EMBARGOS DE TERCEIRO
INDEFERIMENTO LIMINAR
Sumário


I - Em sede de embargos de terceiro pode o juiz indeferir liminarmente o requerimento inicial sem ter que proceder à inquirição das testemunhas indicadas pelo Embargante, desde que se convença que os restantes elementos de prova já constantes do processo permitem concluir pela manifesta improcedência dos embargos.
II - Não é de conferir valor probatório à declaração constante de documento subscrito pela própria Executada/Embargada para ser junto a Embargos de Terceiro deduzidos a título preventivo, e que visam obstar à prossecução da diligência judicialmente ordenada para cumprimento coercivo da obrigação de prestação de facto não cumprida pelos Executados no prazo fixado pelo Tribunal, se tal declaração consubstancia factos favoráveis à própria Executada/declarante e ao Embargante no contexto de tais processos.

Texto Integral


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

Por apenso à Execução Sentença, n.º 1473/23.9T8VNF, que AA instaurou contra BB e CC, veio DD deduzir os presentes embargos de terceiro, em 02-07-2025, pedindo:

a) que sejam admitidos os presentes embargos de terceiro, por reunirem todos os requisitos legais de admissibilidade, legitimidade e tempestividade, nos termos dos artigos 342.º e seguintes do Código de Processo Civil;
b) que seja declarado que o ato executivo de encerramento do acesso ao prédio urbano do Embargante, agendado para o dia 04/07/2025 às 9h30, no processo n.º 1473/23.9T8VNF, não pode produzir efeitos quanto ao Embargante, por este ser terceiro juridicamente protegido, possuidor direto e exclusivo do bem afetado;
c) que seja ordenada a suspensão imediata e automática da diligência executiva designada, por força do disposto no artigo 346.º, n.º 1 do CPC, com urgência processual e ofício imediato à Agente de Execução para cancelamento de quaisquer atos materiais ou preparatórios em curso;
d) Que se determine, se necessário, a audição urgente da Agente de Execução e das partes, para garantir o contraditório e a apreciação célere da matéria relevante;
e) Que, a final, seja proferida sentença que julgue os embargos totalmente procedentes, reconhecendo o direito de posse direta do Embargante, impedindo a prática de qualquer ato executivo que o afete, e condenando os Embargados nas custas processuais e demais encargos legais, se assim for de justiça.

O embargante fundamenta a oposição invocando, em síntese:
- que está designada para o dia 04 de julho de 2025, pelas 9h30, a diligência com vista o cumprimento coercivo da sentença proferida no processo n.º 712/19.5T8BCL;
- que essa diligência acarretará o encerramento físico do acesso viário ao prédio urbano sito na Rua ..., ..., freguesia ... (...), concelho ..., inscrito na matriz predial sob o artigo n.º ...21 (imóvel esse da propriedade dos Executados/Embargados seus pais);
- que desde o ano de 2018, o embargante exerce nesse prédio, de forma exclusiva e pública, a sua atividade profissional licenciada de produção e comercialização de cerâmica artesanal tradicional, legalmente licenciada pela Câmara Municipal ... ao abrigo do alvará de utilização n.º ...21, com exercício pleno e contínuo, sendo esta a sua única fonte de rendimento e sustento pessoal;
- que o acesso ao prédio - e, por consequência, à oficina onde o Embargante exerce a sua atividade económica licenciada - efetua-se exclusivamente por um caminho viário com cerca de 4 metros de largura e 20 metros de extensão, com início na Rua ..., que atravessa o prédio do Exequente, AA, contíguo ao prédio do embargante;
- que o embargante, apesar de não ser parte no processo executivo, será diretamente afetado pela diligência - uma vez que a obstrução do caminho impedirá de forma absoluta o funcionamento da oficina de cerâmica;
- que o embargante intentou, com carácter urgente, a ação declarativa comum n.º 1520/25.3T8BCL, onde peticiona a constituição judicial de servidão de passagem por usucapião sobre o caminho em causa e indemnização pelos danos sofridos.
Por despacho de 03-07-2025 foi determinada a notificação do Embargante, entre o mais, para que juntasse aos autos documentos que comprovassem que a alegada atividade de produção de cerâmica é exercida no prédio objeto da decisão e, bem assim, que essa alegada atividade é exercida pelo embargante em nome próprio, posto que os documentos juntos com o requerimento inicial, para além de não serem integralmente legíveis, reportam-se a atividade exercida pela executada CC.

Por requerimento de 12-07-2025 veio o Embargante expor que:
- os embargados BB e CC iniciaram, há mais de vinte e cinco anos, a produção artesanal de peças cerâmicas num anexo da sua habitação sita na Rua ..., artigo matricial ...21, ... (...), ..., encontrando-se tal anexo licenciado para uso industrial artesanal (alvará camarário n.º ...);
- com o avançar da idade dos fundadores, a gestão corrente da unidade de produção foi, há cerca de dez anos, confiada ao embargante, seu filho;
- apesar dessa transferência de gestão de facto, a mãe do Embargante manteve a titularidade fiscal da atividade, por razões de continuidade e simplificação burocrática, sendo em seu nome que continuam a ser emitidas as faturas e apresentadas as declarações tributárias;
- a oficina de cerâmica continua a laborar exclusivamente no anexo referido no art.º 1.º, utilizando, como acesso único, o caminho viário cuja obstrução se pretende executar, circunstância que, a consumar-se, inviabilizará materialmente a entrada de matérias-primas, a saída dos produtos acabados e o trânsito de clientes.
No requerimento apresentado em 12-07-2025 o Embargante alega, entre o mais, que a Embargada CC subscreveu declaração, que junta como doc. n.º 1, datada de 10-07-2025.

Da declaração datada de 10-07-2025, junta como doc. n.º 1 do requerimento de 12-07-2025, consta, entre o mais, que «(…) CC, residente na Rua ..., ..., freguesia ... (...), concelho ..., portadora do NIF (…), declara (…) o seguinte:
1.
Que, juntamente com o seu marido, BB, iniciou há mais de vinte e cinco anos a actividade artesanal de produção de peças de cerâmica, exercida num anexo da sua habitação, sito na morada indicada, devidamente licenciado para o efeito (alvará de utilização camarário n.º ...).
2.
Que, por motivos de saúde e idade, cessou a sua intervenção directa na gestão da oficina há cerca de 10 anos, tendo então confiado a mesma da actividade ao seu filho, DD,
3.        
Que desde essa data é o seu filho quem assume, de forma contínua e exclusiva:
- a negociação com fornecedores de matérias primas;
- a venda e distribuição das peças produzidas;
- a emissão de facturas e recepção dos correspondentes pagamentos;
- o contacto directo com clientes e entidades públicas ou privadas.
4.
Que a oficina se mantém a funcionar ininterruptamente no anexo do imóvel identificado como artigo matricial ...21 da freguesia ... (...), ..., sendo este o único local de produção e armazenamento.
5.
Que, embora a actividade económica continue formalmente em seu nome, por razões de conveniência e continuidade fiscal, nada mais representa do que uma titularidade aparente, sendo certo que toda aa actividade é, na prática, exercida exclusivamente pelo seu filho, por sua conta e risco.
(…)».
De seguida foi proferida decisão, indeferindo liminarmente os Embargos de Terceiro, por manifestamente improcedentes.

Inconformado com esta decisão, o Embargante apresentou-se a recorrer, terminando as alegações com as seguintes conclusões que se transcrevem:
«I. O presente recurso tem por objeto a revogação do despacho que indeferiu liminarmente os embargos de terceiro preventivos deduzidos pelo Recorrente, ao abrigo do artigo 342.º do CPC.
II. O ato executivo agendado para 04.07.2025 consubstancia o encerramento do único acesso ao prédio onde o Recorrente exerce, desde 2018, posse direta, pública e exclusiva, inviabilizando a sua única atividade profissional e fonte de rendimento.
III. O artigo 342.º, n.º 1, CPC tutela expressamente a posse e qualquer direito incompatível com o ato judicialmente ordenado, não impondo como requisito a titularidade formal da propriedade ou de licença administrativa.
IV. A jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça afirma a suscetibilidade da posse não titulada ser objeto de proteção por via de embargos de terceiro.
V. O Recorrente apresentou elementos probatórios idóneos - designadamente declaração subscrita pela proprietária formal e indicação de prova testemunhal - bastantes para evidenciar o fumus boni juris exigido pelo artigo 345.º CPC.
VI. O despacho recorrido excedeu os limites da função meramente filtrante da fase liminar, proferindo juízo definitivo de mérito e indeferindo a produção de prova, em violação dos artigos 3.º, n.º 3, CPC e 20.º CRP.
VII. A recusa de produção de prova constitui cerceamento de defesa, vedado pela jurisprudência da Relação de Guimarães (Ac. 09.11.2023, Proc. 1736/18.5JAPRT- A.P1).
VIII. Verificam-se, no caso sub judice, os pressupostos legais dos embargos preventivos previstos no artigo 345.º, n.º 2, CPC - fumus boni juris e periculum in mora -, atento o risco concreto e iminente de lesão irreversível da posse e da atividade económica do Recorrente.  
IX. O acesso em causa integra a posse direta exercida pelo Recorrente e configura, igualmente, um direito de passagem necessário (arts. 1550.º e segs. CC), tutelável judicialmente ainda que desprovido de registo, conforme Ac. STJ de 09.05.2002 (Proc. 02B1087).
X. A decisão recorrida omitiu a ponderação dos direitos fundamentais em causa - tutela jurisdicional efetiva (art. 20.º CRP), direito ao trabalho (art. 58.º CRP) e liberdade de iniciativa económica privada (art. 61.º CRP) - e violou o princípio da proporcionalidade (art. 18.º CRP).
XI. Ao não se avaliar a adoção de medidas menos gravosas que assegurassem a execução sem supressão total do acesso, incorreu-se em restrição ilegítima de direitos fundamentais
XII. Impõe-se, pois, a revogação do despacho recorrido e o recebimento dos embargos, com prosseguimento da tramitação para fase contraditória e produção da prova indicada.
Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, admite os embargos de terceiro deduzidos pelo Recorrente, determinando o prosseguimento da respetiva tramitação com produção de prova e julgamento em fase contraditória.

ASSIM DECIDINDO, VOSSAS EXCELÊNCIAS, MUITO ILUSTRES DESEMBARGADORES
FARÃO, COMO SEMPRE, JUSTIÇA!».

O Tribunal a quo proferiu o despacho previsto nos artigos 617.º, n.º 1, e 641.º, n.º 1, do CPC, entendendo não padecer a decisão recorrida de qualquer nulidade.
O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação de Guimarães, confirmando-se a admissão do recurso nos mesmos termos.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) -, importa aferir se a decisão recorrida incorreu em nulidade, por excesso de pronúncia, configurando um julgamento antecipado, em violação da tramitação legal e dos princípios do contraditório e da tutela jurisdicional efetiva; se, nas circunstâncias dos autos em apreciação, se justificava o indeferimento liminar dos Embargos de Terceiro deduzidos pelo ora recorrente.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação

1. Os factos
1.1. Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra, que se dão aqui por integralmente reproduzidos; atento o que se pode constatar mediante o acesso eletrónico ao processo, através do sistema informático Citius, relevam ainda para a decisão do objeto do recurso os seguintes factos com relevo jurídico-processual:
1.1.1. Em 20-01-2023, AA instaurou Execução para Prestação de Facto, de que estes autos são apenso, contra BB e CC, pais do ora Embargante, DD.
1.1.2. O título oferecido à execução consiste em Decisão judicial condenatória - sentença proferida em 12-01-2022 na ação declarativa instaurada pelo ora Exequente contra os ora Executados, que correu termos pelo Juízo Local Cível de Barcelos, sob o n.º 712/19.5T8BCL -, devidamente transitada em julgado, que condenou os réus, ora executados, a “procederem ao fecho das entradas que abriram no seu muro, removendo, também, o contador de eletricidade e a caixa de correio que lá colocaram e que ocupam o prédio do autor, bem como a absterem-se da prática de qualquer ato que perturbe ou diminua o goza da utilização do prédio do exequente, por si ou através de terceiros.”

1.1.3. Do requerimento executivo constam os seguintes Factos:
«Por sentença proferida no âmbito do processo n.º 712/19.5T8BCL, que correu termos no juízo local cível de Barcelos - juiz ..., foi aqui os executados condenados a procederem ao fecho das entradas que abriram no seu muro, removendo, também, o contador de eletricidade e a caixa de correio que lá colocaram e que ocupam o prédio do exequente, bem como a absterem-se da prática de qualquer ato que perturbe ou diminua o goza da utilização do prédio do exequente, por si ou através de terceiros.
Não obstante o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães (processo n.º 712/19.5T8BCL.G2 - 2.ª secção cível), ter confirmado a referida sentença em 15/09/2022, tendo tal decisão já transitado em caso julgado, certo é que até ao momento a sentença não foi cumprida pelos executados.
Não resta ao exequente o recurso ao presente processo executivo para fazer cumprir a douta sentença.
Neste sentido, devem os executados ser citados para os termos da presente execução, contestando, querendo, a mesma ou prestando, no mesmo prazo (20 dias), o facto em que foram condenados, sob pena da prestação ser realizada nos termos do disposto nos artigo 870.º, e 871.º., ambos do CPC.
Atendendo que os executados, no âmbito do processo n.º 777/01.6TBBCL, foram condenados por agressão ao exequente, e na eventualidade da prestação vir a ser realizada pelo exequente nos termos do artigo 870.º e 871.º do CPC, requer-se, desde já, a presença de força policial».
1.1.4. Por apenso à Execução enunciada em 1.1.1., os Executados deduziram Embargos de Executado, em 01-03-2023, os quais foram liminarmente indeferidos, com fundamento na manifesta improcedência e falta de fundamento para a dedução da oposição, decisão essa confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães - acórdão de 23-11-2023, devidamente transitado em julgado.
1.1.5. Transitada em julgado a sentença proferida nos Embargos de Executado, foi proferida decisão no processo de Execução, em 23-01-2024, fixando em 120 (cento e vinte) dias o prazo para cumprimento da obrigação fixada na sentença (encerramento das entradas abertas no muro e remoção do contador da luz e da caixa de correio).
1.1.6. Findo o prazo fixado pelo Tribunal, a obrigação não foi cumprida pelos Executados.
1.1.7. A Sr.(ª) Agente de Execução notificou então os Executados de que ficou designado para dia 04-07-2025 pelas 9h30 o cumprimento da obrigação a que foram condenados por sentença judicial.
2. Apreciação sobre o objeto do recurso
Tal como decorre do preceituado no artigo 342.º, n.º 1 do CPC, os embargos de terceiro constituem um meio processual de oposição contra a penhora ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, que se traduza na ofensa da posse ou de qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa.
Mais resulta do confronto entre o preceituado nos artigos 344.º a 348.º e o artigo 350.º, todos do CPC, que os embargos de terceiro podem revestir uma função repressiva ou uma vertente preventiva, pressupondo aqueles a efetiva realização da penhora ou da diligência pretensamente ofensiva do direito do embargante, enquanto a dedução dos embargos preventivos pressupõe que a diligência pretensamente ofensiva da posse ou de qualquer direito incompatível já foi ordenada, mas ainda não foi realizada.
Por seu turno, o artigo 344.º, n.º 2 do CPC dispõe que o embargante deduz a sua pretensão, mediante petição, nos 30 dias subsequentes àquele em que a diligência foi efetuada ou em que o embargante teve conhecimento da ofensa, mas nunca depois de os respetivos bens terem sido judicialmente vendidos ou adjudicados, oferecendo logo as provas.
No caso em apreciação, os embargos foram deduzidos a título preventivo, visando impedir ou sustar a prossecução da diligência agendada pelo Tribunal para garantir o cumprimento coercivo da obrigação exequenda, traduzida na condenação dos réus, ora Executados/Embargados, a “procederem ao fecho das entradas que abriram no seu muro, removendo, também, o contador de eletricidade e a caixa de correio que lá colocaram e que ocupam o prédio do autor, bem como a absterem-se da prática de qualquer ato que perturbe ou diminua o goza da utilização do prédio do exequente, por si ou através de terceiros”, tendo o Tribunal da Execução determinado que fosse o Exequente a levar a cabo os trabalhos, articulando com a SE a requisição do auxílio da força pública, uma vez que a obrigação não foi cumprida pelos Executados no prazo fixado.
Na presente apelação o recorrente insurge-se contra a decisão que indeferiu liminarmente os Embargos de Terceiro, por manifestamente improcedentes, sustentando que aquela decisão incorreu em nulidade, por excesso de pronúncia, pois configura um julgamento antecipado, assim excedendo os limites da função meramente filtrante da fase liminar, sem produção de prova, em violação da tramitação legal e dos princípios do contraditório e da tutela jurisdicional efetiva. Acrescenta que apresentou elementos probatórios idóneos, bastantes para evidenciar os requisitos exigidos pelo artigo 345.º do CPC, designadamente, declaração subscrita pela proprietário formal e indicação de prova testemunhal.
Dispõe o artigo 3.º, n.º 3 do CPC que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Este preceito consagra o denominado princípio do contraditório, do qual decorre que «as partes devem ter sempre a possibilidade de se pronunciar sobre as questões a decidir pelo juiz. Apenas se ressalvam as questões cuja decisão não tem, em si mesmo, qualquer repercussão sobre a instância, não sendo relevante, ainda que reflexamente, para a decisão do litígio, ou que, pela sua natureza, não compreenda o contraditório prévio»[1].
O respeito por tal princípio é exigido pelo direito a um processo equitativo, tal como previsto no artigo 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, sendo atualmente entendido como a garantia dada à parte, de participação efetiva na evolução da instância, tendo a possibilidade de influenciar todas as decisões e desenvolvimentos processuais com repercussões sobre o objeto da causa[2].
Deste modo, o fim principal do princípio do contraditório deixou de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo, o que passa necessariamente não só pela possibilidade conferida à parte de deduzir as suas razões (de facto ou de direito) e apresentar as provas que entenda relevantes, como também de controlar as provas apresentadas pela parte contrária, pronunciando-se sobre o valor e resultado das mesmas[3].
Daí que, no plano probatório, o princípio do contraditório exija que as partes possam pronunciar-se sobre a apreciação das provas produzidas por si, pelo adversário e pelo tribunal: «qualquer elemento probatório deve ser sujeito a prévia apreciação da parte para que o tribunal possa, à luz do processo justo e equitativo, valorizá-la e considerá-la na decisão a proferir»[4].
Contudo, os meios de prova relevantes são aqueles que se apresentem como potencialmente úteis para a decisão dos factos necessitados de prova, sendo que no caso em análise o artigo 345.º do CPC, que regula a fase introdutória dos embargos, estabelece que, sendo apresentada em tempo e não havendo outras razões para o imediato indeferimento da petição de embargos, realizam-se as diligências probatórias necessárias, sendo os embargos recebidos ou rejeitados conforme haja ou não probabilidade séria da existência do direito invocado pelo embargante.
Ora, nos casos em que, por determinação legal, a petição inicial seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer - cf., o artigo 590.º, n.º 1 do CPC.
Daí que, em sede de apreciação liminar de embargos de terceiro, processados por apenso ao processo em que foi ordenado o ato ofensivo do direito do embargante, nada impede, antes aconselha, até por razões de celeridade e de economia processual, que o juiz aprecie liminarmente a petição inicial dos embargos tendo em consideração os elementos já constantes do processo a que aqueles estão apensos, designadamente, a tempestividade da sua apresentação, a qualidade de terceiro do embargante e a verificação de qualquer fundamento de indeferimento liminar, designadamente, situação de manifesta improcedência do pedido[5].
Como tal, é manifesto que o Tribunal recorrido podia indeferir o requerimento inicial de embargos sem ter que proceder à inquirição das testemunhas indicadas pelo Embargante, desde que se convencesse que os elementos já constantes do processo permitiam, desde logo, nos termos e com os fundamentos que constam da decisão recorrida, concluir pela manifesta improcedência dos embargos.
Note-se ainda que, ao contrário do que o recorrente parece sustentar, não pode considerar-se que o Tribunal recorrido não tenha ponderado os elementos já constantes dos autos, designadamente a declaração subscrita pela proprietária formal[6]da unidade de produção artesanal de peças de cerâmica tradicional, legalmente licenciada pela Câmara Municipal ... ao abrigo do alvará de utilização n.º ...21.
Aliás, a decisão recorrida enunciou claramente que a declaração emitida pela executada, “de que é o filho que há cerca de 10 anos (acrescentando uns pozinhos ao alegado pelo Embargante) faz a gestão da oficina, e que a actividade económica apenas formalmente se encontra em seu nome por razões de «conveniência e continuidade fiscal» não tem, em nosso entender qualquer valor probatório”.
Por outro lado, a decisão recorrida, também explicita com clareza que o Embargante foi convidado pelo mesmo Tribunal a juntar prova documental que atestasse a realidade que vem alegada no âmbito do requerimento inicial apresentado, designadamente, certidão do registo comercial e declaração das finanças comprovativas de que a alegada atividade é exercida pelo embargante, não o tendo feito.

No que ora releva, o Tribunal recorrido enunciou a seguinte fundamentação:
«(…)
Sucede que, pese embora o Embargante tenha alegado, para fundar a sua pretensão, que desde o ano de 2018, exerce no prédio em questão nos autos, de forma exclusiva e pública, a sua atividade profissional de produção e comercialização de cerâmica artesanal tradicional, legalmente licenciada pela Câmara Municipal ... ao abrigo do alvará de utilização n.º ...21, com exercício pleno e contínuo, sendo esta a sua única fonte de rendimento e sustento pessoal;
A verdade é que convidado a juntar prova documental que atestasse essa realidade, designadamente, certidão do registo comercial e declaração das finanças comprovativas do de que a alegada actividade é exercida pelo embargante, este não o fez.
Com efeito, na sequência do convite que lhe foi dirigido pelo Tribunal o Embargante levantou o manto diáfano da sua argumentação, deixando a nu a realidade, isto é, que a única pessoa que em termos fiscais e legais exerce a atividade económica de produção e comercialização de cerâmica artesanal tradicional, legalmente licenciada pela Câmara Municipal ... é a Executada sua mãe.
De resto, como aduz o Embargante é a sua mãe, Executada nos autos principais, que emite as facturas respeitantes ao exercício dessa actividade e que apresenta as correspondentes declarações tributárias.
Tanto chega e sobeja para que tenhamos como fortemente indiciado que, ao contrário do que vem alegado pelo Embargante, quem exerce a actividade económica em questão é a própria Executada. Se o Embargante lá trabalha, do que não se duvida, não exerce essa actividade em nome próprio mas em nome da sua mãe, nos termos que entre si tenham acordado.
A declaração emitida pela Executada, de que é o filho que há cerca de 10 anos (acrescentando uns pozinhos ao alegado pelo Embargante) faz a gestão da oficina, e que a actividade económica apenas formalmente se encontra em seu nome por razões de «conveniência e continuidade fiscal» não tem, em nosso entender qualquer valor  probatório.
E muito menos se vislumbra necessária a produção de qualquer outro dos meios de prova indicados - designadamente a testemunhal, porquanto como já se referiu, o próprio Embargante e a Executada sua mãe confessam que é esta a titular da licença da actividade económica e bem assim aquela que legalmente exerce essa actividade e declara os respectivos proventos.
Está, portanto, definitivamente provado que a Executada mulher é a única que beneficia de licença para o exercício da actividade em questão e bem assim que declara fiscalmente os rendimentos desse negócio.
O que nos impele à conclusão de que esta é mais uma tentativa dos Executados/Embargados de se furtarem ao cumprimento da sentença, com a qual continuam a não se conformar, mesmo após terem esgotado todas as vias recursivas.
Os presentes embargos de terceiro revelam-se, por isso, manifestamente improcedentes, importando a sua rejeição liminar».
Nos termos expostos, entendemos que a decisão recorrida não incorreu em qualquer derrogação do princípio do contraditório, nem se vislumbra que colida com o princípio da tutela jurisdicional efetiva, impondo-se a improcedência da nulidade suscitada pelo apelante.
No caso, o objeto dos embargos implica saber se o Embargante é, ou não, titular da posse, em nome próprio, que invoca sobre o aludido estabelecimento ou unidade de produção artesanal de peças de cerâmica tradicional, legalmente licenciada pela Câmara Municipal ... ao abrigo do alvará de utilização n.º ...21 instalado no imóvel da propriedade dos Executados/Embargados, seus pais, sendo tal posse incompatível com a diligência judicialmente ordenada em sede de Execução instaurada contra estes últimos[7].
Neste domínio, esta Relação não pode deixar de acompanhar o juízo valorativo empreendido pelo Tribunal a quo na parte em que considerou que a declaração emitida pela Executada, de que é o filho que há cerca de 10 anos (acrescentando uns pozinhos ao alegado pelo Embargante) faz a gestão da oficina, e que a actividade económica apenas formalmente se encontra em seu nome por razões de «conveniência e continuidade fiscal» não tem qualquer valor probatório.
Efetivamente, está em causa uma declaração subscrita pela própria Executada/Embargada, em 10-07-2025, ou seja, em momento posterior à instauração do processo de Execução para Prestação de Facto em referência e até dos Embargos de Terceiro que lhe foram opostos pelo recorrente.
Trata-se, assim, de documento imputado à Executada/Embargada (parte interveniente na Execução em apenso e nos presentes Embargos de Terceiro).
Por outro lado, no contexto dos presentes Embargos de Terceiro e da Execução de que são dependência, resulta indiscutível que tal documento corporiza uma declaração favorável à declarante/Executada/Embargada[8], pois consubstancia factos favoráveis aos seus interesses.
Nos termos do artigo 376.º, n.º 1 do Código Civil, com a epígrafe «força probatória», o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.
Por seu turno, o n.º 2 do mesmo preceito prevê que os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão.
A propósito refere Maria dos Prazeres Pizarro Beleza[9]: «Provada a autoria de um documento particular não autenticado (cfr. Artigo 377.º), nos termos previstos nos artigos 374.º e 375.º, e salvo arguição e prova da respectiva falsidade, fica plenamente provada a emissão das declarações neles contidas.
Tal como sucede com as que constam de documentos autênticos (…), essas declarações, de ciência ou de vontade, terão a força probatória correspondente à sua natureza. Serão válidas e eficazes ou não, entre os intervenientes no documento ou para com terceiros, de acordo com o regime que lhes couber. Assim, se compreenderem factos desfavoráveis ao declarante, sendo então declarações confessórias, o seu valor é o que consta do n.º 2 do artigo 358.º e do artigo 360.º (indivisibilidade da confissão). Ficam plenamente provados os factos desfavoráveis, se a declaração for dirigida à parte contrária ou a quem a represente; não perante terceiros. Se a declaração incluir factos ou circunstâncias favoráveis ao declarante (por ex. o pagamento parcial da quantia cuja entrega reconhece), também estes ficarão provados, salvo se a parte contrária “provar a sua inexactidão” (artigo 360.º).
Não terão valor probatório as declarações de factos favoráveis ao declarante (…)».
De forma idêntica, salienta Luís Filipe Pires de Sousa[10]: «No que tange aos documentos particulares, rege o princípio da indivisibilidade segundo o qual os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante (contra se: factos prejudiciais), sendo a declaração indivisível nos termos prescritos para a prova por confissão (arts. 376º, nº 2 e 360º). Ou seja, o valor probatório material dos factos documentados restringe-se àqueles que sejam desfavoráveis ao declarante porquanto, tratando-se de declarações de ciência, ninguém pode ser testemunha em causa própria e, tratando-se de declarações de vontade, ninguém pode constituir um título a seu favor».
Além disso, o próprio Embargante vem admitir que os Executados/Embargados, BB e CC, iniciaram, há mais de vinte e cinco anos, a produção artesanal de peças cerâmicas num anexo da sua habitação sita na Rua ..., artigo matricial ...21, ... (...), ..., encontrando-se tal anexo licenciado para uso industrial artesanal (alvará camarário n.º ...)[11].
Trata-se, aliás, de matéria que se mostra plenamente dilucidada nos autos, desde logo pelo teor documento que titula o alvará camarário n.º ..., oportunamente junto pelo Embargante, o qual deve ser qualificado como documento autêntico, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 363.º, n.ºs 1 e 2, 369.º do CC[12], importando, por isso, atender à regra de direito probatório material vertida no artigo 393.º, n.º 2 do Código Civil, que prescreve a inadmissibilidade da prova testemunhal, quando a correspondente matéria incida sobre factos plenamente provados por documento ou por outro meio com força probatória plena.
Acresce que o próprio Embargante vem reconhecer expressamente que é a sua mãe (a Executada/Embargada, CC) quem mantém a titularidade fiscal da atividade industrial artesanal titulada pelo alvará camarário n.º ..., instalada no imóvel da propriedade dos Executados/Embargados, sendo em nome da Executada que são emitidas as respetivas faturas e apresentadas as correspondentes declarações tributárias, o que de resto já resulta de forma inequívoca das inúmeras faturas e guias de transporte emitidas em nome da Executada, algumas bem recentes, juntas aos autos pelo embargante [cf. documentos 5 e 18 juntos com o requerimento inicial].
É certo que, na sequência do convite formulado pelo Tribunal recorrido para que juntasse aos autos documentos que comprovassem que a alegada atividade de produção de cerâmica é exercida no prédio objeto da decisão - e, bem assim, que essa alegada atividade é exercida em nome próprio - o Embargante veio alegar, de forma inovadora, que a gestão corrente da unidade de produção lhe foi confiada há cerca de 10 anos, mantendo a sua mãe a titularidade fiscal da atividade, por razões de conveniência e continuidade fiscal, sendo em nome da Embargada que continuam a ser emitidas as faturas e apresentadas as respetivas declarações tributárias.
Porém, também nesta sede o Embargante nem sequer esclarece a que título lhe foi confiada a gestão corrente da unidade de produção e qual o alcance e/ou os contornos da mesma[13], subsistindo, em qualquer caso, o valor probatório dos documentos apresentados e reconhecidos pelo próprio Embargante, com as consequentes limitações de prova emergentes do disposto no artigo 394.º, n.º 2 do CC, face aos contornos de um eventual acordo simulatório ou de um indeterminado negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores, conforme indicia o que vem alegado pelo Embargante a propósito da titularidade fiscal aparente da atividade em causa.
Deste modo, compulsados todos os elementos documentais juntos aos autos pelo próprio Embargante e ponderando o alegado na sequência do convite formulado pelo Tribunal recorrido, entendemos que a decisão de indeferimento liminar agora em análise não merece qualquer censura, por ser manifesta a improcedência dos embargos deduzidos.
Por conseguinte, também não se vislumbra que o entendimento normativo expresso na decisão em referência colida com os princípios constitucionais concretamente invocados pelo recorrente.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, cumpre julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Síntese conclusiva:

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, assim confirmando a decisão recorrida.

Custas da apelação pelo recorrente.

Guimarães, 30 de outubro de 2025
(Acórdão assinado digitalmente)

Paulo Reis
(Juiz Desembargador - relator)
Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
(Juíza Desembargadora - 1.º adjunto)
António Beça Pereira
(Juiz Desembargador - 2.º adjunto)


[1] Cf. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, Coimbra, Almedina, 2013, p. 27.
[2] Cf. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro - obra citada - p. 27.
[3] Cf. o Ac. TRG de 26-09-2013 (relator: Manuel Bargado), p. 805/13.2TBGMR-A. G1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Cf. o Ac. TRG de 06-02-2020 (relator: Ramos Lopes), p. 1002/19.9T8VNF-A. G1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Neste sentido, cf. entre outros, o ac. TRE de 12-01-2012 (relatora: Maria Alexandra Santos), p. 844/08.5TBOLH-C. E1; disponível em www.dgsi.pt.
[6] Executada nos autos de execução em apenso.
[7] Ainda que na situação em análise a diligência judicialmente ordenada não configure um ato de penhora, nem mesmo qualquer ato de apreensão ou entrega de bens, nos termos e para os efeitos exigidos pelo artigo 342.º, n.º 1 do CC, circunstância que o Tribunal recorrido não ponderou no despacho recorrido.
[8] Mesmo considerando provada a emissão das declarações nele contidas, nos termos previstos no artigo 374.º do Código Civil.
[9] Comentário ao Código Civil: parte geral, coord. de Luís Carvalho Fernandes, José Brandão Proença; Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, pgs. 858-859.
[10] Cf. Luís Filipe Pires de Sousa, Direito Probatório Material Comentado, Coimbra, Almedina, 2020, pgs. 163-164.
[11] Cf. requerimento de 12-07-2025.
[12] Visto tratar-se de documento exarado, com as formalidades legais, por autoridade pública nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de atividade que lhe é atribuído, presumindo-se a respetiva autenticidade nos termos do disposto no artigo 370.º do CC.
[13] Sendo que é ao Embargante que cabe o ónus de alegar matéria de facto favorável à sua legitimidade, à viabilidade e à tempestividade da sua pretensão - cf. o ac. TRP de 12-07-2021 (relator: Miguel Baldaia de Morais), p. 663/09.1T2AND-D. P1; disponível em www.dgsi.pt.