I – Deve ser proporcionada às partes a possibilidade de produzirem alegações quando o juiz se proponha decidir determinada questão fulcral num enquadramento jurídico diverso do assumido e discutido pelas partes nos autos e o faz para colocar imediato termo aos autos.
II – A concessão de prazo para tal exercício impede que as partes venham a ser confrontadas com uma decisão surpresa (situação proibida pelo art.3.º/3) e obvia aos casos em que o conhecimento imediato da questão possa derivar de alguma precipitação do julgador.
III – De acordo com a regra da substituição ao Tribunal recorrido, prevista no art. 665.º CPC, não obstante tratar-se de despacho nulo, a decisão do tribunal da Relação não será a de remessa dos autos à primeira instância para prolação de nova decisão, mas, se o processo já contiver elementos suficientes para o efeito, decidir sobre a questão de fundo, sobretudo se todas as partes já se pronunciaram sobre o tema decidendo.
IV – O que decidir a Relação, em recurso interlocutório, sobre meios probatórios, nomeadamente admitindo prova que a primeira instância indeferira, invalida o processo (mormente sentença que, entretanto, haja sido proferida) na parte em que não se tiverem em conta tais meios, como admitidos pela segunda instância.
V – Não adianta (é inadmissível) recurso da sentença que venha a ser proferida, nomeadamente para invocação da não ponderação desses meios, porque a decisão do acórdão da Relação que já admitiu esses meios de prova constitui já caso julgado formal sobre o tema e deve ser observado em sentença posterior que os tome em conta.
(Sumário elaborado pela Relatora)
RELATÓRIO:
No apenso F (de que são apensos os presentes autos N), AA veio requerer contra BB a alteração do regime de alimentos relativamente aos filhos do casal.
Em ata de 19.11.2019, foram as partes notificadas para, no prazo de 15 dias, apresentarem alegações ou arrolarem até 10 testemunhas e juntarem documentos, nos termos do art. 39.º, n.º 4 do RGPTC.
Com as suas alegações, a requerente juntou documentos, arrolou testemunhas, requereu o depoimento de parte do requerido, a prestação das suas declarações a toda a matéria, a audição do filho CC e solicitou ainda a realização das seguintes diligências probatórias:
- A notificação do Banco de Portugal, para vir aos autos informar quais as instituições bancárias em que o requerido figura como titular (ainda que não seja o 1.º titular) de quaisquer contas bancárias, à ordem, a prazo, certificados de aforro, títulos do tesouro ou outras;
- O levantamento do sigilo bancário, relativamente às contas supracitadas, e em simultâneo sejam solicitados aos Bancos em apreço, extratos de todas as contas do requerido, desde 2018 e até ao presente;
- Se oficie ao Instituto da Segurança Social, IP, no sentido de esta entidade informar, documentalmente, através do extrato de remunerações, quais os montantes declarados e auferidos, pelo requerido, nos anos de 2020 e 2021;
- Se oficie à Autoridade Tributária, para informar, este douto Tribunal, quais os valores declarados, em sede de rendimentos, naqueles anos.
Em 17.02.2022, foi proferido despacho com o seguinte teor:
“Oficie ao Banco de Portugal, à Segurança Social e à AT como requerido pela progenitora nas suas alegações.”
A Segurança Social informou em 24.02.2022 que o requerido constava com a última remuneração registada em 2022-01, através da Entidade Empregadora A..., S.A, encontrando-se também abrangido pelo regime dos trabalhadores independentes desde 2007-12-01.
Foi requerido ao SATT a elaboração de relatórios sociais nos termos do artigo 21.º, n.º 1, alínea e) ex vi do artigo 42.º, n.º 5, ambos do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.
Na sequência do ofício à Autoridade Tributária, foi junta a cópia da declaração mod. 3 de IRS do ano de 2020 apresentada pelo requerido.
Em 28.11.2022 foi junto o relatório elaborado pelo SATT, no qual na sua parte final se consignou a seguinte nota:
“Como nota final, assinala-se que na vertente dos alimentos surge a importância de conhecer com objetividade a conjuntura situacional económico/financeira de BB ao nível da empresa, suas reais funções, vencimento auferido, descontos efetuados, declarações de IRS, e demais situações, documentando a esse Tribunal, no sentido de se proceder a uma avaliação criteriosa e eventuais ajustamentos.”
Notificada do relatório social veio a requerente apresentar requerimento onde impetrou o seguinte:
«(…) se requer, a V. Exª, em face do que vem exposto no douto Relatório Social e do ante demonstrado, se oficie, ao abrigo do n.º 1, in fine, do art. 25.º do RGPTC:
- À Autoridade Tributária, no sentido de informar/facultar, documentalmente, para os sobreditos efeitos, as IES (Informação Empresarial Simplificada) das empresas do Grupo B... e C..., de que faz parte a A... (entidade patronal do requerido) e, ainda, desta última e da D..., que também pertence ao grupo, relativamente aos anos de 2020, 2021 e, se possível, de 2022 (que se encontra a findar);
- Às anteditas empresas, para, paralelamente, com a entidade anterior, facultarem, aos presentes autos, as respetivas declarações anuais de informação contabilística e fiscal, correspondentes àqueles anos;
- Às anteditas empresas, para, paralelamente, com a entidade anterior, facultarem, aos presentes autos, as respetivas declarações anuais dos Registos da Prestação de Contas das mesmas, relativas aos mesmos anos;
- Às supracitadas empresas, para virem juntar aos autos as respetivas declarações de TSU (Taxa Social Única), concernentes aos preditos anos;
Finalmente,
- Às supramencionadas empresas, para informarem, estes autos, quais as reais remunerações, remunerações de férias (incluindo proporcionais, se for o caso), subsídios (férias e Natal), compensações por eventuais férias não gozadas, retribuições de trabalho suplementar, subsídios de transporte e de alimentação e outros, bónus, prémios, participação em lucros, na qualidade de eventual acionista, comissões, ajudas de custo, créditos de formação e por prestação de formação, de participação em seminários, congressos, palestras e outros eventos, reembolso de despesas e/ou Cartões de Crédito e respetivo plafond, entre outras, que o requerido aufira, ou tenha auferido, nos anos sobreditos. Com a junção de tais elementos, pretende fazer-se a prova de que o requerido tem rendimentos muito superiores aos que declarou, no âmbito deste processo, tendo sobejas condições económico-financeiras para pagar o montante peticionado, nestes autos, de pensão de alimentos, aos seus filhos.
Mais requer:
Nos termos do disposto no art. 429.º do CPC, ex vi do art. 33.º, n.º 1 do RGPTC, seja ordenada a notificação do requerido para vir apresentar/juntar, aos autos, cópia da escritura pública de compra e venda do imóvel a que se alude nos itens 26.º e 27.º desta peça.
Com a junção deste documento pretende fazer-se a prova do referido nos arts. 29º a 34.º, do presente requerimento.
OUTROS MEIOS DE PROVA:
- Todas as testemunhas já arroladas, quer no requerimento inicial, quer em alegações;
- O depoimento de parte, já requerido em alegações;
- As declarações de parte, igualmente requeridas em alegações.»
Apresentou ainda a requerente outro requerimento, onde solicitou a junção de cinco documentos: auto de penhora de depósitos bancários do requerido no âmbito do proc. de execução 32/20...., certidões prediais de diversos prédios, embargos de executado deduzidos pelo aqui apelado no âmbito da referida execução que lhe foi instaurada pela aqui apelante e formulário que os acompanha e saneador/sentença que julgou improcedentes os mencionados embargos (processo 32/20....).
Em 23.01.2023, foi proferido despacho com o seguinte teor:
“Oficie à Segurança Social, para informar quais os montantes declarados pelo requerido, no ano de 2022, com junção do extrato de remunerações.
Ref. 7714076 e 7714904: Desentranhe, por não ter cabimento legal atentas as alegações juntas, uma vez que se trata de novo requerimento probatório e não de contraditório aos relatórios juntos.
Notifique.”
Deste despacho, a requerente interpôs recurso (apenso K), que foi admitido com efeito devolutivo, na sequência do qual veio a ser proferido acórdão, datado de 26.9.2023, com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes desta 1.ª secção cível em julgar procedente a apelação e, consequentemente, admitem os requerimentos mandados desentranhar pelo despacho recorrido (refs 7714076 e 7714904), devendo os autos prosseguirem os seus termos com a sua análise, pronunciando-se, designadamente, sobre a pertinência das diligências probatórias requeridas e sobre a requerida junção de documentos.
Entretanto, nos autos de alteração da regulação das responsabilidades parentais, havia já sido proferida sentença sobre o incidente, datada de 27.6.2023 (dois meses antes do mencionado acórdão), a qual julgou improcedente a pretendida alteração das responsabilidades parentais, sentença que então foi notificada às partes.
A 18.1.2024, foi proferido o seguinte despacho:
Face à douta decisão proferida no apenso K, notifique as partes para, no prazo de 10 dias, requererem o que tiverem por conveniente.
Tendo-se as partes pronunciado, foi proferido despacho a 12.4.2024, admitindo documentos que foram solicitados a entidades e ao próprio requerido, escrevendo-se, entre o mais, o seguinte:
«(…) Nos presentes autos de alteração da regulação das responsabilidades parentais encontra-se peticionado a alteração da pensão de alimentos para montantes não inferiores a € 800 para cada um dos filhos DD e EE, e de € 1.200 ao filho CC.
Como tal, compete a este Tribunal ter conhecimento da atual situação económica dos intervenientes processuais.
Considerando que os elementos pretendidos juntar sob os pontos 1. a 4. dizem respeito à situação económica e financeira da suposta entidade patronal do requerido, mas não do requerido, ou seja, o conhecimento de tais elementos nada traz de relevante ao processo quanto aos rendimentos auferidos pelo requerido, sendo que apenas nos interessa ter conhecimento dos rendimentos da pessoa singular, indefere-se a sua junção, por manifesta inutilidade, por não se lograr comprovar o pretendido.
Assim, notifique tais entidades para, no prazo de 15 dias, procederem à junção dos elementos requeridos.
Desta forma, defere-se a sua junção, determinando-se a notificação do requerido, para, no prazo de 15 dias, proceder à junção de certidão de tal escritura pública.»
Foram sendo juntos documentos e, por despacho de 4.2.2024, foi designada nova conferência de pais que não chegou a ter lugar por se voltarem a solicitar novos elementos relativos à situação financeira do requerido.
A 27.2.2025, veio o requerido solicitar se considere ter transitado em julgado a sentença proferida a 27.6.2023, por não haver sido objeto de recurso.
Foi efetuada notificação deste requerimento, entre mandatários, no mesmo dia.
Veio a ser proferido o despacho recorrido, datado de 14.3.2025, com o seguinte conteúdo:
Ref. 9552192 e 9574129: O requerido nos presentes autos veio apresentar requerimento ao processo solicitando a emissão de certidão da sentença final, com nota de trânsito.
Cumpre apreciar e decidir.
O apenso K teve como objeto o recurso do despacho de indeferimento de junção de meios de prova, sendo que, por douto acórdão proferido em 26.09.2023, foi julgado procedente, e citando “devendo os autos prosseguirem os seus termos com a sua análise, pronunciando-se, designadamente, sobre a pertinência das diligências probatórias requeridas e sobre a requerida junção de documentos.”
No presente apenso F foi proferida sentença final no dia 27.06.2023, não tendo sido interposto recurso sobre esta decisão.
Não obstante o tribunal já tenha reaberto este apenso, determinando a junção de elementos de prova, temos de admitir que tal já não é possível, face ao trânsito em julgado da sentença final, e como tal esgotou-se o poder jurisdicional.
Vejamos.
“Face ao regime de subida em separado, se a apelação autónoma de despacho interlocutório de não admissão de meio de prova vier a ser julgada procedente (com a consequente admissão e produção de meio de prova rejeitado), tal decisão perfilar-se-á como prejudicial relativamente à apelação da decisão final (que vier a ser) posteriormente interposta pelo mesmo recorrente.
(…) Mas tendo tais recursos subido em separado (e encontrando-se ainda pendentes de decisão) e se entretanto for interposto recurso da decisão final, pode tornar-se relevante (quiçá decisivo) conhecer previamente o resultado daqueles, na medida em se revelem prejudiciais para o julgamento final de mérito, isto é, deve entender-se que, enquanto pendente (não decidida) a apelação autónoma da decisão interlocutória proferida em 1.ª instância, que seja de considerar prejudicial relativamente à sentença final, esta não transita em julgado.
Pelo que, se proferida sentença final encontrando-se ainda pendente o recurso de apelação autónoma (de decisão interlocutória), o (eventual) recurso (entretanto) interposto da sentença final não deve ser recebido (por manifesta prematuridade) só o podendo/devendo ser após ser conhecido nos autos o resultado (desfecho) da apelação autónoma”. No mesmo sentido, é citado o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10.11.2016, proc. nº 4444.07.9TBALM-C - (in Direito Processual Civil, volume II, pág. 550 e 551, Ferreira de Almeida, Almedina, 3.ª edição).
Desta análise resulta claro que a procedência do recurso de decisão interlocutória não afasta o recurso necessário de apelação da decisão final, para que este tenha como efeito impedir o trânsito em julgado da decisão final.
Analisando a questão em concreto verificamos que para a sentença final proferida neste apenso não transitar em julgado sempre seria necessário ter sido interposto recurso de apelação, ainda que o único fundamento do recurso fosse a questão interlocutória, que deveria ser invocada como prejudicial; ou seja, se não recorreu da sentença final, esta transitou em julgado, não se podendo aproveitar da decisão do recurso interlocutório.
E a tal conclusão não obsta o facto de a sentença não ser favorável ao recorrente da decisão interlocutória, porquanto se conformou com a sentença final.
Concluindo, não tendo a requerente interposto recurso da sentença final, a mesma transitou em julgado, impedindo deste modo, que se profira nova decisão, com apreciação de novos meios de prova, sob pena, de o fazendo, se violar o caso julgado formal (a situação está definitivamente consolidada por via de decisão judicial).
Assim, assiste razão ao requerido.
Emita certidão com nota de trânsito em julgado.
Notifique.
Oportunamente, arquive.
Desta decisão recorre a requerente, visando a sua revogação, com base nos seguintes argumentos que assim deixou em conclusões:
(…).
Contra-alegou o MP, opondo-se à procedência do recurso.
Objeto do recurso:
- Da nulidade por violação do princípio do contraditório;
- Do caso julgado.
FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentos de facto
A matéria que interessa à decisão do recurso ficou já exposta supra aquando da narrativa relativa ao iter processual.
Fundamentos de Direito
Da nulidade por omissão de audição da requerente sobre a matéria do caso julgado.
A apelante insurge-se contra o despacho de 14 de março passado, porque sem prévio exercício do contraditório, decidiu colocar fim ao incidente de alteração da regulação das responsabilidades parentais face a requerimento do requerido relativamente ao esgotamento do poder jurisdicional, invocando não haver sido instaurado recurso da sentença de junho de 2023.
A decisão recorrida foi proferida, de facto, sem precedência de audiência prévia a recorrente e decidiu matéria sobre a qual a requerida não teve oportunidade de se pronunciar.
Veja-se que a notificação entre mandatários teve lugar a 27.3.2025, considerando-se a notificação efetuada à recorrente, a 3.3.2025 (primeiro dia útil, após os três que se sucederam ao dia 27.2), e tendo, no dia 4.3, sido concedida tolerância de ponto aos funcionários públicos, pelo Despacho n.º 2678-A/2025, de 26.2, o prazo de 10 dias para a recorrente expor as suas razões iniciou-se a 5.3 e terminou exatamente no dia em que foi proferido o despacho recorrido (14.3.2025).
Não foi, assim, concedido prazo para pronúncia pela recorrente.
É consabido não dever o juiz não decidir o litígio ou questões processuais que a parte lhe coloque sem um debate prévio, no qual todas as partes tenham a oportunidade de produzir alegações acerca do mérito da causa ou das exceções processuais.
Nessas alegações, as partes poderão tecer os considerandos que tenham por convenientes, no sentido de justificar e fundamentar a procedência das respetivas pretensões, além de poderem tomar posição sobre eventuais questões não discutidas ainda nos autos, sobretudo quando, como aqui, se verifica que, desde janeiro de 2024, o tribunal decidiu continuar os autos, já depois de proferida a sentença que agora se considera transitada, e realizou extensa indagação probatória sobre a questão relativa aos rendimentos do requerido, um dos segmentos a dilucidar sobre a pretendida alteração de alimentos aos filhos.
Deve ser proporcionada às partes a possibilidade de produzirem alegações quando o juiz se proponha decidir determinada questão fulcral num enquadramento jurídico diverso do assumido e discutido pelas partes nos autos.
A concessão de prazo para tal exercício impede que as partes venham a ser confrontadas com uma decisão surpresa (situação proibida pelo art.3.º/3[2]) e impede os casos em que o conhecimento imediato da questão possa derivar de alguma precipitação do julgador.
Não tendo sido observado o contraditório deve o processado ser considerado nulo[3].
Para Lebre de Freitas, a consagração do princípio da proibição das decisões surpresa, resulta de uma conceção moderna e mais ampla do princípio do contraditório,“[…] com origem na garantia constitucional do Rechtiches Gehör germânico, entendido com uma garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”. O princípio do contraditório no plano das questões de direito exige que antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efetiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie”[4].
Ora, as nulidades processuais “são quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidade mais ou menos extensa de aspetos processuais”[5].
Atento o disposto nos art. 195.º e ss. CPC, as nulidades processuais podem consistir na prática de um ato proibido, omissão de um ato prescrito na lei ou realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.
A omissão do exercício do contraditório não constitui uma nulidade principal, pois não consta do elenco das nulidades previstas nos arts. 186.º a 194.º e 196.º a 198.º do CPC.
Representa, pois, a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreve, que integra a previsão do art. 195.º CPC e, por isso, configura uma irregularidade que só determina a nulidade do processado subsequente àquela omissão se influir no exame e decisão da causa, estando o seu conhecimento dependente da arguição, nos termos previstos no art. 199.º CPC[6].
Uma irregularidade pode influir no exame e decisão da causa se comprometer o conhecimento da causa, a instrução, discussão e o julgamento.
A nulidade processual é distinta da nulidade da sentença, uma vez que a nulidade por falta de pronúncia, a que alude o art. 615.º, n.º 1 d) CPC está diretamente relacionada com o comando do art. 608.º, n.º 2 do mesmo Código, reportando-se ao não conhecimento das questões (que não meros argumentos ou razões) relativas à consubstanciação da causa de pedir e do pedido.
Nos termos do art. 615.º n.º 1, al. d) CPC a sentença é nula, quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
O vício em causa está relacionado com a norma que disciplina a “ordem de julgamento” – art. 608.º, n.º 2 CPC.
Resulta do regime previsto neste preceito, que o juiz na sentença: “deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
Pode considerar-se que a “omissão de uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com o respeito pelo princípio do contraditório destinado a evitar decisões-surpresa”, configura a nulidade da sentença/despacho, por omissão de pronúncia. Nestas circunstâncias o juiz está a tomar conhecimento de questão não suscitada pelas partes, sem prévio exercício do contraditório.
Esta interpretação revela-se coerente com a atual conceção do principio do contraditório, entendido como “garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”[7].
No caso presente verificando-se a omissão do prévio exercício do contraditório, perante uma questão de direito suscitada por uma das partes e que ditou o fim da ação, a decisão é nula, nos termos do art. 615.º, n.º 1 d) CPC.
Todavia, aqui chegados há que operar com a regra da substituição ao Tribunal recorrido, prevista no art. 665.º CPC.
Com efeito, não obstante, tratar-se de despacho nulo, a decisão deste tribunal não será a de remessa dos autos à primeira instância para prolação de nova decisão, mas, se o processo já contiver elementos suficientes para o efeito, decidir sobre a questão de fundo.
Operar a notificação prevista no n.º 3 deste último normativo seria um ato inútil e, por isso, não admissível porque ambas as partes se pronunciaram já sobre o tema do caso julgado, sabendo nós já quais as posições que defendem e tendo o MP respondido ao recurso, manifestando adesão aos argumentos expostos no despacho recorrido.
Do caso julgado.
A decisão do tribunal da Relação, datada de setembro de 2023, ordenou a admissão dos requerimentos probatórios, maxime dos relativos à condição financeira do requerido e, por via disso, ordenou que os autos prosseguissem para análise destes, obviamente em ordem a decidir sobre se era ou não de alterar a decisão sobre os alimentos.
Esse recurso versava sobre decisão interlocutória, mas autónoma, nos termos do art. 644.º, n.º 2 al. d) CPC.
O tribunal recorrido considerou a decisão daquele recurso como invalidadora da sentença que anteriormente proferiu e reiniciou os autos na fase de recolha da prova que lhe havia sido ordenada pela Relação.
Todavia, de forma surpreendente, veio, mais de um ano após, afirmar que, afinal, a sua sentença – proferida sem a prova que o tribunal da Relação impôs – havia já transitado em julgado. Fê-lo, porém, invocando fundamentos que entram em contradição com a decisão.
Escreveu-se no despacho recorrido que, estando pendente um recurso sobre decisão interlocutória pode ser necessário aguardar a decisão deste para admitir recurso de sentença que, entretanto venha a ser proferida, acrescentando poder entender-se que, enquanto não decidido o recurso interlocutório seja de considerar este prejudicial relativamente à sentença. Razão por que nem deveria ser recebido o recurso que eventualmente viesse a ser interposto dessa sentença, porque o resultado do recurso interlocutório poderia alterar os dados em presença.
Citou o ac. RL, de 10.11.2016, Proc. 4444/07.9TBALM-C.L1-6.
Ora, o que se retira deste aresto é exatamente o oposto da conclusão a que se chegou em primeira instância.
No acórdão citado afirma-se:
- por um lado, que o que decidir a Relação sobre os meios probatórios, em recurso prévio, invalida o processo na parte em que não se tiverem em conta tais meios, como admitidos pela segunda instância;
- não adianta (é inadmissível) recurso da sentença que venha a ser proferida, nomeadamente por invocação da não ponderação desses meios, porque a decisão do acórdão da Relação constitui caso julgado formal sobre esse tema;
Lê-se, com efeito, na fundamentação do citado acórdão:
«Reza o n.º 1, do art. 671.º, do CPC, sob a epígrafe de “ valor da sentença transitada em julgado”, que “ transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 497.º e 498.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 771.º a 777.º “. Por sua vez, o dispositivo seguinte do mesmo código, agora sob a epígrafe de “caso julgado formal “, dispõe que “ As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo”.
Incidem ambos os dispositivos aludidos, como é consabido, ao instituto do caso julgado, o qual no essencial consagra a inadmissibilidade da substituição ou modificação de uma decisão, uma vez transitada em julgado - cfr. Art. 677.º do Código de Processo Civil - por um qualquer tribunal, inclusive por aquele que a proferiu. O que distingue porém os dois normativos acima indicados, é que , cabendo no instituto do caso julgado duas formas, pois que, pode o mesmo ser material ou formal, consoante o âmbito da sua eficácia, alude o art. 671.º à primeira forma referida e, já o art. 672.º, à segunda.
Precisando melhor o que as diferencia - ambas as referidas formas -dir-se-á que o caso julgado formal só tem um valor intraprocessual, ou seja, só é vinculativo no próprio processo em que a decisão foi proferida - cfr. art. 672.º, in fine do CPC - , e , esta última - a decisão , seja sentença ou despacho - incide tão só sobre a relação processual, não apreciando o fundo da acção.
Já o caso julgado material, para além da aludida eficácia intraprocessual, é susceptível de se impor outrossim num processo distinto daquele em que foi proferida a decisão transitada - cfr. art. 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil - e, ademais, o objecto desta última – sentença – é a relação material controvertida, que aprecia e resolve – conhece assim do fundo/mérito da acção.
Em conclusão, estando o caso julgado formal ligado a questões processuais, as quais passam à margem da relação material controvertida, tem ele força obrigatória apenas dentro do processo onde é proferida a decisão, mas, em todo o caso, tal força obrigatória vincula/obriga não apenas os destinatários (as partes), mas também o próprio tribunal. No que à ratio do instituto processual que temos vindo a escalpelizar - em traços largos - concerne, explica Teixeira de Sousa que em causa está uma exigência “da boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, pois que evita que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, obsta a que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante a resolução definitiva dos litígios que os tribunais são chamados a dirimir.”
Em rigor, constitui ele - instituto do caso julgado – o “corolário da obrigatoriedade e da prevalência das decisões dos tribunais, visando garantir o princípio enunciado nestes termos no n.º 2 do artigo 205.º da CRP : «As decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades».
Postas estas breves considerações, e incidindo agora sobre a concreta tramitação dos presentes autos, e como vimos supra, é inequívoco que a questão que integra o objecto da apelação que a recorrente interpôs da sentença de 25/1/2016, foi já objecto de julgamento por este mesmo Tribunal da Relação, o que sucedeu por Ac. de 12/5/2016 (…). E tendo-o sido, por força do disposto no art. 672.º, n.º 1, do CPC, é inevitável que sobre a referida questão não possa novamente este tribunal emitir qualquer pronúncia /julgamento, porque já resolvida, restando ao tribunal a quo cumpri-la.
Por fim resta acrescentar que, tendo a apelação decidida por este tribunal da Relação - no douto Ac. 12/5/2016 – incidido sobre meio de prova que foi rejeitado, determinando a sua admissão, é evidente que o cumprimento do decidido implica forçosamente a invalidação de todo o processado, após o requerimento da Exequente na sessão de julgamento de 25/5/2015 , devendo portanto a sentença apelada considerar-se igualmente como prejudicada, pois que, após o reinício e conclusão da audiência, outra terá que ser proferida.
Em rigor, e tal como bem nota António Santos Abrantes Geraldes, como que a apelação interposta do despacho interlocutório de não admissão de meio de prova, ao ser julgada procedente, veio a revelar-se prejudicial em relação à apelação interposta da sentença final, inutilizando-a.»
É, pois, de inutilização da sentença de 27.6.2023 que se trata e nunca do seu trânsito em julgado, uma vez que o respetivo valor do ato decisório ficou imediatamente afetado, logo que o Tribunal da Relação considerou insuficientes os meios de prova em que o mesmo se alicerçou, ordenando a produção de outros que se impunha recolher.
Foi exatamente isso que o tribunal de primeira instância entendeu, desde logo por despacho de 12.4.2024, admitindo os meios de prova, naturalmente para continuação dos autos com vista à decisão, tratando-se o despacho recorrido de uma contradição relativamente àquele primeiro despacho, contradição essa que, como se sabe, se resolveria sempre dando prevalência ao despacho mais antigo (o que ordena o prosseguimento dos autos), como dispõe o art. 625.º do CPC.
O recurso é, assim, de proceder.
Dispositivo
Pelo exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação julgar o recurso procedente e revogar o despacho recorrido.
Custas pelo recorrido.
[1] Às supramencionadas empresas, para informarem, estes autos, quais as reais remunerações, remunerações de férias (incluindo
proporcionais, se for o caso), subsídios (férias e Natal), compensações por eventuais férias não gozadas, retribuições de trabalho suplementar, subsídios de transporte e de alimentação e outros, bónus, prémios, participação em lucros, na qualidade de eventual acionista, comissões, ajudas de custo, créditos de formação e por prestação de formação, de participação em seminários, congressos, palestras e outros eventos, reembolso de despesas e/ou Cartões de Crédito e respetivo plafond, entre outras, que o requerido aufira, ou tenha auferido, nos anos sobreditos.
[2]Segundo o qual “[o] juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
[3] Ac. RP. de 27.9.2017, Proc. 136/16.6T8MAI-A.P1: I - O art. 591.º do CPC estabelece a regra: realização da audiência prévia; os artigos seguintes ocupam-se das exceções: o art. 592.º dos casos em que a audiência prévia não tem lugar, o art. 593.º dos casos em que a audiência prévia pode ser dispensada. II - Quando a acção houver de prosseguir (i.é., não deva findar no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória que já tenha sido debatida nos articulados) e o juiz pretenda decidir de imediato, no todo ou em parte, do mérito da causa (ou apreciar excepção dilatória que não tenha sido debatida nos articulados ou que vá julgar improcedente) deve realizar-se audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito que importe para esse conhecimento. III - A não realização da audiência prévia nos casos em que a mesma tem lugar e não pode ser dispensada gera uma nulidade processual, não obstando a isso a circunstância de previamente à decisão o juiz ter anunciado às partes que se julgava em condições de decidir de mérito. IV - Mesmo que se admita que se as questões a decidir forem muito simples e a decisão sobre elas for pacífica na jurisprudência e na doutrina, o juiz poderá, no uso do poder de simplificação e agilização processual e adequação formal, não realizar a audiência prévia, a decisão de não a realizar deverá ser fundamentada e precedida do convite prévio às partes para se pronunciarem sobre a possibilidade de o fazer e, querendo, alegarem por escrito o que iriam sustentar oralmente na audiência se esta tivesse lugar. Ac. RL, de 11.12.2018, Proc. 103/16.0T8OER-A.L1-2: Entendendo o Tribunal a quo que podia conhecer, em sede de despacho saneador, acerca do mérito da acção, deveria, prima facie, em cumprimento do prescrito na alínea b), do nº. 1, do artº. 591º, do Cód. de Processo Civil, convocar audiência prévia ; - Não o fazendo, incorreu na prática de irregularidade que, podendo influir no exame ou na decisão da causa – artº. 195º, do CPC -, se transmuta ou converte em nulidade processual, dado ter sido praticado um acto que a lei não admite, qual seja o de dispensar a realização da audiência prévia quando esta dispensa não era legalmente sancionada; - Porém, sempre se poderia argumentar, em defesa da posição assumida, que o Tribunal a quo teria feito uso do poder de gestão processual, na vertente ou segmento do poder de simplificação e agilização processual, nos quadros do legalmente prescrito nos artigos 547º e 6º, ambos do Cód. de Processo Civil, sendo normalmente esta situação admitida apenas quando as questões a decidir forem muito simples e a decisão sobre as mesmas for pacífica, jurisprudencial e doutrinariamente; - Ora, a entender-se a possibilidade de recurso ao presente mecanismo, mesmo nas situações em que a lei impõe a regra da realização da audiência prévia, a decisão de prescindibilidade desta, para além de dever ser fundamentada nesses quadros, o que não sucedeu, sempre deveria ser precedida de devido convite às partes (Embargante e Embargado) para se pronunciarem acerca da possibilidade de tal dispensa e da permissão destas se pronunciarem, por escrito, nos termos em que o iriam fazer oralmente em sede de audiência, se esta tivesse lugar, o que igualmente não ocorreu;- Pelo que ocorrendo o vício de nulidade da decisão que dispensou a realização da audiência prévia, tal determina a nulidade dos actos praticados subsequentemente a tal decisão e que da mesma dependam em absoluto, ou seja, e in casu, o proferido saneador sentença, devendo ser proferida decisão a convocar as partes (Embargante e Embargado) para a audiência prévia omitida, nos termos e para os efeitos do artigo 591º, nº. 1, do Cód. de Processo Civil, ou, em alternativa, ser proferido o despacho previsto nos artºs 547º e 6º, do Cód. de Processo Civil, convidando as partes a pronunciar-se sobre a possibilidade de dispensa desta diligência, sobre eventuais excepções e sobre o mérito da causa. RG, de 17.1.2019, Proc. 4833/15.5T8GMR:
I – Entendendo o juiz, após a fase dos articulados, que os autos contêm os elementos necessários a habilitá-lo a proferir decisão de mérito que ponha termo ao processo, impõe-se a convocação de audiência prévia para o fim previsto no art. 591º/1, b) do CPC. II – A preterição da aludida formalidade processual, que se reputa de essencial, gera para além de nulidade processual a nulidade do saneador-sentença e atenta a influência sobre esta decisão, implica a anulação do processado a fim da tramitação processual regressar ao momento anterior ao despacho que dispensou a realização da audiência prévia, de forma a possibilitar a efectiva audição das partes em sede de audiência prévia, devendo, no despacho que a designar, serem esclarecidos, em concreto, os fins a que se destina.
[4] Introdução ao Processo Civil- Conceito e princípios gerais à luz do novo código, 3ª edição, Coimbra Editora, 2013, p. 124 e 133.
[5] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, 1993, p. 156
[6]Neste sentido, o Ac. STJ 2.7.2015, Proc. 2641/13.7TTLSB.L1.S1, Ac. STJ 29.1.2015, Proc. 531/11.7TVLSB.L1.S1.
[7]Lebre de Freitas, cit, p. 125.