a censura que o recorrente lhe dirige.

iv – decisão.

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a TJ em 5 UC.

Lisboa, 29 de Outubro de 2025

Maria Margarida Almeida (relatora)

Antero Luís

José Carreto