RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
IDENTIDADE DE FACTOS
PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
SUSPENSÃO DE PRAZO
CADUCIDADE
QUEIXA
VERIFICAÇÃO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Sumário


I – O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência assume-se como uma espécie de recurso normativo, por contraposição com o denominado recurso hierárquico, onde se visa a determinação do sentido de uma norma, com força quase obrigatória, geral e abstrata, em benefício dos valores da certeza e da segurança jurídica, unificando, por essa forma, a interpretação e o sentido de um preceito legal ou dimensão normativa que os tribunais de recurso consideravam de modo divergente.
II – Em termos materiais importa apurar se ante todos os elementos fornecidos pelos autos, transluz o desenho de asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos, consagrando soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito, as quais ditaram soluções opostas na interpretação e aplicação das mesmas normas perante factos de contornos idênticos.
III – Importa, assim, sopesar sobre se as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos fixaram ou consagraram soluções diferentes (e não apenas contraposição de fundamentos ou de afirmações) para a mesma questão fundamental de direito, se as decisões em oposição são expressas e não implícitas, devendo ainda ponderar-se se o quadro factual e o respetivo enquadramento jurídico são, em ambas as decisões, idênticos.

Texto Integral


Acordam em Conferência na 3ª Secção Criminal


I. Relatório

1. AA e BB (doravante Recorrentes), não se conformando com o Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, em 28 de maio de 2025, transitado em julgado a 12 de junho de 20251, Acórdão recorrido, do mesmo vieram interpor recurso extraordinário para FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 437º e seguintes do CPPenal, invocando como Acórdão fundamento o prolatado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, no Processo nº 690/21.0T9TVD.L1-9, em 9 de fevereiro de 2023, transitado em julgado em 23 de fevereiro de 20232.

2. Em suporte desta pretensão os Recorrentes apresentam as seguintes conclusões: (transcrição)

1) O acórdão recorrido revogou o despacho de não pronúncia e determinou que os Recorrente fossem pronunciados pelos crimes de injúria agravada, na pessoa de CC e difamação agravada, na pessoa de DD.

2) Relativamente ao crime de difamação agravada, na pessoa de DD, os factos objeto da queixa remontam a 30/10/2020 e a queixa (julgada existente e adequada pelo tribunal recorrido) ocorreu em 09/06/2021, ou seja, para além do prazo de 6 meses preceituado no 115.º, n.º 1 do CP.

3) O Tribunal recorrido entendeu que o direito de queixa foi exercido tempestividade do por considerar que o prazo suspendeu-se entre os dias 22/01/2021 e 06/04/2021, por efeito do disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 6.º-B da Lei n.º 1 A/2020, de 19 de março, na redação da Lei n.º 4 B/2021, de 1 de fevereiro.

4) É desta parte do acórdão que se recorre, da parte em que se julgou a queixa apresentada por DD tempestiva e, nessa medida, revogou-se a decisão de não pronúncia, na parte em que, determinou-se que os Recorrentes fossem pronunciados pelo crime de difamação agravada, na pessoa de DD.

5) Esta decisão surge em contradição com o entendimento maioritário na jurisprudência, de que a suspensão dos prazos de caducidade e prescrição determinada pelo artigo 6.º-B da Lei n.º 1 A/2020, de 19 de março, na redação da Lei n.º 4 B/2021, de 1 de fevereiro, só operava relativamente aos prazos que iniciassem nesse período de suspensão.

6) Isto porque, se fossem aplicados a prazos de caducidade já iniciados anteriormente, conduziriam a uma aplicação retroativa e menos favorável ao arguido da lei, o que violaria frontalmente o princípio basilar da não retroatividade de lei penal, concretamente, menos favorável ao arguido, expresso nos artigos 2º, n.º 4 do Código Penal e 19º, n.º 6 e 29º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.

7) Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 09/02/2023, proferido no âmbito do processo n.º 690/21.0T9TVD.L1-9 (“acórdão fundamento”), no qual se decidiu: “Mas, esta suspensão da caducidade só opera relativamente aos prazos que tiverem início durante tais períodos. Caso estas Leis viessem a ser aplicadas a prazos de caducidade já iniciados anteriormente, fariam parar essa contagem que só seria retomada mais tarde e tal significaria (na prática) um prolongamento do respectivo prazo de queixa que (não decorrendo continuadamente) só findaria mais tarde, obviamente, em desfavor das pessoas denunciadas/arguidas. E, consequentemente, tal equivaleria a uma aplicação retroactiva, concretamente, menos favorável a estas últimas – violando o sobredito princípio basilar da não retroactividade de lei penal, concretamente, menos favorável ao arguido.”

8) O acórdão recorrido e o acórdão fundamento foram proferidos no domínio da mesma legislação e relativamente à mesma questão de direito.

Porquanto:

9) Em ambos os processos estão em causa crimes cujo procedimento criminal exige a apresentação de queixa, no prazo de 6 meses (artigos 49.º do CPP e 113.º, n.º 1, 115.º, n.º 1 e 188º do CP).

10) Em ambos os casos, a queixa foi apresentada para além do prazo legal de 6 meses.

11) Em ambos os casos, entre a data da prática dos factos e a data da queixa, mais concretamente em 02/02/2021, entrou em vigor a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, a qual veio alterar a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, aditando o art.º 6º-B, o qual veio estabelecer a suspensão dos prazos de caducidade relativos aos processos que corriam termos nos tribunais judiciais ou no Ministério Público, onde se incluem os processos criminais, entre os dias 22/01/2021 e 06/04/2021.

12) Assim, coube, quer o Tribunal a quo, quer ao Tribunal da Relação de Lisboa, apreciar e decidir se o art.º 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação dada pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, era aplicável aos respetivos casos concretos e, em caso afirmativo, as queixas seriam tempestivas ou se, ao invés, tal artigo não se aplicava aos respetivos casos concretos, caso em que, as queixas teriam de ser consideradas intempestivas.

13) No entanto, o Tribunais recorrido e o Tribunal que proferiu o acórdão fundamento adotaram soluções opostas.

14) Com efeito, no acórdão fundamento, entendeu-se que a suspensão do prazo de caducidade ao abrigo do art.º 6º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação dada pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro não poderia operar, porque equivaleria a uma aplicação retroativa, concretamente, menos favorável ao arguido, violando o sobredito princípio basilar da não retroatividade de lei penal.

15) Ao invés, no acórdão recorrido, o Tribunal a quo considera que a suspensão do prazo de caducidade nos termos do art.º 6º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação dada pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, pode operar.

16) Em face do exposto, encontrando-se o acórdão recorrido em oposição com o acórdão fundamento sobre a mesma questão de direito no domínio da mesma legislação, há fundamento para o presente recurso de fixação de jurisprudência, ao abrigo do disposto no art.º 437º, n.º 2 do CPP.

17) Como se pode ler no acórdão fundamento “É indiscutível, porque público e notório, que em 2020, devido a uma pandemia epidemiológica provocada pela doença Covid -19 que assolou Portugal (e o resto do mundo), foi declarado no nosso país quer o estado de emergência, quer o estado de calamidade (…) e por força destas Leis foi determinada, expressamente, a suspensão de todos e quaisquer prazos para a prática de actos processuais no âmbito de quaisquer processos judiciais e, também, a suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade nos períodos de 9/3/2020 a 3/6/2020 e de 22/1/2021 a 6/4/2021”.

18) Porém, quando este regime de suspensão de prazo implique efeitos retroativos, no domínio do direito penal e processual penal, as mesmas têm de ser conjugadas com um dos princípios basilares do nosso ordenamento jurídico que é o da não retroactividade das leis penais, salvo se, concretamente, mais favoráveis ao arguido, previsto nos artigos 18º, nº 3, e 29º, nº 4, da CRP.

19) Acresce que, resultando o referido regime de suspensão de prazo dum contexto em que foi declarado o estado de emergência (cf. Decretos do Presidente da República n.º 14-A/2020, 17-A/2020, 20-A/2020, 51-U/2020, 59-A/2020, 61-A/2020, 66-A/2020, 6-A/2021, 6-B/2021, 9-A/2021, 11-A/2021, 21-A/2021, 25-A/2021, 31-A/2021 e 41-A/2021, é incontornável tomar ainda em consideração o art.º 19º, nº 6, da CRP.

20) Dito isto, a aplicação do regime de suspensão dos prazos, aos casos em que o início da contagem do prazo de caducidade ocorreu antes da entrada em vigor de tal regime constitui, indubitavelmente, uma aplicação retroativa.

21) Consequentemente, por efeito dos artigos da Lei fundamental acima citados, importa saber se tal aplicação retroativa colide com o princípio da não retroatividade da lei criminal menos favorável ao arguido.

22) Neste aspeto é de realçar que, a proibição de aplicação retroativa de normas que agravem a responsabilidade penal, abarca além de, por exemplo, normas sobre as penas, todas as normas que alarguem o prazo de verificação de condições positivas de procedibilidade, de que é exemplo a queixa.

23) Baixando ao caso concreto, tendo o facto que motivou a queixa ocorrido em 30/10/2020 e aplicando-se o regime de suspensão de prazos que vigorou entre 22/1/2021 a 6/4/2021, como decidiu o Tribunal a quo, na prática, o ofendido poderia apresentar queixa até 26/07/2021, dispondo assim de um prazo total de cerca de 9 meses para o efeito.

24) Fica assim bem patente que, a aplicação retroativa do regime de suspensão de prazos introduzido pela Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro, é desfavorável ao arguido, porquanto o prazo para o exercício do direito de queixa passava a ser e cerca de 9 meses, em detrimento do prazo, mais curto, de 6 meses inicialmente previsto da lei.

25) Concluindo-se assim que, a aplicação retroativa do regime de suspensão de prazos introduzido pela Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro, seria menos favorável para os arguidos, violando o sobredito princípio basilar da não retroatividade de lei penal menos favorável ao arguido.

26) Neste sentido, além do acórdão fundamento, encontram-se vários outros acórdãos nos vários Tribunais da Relação, que tomam posição sobre a suspensão da contagem do prazo de prescrição, no sentido de que tal regime de suspensão não se aplica aos factos praticados antes da sua  vigência, em respeito do princípio constitucional da não retroatividade da lei penal in pejus.

27) Tendo em conta a similitude entre prescrição e caducidade, em termos de natureza substantiva de ambos os respetivos prazos, o entendimento exposto nestes acórdãos pode transpor-se para o prazo de caducidade do direito de queixa, sem prejuízo das devidas adaptações.

28) A argumentação da jurisprudência oposta, incluindo do Tribunal Constitucional, vai focada no instituto da prescrição, não se podendo transpor, salvo melhor interpretação, sem mais, para o instituto da caducidade, em especial, a caducidade do direito de queixa.

29) Isto porque, a argumentação de que todo o processo paralisou fruto da paralisação da atividade judiciária, abrangendo todos os sujeitos processuais de forma equitativa, até pode colher na apreciação da prescrição, mas quanto à caducidade do direito de queixa não pode ter adesão, desde logo, porque até à queixa, não há processo, nem há arguido, logo não há uma paralisação equitativa de qualquer processo para os intervenientes processuais, que ainda nem sequer existem.

30) Por outro lado, a posição do acórdão recorrido sustenta-se em torno de um pressuposto errado ou falso, quando refere que “Dito de outro modo, precisamente porque se tornou praticamente impossível o exercício do direito de queixa relativamente a crimes semipúblicos e particulares por parte dos seus respetivos titulares devido às circunstâncias excecionais que se viveram neste país nos anos de 2020 e 2021, durante períodos limitados de tempo (no que aqui importa, entre os dias 22 de janeiro e 6 de abril de 2021) (…) o prazo em apreço não foi propriamente acrescido de cerca de dois meses, apenas não foi encurtado nesse mesmo período de tempo devido à impossibilidade prática do seu exercício”.

31) Porém, com o devido respeito, o Tribunal a quo não podia ignorar que, na realidade, não existiu qualquer impossibilidade prática de apresentar queixa.

32) No máximo, existiram constrangimentos em apresentar a queixa presencialmente, mas nunca uma impossibilidade prática de apresentar queixa.

33) Na prática, durante o estado de emergência e o período de vigência do regime de suspensão dos prazos, nada impedia os ofendidos de apresentarem uma queixa crime, por exemplo, através do envio de um correio eletrónico. O prazo de 6 meses para apresentação de queixa, esteve integralmente ao dispor dos ofendidos.

34) Nessa medida, o entendimento defendido no acórdão fundamento, que aqui se subscreve, não viola os direitos e legítimos interesses dos queixosos, nem atinge os direitos constitucionais da tutela jurisdicional efetiva ou de intervenção no processo.

35) Com efeito, não existindo uma impossibilidade prática de apresentar queixa crime, o prazo de caducidade do direito de queixa não foi suspenso para evitar o seu encurtamento, como se lê no acórdão recorrido.

36) Na realidade, teve o efeito inverso de aumentar o prazo de caducidade do direito de queixa, em claro desfavor única e exclusivamente do arguido.

37) Por isso, a sua aplicação retroativa não é admissível, sob pena de violação do princípio da não retroatividade da lei penal in pejus.

38) Concluindo, o acórdão recorrido ao considerar aplicável o regime de suspensão dos prazos previsto no art.º 6º-B, n.º 1 e 3 da na Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, com a redação dada pela Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro, aos prazos de caducidade do direito de queixa iniciados antes da entrada em vigor da Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro, violou o princípio basilar da não retroatividade da lei penal in pejus, designadamente, os artigos 18º, n.º 3, 29º, n.º 4 e 19º, n.º 6 da CRP.

39) Consequentemente, o acórdão recorrido deve ser revogado, na parte em que pronunciou os arguidos pelo crime de difamação agravada, na pessoa de DD.

40) E proferido acórdão de fixação de jurisprudência, no sentido em que se decidiu no acórdão fundamento, considerando-se que o art.º 6º-B, n.º 1 e 3 da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, com a redação dada pela Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro, não é aplicável aos prazos de caducidade do direito de queixa iniciados antes da entrada em vigor da Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro, sob pena de violação do princípio basilar da não retroatividade da lei penal in pejus, em razão do disposto nos artigos 18º, n.º 3, 29º, n.º 4 e 19º, n.º 6 da CRP.

3. O Digno Mº Pº, junto do Venerando Tribunal da Relação do Porto, notificado para tomar posição, em resposta, sem apresentar conclusões, vem defender que o Recorrente menciona (…) em concreto vários acórdãos a sustentar a sua posição, embora inicie invocando o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, o que contraria a exigência de que a oposição de julgados se verifique concretamente entre dois acórdãos, já transitados em julgado.

4. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Senhor Procurador-Geral Adjunto no seu douto Parecer, pronunciando-se a respeito da verificação dos pressupostos formais e substanciais definidos nos artigos 437º e 438º do CPPenal para prosseguimento da pretensão em causa, enuncia:

(…)

Nesta fase do processo cumpre verificar se se mostram reunidos os requisitos constantes dos art. 437º e 438º do Código de Processo Penal para se ver admitido o recurso de fixação de jurisprudência interposto pelos arguidos AA e BB.

Entendemos que assim deverá ser considerado, quer do ponto de vista da forma, quer por se verificar efetiva oposição de julgados nos moldes em que este Supremo Tribunal o tem exigido para o efeito em vista.

Na verdade:

Do ponto de vista da forma nada obsta à admissão do recurso:

• Os recorrentes possuem legitimidade (artº 437º, nº 5, do CPP), tendo em conta que assumem a qualidade de arguidos nos autos;

• O Acórdão recorrido foi proferido em 28.05.2025, tendo transitado em julgado no dia 12.06.2025 e o recurso deu entrada no dia 12.07.2025, ou seja, dentro do prazo de 30 dias contado da data do trânsito (artº 438º, nº 1);

• Foi invocado um acórdão fundamento3 – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.0202023, transitado em julgado em 23.02.2023, conforme certidão junta pelo recorrente (artº 437º, nº 4);

Resta apurar da efetiva existência de oposição de julgados.

Para tanto, são requisitos que as decisões em conflito operem sob um quadro factual substancialmente idêntico, mas que, ao aplicarem a mesma norma ou bloco normativo, decidindo sobre a mesma questão de direito, tenham chegado a soluções opostas.

É o que se verifica no caso:

Estando em causa a aplicabilidade, ou não, à contagem do prazo para apresentação de queixa como condição de procedibilidade, da suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade prevista no n.º 3, por referência ao n.º 1, do artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro e depois, no artigo 6.º-E, n.ºs 7, alínea e), e 9, do primeiro diploma, na redação que lhe foi introduzida pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril), estamos dentro do mesmo quadro normativo, não tendo existido alteração legislativa.

Com efeito, a Lei 1-A/2020, de 18.03, alterada pela Lei 4-A/2020, introduziu medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 tendo, no seu artigo 7.º, n.ºs 3 e 44 , determinado que a situação excecional constituía igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos desde 9 de março de 2020, regime que prevaleceria sobre quaisquer outros que estabelecessem prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorasse a situação excecional.

A Lei 16/2020, de 29 de maio, revogou o artigo 7.º da Lei 1-A/2020, alterada pela Lei 4-A/2020, pondo termo à suspensão dos aludidos prazos de prescrição e caducidade (cf. artigo 8.º da Lei 16/2020).

Posteriormente, a Lei n.º 4-B/2021, de 01.02, no seu art.º 6.º-B, n.ºs 3 e 45, determinou nova suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos, até que aquela norma foi revogada pela Lei nº 13-B/2021, de 05.04.

Tais prazos de suspensão vigoraram, assim, desde 9 de março de 2020 até 3 de junho de 2020 e de 22 de janeiro a 5 de abril de 2021 (cfr. art.ºs 6.º-A, 7.º, 10.º e 11.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio, e 6.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril).

Para o que releva aqui, num caso foi entendido pela aplicação desta suspensão;

No outro, foi afastada tal aplicação.

Resta, então, apurar se as situações de facto são similares, pois que só assim é possível estabelecer uma comparação que permita concluir que relativamente à mesma questão de direito existem soluções opostas. «A decisão da questão de direito não pode ser desligada do substrato factual sobre a qual incide, razão por que a viabilidade do recurso de fixação de jurisprudência pressupõe que estejam em causa diferentes soluções de direito dadas a situações de facto idênticas.» - Acórdão deste STJ de 09.07.2025, no processo 576/23.4GBPRD.P1-A.S1

Então:

No acórdão recorrido:

- Os factos consubstanciadores da pática dos crimes ocorreram em 30.10.2020, quando não se encontrava em vigor qualquer das ‘Leis Covid’;

- A queixa (imprescindível para o prosseguimento do processo, dada a natureza semi-pública dos crimes) foi apresentada no dia 09.06.2021;

- Para além, assim do prazo de 6 meses previstos no artº 116º, nº 1, do Código Penal, que terminou em 30.04.2021;

- Mas dentro do período de 6 meses, se se entender que este se suspendeu entre 22.01.2021 e 06.04.2021 o prazo de caducidade, por aplicação do regime de suspensão dos prazos (incluindo de caducidade) previsto na Lei nº 1-A/2020, de 19-3, com a redação dada pela Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro e na Lei nº 13-B/2021, de 5 de abril.

No acórdão-fundamento:

- O conhecimento dos factos passíveis de constituírem a prática de crimes ocorreu em 29.07.2020, 31.07/2020, 02.08.2020, 10.08.2020, 19.08.2020 e 21.08.2020 quanto a uma das denunciadas e em 19 ou 29.07.2020 quanto a outra, quando não se encontrava em vigor qualquer das ‘Leis Covid’;

- A queixa pela prática de tais factos foi apresentada em 20.04.2021, depois do prazo de 6 meses;

- Sendo entendido que o regime legal excecional e temporário instituído por via da pandemia tem de ser conjugado com um dos princípios basilares do nosso ordenamento jurídico que é o da não retroatividade das leis, salvo se, uma lei penal se mostrar, concretamente, mais favorável ao arguido – cfr. os arts. 18º, nº 3, e 29º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa -, pelo que se considerou que a suspensão da caducidade só opera relativamente aos prazos que tiverem início durante tais períodos, pois que caso estas Leis viessem a ser aplicadas a prazos de caducidade já iniciados anteriormente, fariam parar essa contagem que só seria retomada mais tarde e tal significaria (na prática) um prolongamento do respetivo prazo de queixa que (não decorrendo continuadamente) só findaria mais tarde, obviamente, em desfavor das pessoas denunciadas/arguidas. E, consequentemente, tal equivaleria a uma aplicação retroativa, concretamente, menos favorável a estas últimas – violando o sobredito princípio basilar da não retroatividade de lei penal, concretamente, menos favorável ao arguido.

Face a estas decisões, entendemos pela efetiva oposição de julgados, pois que as situações de facto são similares:

- Estamos, em ambos os casos, perante prazos de caducidade do direito de queixa iniciados antes de um dos períodos temporais abrangidos por ‘lei Covid’;

- Mas que se prolongaram para o espaço temporal abrangido por uma destas leis;

- Entendendo o acórdão recorrido que o prazo de caducidade 6 meses para apresentação de queixa se suspendeu por aplicação da regra contida no n.º 3, por referência ao n.º 1, do artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, podendo ser exercido depois de tal suspensão;

- E o acórdão fundamento, pelo contrário, que aquela Lei não implica a suspensão de tal prazo, que deve ser contado de seguida, sob pena de aplicação retroativa de lei menos favorável ao arguido, com a consequente violação das regras contidas nos artºs. 18º, nº 3 , e 29º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa.

Parecendo assim haver necessidade de se fixar jurisprudência quanto à questão da suspensão do prazo de caducidade estabelecido ao abrigo das leis especiais que aplicaram medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, que vigoraram de 9 de março de 2020 até 3 de junho de 2020 e de 22 de janeiro a 5 de abril de 2021 (cfr. art.ºs 6.º-A, 7.º, 10.º e 11.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio, e 6.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril): saber se estas normas operam relativamente a qualquer prazo a correr termos nos espaços temporais ali fixados, ou apenas relativamente aos prazos que tiveram início durante tais períodos.

Assim sendo, o Ministério Público entende que se verificam todos os requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário interposto, pelo que deverá o mesmo prosseguir, nos termos previstos nos artigos 440.º e 441.º, n.º 1, do C.P.P.

5. Os Recorrentes nada disseram.

6. Efetuado o exame preliminar, o processo foi aos vistos e remetido à conferência, nos termos dos nºs 3 e 4 do artigo 440º do CPPenal, cumprindo agora apreciar e decidir.

II – Fundamentação

O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, ao que se pensa, assume-se como uma espécie de recurso normativo, por contraposição com o denominado recurso hierárquico, onde se visa a determinação do sentido de uma norma, com força quase obrigatória, geral e abstrata, em benefício dos valores da certeza e da segurança jurídica, unificando, por essa forma, a interpretação e o sentido de um preceito legal ou dimensão normativa que os tribunais de recurso consideravam de modo divergente.

Nesse desiderato, este meio reativo, envergando a dimensão de anulação do caso julgado, contrariamente aos recursos ordinários que se destinam a impedir a formação do trânsito das decisões6, é um recurso excecional, com tramitação especial e autónoma, tendo como objetivo primordial a estabilização e a uniformização da jurisprudência, eliminando o conflito / contraponto, originado por duas decisões em oposição respeitantes à mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação7.

Com efeito, (…) (a) uniformização de jurisprudência tem subjacente o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito8.

A sua disciplina decorre da normação inserta nos artigos 437º e seguintes do CPPenal, sendo que num primeiro momento se impõe a verificação das exigências expressas nos artigos 437º9 e 438º10 do referido compêndio legal.

E, seguindo os ditos normativos, tem sido entendimento deste STJ que a interposição do recurso para fixação de jurisprudência, depende da verificação de pressupostos formais e materiais.

No que concerne aos primeiros, vislumbram-se: i. a legitimidade do recorrente (sendo esta restrita ao Ministério Público, ao arguido, ao assistente e às partes civis) e interesse em agir, no caso de recurso interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (já que tal recurso é obrigatório para o Ministério Público); ii. a identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação, com justificação da oposição entre os acórdãos que motiva o conflito; iii. o trânsito em julgado de ambas as decisões e iv. a tempestividade (a interposição de recurso no prazo de 30 dias posteriores ao trânsito da decisão proferida em último lugar).

Por seu turno, emergem como exigências de ordem material / substancial: i. a existência de oposição entre dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ou entre dois acórdãos das Relações, ou entre um acórdão da Relação e um do Supremo Tribunal de Justiça; ii. a verificação de identidade de legislação a coberto da qual foram proferidas as decisões; iii. A oposição referente à própria decisão e não aos fundamentos; iv. as decisões em oposição serem expressas e v. a identidade de situações de facto.

Cotejando estas premissas, olhe-se, então, ao caso dos autos.


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Da verificação dos pressupostos formais no caso concreto

Os Recorrentes têm legitimidade e interesse em agir – por força do Acórdão recorrido proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, foi ordenada a pronúncia daqueles, por crimes de injúria agravada, tendo-se entendido que a queixa deduzida era tempestiva por, no decurso do prazo de seis meses para aquela ser apresentada, o mesmo se ter interrompido por força do regime impresso nas Leis nº 1-A/2020, de 19 de março e nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro (Leis Covid) - tal como transparece do disposto no artigo 437º, nº 5 do CPPenal, estando assim verificada esta exigência de forma.

Nos termos do fixado no artigo 438º, nº 1, do diploma que se vem citando, este recurso deve ser interposto no prazo de 30 dias contados do trânsito em julgado do Acórdão recorrido, sendo que o aresto em sindicância foi proferido em 28 de maio de 2025, transitou em julgado a 12 de junho de 2025, tendo sido o presente recurso interposto em 12 de julho de 2025, estando assim clara a sua tempestividade.

De seu lado, e no que tange ao Acórdão fundamento foi o mesmo proferido em 9 de fevereiro de 2023, pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do Processo nº 690/21.0T9TVD.L1-9, tendo transitado em julgado em 23 de fevereiro de 2023.

Face ao que é trazido preenchida está a exigência de invocação de um único acórdão fundamento11.

Está em causa, no entender dos Recorrentes, a contraditoriedade / oposição de dois Acórdãos, ambos proferidos por Tribunais da Relação - decisão recorrida e decisão fundamento - e, nessa medida, considerando a contextualização apresentada no articulado recursório opera a condição do trânsito em julgado de dois Acórdãos contraditórios.

Os Recorrentes registando que há oposição entre o decidido nos dois pronunciamentos, na concretização do que invocam como idênticas situações de facto e na comparação das opostas decisões de direito, enunciam que o Acórdão recorrido acolheu a linha de que (…) o direito de queixa foi exercido tempestividade do por considerar que o prazo suspendeu-se entre os dias 22/01/2021 e 06/04/2021, por efeito do disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 6.º-B da Lei n.º 1 A/2020, de 19 de março, na redação da Lei n.º 4 B/2021, de 1 de fevereiro (…), independentemente dos factos terem ocorrido antes da vigência do regime legal ali impresso, ao passo que no Acórdão fundamento se considerou (…) esta suspensão da caducidade só opera relativamente aos prazos que tiverem início durante tais períodos. Caso estas Leis viessem a ser aplicadas a prazos de caducidade já iniciados anteriormente, fariam parar essa contagem que só seria retomada mais tarde e tal significaria (na prática) um prolongamento do respectivo prazo de queixa que (não decorrendo continuadamente) só findaria mais tarde, obviamente, em desfavor das pessoas denunciadas/arguidas (…).

Ante este invocativo entende-se que se verifica, in casu, o pressuposto da justificação da oposição, sendo que não se conhece jurisprudência fixada pelo STJ quanto ao mote que vem trazido pelos Recorrentes.

Por força desta enunciação, ao que se crê, é de concluir que estão preenchidas todas as premissas formais de que depende a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.

Da verificação dos pressupostos materiais / substanciais no caso sub judice

Desde logo, reclama-se, como primeira exigência, o retrato de oposição entre dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ou entre um acórdão da Relação que não admite recurso ordinário e que não tenha decidido contra jurisprudência fixada e outro anterior de tribunal da mesma hierarquia ou do Supremo Tribunal de Justiça.

Olhando à situação que se apresenta, parece cristalino que se está ante dois Acórdãos tirados por Tribunais Superiores – ambos de Tribunais da Relação – o primeiro (recorrido) em 2025 e o segundo (fundamento) em 2023, sendo que os Recorrentes, no seu articulado recursivo, descreveram o que se considera como a oposição existente entre os dois decididos e delimitando a visada uniformização.

Como segundo aspeto, impõe-se a verificação de identidade de legislação a coberto da qual foram proferidas as decisões em confronto.

Visitando todo o quadro existente, parece seguro que os Acórdãos em dissídio foram proferidos no âmbito da mesma legislação, ou seja, durante o intervalo de tempo da sua prolação, cerca de dois anos, não sobreveio qualquer modificação / alteração legislativa que interferisse, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida.

Na verdade, e no que concerne aos normativos em que os Recorrentes se posicionam – artigo 6º-B da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, na redação dada pela Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro – não surgiu qualquer alteração legislativa de substância que influenciasse, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida e aqui em discussão.

Importa, então, prosseguir e verificar a existência dos pressupostos oposição referente à própria decisão, as decisões em confronto serem expressas e identidade de situações de facto, ou seja, se ante todos os elementos fornecidos pelos autos, transluz o desenho de asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos, consagrando soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito, as quais ditaram soluções opostas na interpretação e aplicação das mesmas normas perante factos de contornos idênticos12.

Ou seja, nesta dimensão importa sopesar sobre se as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos fixaram ou consagraram soluções diferentes (e não apenas contraposição de fundamentos ou de afirmações) para a mesma questão fundamental de direito, se as decisões em oposição são expressas e não implícitas, devendo ainda ponderar-se se o quadro factual e o respetivo enquadramento jurídico são, em ambas as decisões, idênticos.

Como se adiantou, os Recorrentes circunscrevem a essência do presente dissídio, afirmando que o Acórdão recorrido proferido nos autos de que este recurso é apenso e o Acórdão fundamento, se reportam à mesma questão de direito, que é a de saber se artigo 6º-B, nºs 1 e 3 da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, na redação dada pela Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro, é ou não é aplicável aos prazos de caducidade do direito de queixa iniciados antes da entrada em vigor desta última Lei.

Diga-se, ainda, que é entendimento dos Recorrentes que do confronto do Acórdão recorrido e do Acórdão fundamento se retira que há identidade de factos entre ambas as decisões, que foram objeto de recurso, sendo cristalino que se consagram soluções opostas.

Um debruce, então sobre ambas as realidades retratadas em cada uma das decisões em enfrentamento.

No Acórdão recorrido, pode ler-se (…) a suspensão «[d]os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos», prevista no n.º 3, por referência ao n.º 1, do artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro (e depois, mais limitadamente, no artigo 6.º-E, n.ºs 7, alínea e), e 9, do primeiro diploma, na redação que lhe foi introduzida pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril) – ou seja, os «processos e procedimentos que corr[esse]m termos nos tribunais judiciais (…)», como são os processos criminais – não respondeu a qualquer reavaliação (e consequente alteração), por parte do legislador, do regime estabelecido para o exercício do direito de queixa quanto aos crimes semipúblicos e particulares previstos no nosso ordenamento jurídico-penal, limitando-se – face ao (quase) total encerramento do serviço público de justiça (tomado em sentido amplo, abrangendo todas as autoridades e entidades que, direta ou indiretamente o asseguram) decorrente das medidas então tomadas para combate ao agravamento da pandemia de Covid-19 que então grassava mundialmente – a garantir que o prazo para tanto já previsto legalmente (no artigo 115.º, n.º 1, do Código Penal) era efetivamente respeitado (…) Houve (…) a intenção de garantir também os direitos e interesses legítimos das vítimas de crimes, a quem o Estado – que proíbe a vindicta privata e que para si reclama o monopólio do exercício da ação penal – vedou praticamente o acesso à Justiça, seja pelo encerramento, ou funcionamento muito limitado, dos serviços em que ela se organiza, seja pelas dificuldades que impôs à livre circulação dos cidadãos, por via do dever geral de confinamento então também decretado (…) E isto (…) aplicou-se a todos os diferentes sujeitos processuais, pois também os arguidos, face às dificuldades no funcionamento dos vários serviços públicos em geral, e dos serviços de justiça criminal em particular, beneficiaram igualmente da suspensão de prazos então decretada, de forma a garantir-lhes que o exercício dos seus direitos não era afetado (…) precisamente porque se tornou praticamente impossível o exercício do direito de queixa relativamente a crimes semipúblicos e particulares por parte dos seus respetivos titulares devido às circunstâncias excecionais que se viveram neste país nos anos de 2020 e 2021, durante períodos limitados de tempo (no que aqui importa, entre os dias 22 de janeiro e 6 de abril de 2021: cf. artigos 4.º da Lei n.º 4- B/2021, de 1 de fevereiro, e 7.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril), (…) é que se determinou que tal período não fosse computado para efeitos do decurso do prazo para esse exercício, de molde a (também) não descurar a proteção dos direitos e legítimos interesses (que são igualmente protegidos constitucionalmente) desses mesmos titulares (…) a aplicação da suspensão aludida aos prazos para exercício do direito de queixa então em curso (ou que se iniciaram durante o período em que a mesma se prolongou) (…) não só não implica uma alteração (desfavorável) do regime legal previsto para tal exercício para efeitos de aplicação do princípio estabelecido no artigo 2.º, n.º 4, primeira parte, do Código Penal – pois que esse regime se manteve idêntico, surgindo a suspensão em apreço apenas como forma de assegurar que não viesse a ser encurtado o prazo de exercício do direito aqui em causa (ou seja, o prazo em apreço não foi propriamente acrescido de cerca de dois meses, apenas não foi encurtado nesse mesmo período de tempo devido à impossibilidade prática do seu exercício) –, como responde à necessidade, imposta pela excecionalidade dos tempos que então se viveram, de proteção de direitos e interesses legítimos das vítimas de crimes, também eles carecidos e merecedores de tutela constitucional e legal (…).

Como essencial suporte factual, tem-se que estando em causa um crime de injúria agravada, o seu titular, por factos ocorridos em 30 de outubro de 2020, apresentou queixa em 9 de junho de 2021, tendo-se considerado suspenso o decurso do prazo de seis meses referido no artigo 115º, nº 1 do CPenal, por força do regime fixado nos diplomas legais atrás mencionados, entre os dias 22 de janeiro de 2021 e 6 de abril de 2021.

De seu lado, o Acórdão fundamento, pode retirar-se (…) por força destas Leis foi determinada, expressamente, a suspensão de todos e quaisquer prazos para a prática de actos processuais no âmbito de quaisquer processos judiciais e, também, a suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade nos períodos de 9/3/2020 a 3/6/2020 e de 22/1/2021 a 6/4/2021 (…) este regime legal excepcional e temporário tem de ser conjugado com um dos princípios basilares do nosso ordenamento jurídico que é o da não retroactividade das leis, salvo se, uma lei penal se mostrar, concretamente, mais favorável ao arguido (…) tal salvaguarda (da não afectação da não retroactividade da lei criminal), também, ficou expressa, aquando da sobredita pandemia, nos

respectivos Decretos do Presidente da República nº 14-A/2020, de 18-3 (art. 5º, nº 1), nº 17-A/2020, de 2-4 (art. 7º, nº 1) e nº 20-A/2020, de 17-4 (art. 6º, nº 1) (…) a determinação (da suspensão dos prazos de caducidade) contida nas sobreditas Leis (abreviadamente designadas “Leis Covid”) para vigorar, como vigoraram, durante os sobreditos períodos temporários e a título excepcional, não foi, nem pode ser aplicada ao respectivo prazo de caducidade em apreço nos autos (…) aquando da data respectiva de início da contagem do prazo de queixa nenhuma dessas “Leis Covid” estava em vigor. Só tendo iniciado vigência quando já estava a decorrer a contagem do respectivo prazo (…).

O recorte factual aqui em presença, denota a existência de crimes de injúria e de difamação por factos ocorridos entre 19 de julho de 2020 e 21 de agosto de 2020, tendo sido apresentada queixa em 20 de abril de 2021.

Cotejando a contextualização levada a cabo, atentando nas realidades factuais que nortearam as decisões em enfrentamento, tal como o pretendido pelos Recorrentes e secundado pelo Digno Mº Pº no seu douto Parecer, ao que se pensa, concluir / afirmar / retirar que nos palcos em confronto há identidade de factos – vista esta não como uma identidade absoluta entre dois acontecimentos históricos mas que eles se equivalham para efeitos de subsunção jurídica a ponto de se poder dizer que, pese embora a solução jurídica encontrada num dos processos assente numa factualidade que não coincide exactamente com a do outro processo, esta solução jurídica continuaria a impor-se para o subscritor mesmo que a factualidade fosse a do outro processo13 - entre ambas as decisões, que foram objeto de recurso e que se consagram soluções opostas, é evidente que se pode afirmar.

Com efeito, as situações de facto existentes anotam colorações semelhantes, sendo que determinaram leituras diferentes do quadro legal.

Os Acórdãos Recorrido e Fundamento assentaram, pois, em soluções de direito opostas, no domínio da mesma legislação, sobre situações de facto idênticas, pelo que este Supremo Tribunal de Justiça terá de decidir em termos de uniformização da jurisprudência.

Nestes termos, concluindo-se pela verificação de todos os requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário de jurisprudência, deve o presente recurso prosseguir, nos termos do artigo 441, nº 1 – parte final -, do CPPenal.

III – Dispositivo

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 3ª Secção (criminal) do Supremo Tribunal de Justiça, em julgar verificada a oposição de julgados e, em conformidade, ordenar o prosseguimento do recurso, nos termos do artigo 441, nº 1 – parte final -, do CPPenal.

Sem custas.


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Notifique.

D.N.


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O Acórdão foi processado em computador e elaborado e revisto integralmente pelo Relator (artigo 94º, nº 2, do CPPenal), sendo assinado pelo próprio e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos.

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Lisboa, 29 de outubro de 2025

Carlos de Campos Lobo (Relator)

António Augusto Manso (1º Adjunto)

Lopes da Mota (2º Adjunto)

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1. Referência Citius …31.

2. Referência Citius …11.

3. A Exmª magistrada do Ministério Público no Tribunal da Relação alude, a final da sua resposta, à circunstância de os recorrentes referirem vários acórdãos ‘a sustentar a sua posição’, levantando a hipótese de ter contrariado a exigência de que a oposição de julgados de verifique concretamente entre dois acórdãos.

  Ou seja – e embora isso não seja expressamente referido -, poder-se-ia estar num caso qu levaria à rejeição do recurso por não limitação a um único acórdão-fundamento (vejam-se as decisões deste STJ de 11.03.2020 no processo 3672/17.3T9LSB-A.L1-A.S1 -- Relator – Raul Borges -, bem como a mais recente, de 31.01.2024, no processo 12/23.6GAARL.E1-A.S1 -- Relator - Pedro Branquinho Dias).

  Sucede que, lida a motivação de recurso, o que se observa é que os recorrentes são claros ao indicar apenas um acórdão como acórdão-fundamento -- o da Relação de Lisboa de 09.02.2023 (transitada em julgado em 23.02.2023) no âmbito do processo 690/21.0T9TVD --, pelo que se mostra cumprido o exigido no artº 437º, nº 2, do CPP.

  Os demais acórdãos invocados (incluindo alguns do Tribunal Constitucional) são-no apenas para, numa segunda parte do recurso, se pronunciarem acerca da via que entendem dever ser futuramente seguida por este STJ, no caso de admissão do recurso e, assim, emitida decisão de fixação de jurisprudência (de notar, até, que os recorrentes indicam, numa postura muito correta e de colaboração, não só decisões que seguem o seu entendimento quanto ao caso, mas igualmente decisões em sentido oposto).

4. Artigo 7.º

  Prazos e diligências

  1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, aos atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos, que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, aplica-se o regime das férias judiciais até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, conforme determinada pela autoridade nacional de saúde pública.

  2 - O regime previsto no presente artigo cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excecional.

  3 - A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.

  4 - O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional.

5. Artigo 6.º-B

  Prazos e diligências

  1 - São suspensas todas as diligências e todos os prazos para a prática de atos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional e entidades que junto dele funcionem, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.

  2 - O disposto no número anterior não se aplica aos processos para fiscalização prévia do Tribunal de Contas.

  3 - São igualmente suspensos os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos identificados no n.º 1.

  4 - O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, aos quais acresce o período de tempo em que vigorar a suspensão.

  (O Artigo 4.º do mesmo diploma, com a epígrafe “Produção de efeitos”, estipulou que: “O disposto nos artigos 6.º -B a 6.º -D da Lei n.º 1 -A/2020, de 19 de março, produz efeitos a 22 de janeiro de 2021, sem prejuízo das diligências judiciais e atos processuais entretanto realizados e praticados.”)

6. Neste sentido, LEAL-HENRIQUES, Manuel, Anotação e Comentário ao Código de Processo Penal de Macau, Volume III (Artigos 362º a 499º), 2014, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, p. 368 – (…) os recursos ordinários intentam impedir a formação do caso julgado, enquanto que os recursos extraordinários projetam anular o caso julgado.↩︎

7. Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ, de 16/03/2022, proferido no Processo nº 5784/18.7T9LSB.L1-A.S1- (…) O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência tem carácter normativo, visando uniformizar critérios interpretativos que garantam a unidade do ordenamento jurídico penal ou processual penal e, com isso, os princípios de segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e a igualdade dos cidadãos perante a lei -, de 30/06/2021, proferido no Processo nº 698/11.4TAFAR.E1-A.S1 - (…) O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, de carácter normativo, destina-se a fixar critérios interpretativos uniformes com a finalidade de garantir a unidade do ordenamento penal e, com isso, os princípios de segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e a igualdade dos cidadãos perante a lei. -, de 30/10/2019, proferido no Processo nº 2701/11.9T3SNT.L1-A.S1 – (…) O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência constitui uma espécie de recurso classificado como «recurso normativo», por contraposição com o denominado «recurso hierárquico»; no recurso normativo, o objecto é constituído pela determinação do sentido de uma «norma», com força quase obrigatória e, de qualquer modo, geral e abstracta, a benefício directo dos valores da certeza e da segurança jurídica, unificando a interpretação e o sentido de uma norma ou dimensão normativa que os tribunais de recurso consideravam de modo divergente (…) é um recurso excepcional, com tramitação especial e autónoma, tendo como objectivo primordial a estabilização e a uniformização da jurisprudência, eliminando o conflito originado por duas decisões contrapostas a propósito da mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação (…), todos disponíveis em www.-dgsi.pt.

  Ainda, GAMA, António, LATAS, António, CORREIA, João Conde, LOPES, José Mouraz, TRIUNFANTE, Luís Lemos, SILVA DIAS; Maria do Carmo, MESQUITA, Paulo Dá, ALBERGARIA, Pedro Soares de e MILHEIRO, Tiago Caiado, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V – artigos 399º a 524º, 2024, Almedina, p. 410 – (…) criou-se um mecanismo para superar divergência interpretativas dos Tribunais Superiores reveladas em acórdãos proferidos, relativamente a questão de direito idêntica, no domínio da mesma legislação (…) no caso de soluções opostas, que seja uniformizada a jurisprudência, fixando-se um sentido interpretativo geral e abstrato (…) assim conferindo previsibilidade futura (…).

8. Acórdão do STJ nº 5/2006 do STJ, de 20/04/2006, publicado no DR nº 109, I-A Série, de 6/06/2006.

9. Artigo 437.º

  Fundamento do recurso

  1 - Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.

  2 - É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

  3 - Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.

  4 - Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.

  5 - O recurso previsto nos n.os 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.

10. Artigo 438.º

  Interposição e efeito

  1 - O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

  2 - No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.

  3 - O recurso para fixação de jurisprudência não tem efeito suspensivo.

11. Na verdade, e contrariamente ao que se parece antever do posicionamento tomado pelo Digno Mº Pº junto do Venerando Tribunal da Relação do Porto, os Recorrentes apenas invocam / usam um Acórdão fundamento, sendo que as referências que a outros se fazem, destinam-se apenas, pensa-se, a reforçar o seu entendimento.

12. Sublinhado nosso.

13. Acórdão do STJ, de 28/11/2024, proferido no Processo nº 976/23.0Y2MTS.P1-A.S1, disponível em www.dgsi.pt.

  No mesmo sentido, entre outros, os Acórdãos de 15/02/2024, proferido no Processo nº 149/22.9YUSTR.L1-B.S1, de 09/02/2022, proferido no Processo nº 2004/19.0PAVNG.P1-A.S1 - (…) Efetivamente, salienta a jurisprudência, não pode haver oposição ou contradição entre dois acórdãos, relativamente à mesma questão fundamental de direito, quando são diversos os pressupostos de facto em que assentaram as respetivas decisões.↩︎