MAIOR ACOMPANHADO
RELATÓRIO PERICIAL
DATA PROVÁVEL DO INÍCIO DA AFEÇÃO DO BENEFICIÁRIO
Sumário

I - Para além do regime geral aplicável às perícias e às perícias médico-legais, o relatório pericial no âmbito do processo de maior acompanhado deve precisar, para além do mais, sempre que possível, a data provável do início da afeção de que sofre o beneficiário (art. 899.º, n.º 1, do CPC).
II - Na decisão final, para além do mais, o juiz fixa a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes (art. 900.º, n.º 1, do CPC), a qual deve ter correspondência com a acima aludida data provável do início da afeção de que sofre o beneficiário.
III - Na presente ação de maior acompanhado nada foi decidido, nem cumpria fazê-lo, a respeito da validade de quaisquer hipotéticos atos da beneficiária/acompanhada, aliás não invocados, para efeitos do disposto no art. 154.º, do Código Civil.

Texto Integral

Apelação n.º 557/24.0T8PNF.P1

(5.ª Secção Judicial, 3.ª Secção Cível)

Comarca do Porto Este

Juízo Local Cível de Penafiel

Relator: Filipe César Osório

1.º Adjunto: Maria de Fátima Almeida Andrade

2.º Adjunto: Teresa Pinto da Silva

Sumário (da responsabilidade do relator):

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ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

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I. RELATÓRIO

Processo Especial de Acompanhamento de Maior

1. Intervenientes:

Requerente – AA

Requerida - Beneficiária – BB

Acompanhante nomeado - Recorrente – CC


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2. Objecto do litígio – ACOMPANHAMENTO DE MAIOR

A Requerente instaurou contra a Requerida o presente Processo Especial de Acompanhamento de Maior onde pede seja decretado um regime de acompanhamento e apoio permanente à Requerida – Beneficiária, com os fundamentos que entendeu relevantes para o caso concreto.


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3. Desenvolvimento relevante da instância:

Entre outras diligências instrutórias, resulta dos autos que se procedeu à audição da beneficiária (acta de 17/04/2024), foi elaborado relatório social de acompanhamento da beneficiária pela Comissão Municipal de Protecção do Idoso ... (relatório de 27/06/2024) e foi realizada “perícia psiquiátrica forense” à beneficiária pelo Gabinete Médico-Legal e Forense do Tâmega, Centro Hospitalar ... (relatório de 14/01/2025).


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4. Sentença em Primeira Instância:
Foi proferida sentença em primeira instância com o seguinte dispositivo [transcrição]:

«Julgo procedente, por provada a presente ação e, em consequência:

a) Nomeio CC como acompanhante e AA acompanhante substituta da maior impossibilitada BB, com domicílio na Rua ..., ..., ..., Penafiel, nos termos do artigo 143.º do Código Civil;

b) Como medidas de acompanhamento decreto:

1. De representação geral;

2. Limitação do direito pessoal de testar.

c) Dispenso a constituição do Conselho de Família.

d) Fixo a data do começo do acompanhamento em 1.1.2020.

(…)».


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5. Recurso de apelação:

CC, na qualidade de acompanhante de BB, interpôs recurso de apelação da sentença pedindo a revogação da decisão recorrida, com as consequências legais, com as seguintes conclusões [transcrição]:
A) A recorrente discorda da decisão que decretou as medidas de acompanhamento unicamente na parte em que fixou o dia 01-01-2020 «data de começo do acompanhamento».
B) A verdade é que em 01-01-2020 a recorrente encontrava-se capaz de gerir a sua vida.
C) O tribunal refere que se baseou para dar como provado tal facto (ponto 4 dos factos provados) nos relatórios e informações médicas.
D) Contudo, dos autos resulta que para além do relatório da Perícia não existem outros elementos clínicos.
E) A recorrente apenas foi submetida a uma perícia médico legal, na qual se conclui que esta padece de perturbação Neurocognitiva Major com défices cognitivos clinicamente relevantes e que comprometem a capacidade de administrar a sua pessoa, património e bens.
F) Mais menciona que este quadro é de evolução prolongada e que a data de inicio de representação é fixável desde 2020, mas não refere o mês.
G) No entanto, não consta do relatório em que se baseou para determinar a data de 2020, pois na parte onde se refere á metodologia utilizada pelo Sr. Perito, este alega que consultou os elementos constantes do processo Judicial.
H) Refere ainda que previamente à observação pericial foram consultados os elementos presentes na peça processual e em particular os documentos enviados pelas instituições de saúde a pedido do Tribunal tal como indicado na Petição Inicial.
I) Sucede que, dos autos não consta que o Tribunal tivesse pedidos documentos a outras instituições de saúde. Também na Petição Inicial apenas foi requerido o exame pericial.
J) Assim, não se compreende como foi possível no relatório fixar a data do início da representação em 2020 e o Tribunal com base no relatório, ainda foi mais longe e fixou em 01-01-2020.
K) O artigo 900.º do Código de Processo Civil estabelece que na sentença do processo especial de acompanhamento de maiores, o juiz, reunidos os elementos necessários, designa o acompanhante, define as medidas de acompanhamento nos termos do artigo 145.º do Código Civil e, quando possível, fixa a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes.
L) No regime do maior acompanhado só existe uma situação em que a decisão judicial pode ter efeitos retroativos.
M) É o caso das decisões que decretam a cessação ou a modificação do acompanhamento, para as quais o n.º 2 do artigo 149.º do Código Civil estabelece que os seus efeitos «podem retroagir à data em que se verificou a cessação ou modificação referidas no número anterior».
N) Nem nessas situações, contudo, a produção dos efeitos da sentença em data anterior à sua prolação é automática ou forçosa.
O) A norma só estabelece que os seus efeitos podem retroagir a momento anterior, pelo que caberá ao julgador, consoante as circunstâncias do caso e as necessidades do acompanhado, decidir se os efeitos da sentença devem, no caso, ter esse efeito retroativo.
P) Não existe norma legal que preveja ou consinta esse efeito retroativo das decisões que decretam as medidas de acompanhamento.
Q) O que a lei dá ao juiz é, nos termos do n.º 2 do artigo 138.º do Código Civil, a possibilidade de em qualquer altura do processo, determinar as medidas de acompanhamento provisórias e urgentes, necessárias para providenciar quanto à pessoa e bens do requerido.
R) Precisamente por a sentença e as medidas nela decretadas não terem efeito retroativo, mas, antes da decisão, poder haver necessidade urgente de acautelar a pessoa ou os bens do requerido, a lei confere ao juiz a possibilidade de decretar medidas provisórias cujos efeitos estarão naturalmente dependentes de a final, na sentença, ser deferido o acompanhamento e decretarem-se medidas de acompanhamento que absorvam ou consumam as medidas provisórias.
S) O que a lei manda é fixar, quando possível, a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes.
T) Esta fixação só ocorre quando for possível, ou seja, se forem reunidas informações que permitam situar no tempo o início dessa situação.
U) O artigo 900.º do Código de Processo Civil diz que a data só deve ser fixada quando possível.
V) Ora, se o objetivo fosse o de fixar uma data a partir da qual se devem considerar convenientes as medidas decretadas, então essa fixação era sempre possível porque no mínimo tinha de se fixar essa data no dia da própria sentença já que elas têm de ser convenientes ao menos quando estão a ser decretadas.
W) A hipótese de não ser possível fixar a data só se compreende interpretando a norma como querendo referir-se ao apuramento da data em que as medidas se tornaram convenientes, ou seja, se iniciou a situação pessoal em função da qual estas se tornaram necessárias.
X) É esse momento que pode não ser possível apurar se a patologia que lhe está na origem foi evoluindo com o tempo e não tem propriamente estados ou fases conhecidas que permitam situar no tempo o surgimento da conveniência das medidas. Não assim, por exemplo, quando a patologia é fruto de um acidente, de um evento instantâneo.
Y) A ser assim, não é correto fixar a data não havendo elementos clínicos que permitam saber desde quando se verifica a necessidade, devendo o segmento da sentença recorrida deve ser revogado, não se fixando qualquer data.


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6. Resposta

O Ministério Público apresentou contra-alegações com as seguintes conclusões:

«1. Nos presentes autos foi proferida decisão que decidiu fixar a data do começo do acompanhamento em 1.1.2020.

2. Tal foi baseado na informação contundente constante do relatório da perícia psiquiátrica forense, de onde decorre que “A data de início da representação geral será fixável, pelo menos, desde 2020 (dois mil e vinte).”

3. Por tudo o exposto, concorda-se com a Douta Sentença proferida.».


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7. Admissão do recurso

O tribunal a quo admitiu o recurso.


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8. Objecto do recurso – questão a decidir:

– Impugnação da decisão da matéria de facto, atinente à data constante do ponto 4 dos factos provados;

– Reapreciação jurídica da causa, no que toca à fixação da data da conveniência das medidas aplicadas.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

9. Na sentença recorrida foram consignados os seguintes factos [transcrição]:

«Factos provados com interesse para a decisão da causa:

1. A Requerida BB nasceu em ../../1936.

2. É viúva.

3. AA é filha da Requerida.

4. A Requerida padece, desde 2020, de Perturbação Neurocognitiva Major, com défices cognitivos graves.

5. Encontra-se desorientada no tempo e espaço.

6. Já não reconhece os familiares próximos.

7. Já não consegue efetuar cálculos, ler ou escrever.

8. A Requerida encontra-se dependente de terceiros para todas as atividades básicas do dia-a-dia.

9. A sua situação é permanente e irreversível não tendo cura à luz dos conhecimentos médicos atuais.

10. É o filho da Requerida CC e a Requerente que cuidam e prestam todo o auxilio que a Requerida necessita.

11. Não há conhecimento de que a Requerida tenha efetuado testamento vital ou procuração para cuidados de saúde.

Factos não provados com interesse para a decisão da causa:

Não há.».


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10. Enquadramento jurídico

10.1. Impugnação da decisão de facto:

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões.

O Recorrente inicia as suas conclusões afirmando que “discorda da decisão que decretou as medidas de acompanhamento unicamente na parte em que fixou o dia 01-01-2020 «data de começo do acompanhamento»” (al. A)) e de seguida mistura considerações de facto e de direito a esse propósito, contudo, com algum esforço, é possível desde logo descortinar que pretende a impugnação da decisão de facto constante do ponto 4 dos factos provados apenas no que toca à data aí constante.

A este propósito, o Recorrente entende essencialmente que não deveria ter sido dado como provado tal facto porque “em 01-01-2020 a recorrente encontrava-se capaz de gerir a sua vida” (al. B)), e ainda que “não consta do relatório em que se baseou para determinar a data de 2020, pois na parte onde se refere à metodologia utilizada pelo Sr. Perito, este alega que consultou os elementos constantes do processo Judicial” (al. G)), que nesse relatório “Refere ainda que previamente à observação pericial foram consultados os elementos presentes na peça processual e em particular os documentos enviados pelas instituições de saúde a pedido do Tribunal tal como indicado na Petição Inicial” (H)), mas “dos autos não consta que o Tribunal tivesse pedidos documentos a outras instituições de saúde” (I)), que “Assim, não se compreende como foi possível no relatório fixar a data do início da representação em 2020 e o Tribunal com base no relatório, ainda foi mais longe e fixou em 01-01-2020”, considerando que “não é correto fixar a data não havendo elementos clínicos que permitam saber desde quando se verifica a necessidade” (al. Y)).

Nesta sequência, constata-se que, apesar de impugnar a referida decisão de facto do ponto 4 e especificar os motivos para tal efeito, o Recorrente não indicou claramente a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre o ponto 4 impugnado (cfr. art. 640.º, n.º 2, al. c), do CPC), o que impõe a rejeição da impugnação da decisão de facto.

De todo o modo, com algum esforço interpretativo, pode legitimamente considerar-se que o Recorrente entende não dever ser fixada qualquer data no ponto 4 dos factos provados, por isso, procederemos à análise da impugnação.

Analisando o ponto 4 dos factos provados:

“4. A Requerida padece, desde 2020, de Perturbação Neurocognitiva Major, com défices cognitivos graves”.

A este propósito na motivação de facto da sentença consta o seguinte:

«(…) Quanto à condição e estado de saúde da Requerida, designadamente as patologias que padece e ainda da sua dependência de terceiros, nos relatórios e informações médicas, dos quais emerge a realidade da factualidade dada como provada. (…)».

O Recorrente coloca em causa o conteúdo do relatório pericial apenas relativamente à data do início da incapacidade da beneficiária.

Isto é, o Recorrente não discorda da patologia diagnosticada à beneficiária, apenas coloca em causa a data desde que a mesma ocorre.

Então, para analisar a impugnação da referida decisão de facto, importa debruçarmo-nos sobre o regime aplicável às perícias médico-legais.

Nos processos especiais de acompanhamento de maior, a prova pericial assume particular relevo[1].

Quanto ao regime geral das perícias médico-legais:

- As perícias médico-legais são realizadas pelos serviços médico-legais ou pelos peritos médicos contratados, nos termos previstos no diploma que as regulamenta – cfr. art. 467.º, n.º 3, do CPC.

- Quando se trate de exames a efetuar em institutos ou estabelecimentos oficiais, o juiz requisita ao diretor daqueles a realização da perícia, indicando o seu objeto e o prazo de apresentação do relatório pericial – cfr. art. 478.º, n.º 2, do CPC.

- Definido o objeto da perícia, procedem os peritos à inspeção e averiguações necessárias à elaboração do relatório pericial – cfr. art. 480.º, n.º 1, do CPC.

- Os peritos podem socorrer-se de todos os meios necessários ao bom desempenho da sua função, podendo solicitar a realização de diligências ou a prestação de esclarecimentos, ou que lhes sejam facultados quaisquer elementos constantes do processo – cfr. art. 481.º, n.º 1, do CPC.

- O resultado da perícia é expresso em relatório, no qual o perito ou peritos se pronunciam fundamentadamente sobre o respetivo objeto – cfr. art. 484.º, n.º 1, do CPC.

- Se as partes entenderem que há qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial, ou que as conclusões não se mostram devidamente fundamentadas, podem formular as suas reclamações – cfr. art. 485.º, n.º 2, do CPC.

O regime jurídico da realização das perícias médico-legais e forenses foi aprovado pela Lei n.º 45/2004, de 19 de Agosto e os Estatutos do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P., foram aprovados pela Portaria n.º 19/2013, de 21 de Janeiro.

Para além das normas gerais resultantes do apontado regime geral, é necessário atentar nas seguintes especificidades:

- Quando determinado pelo juiz, o perito ou os peritos elaboram um relatório que precise, sempre que possível, a afeção de que sofre o beneficiário, as suas consequências, a data provável do seu início e os meios de apoio e de tratamento aconselháveis – cfr. art. 899.º, n.º 1, do CPC.

- Permanecendo dúvidas, o juiz pode autorizar o exame numa clínica da especialidade, com internamento nunca superior a um mês e sob responsabilidade do diretor respetivo, ou ordenar quaisquer outras diligências – cfr. art. 899.º, n.º 2, do CPC.

Do exposto resulta que, para além do regime geral aplicável às perícias e às perícias médico-legais, o relatório pericial no âmbito do processo de maior acompanhado deve precisar, para além do mais, sempre que possível, a data provável do início da afeção de que sofre o beneficiário.

Ora, compulsados os autos, com relevância, constata-se, entre outras diligências instrutórias, que se procedeu à audição da beneficiária (17/04/2024), foi elaborado relatório social de acompanhamento da beneficiária pela Comissão Municipal de Protecção do Idoso ... (27/06/2024) e foi realizada “perícia psiquiátrica forense” à beneficiária pelo Gabinete Médico-Legal e Forense do Tâmega, Centro Hospitalar ..., constando do relatório, para além do mais, os seus antecedentes (onde se consignou: “Para melhor caracterizar a afeção e funcionalidade do examinando, bem como para permitir melhor exploração da biografia e hetero-anamnese, foram entrevistados os acompanhantes. Nasceu em ... - Penafiel. Fratria de 12 irmãos. Desenvolvimento psicomotor na infância normativos. Tem a 3ª classe de escolaridade. Viúva desde 2020, tem quatro filhos. Trabalhou como empregada doméstica e agricultora. Reside com 2 filhos. Antecedentes médicos de HTA, cirurgia varizes, Síndrome demencial com dependência para as atividades da vida diária desde 2020”), o seu estado actual, consignando-se ainda que “Não foram solicitados exames complementares de diagnóstico por não se considerar necessário do ponto de vista pericial”, terminando com a seguinte conclusão: «A examinada sofre de Perturbação Neurocognitiva Major segundo a classificação internacional da CID – 10, GDS – 7 (Global Deterioration Scale de Reisberg), com défices cognitivos clinicamente relevantes e que comprometem a sua capacidade de administrar a sua pessoa, património e bens. A afeção que sofre caracteriza-se por graves limitações cognitivas. Este quadro é de evolução prolongada, crónico, irreversível, importando natural seguimento médico e cumprimento das prescrições, incluindo medicação, que aí venha a ser indicada. As limitações de natureza cognitiva produzem uma séria diminuição do seu funcionamento social e da sua autonomia. A data de início da representação geral será fixável, pelo menos, desde 2020 (dois mil e vinte). O quadro clínico e irreversível pelo que, do ponto de vista médico–legal, não entendemos previsível a necessidade de revisão inferior a cinco anos».

Da análise do relatório pericial ressalta desde logo que foram tomados em consideração os antecedentes da beneficiária, porque aí se refere no item antecedentes que a beneficiária padecia, para além do mais, de “Síndrome demencial com dependência para as atividades da vida diária desde 2020”.

Destaca-se ainda que, apesar de não constarem dos autos quaisquer informações clínicas da beneficiária, os gabinetes médico-legais e forenses no exercício das funções periciais ou de supervisão técnico-científica dos serviços, ou os médicos e outros técnicos no exercício das suas funções periciais podem solicitar, preferencialmente por via eletrónica, observado o disposto nos n. 3 e 4 do artigo 156.º do Código de Processo Penal, as informações clínicas referentes aos examinados em processos médico-legais e forenses diretamente aos serviços clínicos hospitalares, aos serviços clínicos de empresas de seguros ou a outras entidades públicas ou privadas, ao abrigo do disposto no art. 10.º, n.º 2, do Regime Jurídico das Perícias Médico-Legais e Forenses (Lei n.º 45/2004, de 19 de Agosto), por isso, apesar de não constar dos autos, é compreensível a menção aos antecedentes clínicos da beneficiária no relatório pericial.

Por sua vez, o relatório pericial está devidamente fundamentado e não foi objecto de qualquer oportuna reclamação ou pedido de esclarecimento das partes nem do Ministério Público[2].

Nesta sequência, verifica-se que o relatório pericial em análise foi realizado nos termos do acima mencionado regime geral das perícias médico-legais e ainda de acordo com as especificidades próprias do processo do maior acompanhado – uma vez que precisou ainda a data provável do início da afeção de que sofre o beneficiário.

Por sua vez, não foram indicados pelo Recorrente na sua impugnação da decisão da matéria de facto em causa quaisquer elementos de prova de onde resulte o contrário do que consta expressamente da perícia, já que não basta ao Recorrente discordar dos factos ali plasmados, era-lhe exigido indicar os meios de prova nesse sentido para contrariar o que consta do ponto de facto 4 dos factos provados, o que notoriamente não fez, limitando-se a afirmar sem qualquer suporte probatório que “em 01-01-2020 a recorrente encontrava-se capaz de gerir a sua vida”.

Deste modo e em suma, deve manter-se a redacção do ponto 4 dos factos provados, apenas com a seguinte rectificação oficiosamente determinada por corresponder com mais precisão ao teor do relatório pericial:

“4. A Requerida padece, pelo menos, desde 2020, de Perturbação Neurocognitiva Major, com défices cognitivos graves”.


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10.2. Reapreciação jurídica da causa:

O Regime Jurídico do maior acompanhado foi criado pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, que veio reformar a disciplina das incapacidades dos maiores, eliminando os institutos da interdição e da inabilitação, introduzindo modificações ao Código Civil (artigos 138.º, e ss.) e estabeleceu critérios de orientação no regime da incapacidade de exercício de adultos.

O procedimento segue o regime previsto nos artigos 891.º, e ss., do CPC.

Com relevância para o caso concreto, destaca-se que a decisão deve obedecer, para além do regime geral previsto no art. 607.º, do CPC, ao seguinte:

- Reunidos os elementos necessários, o juiz designa o acompanhante e define as medidas de acompanhamento, nos termos do artigo 145.º do Código Civil e, quando possível, fixa a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes – cfr. art. 900.º, n.º 1, do CPC.

No caso concreto em apreciação, no dispositivo da sentença determinou-se, para além do mais, o seguinte:

“d) Fixo a data do começo do acompanhamento em 1.1.2020”.

O Recorrente entende que a sentença não poderia considerar que a incapacidade era desde 01/01/2020 porque o relatório pericial refere que a mesma teve início em 2020.

Ora, a propósito do início da incapacidade, a perícia refere expressamente no seu relatório “pelo menos, desde o ano de 2020”, então isto significa para efeitos de data concreta ser necessário considerar forçosa e necessariamente que o início remonta pelo menos ao primeiro dia do ano, ou seja, precisamente o dia 01/01/2020 tal como consta do dispositivo da sentença (cfr. art. 279.º, al. a), do Código Civil), nada havendo a apontar à data assim fixada na sentença em primeira instância.

Por sua vez, o Recorrente entende ainda que a decisão proferida no modo mencionado não é legalmente admissível por ter efeitos retroactivos, esgrimindo e desenvolvendo argumentos nesse sentido, destacando-se que considera não existir norma legal que preveja ou consinta esse efeito retroativo das decisões que decretam as medidas de acompanhamento e ainda que não há elementos probatórios para fixar no tempo aquela patologia.

Contudo, decorre de modo expresso e preciso do disposto no art. 900.º, n.º 1, do CPC, que o juiz, sempre que possível, fixa a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes.

E tal norma está intimamente relacionada com o disposto no art. 899.º, n.º 1, do CPC, nos termos do qual, “o perito ou os peritos elaboram um relatório que precise, sempre que possível, a afeção de que sofre o beneficiário, as suas consequências, a data provável do seu início e os meios de apoio e de tratamento aconselháveis” – Trata-se, assim, de um juízo pericial: a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem (cfr. art. 388.º, do Código Civil).

Portanto, a decisão do juiz em fixar uma data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes tem correspondência directa com a data provável do início da patologia, precisamente 01/01/2020, como já vimos constar do relatório da perícia médico-legal.

Acresce ainda que, embora o Recorrente não tenha identificado qualquer acto praticado pela beneficiária durante o período compreendido entre 01/01/2020 até à data da sentença, esta não tem os “efeitos retroactivos” que o Recorrente aponta, bastando para isso atentar no disposto no art. 154.º, do Código Civil:

“1 - Os atos praticados pelo maior acompanhado que não observem as medidas de acompanhamento decretadas ou a decretar são anuláveis:

a) Quando posteriores ao registo do acompanhamento;

b) Quando praticados depois de anunciado o início do processo, mas apenas após a decisão final e caso se mostrem prejudiciais ao acompanhado.

2 - O prazo dentro do qual a ação de anulação deve ser proposta só começa a contar-se a partir do registo da sentença.

3 - Aos atos anteriores ao anúncio do início do processo aplica-se o regime da incapacidade acidental.”

Nesta sequência, na presente ação de maior acompanhado nada foi decidido, nem cumpria fazê-lo, a respeito da validade de quaisquer hipotéticos atos da beneficiária/acompanhada, aliás não invocados, sendo certo que, em abstracto, quanto aos atos anteriores ao anúncio do início do processo se aplica o regime da incapacidade acidental previsto no art.º 257.º do Código Civil.

Neste sentido pode ser consultado o Ac. TRL 12/01/2023[3].

Então, tendo em atenção o elenco dos factos provados, não existe qualquer motivo para alterar o decidido quanto à fixação da data a partir da qual são de considerar convenientes as medidas decretadas.

Contudo, a redação adoptada no dispositivo da sentença a este propósito não é a mais adequada à norma legal que a prevê:

“d) Fixo a data do começo do acompanhamento em 1.1.2020.

Devendo ser substituída por outra redacção, do seguinte modo:

“d) As medidas decretadas tornaram-se convenientes desde 01/01/2020”.


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10.3. Em suma, importa julgar parcialmente procedente o recurso de apelação e alterar a sentença recorrida nos termos referidos.

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11. Responsabilidade tributária:

Sem custas.


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III. DISPOSITIVO

Nos termos e fundamentos expostos,
1. Acordam os Juízes da 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelo Recorrente e, em consequência, alterar a al. d) do dispositivo da sentença do seguinte modo: “d) As medidas decretadas tornaram-se convenientes desde 01/01/2020”, mantendo-se o demais decidido.
2. Sem custas.


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Porto, 27/10/2025 data e assinaturas certificadas
Filipe César Osório
Fátima Andrade
Teresa Pinto da Silva
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[1] Ac. TRG 02/05/2024, Anizabel Sousa Pereira, proc. n.º 1846/23.7T8BCL.G1, www.dgsi.pt.
[2] Destacando-se que o ora Recorrente não era parte na causa, tendo apenas legitimidade para recorrer da sentença, na qualidade de assistente ou de representante da acompanhante, ao abrigo do disposto no art. 901.º, do CPC – AC. TRL 07/12/2022, Pedro Martins, proc. n.º 2704/20.2T8CSC.L1-2, www.dgsi.pt; Ac. STJ 15/04/2025, Luís Espírito Santo, proc. n.º 6013/23.7T8MAI.P1.S1, www.dgsi.pt.
[3] Proc. n.º 10384/20.9T8SNT.L1-2, Laurinda Gemas, www.dgsi.pt