I – Por causa da falta persistente de colaboração do Insolvente com o Sr. Fiduciário, aquele foi ouvido dois anos seguidos, em Tribunal, aí devidamente (re)advertido da obrigação de lhe disponibilizar as informações e os elementos pertinentes à aferição da sua situação laboral e patrimonial, sendo certo que, bem ciente, não o fez, nem explicou essa omissão dilatada no tempo, tendo sempre estado assistido por il. Mandatário.
II – Este seu modo de agir, por culposo, importa a defraudação dos seus credores, prejudicando-os na exacta medida da insatisfação dos seus créditos.
III – Está justificada a não concessão da exoneração do passivo restante, por reporte aos arts. 239.º, n.º 4, al. a), 243.º, n.º 1, al. a), e 244.º, n.º 2, todos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Tribunal a quo: Tribunal Judicial da Comarca da Guarda/Juízo de Competência Genérica de Figueira de Castelo Rodrigo
Recorrente: AA
Sumário (art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
(…).
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:
I.
Em 17 de Janeiro de 2022, AA, melhor identificado nos autos, apresentou-se à Insolvência – Autos Principais[2] –, com pedido de Exoneração de Passivo Restante.
Deferido este, foi fixado como rendimento mínimo indisponível o montante de um salário mínimo nacional.
No Relatório Anual, junto em 4 de Abril de 2025, o Fiduciário pronunciou-se desfavoravelmente à concessão em definitivo da exoneração do passivo restante, o que reiterou em 9 de Maio subsequente.
Notificado conforme art. 244.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o Insolvente não se manifestou.
A Sentença cuja prolação ocorreu em 30 de Maio p.p. decidiu:
«Não conceder ao devedor AA a exoneração do passivo restante.
Custas pelo insolvente – cfr. artigo 248.º, do CIRE.
Valor: o da causa.
Registe, notifique e publicite (artigo 247º, do CIRE).».
II.
Inconformado, o Insolvente interpôs Recurso de Apelação, extraindo-se das suas alegações as seguintes
«CONCLUSÕES
(…)».
III.
O digno magistrado do Ministério Público respondeu ao recurso, colhendo-se entre o mais que
«(…).».
IV.
Questão decidenda
Sem preterir a apreciação de questões que sejam de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o âmbito da apelação (arts. 608.º, n.º 2, 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil):
- Da (não) concessão da exoneração de passivo restante.
V.
Dos Factos
Vêm provados os seguintes factos (transcrição):
1. Por sentença proferida a 27.01.2022, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência de AA.
2. Por decisão proferida a 15.03.2022 foi liminarmente admitido o incidente de exoneração do passivo restante relativamente à insolvente, tendo-se fixado o rendimento disponível no montante que excedesse o salário mínimo nacional.
3. O período de cessão teve início com o encerramento do processo.
4. Nos termos das informações anuais apresentadas nos autos pelo Sr. Fiduciário, o insolvente não cedeu quaisquer montantes, nem facultou, atempadamente, todas as informações acerca dos rendimentos auferidos, à excepção do primeiro ano, o que apenas aconteceu, parcialmente, após a apresentação do primeiro relatório por parte do Sr.º Fiduciário.
5. Após a apresentação do primeiro relatório anual de cessão e da falta de colaboração evidenciada pelo insolvente na prestação de informações ao Sr.º Fiduciário, foi determinada a audição do insolvente, tendo o mesmo sido aí expressamente advertido para a necessidade de cumprimento dos deveres a que se encontra sujeito nos termos do disposto no artigo 239.º, n.º 4 do CIRE.
6. Após a apresentação do segundo relatório anual de cessão e da falta de colaboração evidenciada pelo insolvente na prestação de informações ao Sr.º Fiduciário, foi determinada a audição do insolvente, tendo o mesmo, nessa sede, junto extracto do histórico de remunerações, emitido pela S.S., até ao ano de 2024, assim como recibos de vencimento auferidos durante o período de cessão, tendo sido advertido que a manutenção da sua postura no sentido de não fornecer atempadamente a informação solicitada pelo Sr.º Fiduciário poderia redundar na não prolação do despacho final de exoneração, com fundamento no incumprimento dos deveres a que se encontra sujeito nos termos do disposto no artigo 239.º, do CIRE.
7. Foi junto o relatório por parte do Sr.º Fiduciário atinente ao terceiro período de cessão, no qual se consignou que o insolvente manteve a sua postura de falta de colaboração, não tendo prestado as informações solicitadas para efeitos de elaboração do relatório, não tendo apresentado um único documento que permitisse aferir a sua concreta situação, apesar de notificado para a necessidade de prestar a informação solicitada pelo Sr.º Fiduciário.
VI.
Do Direito
Em causa nesta instância de recurso está apenas apurar se estão, ou não, reunidos os pressupostos para a recusa de concessão da exoneração do passivo restante ao aqui Recorrente, pessoa singular.
Na perspectiva deste não ficou demonstrado o requisito imprescindível consagrado no art. 243.º, n.º 1, al. a), do Código da insolvência e da Recuperação de Empresas («prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência»), mas tão-só a falta de colaboração do Recorrente, sendo certo que o ónus de alegação e demonstração dos factos integradores competia ao Fiduciário.
A decisão recorrida pronunciou-se como segue:
«A possibilidade da exoneração do passivo restante constitui uma das medidas especiais de proteção do devedor pessoa singular instituídas pelo CIRE.
A esse respeito, dispõe o artigo 235.º, do CIRE: “se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.”
Contudo, para efetiva obtenção de tal benefício, pressupõe, além do mais, a pontual observância das obrigações contidas no n.º 4 do artigo 239º do CIRE. Entre essas obrigações, recai sobre o insolvente ter de entregar os rendimentos disponíveis a um fiduciário, o qual terá, por sua vez, a obrigação de os distribuir pelos credores, nos termos do disposto nos artigos 239.º, n.º 2 e 241.º, do CIRE.
Assim, desde a concessão do período de exoneração e durante um período temporal consecutivo de três anos, o insolvente manterá a obrigação de cumprir com o pagamento das dívidas reconhecidas, embora limitada ao rendimento disponível, isto é, aquele montante pecuniário que ultrapassa o montante declarado pelo tribunal como sendo indisponível.
Em face da factualidade que supra se deixou consignada resulta que decorreram os três anos do período de cessão.
Da análise da mesma é indubitável que o insolvente incumpriu com o dever de informação, nunca tendo cumprido atempadamente os pedidos de informação solicitados pelo Sr.º Fiduciário em cada período de cessão, sendo que, no último período, não juntou qualquer documento que permitisse aferir da sua concreta situação, resultando, assim, a violação do dever de informação a que alude a alínea a), do n.º4, do mesmo normativo legal.
Relativamente à decisão final da exoneração, o artigo 244.º do CIRE, dispõe que não tendo havido lugar a cessação antecipada, o juiz decide nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência.
Sendo que nos termos do disposto no n. º2, do mesmo dispositivo legal a exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente.
Nos termos do disposto no art. 243.º - onde se regula a cessação antecipada da exoneração – a exoneração será recusada quando: “a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência; b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente; c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência”.
Apelando à noção de dolo que nos é dada pelo art. 14º do Código Penal, poder-se-á dizer, desde logo, que o mesmo comporta três modalidades: o dolo directo, o dolo necessário e o dolo eventual.
O primeiro corresponde às situações em que o agente quer diretamente realizar o facto ilícito, ou seja, às situações em que “…o agente representa ou prefigura no seu espírito determinado efeito da sua conduta e quer esse efeito como fim da sua atuação, apesar de conhecer a ilicitude dele”; o segundo corresponde às situações em que o agente, apesar de não querer diretamente o facto ilícito, o previu ou representou como consequência necessária da sua conduta, ou seja, “…o agente não tem a intenção de produzir o resultado ilícito, pois o fim que prossegue é outro; mas sabe que também produzirá forçosamente esse resultado. Prevê o evento ilícito como consequência inevitável da sua conduta, embora não seja este evento que o determina a agir; sem embargo, aceita-o…” e o terceiro corresponde às situações em que o agente representa o facto ilícito como consequência possível da sua conduta e atua conformando-se com a possível realização do facto, ou seja, embora preveja o facto ilícito não tem a intenção de o realizar e tão pouco o prevê como consequência necessária da sua conduta, admitindo, contudo, que ele possa produzir-se e aceitando essa possibilidade sem que tal o iniba de atuar.
A negligência, por seu turno, abarca as situações em que o agente não chega a prever o resultado ou, apesar de o prever como possível, atua sem o aceitar e acreditando que ele não se produzirá, correspondendo, na prática, à omissão da diligência que era exigível e que, caso tivesse sido observada, teria permitido prever o resultado e usar das cautelas e cuidados necessários para o evitar. Sendo apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (cfr. art. 487º nº 2 do Código Civil), a culpa/negligência corresponde, por isso, à omissão da diligência e deveres de cuidado que, naquelas circunstâncias, eram exigíveis e que seriam adotados por uma pessoa normalmente diligente.
A negligência pode ainda ser qualificada, de acordo com a sua gravidade, em culpa leve e culpa grave. A culpa grave – que também poderemos designar por negligência grave ou grosseira – pressupõe, portanto, um grau de diligência muito inferior àquele que seria exigível e que seria adotado por uma pessoa normalmente diligente, correspondendo a uma violação grosseira dos deveres de cuidado e prudência que, no caso, eram exigíveis e eram elementares.
Ora, no caso dos autos, a insolvente sabia e não podia ignorar – não só porque foi notificado do despacho que lhes fixava tais obrigações, mas também porque estava representada por advogado – que estava obrigado ao dever de informação e, bem assim, a entregar todo o rendimento que auferisse e que excedesse aquele que havia ficado reservado para o seu sustento.
Resulta, aliás, dos autos que a violação dos deveres de informação não resultou de qualquer desconhecimento ou ignorância da insolvente, tanto mais que, ainda que não fosse exigido, se procedeu à audição pessoal do insolvente no fim dos dois períodos de cessão, tendo o mesmo sido advertido expressamente pelo Tribunal quanto às consequência da manutenção da postura que vinha evidenciado até então.
Significa isso, portanto, que o insolvente, não terá atuado com dolo direto, pelo menos nos dois primeiros anos de cessão, uma vez que a sua conduta não visou, diretamente, o incumprimento das obrigações, ou seja, não era esse o específico resultado que a insolvente pretendia obter e que determinou a sua atuação, mas já o tendo sido, a nosso, ver, no terceiro ano de cessão, uma vez que outra conclusão não se pode extrair do facto de ter sido advertido pessoalmente pelo Tribunal nos dois anos anteriores quanto às consequências da sua conduta e, mesmo assim, não apresentou qualquer documento ao Sr. Fiduciário, nem sequer se pronunciou, no exercício do contraditório, quanto ao incumprimento de tais deveres neste último ano, assim como quanto à proposta do Sr.º Fiduciário no sentido de não ser concedida a exoneração.
Mesmo que assim não se entendesse, sempre seria de considerar que, ao longo do período de cessão, mas, em particular, neste último ano, ao atuar desse modo, o insolvente sabia – não podiam deixar de saber – que iria incumprir as obrigações a que estava obrigada e, portanto, sabia que esse incumprimento era uma consequência necessária da sua conduta. Ou seja, ainda que tivesse sido movido por outras finalidades e ainda que não tivesse direcionado a sua intenção ao incumprimento das obrigações a que estava adstrita, o insolvente sabia que, ao atuar desse modo, iriam incumprir as obrigações a que estava vinculada, sabendo, portanto, que esse incumprimento era uma consequência necessária da sua conduta (dolo necessário).
Mas ainda que assim não fosse e ainda que se admitisse que o insolvente não pretendia violar os deveres a que estava adstrito e que não previra ou não representara essa violação como consequência necessária ou possível da sua conduta, sempre se impunha concluir que, nas circunstâncias supra descritas, tal apenas poderia ter sucedido por grave e grosseira violação de deveres de cuidado elementares que, naquelas circunstâncias, não deixariam de ser adotados por qualquer pessoa e que só uma pessoa particularmente negligente deixaria de observar e, como tal, sempre teria atuado com negligência grave.
Em face da factualidade que resulta assente nos autos, é inequívoco para nós que a atuação da insolvente se insere, pelo menos, na grave negligência quanto à violação dos deveres que sobre ele recaem.
De harmonia com regras de experiência e critérios sociais, é irrecusável que a insolvente tinha consciência da sua vinculação aos deveres de informação e do não cumprimento dessas obrigações.
Tal atuação do insolvente, indubitavelmente, prejudica a satisfação dos créditos sobre a insolvência. Na verdade, os rendimentos cedidos são o único meio de satisfação dos créditos da insolvência, dado que, durante o período da cessão, não se admite a agressão por via executiva do património do insolvente com vista à satisfação daqueles créditos (artigo 242.º, n.º 1 do CPC).
Ao não haver cessão de rendimentos ou esta ser deficientemente cumprida, tal determinará necessariamente um prejuízo para a satisfação dos credores da insolvência.
O insolvente manteve tal conduta mesmo após ter sido notificado para regularização da situação. Em face da factualidade que resulta assente nos autos, é inequívoco para nós que a atuação do insolvente se insere, pelo menos, na grave negligência quanto à violação dos deveres que sobre ela recaem.
A exoneração do passivo restante deve ser recusada se se verificarem os fundamentos que impunham a cessação antecipada do procedimento da exoneração (artigo 244º, n. 2, do CIRE).
Por todo o exposto, forçosamente teremos de concluir que se encontram verificados os pressupostos constantes da alínea a), do n.º 1 do artigo 243.º, do CIRE, ou seja, a devedora com grave negligência violou as obrigações impostas pelo artigo 239.º, n.º 4, alíneas a) -, prejudicando assim a satisfação dos créditos sobre a insolvência. Tal circunstância determinaria a cessação antecipada da exoneração do passivo restante (cfr. artigo 244.º, n. º2 e 243º, ambos do CIRE).
Nos termos do disposto no artigo 244.º, n. º2, do CIRE, a exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que poderia ter sido antecipada, nos termos do disposto no artigo 243.º, do CIRE.
Termos em que se decide não conceder a exoneração do passivo restante ao insolvente.».
A exoneração do passivo restante é um instituto do direito da insolvência, com amparo nos arts. 235.º ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na redacção operada pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, por força da obrigatoriedade de transposição da Directiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Junho de 2019[3].
Extrai-se do Considerando 73 desta Directiva que aqui se visa uma verdadeira segunda oportunidade, ao evidenciar-se que «…deverão ser tomadas medidas para reduzir os efeitos negativos do sobre-endividamento ou da insolvência para os empresários, nomeadamente permitindo o perdão total da dívida após um determinado período e limitando a duração das decisões de inibição resultantes do sobre-endividamento ou da insolvência do devedor.
… Os Estados-Membros deverão poder decidir a forma de dar acesso ao perdão, incluindo a possibilidade de exigir que o devedor o solicite.»[4].
Este instituto oferece ao devedor pessoa singular honrado[5] uma oportunidade de começar de novo – fresh start –, libertando-se, de forma definitiva, da totalidade do seu passivo remanescente, pelo que, enquanto medida de protecção ao devedor, com vista à sua recuperação e reintegração na actividade económica que lhe irá permitir encetar uma vida nova, não faz sentido atribuir-se-lhe tal benefício caso não seja merecedor de tal prerrogativa[6].
Como argutamente já se observou «A exoneração é, assim, antes de tudo, uma medida de protecção do devedor, tornando o recurso a ela uma verdadeira tentação. Esta força atractiva desencadeia, naturalmente, efeitos perversos: pode conduzir a “abusos de exoneração”.
…pode, de facto, haver a tendência para ver na exoneração um recurso normal, que a lei disponibiliza para a desresponsabilização do devedor. Consequentemente há o risco de o processo de insolvência se transformar num refúgio ou numa protecção habitual contra os credores (bankrupcy protection).
A experiência aconselha a que a disciplina da exoneração seja regulada com alguns cuidados.»[7].
Com a admissão liminar do pedido de exoneração dar-se-á início a um novo momento processual, em que durante um determinado período temporal, designado período de cessão, fixado em três anos[8], o insolvente fica vinculado à observância escrupulosa de certas exigências, nomeadamente o pagamento das suas dívidas, e em que todo o rendimento disponível[9] que auferir será afecto à distribuição pelos credores.
Uma vez que a exoneração do passivo restante é uma benesse ao insolvente, no decurso deste período de cessão – que tem que ser visto como um período de provação –, impende sobre o mesmo o esforço acrescido de contenção das despesas por forma a atenuar ao máximo as perdas que advirão aos credores[10].
Só desta forma é possível legitimar, neste instituto proteccionista do devedor insolvente, os princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana, à luz da perda que se faz repercutir (em regra para sempre) na esfera jurídica do credor.
Findo esse período temporal o Tribunal tomará uma decisão final sobre a concessão (v.g., se tiver cumprido com as suas obrigações) ou não da exoneração.
Por remissão para os factos assentes, constata-se que no 1.º Relatório Anual, apresentado a 8 de Março de 2022, o Fiduciário concordou com o pedido de exoneração do passivo restante.
No entanto, adiantou no Relatório Anual nos autos em 4 de Abril de 2023, que «…não existem quaisquer elementos que permitam aferir o cumprimento dessas mesmas obrigações.
Também não recebemos qualquer informação relativa à declaração de rendimentos do ano de 2021.».
Em face da falta de colaboração do Recorrente com este, o mesmo foi ouvido em Tribunal, conforme Acta de 10 de Maio de 2023, ficando expressamente ciente dos deveres que sobre si impendiam e indicados no art. 239.º, n.º 4[11].
Na sequência de ter sido junto novo relatório anual, persistindo essa omissão de colaboração, foram-lhe tomadas novas declarações, como espelha a respectiva Acta de 21 de Maio de 2024, no decurso das quais juntou o histórico de remunerações, emitido pela Segurança Social até ao ano de 2024, e recibos de vencimento auferidos durante o período de cessão.
Uma vez mais veio a ser advertido que o não fornecimento pontual da informação solicitada pelo Fiduciário poderia acarretar a prolação do despacho final de não concessão da exoneração do passivo restante, alicerçada na inobservância dos deveres consignados no citado art. 239.º.
Tal qual resulta do facto provado n.º 7, no relatório referente ao terceiro período de cessão, o Recorrente manteve-se não colaborativo, não facultando as informações solicitadas para efeitos de elaboração do relatório, não tendo apresentado um único documento que permitisse aferir a sua concreta situação, apesar de notificado para a necessidade de prestar esses elementos.
Actuado o princípio do contraditório perante o Relatório Anual de 2025, nos termos do qual o Fiduciário se pronunciara contra a concessão em definitivo da exoneração do passivo restante, o Recorrente nada disse.
É ostensiva a sua postura demissiva para com o Fiduciário, que, aliás o próprio Recorrente não nega, traduzida na falta de prestação de informações, a despeito de expressamente notificado para o efeito, e, no que tange ao período final, na não junção de documentos que permitissem àquele atestar a sua situação vivencial.
O mesmo sabia que estava legalmente adstrito a colaborar com o Fiduciário, disponibilizando os elementos que lhe fossem pedidos para a análise da sua situação, tendo sido propositadamente chamado à atenção por parte do Tribunal em duas ocasiões temporalmente distintas e estando acompanhado por il. Advogado.
Podendo e devendo agir no respeito pelas obrigações legais específicas que a condição de Insolvente/Requerente da Exoneração lhe traziam, não o fez, com o que fica perfeito o juízo de culpa[12].
Este seu modo de agir, por culposo, importa a defraudação dos seus credores, prejudicando-os na exacta medida da insatisfação dos seus créditos.
Contrariamente ao defendido pelo Recorrente, este segmento é uma conclusão que se retira da conjugação dos factos adquiridos nos autos e que não foram objecto de impugnação.
Flui do art. 244.º, n.º 2[13], que a exoneração do passivo restante deve ser recusada caso se verifiquem os requisitos que imponham a cessação antecipada do procedimento da exoneração, nos moldes aludidos pelo art. 243.º[14], no caso vertente mormente o seu n.º 1, al. a).
Por reporte ao art. 239.º, n.º 4, al. a), concretamente por ter falhado reiterada e deliberadamente com a sua obrigação de apresentar elementos sobre os seus rendimentos e património, apesar de sucessivamente instado para tanto, ficam reunidos os pressupostos que teriam determinado a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, ao abrigo dos arts. 243.º, n.º 1, al. a), e 244.º, n.º 2.
Em suma, soçobra a pretensão recursiva, devendo confirmar-se a decisão recorrida.
D harmonia com o vencimento, o Apelante é o responsável pelo pagamento das custas processuais (arts. 527.º, 607.º, n.º 6, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, ex vi art. 17.º, n.º 1, do Código da insolvência e da Recuperação de Empresas).
VII.
Decisão:
Com os fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.
O pagamento das custas processuais é encargo do Apelante.
Registe e notifique.
14 de Outubro de 2025
[3] Sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas, e que altera a Directiva (UE) 2017/1132 (Directiva sobre reestruturação e insolvência).
[4] Luís Menezes Leitão in, A Recuperação Económica dos Devedores (RERE, PER, PEAP, Plano de Insolvência, Plano de Pagamentos e Exoneração do Passivo Restante), 2.ª Edição, Almedina, 2020, enfatiza que a concessão de uma nova oportunidade às pessoas singulares justifica-se, até porque a insolvência pode ter causas que escapam ao seu controlo, como sucede com as perdas de rendimento resultantes de doença, divórcio, desemprego, este no caso do trabalhador subordinado, ou, no caso de trabalhador independente, o lançamento de um novo negócio que não se revelou rentável, podendo o devedor muitas vezes recompor a sua situação económica se lhe derem a oportunidade de recomeçar.
[5] O que expressivamente decorre dos Considerandos 1, 5 e 15, de harmonia com os quais, e de modo respectivo:
«… a possibilidade de os empresários honestos insolventes ou sobre-endividados beneficiarem de um perdão total da dívida depois de um período razoável, permitindo-lhes assim terem uma segunda oportunidade;».
«Em muitos Estados-Membros, são necessários mais de três anos para que os empresários que são insolventes mas honestos consigam obter o perdão da dívida …».
«Para o efeito, importa reduzir as diferenças entre Estados-Membros que dificultam a reestruturação precoce de devedores viáveis com dificuldades financeiras e a possibilidade de perdão de dívidas para os empresários honestos.».
[6] Maria do Rosário Epifânio in, Manual de Direito da Insolvência, 8.ª Edição (Reimpressão), Almedina, Outubro de 2024, p. 400, e Lilian Almeida Curvo e Maria João Machado in, A exoneração do passivo restante – algumas questões acerca da fixação do rendimento disponível, Julgar Online, Março de 2022, pp. 1 e 6/7 (acessível em https://julgar.pt/wp-content/uploads/2022/03/20220330-JULGAR-A-exonera%C3%A7%C3%A3o-do-passivo-restante-Lilian-Almeida-Curvo-Maria-Jo%C3%A3o-Machado.pdf).
Cf. Acórdão deste Tribunal da Relação, Proc. n.º 2614/19.6T8LRA-C.C1, de 04-02-2020 (disponível, com os demais citados, em www.dgsi.pt), e ponto 45 do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18-03-2004, diploma que aprovou o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
[7] Catarina Serra in, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª Edição, Almedina, 2021, p. 612.
Emerge do Acórdão deste Tribunal da Relação (Proc. n.º 2046/10.1TBVIS.C1, de 05-02-2013), que: «Entre o interesse legítimo, mas conflituante, do credor na satisfação do seu crédito, e o direito do devedor a manter um rendimento que lhe permita viver com ressalva da dignidade mínima que, como pessoa, lhe é reconhecida, a lei consagra o recuo do primeiro, sem prejuízo de acolher igualmente o princípio de que ao sacrifício financeiro dos credores terá de corresponder o sacrifício do insolvente, através da compressão das suas despesas, o que resulta do apelo aos critérios da necessidade e razoabilidade na avaliação das despesas e encargos a considerar.».
[8] Art. 2.º da Lei n.º 9/2022, de 11-01.
[9] Jéssica Correia de Almeida in, A subjetividade na fixação do rendimento disponível na exoneração do passivo restante, Data Venia, Ano 11 (2023), n.º 14, p. 329, afirma «…no âmbito da exoneração do passivo restante, integra todo e qualquer rendimento auferido pelo devedor, independentemente da sua natureza, incluindo, portanto, remunerações do trabalho ou de outra natureza, subsídios e suplementos de qualquer natureza ou ajudas de custo, sendo apenas excluídos os rendimentos que se enquadrem nas alíneas e subalíneas do nº 3 do art.º 239 do CIRE.» .
[10] Expressão do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Proc. n.º 27138/11.6T2SNT-C.L1, de 26-01-2017.
[11] Intitulado Cessão do rendimento disponível, dispõe, na parcela pertinente, que:
«2 - O despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado por período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada por fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.
4 - Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.».
[12] A culpa exprime a ligação psicológica do agente com o facto, e reside no juízo de censura ética dirigido ao agente por ter actuado como actuou quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias do caso concreto, poderia e deveria ter agido de outro modo.
Mafalda Miranda Barbosa in, Direito da Responsabilidade: uma disciplina jurídica autónoma, Editora Principia, Março de 2021, p. 150, acentua que «…confrontam-se duas conceções: uma conceção psicológica e uma conceção ético-normativa de culpa. Fazendo-as dialogar, há boas razões para optar pela segunda. Mantendo embora essa nota de ligação subjetiva entre o sujeito e o seu ato, a culpa assume-se como um juízo de censura ético-jurídica, a traduzir um desvalor: a pessoa podia e devia ter agido de outro modo.
Trata-se de um desvalor subjetivo, diverso, portanto, do desvalor objetivo em que se consubstancia a ilicitude…».
A conduta diz-se culposa quando se afasta de um modo não intencional do cuidado exigível perante as normas ou interesses jurídicos em causa – configura, então, negligência –, ou quando tenha provocado intencionalmente o resultado proibido – trata-se, então, de dolo.
[13] Sob epígrafe Decisão final da exoneração, estipula no segmento relevante, que:
«1 - Não tendo havido lugar a cessação antecipada, ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, o juiz decide, nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respetiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242.º-A, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor.
2 - A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.».
[14] Epigrafado Cessação antecipada do procedimento de exoneração, dispõe no que ora interessa:
«1 - Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
3 - Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.».