NULIDADE DO CONTRATO DE EMPREITADA
VÍCIO DE FORMA
EFEITOS DA NULIDADE
EXECUÇÃO PARCIAL DA OBRA
LIQUIDAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES DE RESTITUIÇÃO
LUCRO E IVA
Sumário

I – Estando em causa um contrato de empreitada declarado nulo por inobservância da forma legal e não sendo possível a restituição em espécie, por ser inviável a devolução dos materiais e da mão-de-obra utilizada na execução da obra, deve ser restituído o valor correspondente à obra realizada.
II – O “lucro” faz parte do valor correspondente do produto final, nele se incorporando como qualquer outro fator, pelo que deverá ser considerado na determinação do valor equivalente á prestação a restituir.
III – Convencionado entre as partes que o preço incluía IVA e executado o serviço, recai sobre o dono da obra a obrigação fiscal de pagamento de tal valor, que apesar da invalidade do negócio, por vício de forma, não deixa de ser devido, na medida em que o serviço tiver sido executado.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Autora/recorrente: A..., Ldª;

Réu/recorrente subordinado: AA;



I. Relatório

«A... Ldª», com sede na Travessa ..., ..., ..., ..., instaurou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AA, residente na Rua ..., ..., pedindo a condenação deste no pagamento nas seguintes quantias:

  a) € 39.220,93 correspondente aos montantes titulados pelas facturas com os nºs ...60, ...61, ...81, acrescidas de juros no valor de €3.722,56, contados até à data da entrada da p.i;

   b) € 7.200,00, a título de indemnização pela retenção de equipamento;

   c) Juros contados à taxa legal comercial, desde a citação até efetivo e integral pagamento;

d) Sanção pecuniária compulsória à razão de 30€ por dia desde a citação até entrega do equipamento Crivo.

  Para tanto, alegou, em síntese, ter sido contratada pelo réu para executar trabalhos de construção civil num imóvel da propriedade deste, sito em ..., ..., Concelho ....

O réu pagou o valor contratado pelos trabalhos por ela realizados e que constavam do orçamento inicial.

No entanto, executou muitos outros trabalhos que não estavam previstos naquele primeiro orçamento, em observância de instruções e ordens expressamente dadas pelo réu, que ascendem ao montante global de €39.220,93, que este ainda não pagou.

  Mais alega que nunca se negou a reparar qualquer anomalia ou vício existente na obra que adviesse do seu trabalho, mas que o réu tornou impossível tal reparação, não só porque atribuiu a obra a terceiros, como também porque impediu a permanência no local das maquinas necessárias à realização de alguns trabalhos, como os de aterro, que, no entanto, não se encontram faturados.

  Alega ainda que o réu retém, no local da construção, uma máquina (crivo) que é da propriedade da autora e que, não obstante, ter sido interpelado para o efeito, não a devolveu.

A privação do uso da referida máquina tem-lhe causado prejuízos que contabiliza em € 120,00 semanais.

  Por último, alegou que já demandou o réu na ação que correu termos sob o nº 992/20...., pedindo a sua condenação no pagamento de obras feitas no âmbito do contrato de empreitada acordado entre ambos. Nessa ação, o contrato foi declarado nulo por falta de redução a escrito e, com esses fundamentos, foram julgados improcedentes os pedidos.


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Regularmente citado, o réu apresentou contestação onde começa por invocar a autoridade do caso julgado resultante da decisão proferida no processo que correu termos sob o nº 992/20.....

Quanto à retenção do crivo, diz que o mesmo foi deixado pela autora na obra com o intuito de aparentar um não abandono da mesma e inviabilizar a continuação dos trabalhos de construção civil por outrem, sendo que nunca recusou a entrega do mesmo à autora.

Mais alega ter contratualizado a execução de muros em betão C25/30, C10, 4D225 e aço 400NR, com fundações, vigas, pilares, escadas, arrumos, com cobertura em laje aligeirada (terraço) em betão, paredes exteriores da casa, coberturas, drenagens, tudo conforme projeto aprovado e entregue, com aplicação de materiais, mão de obra, direção técnica da obra, todo o equipamento e com as ferramentas necessárias, pelo valor de global € 188.738,71.

À medida que os trabalhos iam sendo executados, foi entregando à autora montantes, por conta do preço dos trabalhos realizados, quer por meio de cheque bancário, quer em numerário, somando estes a quantia global de € 254.918,25.

Porém, a obra não se encontra concluída, tendo a autora abandonado por completo a mesma ainda no ano de 2019, sob pretexto de falta de pagamento. Desde então, nada mais construiu, eliminou ou corrigiu, sendo que os trabalhos executados padecem de vícios e defeitos graves que reduzem a sua utilização e afetação.

Em reconvenção, peticiona a condenação da autora a restituir a diferença entre o que o que teria de lhe pagar e o que esta lhe tem de restituir, em montante que liquida em €134.234,31, acrescido de juros moratórios calculados à taxa legal em vigor, até efetivo e integral pagamento.

Subsidiariamente, caso se entenda ser válido o contrato de empreitada, pede que seja a autora condenada a reconhecer que não executou a obra em conformidade com o convencionado e com o projeto de obra aprovado pela Câmara Municipal ...; a reconhecer que a obra executada padece de vícios e defeitos construtivos que a desvalorizam na sua utilização e afetação, concretamente que não aplicou o betão da categoria C25/30, CI 0,4 D2253 e nem aço A 400NR e pede ainda a condenação da ré em quantia a liquidar ulteriormente, para eliminação dos identificados vícios e defeitos.


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A autora apresentou réplica, pugnando pela improcedência das exceções invocadas, bem como do pedido reconvencional formulado.

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Na sessão da audiência de julgamento de 31 de maio de 2024, no decurso do depoimento da testemunha BB, o Il. Mandatário do réu veio arguir a nulidade processual do depoimento desta testemunha, na parte em que a mesma se pronunciou sobre pareceres técnicos junto aos autos, defendendo que, nessa parte, tal depoimento configura uma assistência técnica a advogado, sem que haja sido observado o preceituado no art.º 50º do Código de Processo Civil.

 Após o exercício do contraditório, recaiu sobre tal depoimento despacho oral que, a seguir, se transcreve: «Quanto ao meu despacho. Carece o Réu de absoluta razão, uma vez que o despacho saneador proferido, no dia 18/03/2022, foi enunciado como tema da prova, sob o nº 6, os defeitos dos trabalhos executados pela autora, e na utilização do material aprovado em obra. Sobre os temas da prova é que incide toda a prova a produzir, seja ela pericial, seja ela por confissão, seja ela testemunhal. Nada impede uma testemunha de prestar o seu depoimento, designadamente tendo em consideração a matéria controvertida e a matéria em causa nos autos, de apelar aos seus conhecimentos, motivo pelo qual, no início de qualquer depoimento, é indagada a razão de ciência, das testemunhas. Obviamente que tal razão de ciência é tida em conta no depoimento prestado, pelo que não havia qualquer razão, e não há nunca em qualquer processo, qualquer razão, para que, tratando-se de matéria técnica, os Exmos. Mandatários, tenham necessariamente que recorrer a assistência técnica. E, face do exposto, indefere-se, por nenhuma ilegalidade cometida, indefere-se o requerido, com custas do incidente por parte do Réu, com multa que se fixa em 2 UCs, arts. 7º, nº 4 e 8, do Regulamento das Custas Processuais».


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Na sessão da audiência de julgamento que teve lugar no dia 5 de junho de 2024, no decurso do depoimento da testemunha arrolada pela autora CC, o Il. Mandatário do réu requereu a junção de quatro registos fotográficos para que pudessem ser confrontados com a referida testemunha.

Após o exercício do contraditório, a Mmª Juiz a quo proferiu o seguinte despacho, exarado na ata da audiência de julgamento:

«De acordo com o disposto no artº 423º nº 3 do CPC após os 20 dias anteriores à realização da audiência de julgamento, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.

Decorre deste normativo legal que após a entrada em vigor da Lei 41/2013, a regra geral quanto à junção de documentos é a sua junção com os articulados, não obstante se admitir a sua junção posterior posto que a mesma seja feita até ao vigésimo dia que antecede a realização da audiência final.

Após tal prazo, só se admite a sua junção desde que não tenha sido possível juntar o documento em, momento anterior ou se verifique a necessidade da sua junção ulteriormente àquela data.

Ora, salvo o devido respeito, os documentos juntos pelo réu estão nestas circunstâncias. Senão vejamos:

Trata-se de documentos existentes à data em que foi apresentada a contestação, porquanto, como dito pelo Exmº Mandatários são fotografias anteriores às obras a que se reportam os autos.

Por outro lado, não se vislumbra também qual a necessidade da sua junção em momento ulterior, uma vez que, não é invocado qualquer fundamento novo para a necessidade da sua junção neste momento, sendo certo que a apresentação do documento não se torna necessária em virtude de ocorrência posterior quando uma testemunha alude a um facto, ainda que em sentido contrário ao pretendido pelo apresentante, se se tratar de um facto essencial já alegado – ou de um facto puramente probatório

Em face do exposto e sem outras considerações, indefiro a junção dos documentos em causa, condenando o réu em cistas do incidente anómalo que se fixa nos termos do artº 7º nºs 4 e 8 do RCP em 1 UC.»


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Pelo réu foi interporto recurso de apelação destas decisões interlocutórias, o qual não foi admitido pelo tribunal a quo, que entendeu que as referidas decisões apenas poderiam ser impugnadas no recurso que viesse a ser interposto da decisão final.

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Os réus apresentaram reclamação desta decisão, ao abrigo do disposto no artigo 643º, do Código de Processo Civil, sustentando a recorribilidade imediata de tais despachos.

Tal reclamação foi indeferida por decisão desta Relação, datada de 13 de novembro de 2024 (apenso B).


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 Finalizada a audiência de julgamento, em 4 de janeiro de 2025, foi proferida sentença com o seguinte segmento decisório:

I- Julgo a acção improcedente;

II- Julgo o pedido reconvencional parcialmente procedente e consequentemente condeno a autora a pagar ao réu a quantia de € 9.173,48 (nove mil, cento e setenta e três euros e quarenta e oito cêntimos) acrescida de juros de mora à taxa de 4 % desde a data da notificação da contestação até efectivo e integral pagamento.

   Custas pela autora e pelo réu, na proporção de 2/3 para a primeira e 1/3 para o segundo (artº 527º nºs 1 e 2 do CPC).

   Registe e notifique.


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Não se conformando com esta decisão, dela veio interpor recurso a autora, concluindo as respetivas alegações nos seguintes termos:

(…).


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Os réus apresentaram contra-alegações e, ao mesmo tempo, interpuseram recurso subordinado e recurso das suprareferidas decisões interlocutórias de 31 de maio de 2024 e 6 de junho de 2024, concluindo nos termos que, de seguida, se transcrevem:

(…).


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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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II. O objeto do recurso.

Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, é pacífico que o objeto do recurso se delimita pelas conclusões das respetivas alegações, evidentemente sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

Assim as questões a apreciar, pela sua ordem lógica, consistem em determinar:

a) se devem ser revogadas as decisões interlocutórias de 31 de maio e 5 de junho de 2024 (conclusões 15º a 21º do recurso subordinado do réu);

b) se deve proceder a impugnação da matéria de facto que é fundamento de ambos os recursos (principal e subordinado) e, em consequência, deve a decisão ser alterada [conclusões B) a CC) do recurso da autora e conclusão 10ª do recurso subordinado]

c) se, na determinação do valor da prestação equivalente aos trabalhos prestados pelo autor, a restituir a este nos termos do n.º 2 do art.º 289º do Código Civil, não deve ser atendida a margem de lucro da autora/empreiteira e o valor do IVA sobre o preço contratualizado (conclusões 12º a 14º do recurso subordinado);

d) se deve ser alterada a decisão quanto a custas, ainda que seja de manter a decisão recorrida (conclusões DD) a HH) do recurso da autora);


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III. Fundamentos de facto

Para além da factualidade supramencionada, que resulta da marcha do processo, há que ter em conta os factos que a sentença considerou provados e não provados.

Os factos considerados como provados, na sentença recorrida, foram os seguintes:
            1- A autora é uma sociedade por quotas, tendo por objecto social a construção civil.

   2- No âmbito da sua actividade foi contratada pelo réu para executar trabalhos de construção em obra deste, sita em ..., ..., ....

   3- Na sequência do referido em 2, em 16.06.2017, a autora elaborou o orçamento nº ...17, no valor global de € 188.738,91, acrescido de IVA, prevendo a realização dos seguintes trabalhos referentes a:

   a) Movimento de terras: € 7.345,00;

   b) Estrutura, com fornecimento e colocação de betão armado C25/30 CI 0,4D22 S3 com aditivo hidrófugo, incluindo betonagem e compactação do betão, aço A400NR, cofragem, descofragem, colocação de separadores e fixação das armaduras: € 166.333,41;

   c) Alvenarias e drenagens: € 4.426,00;

   d) Coberturas: € 10.634,50.

   4- Por referência ao orçamento referido em 3, a autora efectuou trabalhos, tendo o réu pago o valor global previsto no mesmo.

   5- A autora elaborou um segundo orçamento, por referência à obra mencionada em 2 reportada a trabalhos a mais respeitantes a:

   a) Movimentos de terras: € 2.750,00;

   b) Estrutura: € 5.444,83;

   c) Alvenarias: € 213,75;

   d) Cobertura: € 3.800,00

   6- A autora emitiu em nome do réu as seguintes facturas:

   a) A factura nº ...60, com data de vencimento em 12.06.2020, no valor de € 18.738,91, acrescido de IVA, à taxa de 23% no valor de € 4.309,95, no montante global de € 23.048,86 referente a:

   Demolição da lateral esquerda da casa a remodelar

   Demolição de duas lajes em estrutura de madeira na casa a remodelar

   Abertura de novos vãos na casa a remodelar

   Cobertura em telha lusa hidrofugada incluindo todos os trabalhos e acessórios

   Chaminé e rematada; ripa 120; vigotas P3, Remate do telhado.

   b) A factura nº ...61, com data de vencimento em 12.06.2020, no valor de € 939,45, acrescido de IVA, à taxa de 23% no valor de € 216,07, no montante global de € 1.155,52 referente a alteração do tipo de telha, diferencial entre telha lusa hidrofugada e telha tecno cor M42 vermelho Rust e todos os acessórios.

   c) A factura nº ...81, com data de vencimento em 27.08.2020, no valor de €12.208,58, acrescido de IVA, à taxa de 23% no valor de €2.807,97, no montante global de €15.016,55 referente a trabalhos extras das alterações efectuadas de acordo com a revisão 1 do orçamento nº ...17.

  7- A autora efectuou os trabalhos descritos na factura mencionada na alínea b) do facto 6, que não se encontravam previstos no orçamento referido em 3.

   8- Nas lajes de cobertura em cimento efectuadas pela autora verificam-se algumas fissurações.

  9- Nas lajes e degraus executados pela autora verificam-se algumas acumulações de água por falta de pendente dos mesmos, o que não impede o normal uso desses espaços.

   10- Na zona da aresta da laje do terraço verifica-se uma fractura com cerca de 15 cm.

   11- A autora não executou cortes para dilatação da lâmina da laje nos patamares/terraço.

  12- Verifica-se alguma fendilhação nos muros e nos patamares/terraços da cobertura.

   13- No penúltimo e último patamares do lado direito de quem desce, o terreno não se encontra nivelado, apresentando amontoados de terra.

   14- Duas das oliveiras retiradas pela autora, quando voltaram a ser replantadas não regeneraram.

   15- Na frente da moradia, do lado direito do portão verifica-se uma ligeira fractura entre o pilar do portão com o muro da propriedade contígua.

   16- Na cobertura da casa, a autora aplicou ripas de 1,20 metros em 235 metros e não em 342 metros, como orçamentado.

   17- A autora aplicou betão de classe 20/25, ao invés do orçamentado que era da classe 25/30.

   18- A autora enviou ao réu carta datada de 13.08.2020, entre o mais, do seguinte teor: (…) vimos pela presente notificar Vª Exª para a impossibilidade de cumprimento do contrato de empreitada estabelecido em virtude da falta de pagamento das facturas vencidas. Conforme já havíamos comunicado iremos também enviar a factura dos trabalhos a mais executados na obra que se encontram ainda por facturar (…). Aproveitamos ainda para comunicar que fizemos também cessar junto da Câmara Municipal ... a nossa responsabilidade pela execução da obra, Relembramos também, conforme informação verbal transmitida ao Dono da Obra, que informámos também a Câmara Municipal ... das alterações preconizadas pelo Dono de Obra e que implicam a alteração das premissas do licenciamento base carecendo assim de actualização junto da Câmara Municipal ..., porquanto estranhos à nossa empresa estão a assegurar trabalhos na obra (…).

   19- O réu respondeu à carta referida em 18, mediante missiva datada de 18.08.2020 dirigida a DD, recebida pela autora em 20.08.2020, entre o mais do seguinte teor:           (…) O acordo firmado foi com o Sr. DD e, não com outrem. Os cheques por mim emitidos, foram em nome de quem me indicou; assim como, os valores entregues em mão, também, foi à sua pessoa, como bem sabe. (…)

   As obras convencionadas não se encontram executadas e, muito menos, as já executadas, sem vícios e defeitos, como tive oportunidade de lhe dar conta pessoalmente e, por escrito e, nenhuma outra comunicação sua, antes, recebi ou conheci. (…)

   No que respeita à informação de ter cessado junto da Câmara Municipal ..., a v/ responsabilidade pela execução da obra, fê-lo sem o meu conhecimento e, consentimento. Tê-lo-á feito indevida e intempestivamente, visto a obra não se encontrar concluída, como uma vez mais reafirmo. E, só poderei tomar a v/ atitude como abandono da obra, dado os trabalhos estarem por concluir, serei forçado, quiçá, a ter de recorrer a terceiros, exigindo-lhe responsabilidades sobre o v/ incumprimento definitivo. (…)

   Nesta conformidade, venho relembrar deverá concluir os trabalhos e eliminar os apontados vícios e defeitos enunciados na carta registada com AR datada de 16.07 p.p (…).

   20- Em consequência dos factos descritos de 8 a 16, os trabalhos executados pela autora apresentam uma desvalorização de €300,00, por referência ao orçamento descrito no facto 3, alíneas a), c) e d).

   21- Em consequência do facto descrito em 17, os trabalhos executados pela autora apresentam uma desvalorização de €10.029,90, por referência ao orçamento descrito no facto 3, alínea b).

   22- Após a saída da autora do local da obra, o réu procedeu à contratação de outros prestadores de serviços para o mesmo local.

   23- No local da obra permanece um crivo de que a autora é proprietária.

   24- A autora enviou ao réu carta datada de 20.10.2021, recebida em 25.10.2021, entre o mais do seguinte teor:

   Como é do seu conhecimento mantemos na vossa propriedade um equipamento que é designado por Crivo que muito necessitamos para os nossos trabalhos e cuja retenção V. Exa quer manter não nos autorizando a sua recolha. Esta retenção provoca danos directos à nossa empresa como já havíamos comunicado verbalmente.

   Apesar de tal facto e de referir que pretende que terminemos os trabalhos que contratou/encomendou, tal nem sequer corresponde à verdade, pois,  certo é que o crivo serviria para aceder a um pedido seu para crivar terras e aterrar um buraco existente nas traseiras da moradia, trabalho que não fazia parte de qualquer orçamento, mas iria ser feito para com amabilidade corresponder a mais um pedido seu.

   Para além disso V. Exa recusa-se a pagar facturas vencidas e referentes a trabalhos já executados e que nos ordenou.

   Assim e em face do exposto vimos solicitar a V. Exa que marque dia e hora para que possamos recolher o equipamento em causa.

   25- Por sentença transitada em julgado no dia 13.10.2021, na acção que correu termos sob o nº 992/20...., foi declarada a nulidade do contrato de empreitada celebrado entre a autora e o réu, por referência aos trabalhos executados no âmbito do acordo referido em 2.


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A decisão recorrida considerou não provados os seguintes factos:

a) A autora tenha realizado os trabalhos a que se refere o orçamento mencionado no facto 5;

   b) Os trabalhos referidos na factura descrita na alínea a) do facto 6 correspondam a trabalhos a mais realizados pela autora;

   c) A autora não retirou toda a madeira da cofragem;

   d) O ângulo da casa de habitação encontrasse partido devido a colisão com camioneta;

   e) Os trabalhos executados pela autora apresentam desconformidades com o projecto quanto à área do terraço, alteração das fachadas quanto à sua cota e alteração de uma janela;

   f) A autora apenas aplicou vigotas P3 em 90 metros ao invés dos 95 metros orçamentados;

   g) A autora, no remate do telhado efectuou apenas 31,70 metros, ao invés dos 38 metros orçamentados;

   h) A autora não aplicou aço A400;

   i) À medida que a autora ia executando os trabalhos, o réu procedia ao seu pagamento, mediante cheque ou entrega em numerário, tendo os mesmos totalizado a quantia global de €254.918,25;

   j) Todos os valores entregues pelo réu como contrapartida da construção da obra, foram recepcionados por DD que os recepcionou e pelo seu traço e punho escreveu o nome no papel escrito, denominado por “contas” empreiteiro DD”;

   l) O réu reclamou diversos defeitos, vícios e irregularidades e, a desconformidade com o projecto aprovado, como a não aplicação de betão 25/30;

   m) A autora nunca negou reparar qualquer anomalia ou vício existente na obra que adviesse do seu trabalho;

   n) O réu impediu a permanência de máquinas da autora no local, necessárias para alguns trabalhos;

   o) A autora tentou sensibilizar o réu para a necessidade que tem do equipamento referido em 23, mas o mesmo não autoriza o seu levantamento;

   p) O facto referido em 23 verifica-se, pelo menos desde o final de Agosto de 2020;

   q) A falta do equipamento referido em 23 causa prejuízos à autora no valor de € 120,00 por semana;

   r) O aluguer de um equipamento mencionado em 23 é superior a € 30,00 por dia;

   s) O equipamento referido em 23 foi deixado pela autora na obra, no intuito de aparentar um não abandono da obra e inviabilizar a continuação dos trabalhos de construção civil por outrem;

   t) A autora no preço estabelecido em 3 imputou uma margem de lucro de 35%.


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IV. Fundamentação de Direito

a) O recurso dos despachos interlocutórios impugnados.

O recorrente subordinado veio impugnar o despacho exarado na ata da audiência de julgamento do dia 31 de maio de 2025, que indeferiu a arguição da nulidade do depoimento da testemunha BB, na parte em que a mesma se pronunciou sobre questões de natureza técnica ou científicas.

Sustenta – como fundamento deste seu recurso - que essa decisão não pode manter-se, na medida em que a inquirição da testemunha sobre matérias relacionadas com relatórios técnicos juntos aos autos configura uma violação do estatuído no art.º 516º do Código de Processo Civil, que origina uma nulidade processual, oportunamente arguida e cujo indeferimento viola o exercício do contraditório por parte do recorrente.

Parece-nos, contudo, que não assiste razão ao recorrente.

Como decorre do n.º 1 do art.º 516º do Código de Processo Civil, “a testemunha depõe com precisão sobre a matéria dos temas da prova, indicando a razão de ciência e quaisquer outras circunstâncias que possam justificar o conhecimento; a razão de ciência invocada é, quanto possível, especificada e fundamentada”.

Em anotação a esta norma, dizem-nos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa que “Em consonância com as alterações que ocorreram nos mecanismos delimitadores do âmbito da instrução, o preceito tem como objetivo atribuir um maior grau de espontaneidade e de naturalidade aos depoimentos testemunhais, sendo inequívoco que o seu âmbito abarca todos os factos que se encontrem no perímetro dos temas da prova, independentemente de estes assumirem um pendor mais ou menos concreto. Naturalmente que são passíveis de depoimento direto as perceções das testemunhas sobre factos concretos, do mesmo modo que releva tudo o que for circunstancial ou instrumental relativamente ao núcleo factual a que corresponde cada tema da prova.

Não está sequer afastada a possibilidade de serem admitidos “testemunhos periciais”, especialmente em casos em que não se justifique nem seja viável a realização de perícias, o que pode ocorrer quando se mostre necessário, por exemplo, explicar o funcionamento de um determinado maquinismo ou o comportamento de um navio em alto mar em face da carga transportada ou de qualquer outro aspeto que seja relevante para a formação da convicção sobre o modo como ocorrerem os factos, suas causas ou efeitos. Por outro lado, o depoimento pode ter por objeto todos os factos independentemente de quem os alegou, conclusão que o anterior regime já sustentava de modo totalmente inequívoco”.

Como bem nota a decisão recorrida, foi enunciado como tema da prova, sob o n.º 6, os “defeitos dos trabalhos realizados pela autora e não utilização do material acordado em obra”, pelo que não se vislumbram razões para que não pudessem ser colocadas à mencionada testemunha as questões relativas à perícia e a relatórios técnicos juntos em resultados de peritagens extrajudiciais respeitantes à factualidade abrangida por tal tema de prova.

Ademais, nos termos previstos no artigo 392.º do Código Civil, a prova por testemunhas é admitida em todos os casos em que não seja direta ou indiretamente afastada, não se vislumbrando, in casu, razões para não admitir o depoimento da mencionada testemunha.

Por outro lado, as questões colocadas no âmbito daqueles relatórios técnicos e periciais não dizem respeito a factos sujeitos a prova vinculada, vigorando o princípio da livre apreciação das provas, quer quanto às respostas dos peritos em sede de prova pericial, quer no que concerne aos depoimentos das testemunhas, tudo em conformidade com o disposto nos artigos 341.º, 388.º, 389.º e 396.º do Código Civil.

Por conseguinte, o conteúdo desse depoimento, desde que contido no âmbito dos temas de prova, terá de ser valorado pelo tribinal, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, podendo, naturalmente, a jusante, justificar a impugnação do facto que, com base nele, venha a ser julgado provado ou não provado.

E note-se, que o recorrente nem sequer impugnou a matéria de facto com tal fundamento.

Por outro lado, uma vez que o recorrente não foi impedido de, no decurso do depoimento em causa, fazer as instâncias que entendeu serem convenientes, não vemos como se pode afirmar ter sido violado o seu direito ao exercício do contraditório.

Não vislumbramos, assim, que o tribunal recorrido, ao permitir que a mencionada testemunha respondesse às questões de natureza técnica que lhe foram colocadas pelo Il. Mandatário da autora, tenha omitido qualquer ato ou formalidade imposta por lei, suscetível de influir no exame da causa

Improcedem, assim, nesta parte, as conclusões da apelação, pelo que se deverá manter a decisão recorrida.


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O réu apelante veio também recorrer da decisão, exarada na ata na sessão da audiência de julgamento de 5 de junho de 2024, que lhe indeferiu o requerimento para que a testemunha CC, cujo depoimento estava então a decorrer, fosse confrontada com quatro fotografias.

Defende que tal requerimento deveria ter sido deferido, uma vez que lhe assistia ao direito de contraditar tal depoimento testemunhal através dos referidos documentos, sendo por isso a sua junção pertinente e oportuna em conformidade com o disposto no arts. 521º e 522º do Código de Processo Civil

Não nos parece que lhe assista razão.

Com efeito, como se refere na decisão recorrida, é manifesto que, aquando do requerimento para a junção de tais documentos, falhavam os pressupostos legais para a admissibilidade de tal junção, designadamente o previsto no n.º 2 do art.º 423º, n.º 3 do Código de Processo Civil. 

Como referem Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro[1], a junção documental que se “tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior”, destina-se nomeadamente à prova ou contraprova de factos ocorridos após o termo do prazo previsto no número anterior. Acrescentando que a “apresentação não se torna necessária em virtude de ocorrência posterior quando uma testemunha alude a um facto, ainda que em sentido contrário ao pretendido pelo apresentante, se se tratar de um facto essencial já alegado – ou de um facto puramente probatório”.

É certo que, no seu recurso, o apelante vem reiterar a pretensão de apresentação de tais documentos, desta feita no contexto da dedução de um alegado incidente de contradita.

A contradita, prevista no art.º 521º do Código de Processo Civil, constitui um meio que a parte pode usar contra a força probatória dos depoimentos testemunhais, fazendo valer uma exceção probatória. Ou seja, não se trata de atacar o conteúdo do depoimento, demonstrando a sua falsidade, “mas de invocar novos factos (acessórios) que, sendo exteriores ao depoimento, ponham em causa a razão de ciência invocada pela testemunha ou a fé que ela possa merecer, destruindo ou enfraquecendo o depoimento prestado, de modo a que o juiz não venha a tê-lo em conta, ou o tenha só reduzidamente em conta, no juízo que fará sobre a prova dos factos que dele foram objeto. Trata-se, pois, de fazer valer razões fácticas que levem o juiz, ao apreciar livremente a prova, a não dar plena credibilidade ao depoimento da testemunha.”[2] Quanto à tramitação deste incidente da prova testemunhal, rege o disposto no art.º 522º do Código de Processo Civil, dispondo o seu n.º 1 que, terminado o depoimento, a contradita deve ser imediatamente deduzida, mediante a alegação dos factos em que se baseia. Ouvida a parte contrária sobre a sua admissibilidade, se for admitida – não o será se os factos alegados forem insuscetíveis de abalar a credibilidade do depoimento - a testemunha é ouvida sobre os factos que o requerente haja alegado.

Nos termos do n.º 2 da mesma norma. “se a testemunha não reconhecer os factos alegados, não os confessando, a parte que requereu a contradita pode prová-la por documentos ou testemunhas, sendo estas logo oferecidas e inquiridas e podendo aqueles ser apresentados até ao termo das alegações orais”.

 O recorrente afirma ter pretendido contraditar os depoimentos da mencionada testemunha. Sucede que, terminado este depoimento, a contradita deveria ter sido imediatamente deduzida, com a alegação dos factos em que se basearia, o que, porém, não sucedeu, pelo que não se vislumbra fundamento legal para a admissibilidade de tais documentos.

De assim manter-se, nesta parte, a decisão recorrida.


*

O réu/apelante insurge-se ainda contra a condenação de que foi alvo - em ambas as decisões interlocutórias que impugna - nas custas do incidente anómalo fixadas, respetivamente, em 2 UCs e em 1 UC, em ambos os casos com fundamento no disposto no art.º 7.º, n.º4 do Regulamento das Custas Processuais, sustentando que tais condenações não se encontram fundamentadas e revelam-se excessivas.

Vejamos.

Desde logo, é de afastar o argumento segundo o qual as referidas condenações não se mostram fundamentadas, já que claramente decorre do teor da aludidas decisões que a Mmª Juiz faz assentar tais condenações no disposto no art.º 7º, n.º 4 e 8 do Regulamento das Custas Processuais, donde facilmente se conclui que considerou que os requerimentos apreciados deram origem a um incidente anómalo, passível de ser tributado nos termos das mencionadas normas.

A redação originária do DL n.º 34/2008, que se manteve até à Lei n.º 7/2012, definia como procedimentos ou incidentes anómalos apenas aqueles que, não cabendo na normal tramitação do processo, possam ter sede em articulado ou requerimento autónomo, deem origem à audição da parte contrária e imponham uma apreciação jurisdicional de mérito.

O atual artigo 7º, nº 4 do Regulamento das Custas Processuais consagra que é devida taxa de justiça, entre o mais, pelos incidentes e procedimentos anómalos, determinada de acordo com o constante da Tabela II, definindo-se no seu nº 8 que se consideram “procedimentos ou incidentes anómalos as ocorrências estranhas ao desenvolvimento normal da lide que devam ser tributados segundo os princípios que regem a condenação em custas”.

Como se referiu no Acórdão da Relação de Évora de 20 de janeiro de 2015[3], “a lei exigirá que o processado se apresente como estranho ao que seja o desenvolvimento do processo, ou seja, tal como ditado pela sequência processual expressamente traçada na lei de processo ou pelo que deva considerar-se decorrer do exercício dos direitos dos sujeitos e outros intervenientes face à dinâmica da própria lide. Por outro lado, a atividade processual desencadeada deve assumir autonomia e relevância face ao normal processado da causa, pois este está abrangido pela tributação que é própria do processo.”

Para além disso, razões de ordem sistemática parecem-nos deixar claro que a tributação dos procedimentos e incidentes anómalos se insere no conjunto de normas que regulam a distribuição da responsabilidade pelo pagamento das custas devidas pela atividade processual desenvolvida ao longo do processo, não tendo propósitos punitivos estranhos à natureza objetiva do princípio de causalidade em matéria de custas, levando a que deva ter-se por afastada a tributação incidental assente apenas no carácter inconsequente da pretensão deduzida -  cfr Acórdão da Relação do Porto de 14 de maio de 2009[4] - situação que está antes abrangida pela taxa sancionatória excecional.

Não há, pois, que confundir a tributação da atividade processual anómala que não deva ser considerada abrangida pela tributação própria do processo, mas que, pela sua relevância e autonomia, deva ser tributada (em taxa a fixar entre 1 e 3 UC) de acordo com os princípios da causalidade ou do proveito, com a tributação punitiva ou sancionatória da atividade manifestamente injustificada e negligente, cuja taxa de justiça será fixada entre 2 e 15 UC nos termos do 10º do Regulamento das Custas Processuais.

No caso, cremos que os requerimentos em causa – que deram origem às decisões interlocutórias objeto de recurso - decorrem ainda do exercício dos direitos dos sujeitos processuais à dinâmica da própria lide, não assumindo relevância e autonomia face ao normal prosseguimento da causa. Nessa medida, não consubstanciam ocorrências estranhas ao desenvolvimento normal da lide que devessem ser autonomamente tributado como procedimento ou incidente anómalo, não sendo a improcedência do requerimento, fundado num entendimento que se considera não merecer acolhimento, por si só, fundamento para que se considere que é estranho ao referido processado.


*

Pelo exposto, e em conclusão, entendemos que deve proceder o recurso das decisões interlocutórias acima referidas apenas na parte referente à condenação do recorrente em custas, mantendo-se no mais o decidido.

*

b) Da impugnação da matéria de facto
(…).

*

Em conclusão, no que à impugnação da matéria de facto diz respeito, deverá eliminar-se dos factos não provados a matéria correspondente à al. a) e acrescentar-se ao elenco dos factos provados um novo item com a seguinte redação: «A autora realizou os trabalhos a que se refere o orçamento mencionado no facto n.º 5»[5]

*

c) Os recursos da sentença

Poderemos afirmar que, através do seu recurso, a autora apelante vem, fundamentalmente, pugnar por três alterações ao segmento decisório da sentença de que decorre.

Em primeiro lugar, pretende que se reconheça que o valor que tem direito a receber do réu, por via da declaração de nulidade do contrato de empreitada que com ele celebrou, é superior aquele que foi reconhecido pela sentença recorrida, por um lado, por ter de se considerar que realizou os trabalhos a mais a que se refere a fatura indicada nas als. a) e c) do ponto 6 dos factos provados, os quais não foram pagos pela ré e, por outro lado, por não se poder ter em conta qualquer desvalorização da obra em consequência de não ter sido aplicado o betão da qualidade convencionada.

Em segundo lugar, visa que se lhe seja reconhecido o direito a ser indemnizada pelos prejuízos decorrentes da retenção ilegítima, por parte do réu, de uma máquina de sua propriedade;

Finalmente, ataca a decisão de condenação em custas, defendendo que mesma que não seja de proceder o restante objeto do seu recurso, deve ser modificada a proporção em que cada uma das partes foi condenada nas custas do processo. 

Por seu turno, o réu, através do seu recurso subordinado, pretende que lhe seja reconhecido que o valor que tem direito a receber da autora em consequência das obrigações de restituição decorrentes da nulidade do contrato que com ela celebrou, e que peticionou em via reconvencional, é superior ao que resulta da sentença recorrida. Por um lado, porque que se deve considerar que o montante total dos pagamentos que efetuou àquela ascende a € 254.918,25 e, por outro lado, por entender que, na liquidação do valor obrigação de restituição por equivalente, deverá ser descontado o valor do lucro da autora (que quantifica em 35%) e o valor do IVA.

Ambos os recorrentes sustentam tais pretensões recursivas, em grande parte, nas modificações da decisão sobre a matéria de facto que cada um deles propugnava.

Como vimos, a impugnação da matéria de facto deduzida pela autora apenas obteve parcial procedência – no sentido da demonstração de que os trabalhos a mais, mencionados no orçamento referido no ponto 5 dos factos provados e na fatura indicada na al. e) do ponto 6 dos factos provados foram efetivamente realizados – enquanto impugnação deduzida pelo réu improcedeu na íntegra.

A primeira conclusão que daqui poderemos retirar é a de que, mantendo-se inalterada a decisão da matéria de facto relativa aos invocados danos decorrentes da privação de uso da máquina que dizia ter sido ilicitamente retida pelo réu, à luz da mesma, deve manter-se a decisão do tribunal a quo de absolvição do réu do pedido de condenação em indemnização pela retenção do referido equipamento e em sanção pecuniária compulsória.

Analisemos, agora, os recursos das partes, tendo em consideração, além do mais, a modificação da decisão da matéria de facto acima apontada.

Não se discute a qualificação jurídica do contrato celebrado ente as partes como um contrato de empreitada previsto no art.º 1207.º do Código Civil.

É também inquestionável a nulidade desse contrato, por inobservância da forma legal (escrita), em conformidade com os arts. 26º e 29º Lei n.º 41/2015, de 3 de junho, em conjugação com o artigo 1.º da Portaria nº 119/2012, de 30 de abril, declarada, por sentença transitada em julgado, no processo que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, sob o nº 992/20.....

O que está em causa é tão somente a liquidação das obrigações de restituição por via de tal nulidade.

Como é sabido, prevê o artigo 289º, n.º 1 do Código Civil que “tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente”.

Os efeitos da declaração de nulidade decorrem da lei, mas a vontade das partes condiciona os deveres de restituição cujo conteúdo resulta, no essencial, da estipulação das partes no negócio inválido[6].

Ora, um dos efeitos típicos consiste no “efeito retroativo”, o que significa que uma vez declarada a nulidade do negócio tudo se passa como se o negócio jurídico não tivesse sido celebrado e executado. Ou seja, declarada ou reconhecida a nulidade, estabelece-se entre as partes uma relação de liquidação: deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente, nos termos do artigo 289º, n.º 1 do Código Civil.

Com efeito, existem situações de facto em que os efeitos do contrato inválido não podem ser apagados, quando as partes cumpriram as prestações a que estavam vinculadas e uma das prestações não pode ser restituída.
É esse o caso dos autos, já que está em causa um contrato de empreitada em que a restituição em espécie a cargo do dono da obra não é possível, por não ser possível devolver os materiais e mão-de-obra utilizada na execução da obra, os quais perdem individualidade quando se materializam na obra executada.
Perante a irremediável incorporação da obra realizada no imóvel do réu, é assim manifesto que – quanto ao conteúdo prestacional do referido dever de restituição – tem de se convocar e aplicar a parte final do citado nº1 do art.º 289º do Código Civil.

Deste modo, deve ter-se em conta, apenas, o fazer equivaler as prestações da autora e do réu, ou seja, pagar o equivalente à obra realizada.

O mencionado preceito não indica, porém, nem o critério nem o método de determinação o valor, como não indica o momento que serve de referência ao respetivo cálculo.

Nessas circunstâncias, refere o Professor Menezes Cordeiro[7], “(…) haverá que restituir o valor correspondente o qual, por expressa convenção das partes, não poderá deixar de ser o da contraprestação acordada. (…) Ambas as prestações restituitórias se extinguem, então, por compensação tudo funcionando, afinal, como se não houvesse eficácia retroativa, nestes casos”.

Contudo, não poderá deixar de se reconhecer que, não sendo possível a restituição em espécie da obra realizada, ao calcular o seu valor, para efeitos de compensação em dinheiro, terão também de ser ponderados os defeitos ou vícios que reconhecidamente a afetem e os montantes pecuniários que terão de ser despendidos os sanar.

Daí que, em nossa opinião, bem andou a sentença ao considerar, nessa operação de liquidação, o valor necessário a eliminação dos defeitos ou falhas mencionadas nos pontos 8 a 16 dos factos provados.

Não colocando em causa estes princípios, defende o réu que a liquidação do valor equivalente à obra realizada, para efeito da obrigação de restituição prevista no art.º 289º do Código Civil, foi incorretamente levada a cabo pela Mmª Juiz a quo, na medida em que considerou o valor das faturas em dívida, sem descontar a margem de lucro do empreiteiro ali incorporado (que alegava fixar-se em 35% do valor global da empreitada) e o valor do IVA.

Não desconhecemos que a jurisprudência não é unanime relativamente à questão de saber se deve, ou não, incluir-se a margem de lucro que o empreiteiro retiraria do negócio no montante a restituir pelo do da obra, por via da declaração da nulidade do contrato de empreitada. Como também não é pacífica a questão relativa inclusão, naquele mesmo montante, do valor do IVA cobrado pelo mesmo empreiteiro sobre o preço da empreitada[8].

De todo o modo, propendemos para o entendimento da sentença, segundo o qual a autora empreiteira, em consequência da declaração de nulidade do contrato terá direito ao valor faturado a título de preço dos trabalhos efetivamente realizados, ali se incluindo a sua margem de lucro e o IVA devido ao Estado (descontado do valor correspondente à desvalorização da obra em consequência dos vícios e desconformidades que a afetam)

Maria Clara Sottomayor, em anotação ao artigo 289.º do Código Civil[9], escreve a propósito da liquidação do contrato inválido: “Em regra, o critério para calcular o valor do gozo da coisa e o valor do serviço prestado será aquele que foi adoptado no próprio contrato que fixou o valor da contraprestação, o que tem por consequência que cada uma das partes a prestação recebida, equivalendo, na prática, a liquidação do contrato inválido à execução do mesmo. Só não será assim, por exemplo, se o valor do serviço for superior ao valor da remuneração estipulada no contrato, a qual não teve em conta os critérios do mercado. Nesta hipótese, o prestador de serviço terá direito ao pagamento da diferença entre o valor recebido e o valor de mercado”.

Por sua vez, no Acórdão do STJ de 22 de junho de 2021[10], diz-se que “(o) contrato nulo não é um nada jurídico, nem um ato inexistente. Nos casos em que um contrato de execução duradoura, como o contrato de empreitada, é declarado nulo, não é possível regressar ao estado anterior à celebração do contrato para aplicar de forma estritamente lógica o princípio da retroatividade dos efeitos da nulidade”.

Como se diz no acórdão da Relação do Porto de 9 de maio de 2025[11], “(n)ão é, por conseguinte, exacta a ideia de que, mercê da nulidade, tudo se passa como se o contrato não tivesse sido celebrado ou produzido quaisquer efeitos. Bem ao invés porque o contrato é algo que na realidade aconteceu, daí precisamente a sua repercussão no subsequente relacionamento jurídico das partes. E, assim, tratando-se de relações obrigacionais duradouras, no domínio das quais, desde que em curso de execução, encontra em princípio aplicação a figura do «contrato de facto» - «contrato imperfeito» noutra terminologia; de «errada perfeição» (…) tudo se passará, nos aspectos considerados, como se a nulidade do negócio jurídico apenas para o futuro (ex nunc) operasse os seus efeitos.

Assim sendo, no caso em apreço, não se vê qualquer razão para, na liquidação do valor equivalente a restituir não se considere o preço dos trabalhos realizados e faturados pela autora empreiteira ao réu dono da obra, nele incluindo a margem de lucro do autor empreiteiro.

Com efeito, como nos diz o acórdão acabado de referir, o “lucro” faz parte do valor correspondente do produto final, nele se incorporando como qualquer outro factor. Além disso, perante a impossibilidade do serviço prestado pelo empreiteiro lhe ser restituído, o mero pagamento dos custos (com matérias primas e mão de obra - como pretende a Apelante) - deixava-o fortemente prejudicado, porquanto o lucro é, antes de mais, a finalidade primeira das sociedades comerciais, integra o pagamento dos sócios pelo investimento da sociedade, permite alavancar a empresa e, acima de tudo, paga o custo de oportunidade (de ter estado naquela obra em vez de noutra).

Acresce que não foi sequer alegado pelo réu que o preço acordado era superior aos valores então praticados no mercado.

Quanto à inclusão do IVA no valor a restituir, ela decorre do artigo 1.º, n.º 1, alínea a), do Código do Imposto Sobre o Valor Acrescentado, segundo o qual estão sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado as prestações de serviços efetuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo. Ora, apesar da invalidade formal do contrato de empreitada, a empreiteira, que é sujeito passivo do imposto (alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA), prestou efetivamente serviços em território português, a título oneroso, e os réus foram os beneficiários de tal prestação.

Não obstante, temos de discordar da decisão recorrida quando, no cálculo do valor equivalente que o réu deve restituir à autora, considera o valor do IVA relativo a todos os trabalhos incluídos do orçamento inicial.

É que a Mmº Juiz a quo considerou provado que a obra ficou depreciada pelo facto de a autora ter aplicado betão de classe 20/25, ao invés do orçamentado que era da classe 25/30, e que, em consequência, a mesma obra apresenta uma desvalorização de €10.029,90, por referência ao orçamento descrito no facto 3, alínea b).

 Se assim é, ao calcular o valor equivalente que o réu terá de devolver à autora com base nos valores orçamentados, acrescidos de IVA, deveria ter descontado não apenas o montante em que quantificou a desvalorização - €10.029,90 – mas também o IVA correspondente, ou seja, €2.306,87 (€10.029,90 x 23%).

Isto posto, e tendo em conta a alteração factual decorrente da procedência parcial do recurso da autora, chegamos ao valor total dos trabalhos executados pela autora ao montante de €235.685,05 (ou seja, [232.148,85 + 1.155,52 + €15.016,55] – [€10.029,00 + 2.306,87+300,00]).

Encontrando-se demonstrado que o réu já pagou o valor de € 232.148,85 (uma vez que não logrou provar ter pago um valor superior que alegava), significa que a recorrente autora tem ainda a receber do réu o valor de €3.536,20.

Impõe-se assim concluir pela procedência parcial do recurso da autora e pela improcedência do recurso do réu.

Consequentemente, deverá ser revogada a decisão que julgou parcialmente procedente o pedido reconvencional e a condenou a autora/reconvinda no pagamento da quantia de €9.173,48, substituindo-a por outra que condene o réu a pagar à autora o sobredito montante de €3.536,20 (três mil, quinhentos e trinta e seis euros e vinte cêntimos).

Por força da remissão operada pelo n.º 3 do art.º 289º do Código Civil para o preceituado nos artigos 1269.º e seguintes do mesmo diploma, a obrigação de restituir abrangerá não só o capital, mas também uma quantia equivalente ao montante dos juros de mora à taxa legal a contar da citação (ou da interpelação admonitória se esta tiver tido lugar), como frutos civis que são (art.ºs 289.º, 1270.º, n.º 1, e 212.º, todos do Código Civil), sendo que vale como interpelação a citação judicial para a ação.

Por outro lado, tratando-se de uma obrigação pecuniária, a indemnização corresponde aos juros legais a partir do dia da constituição em mora (art.ºs 804.º, 805.º, n.º 1 e 806.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Civil), à taxa aplicável aos juros civis ( cf. art.º 559º do Código Civil), pois o ato que constituía o contrato deixa de ter validade qua tale não podendo ser classificado como comercial.

Deste modo, os juros de mora são devidos desde a citação, à taxa legal aplicável aos juros civis e não à taxa legal comercial, como peticionava a autora.


*

Em face do exposto, fica prejudicada a apreciação do recurso da autora contra o segmento decisório da condenação em custas.
Não obstante, face à alteração da decisão da primeira instância, as custas da ação terão de ser fixadas em novos moldes.
Assim, notar-se-á que o desfecho deste recurso de apelação teve como resultado a procedência da parcial da ação e a improcedência da reconvenção.
Sendo o valor da causa € 184.377,79, correspondente a € 50.143,48 pela ação e €134.234,31 pela reconvenção, temos que a percentagem de decaimento das partes é, respetivamente, de 25,27% pela autora e 74,43% pelo réu.

*
Sumário (ao abrigo do disposto no art.º 663º, n.º 7 do Código de Processo Civil):
(…).

*

V. Decisão.

Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação:

- em julgar parcialmente procedentes os recursos das decisões de 31 de maio e de 5 de junho de 2024, revogando tais decisões na parte que condenaram o réu recorrente nas custas do incidente anómalo, mantendo no mais o decidido;

 - em julgar parcialmente procedente o recurso da autora e o recurso subordinado do réu e consequentemente, revogando a decisão recorrida, condenar o réu a pagar à autora a quantia de €3.536,20 (três mil, quinhentos e trinta e seis euros e vinte cêntimos), acrescida de juros de mora, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento, absolver o réu do demais peticionado e absolver a autora do pedido reconvencional.

Mais se decide fixar as custas da ação pela autora e pelo réu, na proporção do decaimento respetivo, que se fixa em 25,17% e 74,73%, respetivamente.

As custas dos recursos serão suportadas por autora e réu, na proporção do decaimento que se fixa na proporção de ¼ e ¾, respetivamente.


Coimbra, 14 de outubro de 2025

 

Assinado eletronicamente por:

Hugo Meireles

Luís Manuel Carvalho Ricardo

Luís Miguel Caldas

(O presente acórdão segue na sua redação as regras do novo acordo ortográfico, com exceção das citações/transcrições efetuadas que não o sigam)


[1] cf. Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2014, 2.ª edição, Almedina, pág. 370.
[2] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pág. 406.
[3] Proc. nº 43/11.9TANIS-A.E1, in www.dgsi.pt
[4] Processo n.º 0837103, Relator Freitas Vieira, acessível no site jurisprudência.pt.

[5]   Por se tratar de uma alteração/modificação muito limitada, tendo apenas por consequência o a eliminação de um facto não provado e o consequente aditamento de um novo facto ao elenco dos factos provados, dispensamo-nos de transcrever de novo toda a factualidade provada e não provada, devendo considerar-se os pontos fácticos objeto de alteração nos termos supra explicitados.
[6] Luís Carvalho Fernandes, José Brandão Proença, Coord. Comentário ao Código Civil-Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa 2014, pág. 717.
[7] Tratado de Direito Civil Português-Parte Geral, Tomo I, ob. cit., pág. 582
[8] Em sentido desfavorável a essa posição, confronte-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de maio de 2019 (processo n.º 2966/16.0T8PTM.E1.S2) e o Acórdão desta Relação de 12 de abril de 2023 (processo n.º  81924/19.3YIPRT.C1), ambos disponíveis in www.dgsi.pt. Em sentido inverso, confronte-se o Acórdão do STJ de 12 de dezembro de 2024 (processo n.º 3914/20.8T8BRG.G1.S1), quanto à questão do IVA, e os Acórdãos da Relação do Porto de 26 de abril de 2021 (processo 1420/15.1T8PVZ.P1) e de 9 de maio de 2025 (processo n.º 128269/23.9YIPRT.P1), in www.dgsi.pt.
[9] Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2ª Edição, página 870
[10] Processo n.º 1901/17.2T8VRL.G1.S1, in www.dgsi.pt
[11] Processo n.º 128269/23.9YIPRT.P1