INSOLVÊNCIA CULPOSA
PESSOA SINGULAR
PRESUNÇÃO INILIDÍVEL
ALIENAÇÃO A FAVOR DE TERCEIRO
PERÍODO DE INIBIÇÃO
Sumário

I – A base da insolvência culposa acha-se no n.º 1 do art. 186.º CIRE, onde se determina a responsabilidade dos administradores, de facto ou de direito, da insolvente.
II – Tendo-se provado a alienação de património do insolvente a favor de terceiros, presume-se de forma absoluta a culpa deste e também o nexo de causalidade entre esta alienação e a origem e agravamento da insolvência.
III – Considera-se adequado o período de inibição de quatro anos, para efeitos do disposto no art. 189.º/2, para o insolvente pessoa singular que, cerca de dois anos antes da apresentação da insolvência, e quando esta já se apresentava como “estrutural”, dissipa todo o seu património e fica impedido de saldar o que quer que seja das dívidas avultadas que apresenta.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Relator: Fernanda Almeida
Adjuntos: Chandra Gracias
Anabela Marques Ferreira


*

Acordam os juízes abaixo-assinados da 1.ª secção, cível, do Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

 Por sentença proferida nos autos principais, a 8.7.2024, e já transitada em julgado, foi declarada a insolvência de AA.

No presente apenso, por despacho de 5.9.2024, foi declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência, na sequência do pedido de abertura deduzido pelo Administrador de Insolvência (AI) que invocou para o efeito a violação do disposto no artigo 186.º, n.º 2, als. a) e b), do CIRE, propondo a qualificação da insolvência como culposa.

A 13.12.2024, foi emitido parecer pelo MP, ao abrigo do disposto no artigo 188.º, n.º 7, do CIRE, igualmente sustentando a qualificação da insolvência como culposa, com afetação do insolvente, nos termos do artigo 186.º, n.º 1 e n.º 2, als. a) e b), do CIRE.

Cumprido o preceituado no artigo 188.º, n.º 9, do CIRE, AA deduziu oposição, na qual pugnou pela qualificação da insolvência como fortuita, alegando, em suma, que a alienação do património antes da sua apresentação à insolvência ficou a dever-se à necessidade de fazer face aos elevados encargos do seu agregado familiar e às dívidas que foi contraindo anteriormente para solver tais encargos.

Realizado julgamento, veio a ser proferida a sentença recorrida, datada de 13.6.2025, na qual ficou decidido qualificar a insolvência como culposa, inibindo o insolvente de administrar patrimónios de terceiros pelo período de quatro anos e, bem assim, do exercício do comércio, da ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada, de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo mesmo período de tempo.

Desta sentença recorre o requerido, visando a sua revogação, com base nos argumentos que assim deixou em conclusões:

(…).

O MP apresentou contra-alegações, opondo-se à procedência do recurso.

Objeto do recurso:

- das nulidades da sentença;

- da impugnação da decisão de facto;

- da qualificação da insolvência e do tempo de inibição.

FUNDAMENTAÇÃO

Matéria de facto provada

Em primeira instância, foram dados como provados os factos seguintes:

1. Em 3.7.2024, AA requereu que fosse declarado o seu estado de insolvência, bem como fosse proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante.

2. Ao apresentar-se à insolvência, o insolvente não juntou a relação de bens a que alude o artigo 24.º, n.º 1, al. e), do CIRE, tendo declarado, no artigo da 44.º da petição inicial, o seguinte: «O requerente, não dispõe, nem dispôs, nos últimos anos, de qualquer património, que garanta, nos termos gerais, o pagamento das dívidas vencidas.».

3. Por sentença datada de 08.07.2024 foi declarado o estado de insolvência de AA, sentença essa que não foi objeto de recurso e transitou em julgado.

4. Em sede de reclamação de créditos encontram-se reclamados e reconhecidos pelo Administrador da Insolvência vários créditos relativamente a 10 credores, no montante total de capital de € 267.931,85 e no montante total de juros de € 7.182,28, o que perfaz o montante global de € 275.114,13, sendo que a atinente lista de credores reconhecidos não foi objeto de impugnação por parte do insolvente.

5. Os créditos referidos no facto anterior foram-se vencendo entre 5.1.2016 e 13.6.2024.

6. Nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, o insolvente era dono de vários imóveis, os quais vendeu, como segue:

a) ½ do prédio rústico sito em ..., composto por terreno de cultura com oliveiras, tanchas e fruteira, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha ...67 da freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...50 da dita freguesia. Em 2022, o insolvente vendeu o identificado prédio a BB, NIF ...83, tendo a referida transmissão sido levada a registo pela AP. ...29 de 2022.11.24.

b) Prédio rústico, sito em ..., ..., ..., composto por terreno de cultura com seis tanchas, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha ...22 da freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...54 da dita freguesia.

Em 2022, o insolvente vendeu o identificado prédio a BB, NIF ...83, tendo a referida transmissão sido levada a registo pela AP. ...29 de 2022.11.24.

c) Prédio rústico, sito em ..., ..., ..., composto por terreno de cultura com tanchas e fruteiras, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha ...73 da freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...55 da dita freguesia. Em 2022, o insolvente vendeu o identificado prédio a BB, NIF ...83, tendo a referida transmissão sido levada a registo pela AP. ...85 de 2022.10.12.

d) Prédio rústico, sito em ..., ..., ..., composto por terreno de cultura com oliveira e fruteira, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha ...26 da freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...64 da dita freguesia. Em 2022, o insolvente vendeu o identificado prédio a BB, NIF ...83, tendo a referida transmissão sido levada a registo pela AP. ...29 de 2022.11.24

e) Prédio urbano, sito em ..., ..., ..., composto por casa de habitação de rés-do-chão, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha ...27 da freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...97 da dita freguesia.

Em 2022, o insolvente vendeu o identificado prédio a BB, NIF ...83, tendo a referida transmissão sido levada a registo pela AP. ...29 de 2022.11.24.

f) Prédio rústico, denominado Quinta ..., sito em ..., ..., composto por terra de semeadura, pinhal e mato, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha ...66 da freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...45 da dita freguesia. Em 2022, o insolvente vendeu o identificado prédio a A..., Unipessoal, Lda, NIF ...52, tendo a referida transmissão sido levada a registo pela AP. ...22 de 2022.12.20.

h) Fração autónoma, para habitação, designada pela letra “B” do regime da propriedade horizontal, correspondente ao rés-do-chão B, com uma arrecadação no sótão, do prédio descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha ...77 da freguesia .... Em 2022, o insolvente vendeu o identificado prédio a CC, NIF ...41, tendo a referida transmissão sido levada a registo pela AP. ...95 de 2022.03.24.

i) Fração autónoma, para habitação, designada pela letra “E” do regime da propriedade horizontal, correspondente ao rés-do-chão E, com uma garagem privada na cave designada pelo n.º 1, do prédio descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha ...16 da freguesia .... Em 2022, o insolvente vendeu o identificado prédio a DD, NIF ...30, tendo a referida transmissão sido levada a registo pela AP. ...24 de 2022.06.13.

j) Prédio urbano, para habitação, sito na Rua ..., ..., composto por casa de rés-do-chão, dependências e logradouro, descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha ...60 da freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ...59 da dita freguesia. Em 2022, o insolvente vendeu o identificado prédio a BB, NIF ...83, tendo a referida transmissão sido levada a registo pela AP. ...85 de 2022.10.12.

7. Em relação aos imóveis referidos nas alíneas a) a e) e j) do facto anterior, foi declarado nas atinentes escrituras de compra e venda que foram vendidos por preços que perfazem a quantia global de € 51.400,00.

8. Em relação ao imóvel referido na alínea h) do facto n.º 6, foi declarado na atinente escritura de compra e venda que foi vendido pelo preço de € 70.000,00.

9. O requerido AA não é atualmente titular de quaisquer bens imóveis, nem de quaisquer bens móveis apreensíveis para a massa insolvente, motivo pelo qual foi proferida, no proc. principal, no dia 15.11.2024, decisão de encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente para satisfação das custas do processo e das demais dívidas da massa insolvente, decisão essa já transitada em julgado.

10. Acresce que o insolvente deteve um crédito de € 50.087,67 sobre EE, NIF ...23.

11. Para garantia do dito crédito, o insolvente fez registar definitivamente penhora incidente sobre a fração autónoma, para habitação, designada pela letra “D” do prédio urbano em regime da propriedade horizontal, sito em ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha ...51, da freguesia ..., tendo a execução corrido termos sob o n.º 4504/18...., do Tribunal Judicial da Comarca e Leiria, Juízo de Execução de Pombal, tendo na execução sido vendida a identificada fração, sendo que a Agente de execução  entregou, em novembro de 2019, a quantia (exequenda) de € 52.047,07 ao aí exequente, o aqui insolvente.

12. Apesar de ter recebido os preços declarados nas referidas escrituras de transmissão, o insolvente não pagou os créditos reclamados e reconhecidos nestes autos.

13. O insolvente, na sua declaração de IRS Modelo 3 referente ao ano de 2022, fez constar que teve despesas e encargos com a venda do imóvel mencionado na al. h) do facto n.º 6 no montante de € 5.028,00, e com a venda do imóvel identificado na al. i) do facto n.º 6 no montante de € 4.016,00.

14. O insolvente é pai de:

- FF, nascida a ../../2014;

- GG, nascida a ../../2017;

- HH, nascido a ../../2021.

15. Para além dos filhos referidos no facto anterior, o insolvente alegou na p.i. de apresentação à insolvência que é também pai de II, e que este nasceu a ../../2006.

16. O insolvente nasceu no dia ../../1987 e encontra-se no estado de solteiro.

Foram considerados não provados os factos seguintes:

a) Ao longo dos anos, foram contraídos diversos empréstimos bancários para assegurar o pagamento de dívidas contraídas pelo insolvente, sobretudo após o nascimento dos filhos.

b) Face à pressão que vinha sofrendo dos credores, para evitar serem instauradas ações, o insolvente assegurou os pagamentos em dívida.
c) Para tanto teve a necessidade de recorrer muitas vezes à ajuda económica/empréstimos de familiares e amigos.
d) Visto o seu salário não ser suficiente para suportar, em simultâneo, o pagamento das dívidas e as despesas mensais fixas do seu quotidiano e tidas com os seus filhos.
e) Apesar de ter iniciado cedo a sua vida laboral, o insolvente sempre trabalhou por conta de outrem, mas por via da situação de pandemia por Covid-19, ficou desempregado, em agosto de 2022, passando então a receber o subsídio de desemprego.
f) A prestação de desemprego que auferia foi penhorada, à ordem do processo executivo com o n.º 1983/22...., do Juízo de Execução de Anião – Juiz 2, no montante mensal de € 386,31.
g) Pelo que teve a necessidade de recorrer, uma vez mais, à ajuda económica de familiares e amigos que lhe emprestaram dinheiro.
h) O insolvente teve de vender património para liquidar dívidas.
i) Os valores emprestados pelos familiares e amigos ao longo do tempo foram pagos com parte dos valores recebidos por essas vendas, e que ascenderam a milhares de euros.
j) Tais vendas foram realizadas sem que o insolvente estivesse motivado por um intuito em beneficiar ou prejudicar algum credor.
k) Antes pelo contrário, foram realizadas com vista a liquidar dívidas, o que efetivamente fez.
l) Bem ainda para fazer face ao pagamento de prestações dos créditos de que era titular, de forma a evitar o incumprimento (definitivo) dos mesmos.
m) Parte do preço da compra do imóvel mencionado na al. h) facto provado 6.º foi pago pelo insolvente com o remanescente do valor do crédito que detinha da referida execução com o n.º 4504/18.....
n) O valor recebido da venda mencionada na referida al. h) destinou-se à compra do imóvel referido na al. i) do facto provado 6.º.

Da nulidade da sentença:

Invocou o recorrente a nulidade da sentença por força da al. d) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.

Esse vício decorreria da falha do processado prevista no art. 195.º, em concatenação com o disposto no art. 3.º/3 do CPC.

Neste último preceito consagra-se a obrigatoriedade do princípio do contraditório, encarado este num sentido positivo: o de permitir a influência das partes no desenvolvimento do processo, facultando-lhes a pronúncia, em termos de direito, sobre questões com que as mesmas, razoavelmente, não pudessem contar.

Será sob este prisma que se configura a surpresa que a lei pretende evitar: a decisão sobre uma inovatória e inesperada questão de direito que não tenha, de todo, sido perspetivada pelos litigantes de acordo com um adequado e normal juízo de prognose sobre o conteúdo e sentido da decisão - explicação de Lopes do Rego, em Comentários ao Código de Processo Civil, 2.ª Ed., Vol. I, p. 33, onde o autor acrescenta «não deverá “banalizar-se” a audição atípica e complementar das partes, ao abrigo do [art. 3.º, n.º do CPC], de modo a entender-se que toda e qualquer mutação do estrito enquadramento legal que as partes deram às suas pretensões passa necessariamente pela atuação do preceituado no art. 3.º, n.º 3».

Na situação que nos ocupa, o AI, seguido do MP, descreveu de modo claro a atuação que imputou ao insolvente: a alienação de bens, nos três anos anteriores à apresentação à insolvência.

Referiu como contexto legal o art. 186.º, n.º 1 e n.º 2 als. a) e b) do CIRE.

Na sentença recorrida, o tribunal a quo enquadrou a situação, desde logo, no n.º 1 do mencionado normativo, enfatizando a noção geral de insolvência dolosa como atuação do devedor, nos três anos anteriores ao início do processo, com culpa grave ou dolo, que leve à criação ou agravamento da insolvência.

Ora, é evidente que o que esta em causa é a atuação do recorrente a que quadra o n.º 1. É aqui que se fixam os parâmetros do que é a insolvência dolosa.

Passou, depois, a sentença a mencionar o n.º 2, com as suas diversas alíneas, como contemplando casos em que se prescinde da prova de outra factualidade, desembocando em presunção inilidível de culpa e de nexo de causalidade, e acabando por enquadrar os factos na al. d).

Estando perfeitamente referido pelo AI e pelo MP que o que se assaca ao devedor é a dissipação de bens de modo a que não respondessem pelas suas dívidas, é absolutamente claro que, no n.º 2, a previsão que lhe quadra é a da al. d), posto ser aí que se refere a disposição de bens. As als. a) e b) surgiam, à partida, completamente deslocadas da narrativa constante do parecer apresentado pelo AI, porque se não tratava da destruição, inutilização ou ocultação de património (as escrituras de venda são documentos públicos) e, menos ainda, do agravamento artificial de passivos, de prejuízos ou redução de lucros.

A esta luz, é inequívoco que o recurso à alínea que respeita à factualidade alegada surge como absolutamente expectável, sendo dispensável outra qualquer notificação ao requerido para se pronunciar sobre a qualificação da insolvência como dolosa.

Termos em que se julga improcedente a nulidade.

Também se não vê o que pretende o recorrente com referência à al. c) do citado preceito que invoca a respeito da impugnação da decisão de facto. A nulidade que ali se encerra respeita à contradição entre fundamentos e oposição, ambiguidade ou obscuridade da sentença. Trata-se de casos em que existe mútua exclusão lógica entre o sentido do dispositivo e os argumentos expostos para o pretendido efeito.

Como sumariado em ac. RP, de 24.2.2025, Proc. 840/22.5T8PRD-T.P1: “Uma sentença (ou um despacho) é ininteligível, por ambiguidade ou obscuridade, sempre que ocorra incompreensão da sua parte decisória de tal forma que um declaratário normal - de harmonia com o disposto nos arts. 236.º, n.º 1, e 283.º, n.º 1, do CC - não consegue obter do dispositivo um sentido inequívoco ou unívoco. Sucede assim quando os termos ou expressões empregues na decisão são incertos, duvidosos ou suscetíveis de diferentes significados”.

De modo que, imputar-se ao tribunal a quo erro de julgamento da matéria de facto nada tem a ver com vício intrínseco da sentença.

Improcede, de igual forma, a repontada nulidade.

Finalmente, quanto à violação do dever de fundamentação.

Mais uma vez do que se trata é de discordância da qualificação jurídica alcançada em primeira instância e da subsunção dos factos dados como provados na al. d) do art. 186.º do CIRE. Se essa qualificação é, ou não, correta é matéria a tratar aquando da apreciação de mérito, no setor dos fundamentos de direito, e não se enreda nos rodeios das nulidades antevistas no artigo sob apreciação.

A arguição de nulidades improcede in totum.

     

Da impugnação da decisão de facto

(…).

Fundamentos de direito

Tratamos da qualificação da insolvência como culposa (art. 186.º CIRE), tendo a sentença concluído pela atuação culposa e causal – presumida uris et de iure – do insolvente e extraído os efeitos substantivos que à mesma são fixados no art. 189.º CIRE.

Nos termos do n.º 1 do art. 186.º, é havida como culposa a atuação do devedor, com dolo ou culpa grave, que tenha criado ou agravado a situação de insolvência (nexo de causalidade), atuação que têm de ter ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Já no art. 186.º/2 (aplicável à pessoa singular ex vi n.º 4) constam os factos taxativos que, uma vez demonstrados, conduzem a uma presunção inilidível de que a insolvência é culposa (art. 350.º/2, 2.ª parte do CC).

Este é o entendimento favorecido pela maioria da doutrina (v.g. Alexandre Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, Vol. I, 4.ª Ed., p. 563) e, desta Relação, o ac. de 10.12.2029, Proc. 5888/17.3T8VIS-D.C1:  O art. 186.º do CIRE deve ser interpretado no sentido de que as alíneas do nº 2 consagram presunções (absolutas) de insolvência culposa e as alíneas do nº 3 presunções (relativas) de insolvência culposa (e não meras presunções relativas de culpa grave).

Do mesmo jeito do STJ, o ac. de 9.7.2025, onde se afirma: Consagrando o nº 2 do art. 186º do CIRE uma presunção iuris et de iure, inilidível, de insolvência culposa se verificada factualidade subsumível a qualquer uma das circunstâncias aí elencadas, ao insolvente/afetado apenas assiste a possibilidade de demonstrar que o facto conducente à presunção não se verifica.

A qualificação de presunção inilidível resulta da comparação do n.º 2 com o n.º 3, referindo o primeiro que se considera sempre culposa e o segundo contendo referência a uma culpa grave que admite prova do contrário.

Quanto à aplicação da al. d) - Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros – verificamos que existe atuação culposa, nos três anos anteriores à apresentação da insolvência, e que a pessoa singular tem um passivo de quase 300.000, 00, euros que, deste modo, não pôde ser saldado com o produto da venda dos bens, ocorrida dois anos antes da apresentação à insolvência.

Recorde-se que a mera disposição dos bens constitui uma presunção inilidível de atuação culposa, não admitindo sequer prova do contrário (Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 10.ª Edição, p. 235).

Tendo-se provado a alienação de património da insolvente a favor de terceiros, presume-se de forma absoluta (no dizer de Catarina Serra, O Regime Português da Insolvência, p.141), a culpa do devedor e, na ótica que vimos, também o nexo de causalidade entre esta alienação e o agravamento da insolvência.

Sendo assim é inequívoca a culpa no agravamento da insolvência ou na sua criação originária (o recorrente alega que, ao tempo da venda, já a situação de insolvência existia e era estrutural – conclusão 38.ª), sendo despiciendo o que alega o recorrente quanto ao que fez ou poderia ter feito com os preços recebidos. A boa-fé na atuação está afastada pela presunção iuris et iure acima referida.

Quanto ao nexo de causalidade, é óbvio que, a existir o património imobiliário que foi alienado ou o valor alcançado com as vendas, parte dos créditos reclamados poderia ser liquidada, o que não sucede com a dissipação dos bens e seu produto, sendo certo que não existe qualquer ativo patrimonial na esfera jurídica do recorrente. Aliás, também a causalidade é aqui presumida, cfr. Ac. STJ, de 15.2.2018, Proc. 7353/15.4T8VNG-A.P1.S1: A disposição de bens a que alude a alínea d) do nº 2 do art. 186º do CIRE não se reconduz apenas aos atos de alienação. II - Tendo os insolventes prometido vender a certo credor, com eficácia real, o seu direito sobre um imóvel, imóvel que traditaram para esse credor, e tendo o tribunal retirado a ilação de que com tais procedimentos se pretendeu, no mínimo, beneficiar o promissário e prejudicar os demais credores, estamos, nos termos e para os efeitos da referida norma, perante um ato de disposição de um bem em proveito de terceiro. III - O nº 2 do art. 186º do CIRE estabelece presunções iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade do comportamento do insolvente, para a criação ou agravamento da situação de insolvência. IV - A circunstância do negócio de promessa de venda ter sido posteriormente resolvido em benefício da massa pelo administrador da insolvência, não implica, para efeitos de qualificação da insolvência, a conclusão e que tudo se passa como se a dita promessa não tivesse existido. V - A presunção de culpa fundada na alínea d) do nº 2 do art. 186º do CIRE aplica-se ao insolvente pessoa singular, sendo para o caso indiferente que não seja uma empresa ou que não seja comerciante.

De sorte que não pode deixar de se atribuir ao requerido a responsabilidade que lhe foi imputada em primeira instância, sob a forma de dolo, como se deixou consignado no dispositivo, tendo-se aí esclarecido – ao contrário do sustentado nas alegações de recurso -  o tipo de dolo aqui implicado: dolo necessário.

Outro aspeto, porém, é o das consequências dessa imputação.

Está em causa a aplicação da inibição das als. b) e c) do art. 189.º/ 2, mais concretamente os períodos de inibição do requerido das faculdades de administração de patrimónios de terceiros, de exercício do comércio, de ocupar cargo de titular de órgão de sociedade, associação ou fundação privada, de atividade económica, empresa pública ou cooperativa.

Os efeitos jurídicos que decorrem do art. 189.º “são cumulativos e automáticos, como claramente decorre do proémio do n.º 2 do artigo 189.º, pelo que, uma vez proferida tal decisão, não pode o juiz deixar de aplicar essas medidas. Não obstante, a determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 189º do CIRE (inibição para a administração de patrimónios alheios, exercício de comércio e ocupação de cargo de titular de órgão nas pessoas coletivas aí identificadas) […] , deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal” (ac. TC 280/2015, de 20.5).

O prazo de inibição situa-se entre 2 e 10 anos.

Como salienta Alexandre Soveral Martins, cit, p. 581, quanto à duração da inibição, deverão ter-se em conta os vários aspetos relativos à atuação, nomeadamente se há dolo ou culpa grave, se criou ou agravou a situação de insolvência, se foi solitária ou não, se havia autonomia decisória, quais as consequências e sua gravidade.

Veja-se que, na situação sub iudice, o requerido atuou com dolo, como se enfatiza na sentença, uma vez que quis vender um conjunto extenso de bens e o fez numa altura em que – como confessa na conclusão 38.ª – a situação de insolvência já existia e era estrutural!

Esta afirmação, ao invés de retirar gravidade à conduta  - que se cifra na alienação de nove imóveis, em 2022, entre os quais se contam quatro casas de habitação, e tudo pela módica quantia declarada de pouco mais de 121 mil euros (?) – exaspera-a de sobremaneira, quando é certo que, deste modo, ficou o requerido sem qualquer património que lhe permitisse responder pelas dívidas que, na sua ótica, já eram estruturais.

Não só o valor destas alienações – já de si duvidoso, considerando a quantidade e qualidade dos imóveis – desapareceu de forma inexplicada, como também se ignora o destino dos mais de 52 mil euros que recebeu, em 2019, em ação executiva. Tudo isto, em comparação com os mais de 270 mil euros reclamados em sede de relação de créditos, torna as alienações e desaparecimento do produto recebido, numa altura em que a insolvência já era estrutural, num comportamento altamente censurável com gravame para a totalidade dos credores, tendo em conta que se trata de pessoa singular, com autonomia para decidir e não integrada numa estrutura empresarial complexa.

Sendo assim, afigura-se-nos que os períodos de inibição foram corretamente ponderados e são de manter.

Dispositivo

Pelo exposto, decidem os juízes deste Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e manter a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.


14.10.2025