I - Sendo objeto do litígio o apuramento da responsabilidade de um condutor para a produção de acidente de viação, a afirmação de qual a “velocidade máxima legalmente permitida no local” é matéria de direito relevante para a decisão da causa e não pode constar dos factos provados.
II - Estando alegado que o local do acidente é uma localidade - expressão também usada pelo legislador para fixação de limites máximos de velocidade e que tem definição legal no artigo 1º, alínea j) do Código da Estrada -, mas também que ali existem passadeiras e resultando da prova feita em audiência de julgamento que tais passadeiras existem no local, bem como edificações de ambos os lados da via, pode e deve o Tribunal, à luz do artigo 5º., número 1 b) do Código de Processo Civil, concretizar tal afirmação com recurso à descrição detalhada do local, sem uso da expressão “localidade” que, apesar de ter uso comum, é, neste contexto, um facto jurídico.
III - Não obstante ser de admitir a possibilidade de concurso entre a responsabilidade por culpa do lesado e pelo risco de circulação de veículo automóvel, não pode imputar-se sempre a este um contributo para o resultado danoso de acidente de viação, devendo tal possibilidade de concorrência causal ser ponderada em concreto, nomeadamente nos casos de culpa leve ou levíssima do lesado ou mesmo quando a ele não possa ser dirigido um juízo de censura por ter agido involuntariamente.
IV - Já assim não será se a produção do acidente resultar exclusivamente da conduta ilícita e culposa do lesado, sobretudo quando nenhum facto permitir que se faça um juízo atenuante da referida culpa com base nas caraterísticas da vítima ou noutros fatores alheios à sua vontade e fora do seu controlo.
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Processo número 3641/21.9T8VFR.P1, Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira, Juiz 1
Recorrente: AA
Recorrida: A..., Companhia Portuguesa de Seguros, SA
Relatora: Ana Olívia Loureiro
Primeiro adjunto: Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
Segundo adjunto: Manuel Fernandes
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I – Relatório:
1. Em 01-12-2021 AA propôs ação declarativa de condenação a seguir a forma de processo comum contra A..., Companhia Portuguesa de Seguros, SA, com vista à sua condenação no pagamento de indemnização que liquidou apenas em parte, no valor de 68.291,40 €, e ainda no que se viesse a liquidar posteriormente, com vista a ressarci-la de todos os danos que decorreram ou ainda viessem a decorrer de acidente de viação cuja ocorrência imputou ao condutor de veículo que embateu naquele que conduzia. Alegou que tal condutor imprimia ao seu veículo velocidade superior à permitida no local, e possivelmente superior a 80 km/hora tendo sido essa a causa do embate. Descreveu os danos que para si decorreram desse acidente.
2. A ré contestou, alegando que o acidente ocorreu por causa de comportamento ilícito e culposo da autora, que conduzia o seu automóvel a velocidade superior a 60 km por hora e que entrou na rua por onde seguia o condutor do veículo seguro sem parar ou abrandar apesar de ter, ao aproximar-se do cruzamento daquela com a rua de onde provinha, um sinal vertical de stop. Apenas desta conduta teria, assim, resultado o seu embate no veículo cujo proprietário celebrara com a ré contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, pois este seguia com as luzes de cruzamento (médios) acesas numa reta com cerca de 400 metros de extensão e apresentava-se pela direita da autora, seguindo a velocidade moderada. Impugnou, ainda, os danos alegados pela autora, por desconhecimento.
3. Citado para o efeito, o Instituto de Segurança Social, Instituto Público deduziu contra a ré pedido de condenação no pagamento de 1.746,09 € alegadamente pagos à autora a título de subsídio de doença, ao que a ré se opôs.
4. Após prolação de despacho saneador com identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, foi produzida a prova pericial requerida pela ré e foi designada data para audiência de julgamento.
5. Em 20-02-2024 a autora juntou articulado superveniente em que liquidou a indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais relegada para final, ampliando o pedido de condenação para os montantes de 687.153,21 € para indemnização dos danos patrimoniais e de 70.000€ para ressarcimento dos não patrimoniais. Relegou ainda para momento ulterior a liquidação da indemnização pelos danos que venha ainda a sofrer em consequência de cirurgia ao ombro que terá de realizar por causa das sequelas de que é portadora.
6. Admitida liminarmente tal ampliação do pedido a ré opôs-se à mesma bem como ao requerimento de produção de novos meios prova formulado pela autora no articulado superveniente, entre eles o visionamento de alegada reportagem sobre o acidente da B..., por entender que deveria ter sido requerido pela autora na petição inicial e por não ter conhecimento do teor das imagens ou vídeos que a autora requereu que fossem visionados, cabendo à requerente juntá-los para que a ré sobre eles se pudesse pronunciar.
7. Em 15-05-2024 a autora juntou aos autos listagem de vários endereços eletrónicos de reportagens, imagens e vídeos sobre o referido acidente.
8. Em 31-05-2024 a ré reiterou que tais meios de prova não deviam ser admitidos por terem sido requeridos intempestivamente e impugnou o seu teor por nenhum dos jornalistas que elaborou as reportagens ter assistido ao acidente, sendo todas as imagens posteriores à sua ocorrência. Mais sustentou que, de todo o modo, do conjunto dos meios de prova tardiamente indicados pela autora resulta a confirmação da responsabilidade da mesma pela ocorrência do acidente.
9. Por despacho de 24-06-2024 foi admitida a junção aos autos dos indicados meios de prova tendo a autora sido condenada em multa pela sua intempestividade.
10. A audiência de julgamento realizou-se em duas sessões que tiveram lugar em 10-12-2024 e10-02-2025.
11. Em 17-03-2025 foi proferida sentença que julgou a ação improcedente a absolveu a ré dos pedidos formulados quer pela autora quer pelo Instituto de Segurança Social, Instituto Público.
II - O recurso:
É desta sentença que recorre a autora pretendendo a alteração parcial do julgamento da matéria de facto e a sua revogação com a consequente declaração de procedência da ação.
Para tanto, alega o que sumaria da seguinte forma em sede de conclusões de recurso:
(…)
III – Questões a resolver:
Em face das conclusões do Recorrente nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, são as seguintes as questões a resolver:
1 – Quanto à dinâmica do acidente e responsabilidade pela sua produção:
a) impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
- exclusão da alínea 6 dos factos provados;
- aditamento de uma nova alínea, com o seguinte teor: “Na Rua ..., na interseção com a Rua ... e com a Rua ..., atento o sentido de marcha do veículo “UV”, está assinalada uma travessia de peões (vulgo passadeira), seja no piso (sinalética horizontal), seja com um sinal de aproximação de travessia de peões colocado no passeio (sinalética vertical).”
- alteração da alínea 77 dos factos provados para que passe a ter a seguinte redação: “A Rua ..., atento o sentido de marcha prosseguido pelo condutor do UV, cruza-se com a Rua ...”.
- alteração das alíneas 80 a 83, 86 e 87 dos factos provados para que passem a ter o seguinte teor:
80- No momento da intercepção do cruzamento entre a Rua ... e a Rua ... A A. parou, um pouco à frente do sinal STOP, após a passadeira ali existente, por forma a ter alguma visibilidade à sua direita, uma vez que ali existe um muro alto que impede o visionamento à direita da Rua ...;
81- Após imobilizar o veículo a A. olhou primeiro para a esquerda e depois para a direita e não viu qualquer veículo a aproximar-se, ou a circular na Rua ..., num sentido e noutro;
82- Nestas circunstâncias a A. avançou com a marcha do seu veículo, fazendo entrar a 1ª e 2ª velocidade, fazendo a perpendicular à Rua ..., e quando passou a hemi-faixa de rodagem da Rua ..., no sentido ascendente, iniciou a manobra de mudança de direcção à sua esquerda e já quando estava com a frente do seu veículo GP virada no sentido descendente e a “desfazer” a manobra de direcção é que sentiu a luz do veículo “UV” a aproximar-se repentinamente, estando já quase encostado ao seu veículo sentido que ia sofrer o embate.
83- A Autora junto do sinal STOP não tem visibilidade para a direita, tem que parar 4 metros à frente, a largura da passadeira aí existente, para ver para a direita, ainda que com ângulo fechado, por causa de um muro ali existente. Ao aproximar-se do eixo da via a A. terá uma visibilidade para a direita de 300/400 metros. Por sua vez o condutor do veículo “UV”, tem uma visão completa, ou seja superior àqueles 300/400 metros”.
86 - O Local do embate situou-se em plena hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito do “UV”.
87 - A Seguradora para a qual a Autora havia transferido a responsabilidade civil infortunística do GP (C...) assumiu a total responsabilidade pela eclosão do sinistro, sem levar em consideração a versão como sucedeu o acidente por parte da condutora, aqui A., como de algum dos demais ocupantes do veículo “GP”; e
- eliminação das alíneas a) e b) dos factos não provados;
b) procedendo total ou parcialmente a impugnação da matéria de facto, apuramento da responsabilidade do condutor do veículo seguro na ré pela produção do acidente; assim não se concluindo;
c) aferir se a dinâmica do acidente que ficou provada permite que se conclua pela concorrência da responsabilidade por culpa da autora com a responsabilidade objetiva decorrente do risco de circulação do veículo seguro;
caso se conclua pela procedência de qualquer uma destas soluções,
2 – Fixar a indemnização devida à autora, para o que importa então aferir quanto aos danos por ela sofridos, se deve ser:
- alterada a redação da alínea 88 dos factos provados por forma a que dela passe a constar:
Conforme Doc. datado de 20 de Julho de 2023 – Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Cível, realizado pelo INML, para o qual se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido e integrado, a A. apresenta:
- Conforme avaliação baseada na Tabela Nacional de Incapacidades, considerando o valor global da perda funcional decorrente das sequelas e o facto destas, não afectando o examinado em termos de autonomia e independência, são causa de sofrimento, com um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica fixável em 33 pontos.
- Em termos de Repercussão Permanente na Actividade Profissional, as sequelas são impeditivas do exercício da actividade profissional habitual, sendo compatíveis com outras profissões da área da sua preparação;
- Data da Consolidação médico-legal das lesões é fixável em 27/02/2021;
- Período de Défice Funcional Temporário Total fixável num período de 52 dias;
- Período de Défice Funcional Temporário Parcial num período de 765 dias;
- Período de Repercussão Temporária na Actividade Profissional Total fixável num período de 817 dias;
- Quantum Doloris fixável no grau de 4/7
- Repercussão Permanente nas Actividades desportivas e de lazer fixável no grau 4/7
- Dano Estético Permanente fixável no grau 4/7
- Ajudas técnicas permanentes, tratamentos médicos regulares, adaptação do domicilio, do local de trabalho ou do veículo, que vêm melhor explicitadas na pag. 4 e 5 do relatório pericial do CRPG de 25/01/2023
- aditada uma alínea aos factos provados, com a seguinte redação:
A A., desde o acidente, em face das suas limitações físicas e psicológicas tem recebido auxílio do seu filho, da sua nora e da amiga BB e CC, para a realização de tarefas do dia-a-dia, nomeadamente cozinhar, limpezas, realização de compras e transporte dos sacos de compras para casa.
1 – A primeira questão a resolver é a da pretendida alteração da decisão da matéria de facto relativa à dinâmica do acidente objeto dos autos.
Começa a recorrente por pedir a exclusão da alínea 6 dos factos provados, por entender que a mesma contém um juízo conclusivo e por abranger relevantes questão de direito.
A análise dessa pretensão impõe um prévio enquadramento do que deve ser o teor dos factos dados por provados e/ou não provados em sede de sentença, que também se revelará útil para o posterior conhecimento das demais pretensões recursórias relativas à matéria de facto.
A matéria de facto que deve constar da sentença é aquela que, tendo sido alegada pelas partes, nos termos do previsto nos artigos 5º, número 1 e 552º, número 1 d) do Código de Processo Civil, seja relevante para a solução jurídica das pretensões das partes que tenha de conhecer.
Quer o artigo 5.º, número 1, quer a alínea d) do número 1 do artigo 552.º referem a obrigação das partes de alegarem os factos essenciais que constituem a causa de pedir ou o suporte para as exceções que invocam.
O número 2 do referido artigo 5.º, todavia, obriga a que se considerem ainda outros factos, não articulados pelas partes sendo eles:
“a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.”
Afirma Teixeira de Sousa[1] que “os factos essenciais são aqueles que permitem individualizar a situação jurídica alegada na ação ou na exceção; - os factos complementares são aqueles que são indispensáveis à procedência dessa ação ou exceção, mas não integram o núcleo essencial da situação jurídica alegada pela parte”. Quanto aos primeiros afirma o referido Autor que “(…) são necessários à identificação da situação jurídica invocada pela parte e, por isso, relevam, desde logo, na viabilidade da ação ou da exceção: se os factos alegados pela parte não forem suficientes para perceber qual a situação que ela faz valer em juízo (…), existe um vício que afeta a viabilidade da ação ou da exceção. É por isso que, quando respeitante ao autor, a falta de alegação dos factos essenciais se traduz na ineptidão da petição inicial por inexistência de causa de pedir (…) e que a ausência de um facto complementar não implica qualquer inviabilidade ou ineptidão, mas importa a improcedência da ação”. Já “Os factos complementares (ou concretizadores) são os factos que, não integrando a causa de pedir (porque não são necessários para individualizar o direito ou o interesse alegado pela parte), pertencem ao Tatbestand da regra que atribui esse direito ou interesse ou são circunstanciais em relação ao facto constitutivo desse direito ou interesse.” Finalmente, quanto aos factos instrumentais o mesmo Autor entende que se destinam“(…) a ser utilizados numa função probatória dos factos essenciais ou complementares(…)”e “(…) são utilizados para realizar a prova indiciária dos factos principais, isto é, esses factos são aqueles de cuja prova se pode inferir a demonstração dos correspondentes factos principais.”
A produção de prova em processo civil tem por objeto os temas da prova enunciados - cfr. artigo 410º do Código Civil.
O legislador não explicita em nenhum preceito o que sejam os temas da prova a selecionar nos termos do artigo 596.º, número 1 do Código de Processo Civil.
O que resulta claro do uso desse conceito, em contraponto com a anterior obrigação de seleção de factos assentes e a instruir, é que já não se exige em sede de saneamento a quesitação de cada facto controvertido, satisfazendo-se o legislador com a enunciação das questões de facto essenciais à decisão sobre que deve ser produzida prova [2].
É, pois, de admitir que a seleção dos temas da prova tenha um caráter genérico e até que possa agrupar vários factos essenciais à decisão numa formulação ampla, por temas/assuntos relevantes, desde que tal seleção respeite os limites que decorrem da causa de pedir e das exceções invocadas, tendo em conta as soluções plausíveis de direito.
No momento da sentença, todavia, o legislador obriga a que se discriminem os factos que se julgam provados e não provados, como resulta do disposto nos números 3 e 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil [3].
E, na motivação da sua convicção, deve o julgador indicar “as ilações tiradas dos factos instrumentais”, como resulta do número 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil.
Assim, a seleção dos factos provados e não provados a constar da sentença deve conter os que sejam essenciais às pretensões das partes, sendo os factos instrumentais (que tenham sido alegados, resultem da instrução ou tenham sido oficiosamente averiguados) úteis para a prova dos primeiros e não em si mesmos (salvo se deles resultar a aplicabilidade de presunção legal).
O que são os factos essenciais a cada pedido/exceção é questão que sempre tem de ser resolvida no confronto das pretensões das partes e o direito substantivo que pode suportar as mesmas.
Em resumo: os factos essenciais devem ser alegados pelas partes, apenas sendo lícito ao juiz considerar outros, não alegados, se forem complementares instrumentais, notórios ou que sejam do seu conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
Estes últimos não têm de ser selecionados no elenco dos factos provados e não provados constantes da sentença (salvo se deles resultar a aplicabilidade de uma presunção legal), apenas cabendo referi-los na motivação da mesma, como previsto no número 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil.
Nas palavras de Abrantes Geraldes[4], um dos vícios da decisão da matéria de facto “pode traduzir-se na integração na sentença, na parte em que se enuncia a matéria de facto provada (e não provada) de pura matéria de direito e que nem sequer em termos aproximados se possa qualificar como decisão de facto”. Em face da forma como devem ser delimitados os temas da prova, admite este Autor que mesmo em sede de sentença possam hoje ser admitidas com “mais naturalidade” asserções que possam não ser “puras questões de facto” desde que também não correspondam, “no contexto da concreta ação” a “puras questões de direito”.
A questão há de ser assim resolvida em função do que seja o objeto de cada concreta ação.
Lançando mão da dicotomia entre os conceitos de “facto material” e “facto jurídico” Alberto dos Reis[5], dando inúmeros exemplos de factos jurídicos que não deviam integrar o questionário, punha, também ele, sempre a tónica no objeto do processo como critério aferidor entre factos e direito. Entendemos transponível para o elenco de factos que deve constar da sentença o que tal autor afirmava então a propósito da seleção dos mesmos em sede de questionário: “Força é confessar que a organização dum questionário perfeito é tarefa que desafia a inteligência mais experimentada”. Admitida essa dificuldade não pode, contudo, a mesma ser ultrapassada senão pela cuidadosa destrinça, em cada litígio, do que constitui facto material e do que constitui conclusão ou asserção que contenha já raciocínio ou significado jurídico.
Feito este enquadramento, voltemos de novo a nossa atenção para a primeira alínea da matéria de facto provada que a recorrente censura, pedindo a sua exclusão por ser conclusiva e conter conceito de direito.
O teor dessa alínea é o seguinte: “O limite máximo de velocidade permitida para o local, uma vez dentro de uma localidade, é de 50 Km/hora, sendo a Rua ... é constituída por uma recta”.
Tendo em conta que é objeto do litígio o apuramento da responsabilidade do condutor do veículo seguro pela ré na produção do acidente de que resultaram danos para a autora é de concluir que a afirmação da velocidade máxima legalmente permitida para o local é matéria de direito. Pelo que não pode a alínea em apreço conter a afirmação de que a o limite máximo de velocidade permitida era de 50 km por hora.
Já o mais que ali consta, nomeadamente a afirmação que o acidente ocorreu numa localidade, embora coincida também com expressão usada pelo legislador em vários preceitos do Código da Estrada, nomeadamente no seu artigo 27º onde estão previstos os limites máximos de velocidade, é também uma expressão de uso corrente, tendo um sentido equivalente ao que resulta da primeira parte da noção legal constante da alínea j) do artigo 1º do Código da Estrada: “zona com edificações”. Ora, nenhuma das partes discute e resulta à saciedade da prova produzida, nomeadamente das imagens e vídeos juntos pela própria autora aos autos, que as duas vias onde seguiam os veículos acidentados são ladeadas de habitações.
A própria autora, aliás, descreve o local de ocorrência do sinistro na petição inicial qualificando-o como sendo uma localidade (no artigo 8 da petição inicial, tal como o faz a ré no artigo 29º da contestação) e alega ainda que nele existia uma passadeira para peões e iluminação pública e um sinal vertical de paragem obrigatória (stop).
Muito embora não tenha sido alegado que ali existisse qualquer sinal identificador de “zona de coexistência” (tal como prevista no artigo 1º bb) do Código da Estrada), do que decorre que a mesma não pode como tal ser legalmente qualificada, não é indiferente para a decisão a proferir que se apure se no local podiam ou não circular peões o que pode ser demonstrado, como pretende a autora, pela prova da existência de locais destinados e devidamente assinalados para a sua travessia (passadeiras).
A forma conclusiva como ambas as partes descreveram o local do acidente com recurso a expressão usada pelo legislador (localidade) pode e deve ser concretizada pelo Tribunal nos termos do disposto no acima referido artigo 5º, número 2 b) do Código de Processo Civil por recurso à menção das caraterísticas do local que tenham relevância para a decisão a proferir sobre as quais incidiu produção de prova e as partes tiveram ensejo de se pronunciar.
A autora alegou no artigo 17 da petição inicial que “naquele cruzamento em concreto existe uma passadeira destinada à passagem dos peões”.
Ora de todos os vídeos e imagens juntos pela própria autora resulta que no local do acidente existiam edificações de um e outro lado da rua e duas passadeiras para peões, uma em cada uma das vias em que seguiam os veículos sinistrados.
Quanto à concreta existência de uma passadeira no local, tal como alegado pela autora, o Tribunal a quo não se pronunciou, não tendo julgado tal facto como provado ou não provado.
A autora fundou a responsabilidade do condutor do veículo seguro na alegação de que o mesmo seguia em excesso de velocidade. Sendo a mais clara perceção do local do acidente relevante para que se possa ajuizar de quais os limites de velocidade ali em vigor e qual a velocidade adequada em função das suas concretas características, deve assim concretizar-se, dentro do que ficou alegado, a descrição do local.
Do que alegaram autora e réu em consonância, da motivação da matéria de facto já constante da sentença, bem como das imagens do local que estão juntas aos autos e foram exibidas em audiência de julgamento, decorre que antes quer após o sinal vertical de stop que se apresentava na via de onde provinha a autora, quer na rua onde entrou e onde se deu o embate, existiam passadeiras para peões, bem como edificações de ambos os lados. Assim, e porque de outras alíneas dos factos provados já resulta a afirmação de que a Rua ... é uma reta (veja-se a alínea 74 dos factos provados) e de que estava iluminada artificialmente (alínea 5 dos factos provados), deve a alínea 6 passar a ter o seguinte teor (eliminando-se dela a referência ao limite máximo de velocidade permitido por lei e as assinaladas repetições):
O local onde se deu o embate é ladeado por edificações e em ambas as vias que entroncam (Rua ... e Rua ...) existem passadeiras para travessia de peões junto ao local em que se cruzam.
Já quanto à pretensão de que passe a constar como provado que a passadeira existente na Rua ... está assinalada com sinalética horizontal e vertical não há fundamento para o pretendido aditamento.
Da petição inicial não consta, como afirma a apelante, a alegação da presença de qualquer sinal vertical indicador de passagem para peões na via onde seguia o veículo seguro na ré. E, ao contrário do que alega a apelante, a existência desse sinal não foi confirmada pelas testemunhas DD e EE, tendo ambos apenas confirmado a existência da passadeira que antecedia o cruzamento. Dessa alegação de facto a autora quer agora fazer decorrer mais um argumento para suportar a alegação, conclusiva, de que tal veículo seguia em “excesso de velocidade”. Todavia, a mesma não decorre dos meios de prova por ela indicados. Pelo que nessa parte improcede a sua pretensão.
A atual redação dessa alínea é a seguinte: “A Rua ..., atento o sentido de marcha prosseguido pelo condutor do UV, cruza-se com a Rua ...”.
A referência ao cruzamento entre as duas ruas de que provinha cada um dos condutores ocorre nas alíneas 3, 15, 67, 68, 77, 79, 80 e 85 dos factos provados.
A apelante afirma agora que a Rua ..., de onde provinha, não cruza, antes entronca, com a Rua ..., e que a via que segue no alinhamento da Rua ... a partir do limite oposto da Rua ... é outra rua, chamada Rua ..., tendo a mesma, junto à Rua ... sinal vertical que proíbe que nela se circule provindo da Rua ....
A expressão cruzamento está definida na alínea g) do artigo 1.º do Código da Estrada como zona de intersecção de vias públicas ao mesmo nível, enquanto o entroncamento está definido, na alínea g), como zona de junção ou bifurcação de vias públicas. Tendo em conta a exata configuração do local que resulta das imagens juntas aos autos pelas partes e também do croquis feito no auto de participação, é manifesto que quer a Rua ..., quer a do Passal estão ao mesmo nível que a Rua ... e que as duas primeiras traçam uma reta que atravessa, no mesmo ponto, a última. Pelo que é de manter o uso da expressão cruzamento. A afirmação constante da alínea 77 dos factos provados, contudo, dá a entender que pela direita do condutor do veículo seguro, atendendo ao sentido em que seguia, se situa a Rua .... Ora, como resulta da alínea 68 dos factos provados, já fora dado por assente que a Rua ..., atendo o sentido Este/Oeste cruza com a Rua .... O que deixa, de facto, a dúvida sobre por que lado cada uma das Ruas ... e do Porto cruzam com a Rua .... Assim sendo, e para evitar qualquer obscuridade ou contradição serão eliminadas as alíneas 68 e 77 e a alínea 67 dos factos provados (“O local do sinistro caracteriza-se por ser um cruzamento entre a Rua ... e a Rua ...”) passará a ter o seguinte teor:
67. No local do sinistro cruzam-se as Ruas ..., a Rua ... e a Rua ..., convergindo a Rua ... com a Rua ... pelo lado sul (lado esquerdo atendo o sentido de marcha seguido pelo UV) e a Rua ... pelo lado norte com a mesma via (lado direito atento o mesmo sentido de marcha).
Em consequência, serão renumeradas as demais alíneas dos factos provados a partir da alínea 67.
80- No momento da intercepção do cruzamento entre a Rua ... e a Rua ... A A. parou, um pouco à frente do sinal STOP, após a passadeira ali existente, por forma a ter alguma visibilidade à sua direita, uma vez que ali existe um muro alto que impede o visionamento à direita da Rua ...;
81- Após imobilizar o veículo a A. olhou primeiro para a esquerda e depois para a direita e não viu qualquer veículo a aproximar-se, ou a circular na Rua ..., num sentido e noutro;
82- Nestas circunstâncias a A. avançou com a marcha do seu veículo, fazendo entrar a 1ª e 2ª velocidade, fazendo a perpendicular à Rua ..., e quando passou a hemi-faixa de rodagem da Rua ..., no sentido ascendente, iniciou a manobra de mudança de direcção à sua esquerda e já quando estava com a frente do seu veículo GP virada no sentido descendente e a “desfazer” a manobra de direcção é que sentiu a luz do veículo “UV” a aproximar-se repentinamente, estando já quase encostado ao seu veículo sentido que ia sofrer o embate.
83- A Autora junto do sinal STOP não tem visibilidade para a direita, tem que parar 4 metros à frente, a largura da passadeira aí existente, para ver para a direita, ainda que com ângulo fechado, por causa de um muro ali existente. Ao aproximar-se do eixo da via a A. terá uma visibilidade para a direita de 300/400 metros. Por sua vez o condutor do veículo “UV”, tem uma visão completa, ou seja superior àqueles 300/400 metros”.
86 - O Local do embate situou-se em plena hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito do “UV”.
87 - A Seguradora para a qual a Autora havia transferido a responsabilidade civil infortunística do GP (C...) assumiu a total responsabilidade pela eclosão do sinistro, sem levar em consideração a versão como sucedeu o acidente por parte da condutora, aqui A., como de algum dos demais ocupantes do veículo “GP”.
A pretensão de alteração destas alíneas, relativas à dinâmica do acidente e à responsabilidade pela produção do mesmo deve ser analisada em conjunto com a de eliminação das alíneas a) e b) dos factos não provados, relativas à mesma matéria e que têm o seguinte teor:
“a) No momento de interceção do cruzamento entre a Rua ... e a Rua ..., A. cumpriu escrupulosamente com todas as diligências, nomeadamente com a obrigação de paragem e cedência de passagem, exigível pela presença imperativa do sinal de STOP, para quem circula pela Rua ..., naquele local.
b) - Não obstante, e depois de certificar que não passava ou se aproximava qualquer veículo a circular na dita Rua ..., num e noutro sentido, realizou com a diligência habitual a manobra de virar à sua esquerda, ingressando na Rua ... no sentido descendente (.../...), que ali faz uma lomba”.
A apelante indicou claramente quais os pontos da matéria de facto que são objeto de impugnação, as alterações pretendidas e os meios de prova de que entende que decorre fundamento para o deferimento da sua pretensão, bem como indicou as passagens dos depoimentos gravados que quer que sejam reapreciados. Explicou por que razões tais meios de prova impunham decisão diversa, num raciocínio conjunto que é de admitir porque relativo à mesma temática. Pelo que cumpriu os ónus que lhe eram impostos pelo artigo 640º, número 1 e 2 a) do Código de Processo Civil.
Recordemos o atual teor das alíneas 80 a 83, 86 e 87:
“80 - A Autora, ao aproximar-se do cruzamento entre as duas artérias não imobilizou o GP no sinal de STOP.
81 - Atravessou a Rua ... sem se certificar que com tal manobra não causava embaraço ao restante tráfego que ali circulava, como era o caso do veículo segurado na Ré.
82 - A Autora, que imprimia ao GP uma velocidade não apurada, atravessou a Rua ... sem, previamente, imobilizar o mesmo no sinal de STOP e sem prestar atenção ao trânsito que ali se processava.
83 - A Autora dispunha de visibilidade superior a 400 metros em ambos os sentidos de marcha permitidos na Rua ....
86 - O local do embate situou-se em plena hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito do UV, a cerca de 2 m da linha delimitadora das hemi-faixas de rodagem da Rua ..., atento o sentido de marcha prosseguido pelo UV.
87 - A Seguradora para a qual a Autora havia transferido a responsabilidade civil infortunística do GP (C...) assumiu a total responsabilidade pela eclosão do sinistro tendo procedido ao reembolso das despesas em que a Ré incorreu com o sinistro dos autos e que se computam em €17.790,70.”
A autora começa por alegar que não havia razão para que o Tribunal a quo conferisse mais credibilidade ao depoimento do condutor do veículo seguro, a testemunha DD, do que ao seu, desde logo porque entende que este foi corroborado pelo da testemunha BB. Afirma, ainda, que tal diferente valoração de ambos os depoimentos (o seu e o do condutor do outro veículo sinistrado) apenas se revelou no que tange à sua não imobilização na interceção das duas vias e à velocidade a que seguia o condutor do veículo seguro, pois quanto a todos os demais factos, o Tribunal a quo deu credibilidade ao depoimento a autora, tendo descredibilizado o da testemunha DD e/ou a versão da ré descrita na contestação (nomeadamente quanto às partes embatidas dos veículos e quanto à suposta intenção da autora de seguir em frente para a Rua ..., em sentido proibido, e não a de virar à esquerda na Rua ...).
Confunde desde logo a autora a versão do acidente apresentada pela ré na contestação com o depoimento da testemunha DD, que não é parte no processo nem tem interesse na causa. Ouvimos o seu depoimento e este não coincidiu, de facto, com o descrito pela ré na contestação quanto a todos os pontos, embora os tenha confirmado no que é essencial à descrição do acidente. Tal por si só não o descredibiliza, antes demonstra isenção e afastamento em relação à posição da ré.
Também não é verdade que o Tribunal a quo tenha dado credibilidade ao depoimento a autora quanto aos demais pontos que ficaram provados e resultaram do alegado na petição inicial, pois quanto ao local do acidente, caraterísticas da via, posição dos veículos acidentados, e outros factos não impugnados, a sua prova resultou da apreciação da prova no seu conjunto, nomeadamente de visionamento de imagens e mapas e do depoimento do agente autuante EE e não apenas do depoimento da autora.
Também não é fundada a alegação da autora de que se o Tribunal a quo deu credibilidade à versão da testemunha DD quando este afirmou que aquela seguia a 70/80 km/hora e se lhe atravessou à frente sem iniciar qualquer curva para mudar de direção à sua esquerda tinha, também, que julgar provado que o mesmo seguia a velocidade desadequada para o local pois é mais verosímil esta versão do que a do condutor do veículo seguro, já que a autora não conseguiria mudar de direção, como pretendia, à velocidade de 60 ou 70 Km/hora. Alega que se seguisse de facto a tal velocidade teria entrado em despiste em vez de vir a embater no veículo de matrícula UV.
Ora, não foi julgado provado que a autora pretendesse seguir em frente e nem a que velocidade seguia, não obstante o depoimento da testemunha DD. A versão do acidente que ficou provada resultou de convicção que concatenou vários meios de prova, detalhadamente descritos na sentença. Nela foram explicadas as razões pelas quais não se pôde dar credibilidade ao depoimento da autora e da testemunha BB, não inteiramente coincidentes entre si em pontos relevantes.
Feitas estas considerações sobre a crítica dirigida à forma como o Tribunal a quo alegadamente formou a sua convicção e concluindo-se que da motivação da matéria de facto não resultam os raciocínios que a apelante imputa à Mmª juíza do Tribunal a quo, cumpre ainda realçar que a impugnação da matéria de facto à luz do artigo 640.º do Código de Processo Civil visa espoletar uma reapreciação da mesma com base nos meios de prova indicados pelo recorrente e não uma mera reapreciação dos fundamentos da decisão de facto com vista a aferir a sua razoabilidade ou bom fundamento. Na reapreciação dos meios de prova a Relação deve proceder a um novo julgamento da matéria de facto, nos pontos impugnados, com base na sua própria convicção, assim assegurando um duplo grau de jurisdição nesta matéria. Para tal deve reapreciar os meios de prova indicados por recorrentes e recorridos e, ainda, se o entender necessário, outros que tenham sido produzidos pelo Tribunal a quo com vista a ficar esclarecido. Pode mesmo ordenar a renovação de meios de prova ou a produção de novos. Os poderes amplos que são conferidos no artigo 662.º, número 2 do Código de Processo Civil visam atingir um desiderato que está anunciado no preâmbulo do Decreto-Lei 39/95, de 15 de fevereiro, por via do qual se passou a possibilitar um efetivo segundo grau de jurisdição em matéria de facto em processo civil por via da gravação da prova. Do referido preâmbulo decorre que se pretendia “facultar às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reação contra eventuais (…) erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito”.
Assim, pretendendo a autora a alteração das assinaladas alíneas da matéria de facto e tendo indicado os meios de prova a reapreciar, foram ouvidos os depoimentos por si indicados, não apenas nas passagens assinaladas, mas sua totalidade, levando-se em conta os argumentos que deles pretende tirar a apelante.
Ora a autora, sem surpresa, afirmou que parou imediatamente antes de entrar na Rua ..., avançando com a frente do seu automóvel até ao limite exterior da passadeira ali existente, - ou seja, no limite exterior do passeio que ladeia toda a Rua ..., como resulta das imagens que lhe foram exibidas durante o seu depoimento -, afirmou que pretendia virar para a esquerda e que só entrou na via por onde pretendia prosseguir a circulação porque “não vinha carro nenhum”.
Só depois, quando já estaria a virar o seu veículo para a esquerda na hemi-faixa a tanto destinada, viu as luzes do automóvel que lhe bateu, logo de seguida, na lateral traseira direita. Disse que não sabia a que velocidade vinha o KIA, mas que teria que ser “muita” pois não o viu senão no instante antes do embate (em que viu, na verdade, apenas as luzes do mesmo a surgir da direita).
Todo o seu depoimento quando à dinâmica do acidente foi titubeante, não sabendo dizer claramente em que parte sentiu o embate (ora dizendo que foi de lado ora que foi por trás), nem de que lado vinham as luzes que viu antes do embate (também afirmando ora que vinham de lado, ora da traseira).
O seu depoimento não se coaduna nem com a parte do seu veículo que foi embatida (lateral direita) nem com a alegada antecipação da manobra com certificação de que “não vinha ninguém”, olhando para ambos os lados.
Desde logo, a ser verdade que a autora já estava a virar à esquerda para começar a circular nessa hemi-faixa da Rua ..., não seria embatida na sua parte lateral, mas sim atrás ou, pelo menos na lateral traseira direita. Tal não ficou provado, mas antes que o GP foi embatido na lateral direita, após o que foi embater no muro à sua frente, ali se imobilizando. Note-se que o GP não foi arrastado lateralmente, tendo a sua frente embatido no muro existente do lado esquerdo da Rua ..., ou seja à sua frente, atento o sentido de marcha da Rua ..., de onde provinha. O condutor do UV pensou mesmo que a autora pretendia passar a circular na Rua ..., apesar de ser proibida a circulação nesse sentido.
Ora, se o condutor do KIA lhe imprimisse a este uma velocidade excessiva (de pelo menos 80 km/hora, segundo alegado na petição inicial), o automóvel da autora, sendo embatido do lado direito, seria necessariamente projetado lateralmente para a esquerda ou teria rodado e não seguido a sua trajetória em frente. Mesmo se o KIA seguisse a uma velocidade superior a 40km/hora (velocidade média indicada pelo seu condutor), afigura-se implausível que um embate entre a sua frente e a lateral do automóvel da autora deixasse este, após o embate, parado com a sua traseira na Rua ... e a frente embatida num muro existente na frente da rua de onde provinha. O mais plausível, face a um embate a essa velocidade, seria que o veículo da autora fosse arrastado ou que rodopiasse sobre si mesmo. Até porque o condutor do KIA não travou antes do embate, como adiante se verá. Ou seja, embateu-lhe com a mesma velocidade com que antes vinha a circular.
Das imagens do local do acidente que foram visionadas na audiência de julgamento, nomeadamente durante o depoimento da autora, resulta que esta tinha clara e desimpedida visão para a Rua ... à sua direita, no local em que a rua de onde provinha desemboca naquela. O muro que ali se encontrava, à direita da autora, não dificulta de todo essa visão a quem já está na confluência das duas vias, desde logo porque ali existe um passeio que acompanha esse muro e que alinha com a interceção das duas ruas. Esse passeio tem largura bastante a que toda a frente do carro da autora já estivesse para além desse muro no local onde diz ter parado (dentro ainda da linha imaginária que se traça no limite entre o dito passeio e a Rua ...). Recorde-se que a autora atravessou toda a faixa de rodagem da Rua ... e veio a ser embatida pelo seu lado direito na metade da via em que já circulava o UV, que se apresentava pela sua direita. Pelo que ainda que se aceitasse que uma pequena dificuldade de visão a levasse a entrar um pouco mais na hemi-faixa contrária (a situada à sua esquerda), aí vindo a cortar a marcha a quem nela circulasse, já é totalmente descabida a afirmação de que atravessou toda a hemi-faixa contrária àquela em que seguia o KIA sem se aperceber que ele já ali circulava porque o mesmo vinha a uma velocidade tal que apenas ficou visível no instante antes de lhe embater. A este propósito regista-se que tendo sido questionada pela Mmª Juíza para qual dos lados tinha mais visibilidade a autora foi segura e rápida em afirmar que se via melhor “para a direita”. Mais adiante acrescentou que para esse lado “via a estrada toda”, e sabe-se que a reta em causa tem entre 300 e 400 metros (está provado que a referida reta tem 400 metros para a direita do local de onde provinha a autora e a mesma alega que tem 300).
A concreta visibilidade para essa reta aliás, facilmente se comprova pelas imagens do local do site “googlemaps” (nomeadamente na modalidade de “street view”) que foram exibidas na audiência de julgamento, como resulta da ata respetiva.
Ora, a autora, segundo disse, entrou e atravessou toda a faixa de rodagem da Rua ... sem nunca antes ter visto o veículo que se lhe apresentava pela direita. Era noite (23 horas) e o UV vinha a circular com as luzes de cruzamento (médios) acesos, estando a via iluminada artificialmente. O que tornava o veículo que vinha a circular na reta extremamente visível, até porque ficou provado que o tempo estava seco, proporcionando boa visibilidade. Assim, a única explicação plausível para que a autora não tivesse visto, numa reta sem obstáculos e com, pelo menos, 300 metros de comprimento, um veículo que nela circulava com as luzes de cruzamento acesas é a de que não parou no local de interseção de duas vias. Bastar-lhe-ia, aliás entrar devagar no cruzamento, mesmo sem parar, para necessariamente ter que ver as luzes do veículo que ali seguia.
Como a apelante muito bem argumenta e calcula em sede de alegações, a mesma terá necessariamente percorrido os 4, 47 metros de largura da hemi-faixa da Rua ... que se lhe apresentava pela esquerda em muito poucos segundos (afigurando-se até excessivo o cálculo que fez de que tal distância lhe levaria cinco segundos a percorrer). Por isso se sabe que o UV já circulava necessariamente na reta de 300/400 metros que antecede o cruzamento quando a autora entrou na Rua ..., porque para percorrer toda essa distância em 5 segundos, teria de circular a 216 ou a 288 km por hora[6], respetivamente.
Ou seja, dando por certa a afirmação da autora de que teria demorado os ora alegados cinco segundos desde que arrancou até que chegou à hemi-faixa de rodagem em que seguia o UV (para o que teria de seguir a 3, 2Km/hora) e a ser verdade que este ainda não estava a circular na reta em causa a uma distância em que a autora tinha visibilidade plena, tal automóvel teria de seguir a 216 km/hora ou a 288 km/hora para alcançar a autora no local onde lhe embateu, conforme a reta tivesse 300 ou 400 metros de comprimento.
O que não é plausível dados os danos causados nos veículos e o facto de terem ficado imobilizados no local do embate, nenhum sequer tendo sido arrastado para além do cruzamento.
Socorrendo-nos dos mesmos cálculos conclui-se que para percorrer uns meros 200 metros em cinco segundos o condutor do UV teria que circular a 144 km por hora, o que nem a autora alega e não é, de novo, plausível face aos danos nos veículos e ao local em que ficaram imobilizados. E para percorrer apenas 100 metros em cinco segundos, por sua vez, o KIA teria de seguir a 72 Km por hora. O que nos leva a pressupor com razoável grau de certeza que o embate teria que ter sido muito mais violento. Acresce que, se quando estava a 100 metros da autora o UV seguisse a 72 Km por hora conseguiria travar e imobilizar o seu automóvel num espaço muito inferior a metade dessa distância, logo que visse a autora, conforme cálculos por ela mesma feitos nas alegações, o que por certo teria feito se a autora estivesse a atravessar a via a 3 ou 4 Km por hora, pois o mesmo admitiu que tinha muito boa visibilidade para o cruzamento[7]. Só assim não seria se a não tivesse visto por distração, o que não foi alegado como causa do acidente.
Acresce que se autora seguisse a uma velocidade de 3 ou até 4 km/hora, ela mesma facilmente se imobilizaria antes de se embatida pelo UV, ainda que o tivesse visto apenas quando já se encontrava atravessada na hemi-faixa de rodagem contrária àquela em que ele seguia. Nesta poderia ter parado, visto que afirmou que também nesse sentido não vinha a circular qualquer veículo
À implausibilidade da versão da autora opõe-se a coerência da explicação para o embate que foi dada por provada e que resultou não só do depoimento da testemunha DD, mas da conjugação dos demais dados objetivos apurados, como são a configuração da via, a sua visibilidade, as partes que foram embatidas em cada veículo e o local em que ambos ficaram imobilizados.
DD foi, ao contrário da autora, muito seguro na sua descrição da dinâmica do acidente e esta é corroborada pela lógica já acima enunciada.
Ao contrário a autora, que disse que era a segunda vez que ali passava, a testemunha DD reside muito perto do local de embate e estava a regressar a casa vindo de um treino. Ou seja, o mesmo fazia habitualmente aquele percurso. Já a autora não conhecia a andaria “à procura de um multibanco” pelo que é plausível que a sua atenção não estivesse toda dedicada ao trânsito.
Ficou tal testemunha convencida que a autora pretendia seguir em frente o que, tendo em conta que desconhecia o local e estaria a tentar descobrir onde encontrar um terminal para levantar dinheiro, não é implausível.
Disse a testemunha DD que apenas viu o carro da autora atravessar a Rua ... em grande velocidade, quando já estava muito próximo do cruzamento. Admitiu expressamente que a teria visto parada no cruzamento se ela ali tivesse estado parada por também ele ter grande visibilidade para o local.
Disse ter apresentado queixa criminal contra a autora e ter sabido que o inquérito foi arquivado sem que ele alguma vez tenha sido ouvido. Confirmou que ambos os carros permaneceram quase no mesmo local em que estavam quando foram embatidos, tendo o da autora ido parar no muro à sua frente (da autora) e o seu rodopiado e ficado na posição inversa àquela em que seguia.
Este facto, em si mesmo, não é bastante, como alega a apelante, para fazer inferir que o UV seguia a mais de 50 km por hora, pois mesmo que seguisse a velocidade inferior a violência do embate, de frente, num veículo que se lhe atravessou perpendicularmente e estava em movimento explicaria que tivesse rodado, especialmente se tal veículo viesse também ele animado de velocidade e não apenas acabado de arrancar depois de uma paragem, como tudo indica que terá sucedido.
O condutor do UV já foi indemnizado pela seguradora com quem a autora celebrara contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, pelo que não tem qualquer interesse no desfecho da ação.
A testemunha BB, que disse ser amiga muito próxima da autora, seguia no veículo com mesma, atrás, do lado direito e afirmou que estavam num café, que precisou de “ir ao multibanco” e a autora lhe disse que iria com ela.
Segundo a primeira explicação que deu do acidente a autora parou no stop e ia “a vir para baixo” quando a depoente viu as luzes e, logo de seguida o UV, que lhes bateu. Disse que só viu a luz quando o outro veículo já estava “mesmo em cima” tendo gritado e ouvido a autora dizer que iam morrer. Admitiu que, indo no banco de trás, não podia ver a rua à sua direita da mesma forma que a autora, que teria melhor visibilidade. Bem como confirmou que no local a Rua ... configura uma reta, com grande visibilidade, embora mais adiante o tenha infirmado. Sentiu que o UV bateu na lateral direita do automóvel onde seguia e andou um pouco para a frente, atento o sentido em que seguia, em direção ao muro onde embateu. Ou seja, o embate lateral não terá alterado a sua trajetória. O automóvel da autora não rodou e a posição do mesmo confirma-o, pelo que é implausível que tenha sido embatido atrás ou no canto lateral direito traseiro.
Mais adiante no seu depoimento afirmou que não sabia exatamente onde está o Stop na Rua ..., se antes ou depois do muro, mas que a autora parou no sítio necessário para ter visibilidade. Só muito dificilmente e depois de ter sido muitas vezes instada a concretizar o local onde a autora parou ou seu veículo conseguiu afirmar que a autora parou depois do sinal. Acabou por afirmar que a autora parou onde tinha que parar para ter visibilidade para a reta onde ia entrar.
Indo a testemunha no banco de trás não tinha a mesma visibilidade que a autora para a direita do local onde se encontrava e não via o que esta podia ver, pelo que não pôde asseverar que quando a autora parou, antes de entrar na Rua ... o UV não vinha já a circular nessa rua.
A dado passo do seu depoimento esta testemunha passou a afirmar que para o lado direito era má visibilidade para a Rua ... sendo a mesma, no máximo, de dez metros e que para o lado esquerdo seria de no máximo 20 metros. Explicou estas afirmações alegando “costuma estar um carro parado junto a uma casa do lado direito” e que do lado esquerdo há uma lomba na Rua .... Ora as imagens do googlemaps contrariam esta última versão sendo manifesto que a visibilidade quer para o lado direito quer para o esquerdo da Rua ... para quem está parado na interseção da Rua ..., é de pelo menos 300 metros, medida dessa reta para ambos os lados que pode ser medida nesse site, sendo claro e ali não existe qualquer lomba. A Rua ... configura uma reta extensa, que tem mesmo uma ligeira inclinação descendente de nascente para poente, até ao mar, ou seja, no sentido em que seguia o UV.
Perguntado a tal testemunha sobre qual teria sido a causa do acidente afirmou entender que o condutor do UV vinha em alta velocidade, o que fez sem hesitação ou rebuço, apesar de admitir que não viu, nem podia ver se o mesmo já vinha a circular na Rua ... quando a autora nela entrou com o seu automóvel e que não chegou a vê-lo a circular.
O que tudo retira credibilidade a este depoimento, assim se compreendendo que não lhe tenha sido conferida pelo Tribunal a quo.
O depoimento de EE apenas relevou para a confirmação das caraterísticas do local do acidente, da posição em que estavam os carros após o embate e da visibilidade da interseção da Rua ... para ambos os lados da Rua .... Confirmou que um condutor que venha da Rua ... não tem que entrar com o carro na Rua ... para ter visibilidade, bastando parar na interceção. E confirmou que a visibilidade era, para os dois lados, de 300 a 400 metros.
Assim, são totalmente infundadas as pretensões da apelante de que se dê por provado que parou na interseção das duas ruas um pouco à frente do sinal Stop e que ali olhou para ambos os lados da Rua ... onde não circulava ainda o UV, após o que, quando já se encontrava a mudar de direção à esquerda, foi embatida pelo UV que já estava encostado ao seu veículo nesse momento. Bem como deve improceder o pedido de que se eliminem as alíneas a) e b) dos factos não provados, de que resulta a convicção negativa sobre a paragem e cedência de passagem por banda da autora antes de efetuar a manobra que deu causa ao acidente.
Quanto à pretensão de que da alínea 83 passe a constar também a visibilidade que o condutor do UV tinha e não apenas a sua, a mesma improcede, pois, tal facto não foi alegado por nenhuma das partes e, na tese ora construída pela recorrente, seria essencial à sua pretensão. Recorde-se que na versão constante da petição inicial a autora alega apenas que tal condutor seguia a mais de 80 km por hora sem alegar qualquer facto de que pudesse decorrer que a visibilidade que o mesmo tinha para o cruzamento lhe permitiria parar antes de nela embater. Tal, ademais, só seria verdade se autora ali tivesse parado. Ainda que se pondere que tal facto poderia ser instrumental à versão da autora – de que o condutor do UV seguia a velocidade superior a 80 km/hora -, já se afirmou que os factos instrumentais não têm que constar do elenco dos factos provados ou não provados, mas apenas da motivação da matéria de facto como decorre do artigo 607.º, número 4 do Código de Processo Civil, sendo ali que deles se devem retirar ilações.
Acresce que a ilação a retirar da boa visibilidade da Rua ... para o cruzamento, que o condutor do UV admitiu, não poderia ser a pretendida pela autora. Se a autora ali tivesse parado e avançado apenas por distração ou por mau cálculo da distância a que o outro veículo se encontrava o condutor deste, mesmo que viesse animado de velocidade alta, tê-la-ia visto a tempo de, pelo menos, tentar desviar-se ou travar, o que a prova produzida demonstrou não ter feito. O próprio o admitiu no seu depoimento, não tendo nem a autora nem a testemunha BB referido qualquer travagem ou barulho de travagem, não evidenciando o auto de notícia a existência de marcas de travagem e nem tendo o autuante EE deposto no sentido de que existiam. Admite-se, contudo, que o comprimento da reta para ambos os lados do cruzamento de onde provinha a autora não seja de 400, mas apenas de cerca de 300 metros, como a mesma alega. Pelo que serão corrigidas as alíneas 74 e 83 dos factos provados, passando a ler-se 300 onde agora consta 400.
Também quanto à alínea 86 não se vê razão para eliminar o trecho que refere o local do embate dista cerca de dois metros da linha delimitadora da faixa de rodagem, apesar de não ter sido indicado no croquis do local feito pelo autuante. É que, estando demonstrado por toda a prova acima vinda de analisar que os veículos ficaram muito próximos do local em que embateram e coincidindo a autora e as duas testemunhas presenciais na declaração de que o automóvel da autora já estava dentro da hemi-faixa de rodagem em que circulava o UV quando foi embatido, é totalmente plausível a distância dada por provada.
A testemunha EE afirmou que apenas não identificou o local do embate porque os vestígios estavam em mais do que um local, o que se explica porque o veículo da autora veio a embater no muro à sua frente e o segurado na ré rodopiou.
Finalmente quanto à alínea 88 a mesma tem um teor que, quando muito, serve para aferir a credibilidade do condutor do UV (que tendo já sido indemnizado não tem interesse na causa) e para indiciar que a autora terá sido a causadora do acidente por assim ter reconhecido a sua seguradora que indemnizou o condutor do outro veículo. Tal não dispensa, contudo, como sucedeu, que a prova da dinâmica do acidente tenha que ser feita perante o Tribunal a quo, como foi. Ficou provado na alínea 88 que “A Seguradora para a qual a Autora havia transferido a responsabilidade civil infortunística do GP (C...) assumiu a total responsabilidade pela eclosão do sinistro tendo procedido ao reembolso das despesas em que a Ré incorreu com o sinistro dos autos e que se computam em €17.790,70”. Apesar deste facto ser instrumental, ficou a constar do elenco dos factos provados.
Sucede que dele não decorreu, nem decorre, a convicção do Tribunal a quo, nem a nossa, sobre a exata dinâmica do acidente. Pelo que não há qualquer razão para lhe aditar o sugerido trecho: “sem levar em consideração a versão como sucedeu o acidente por parte da condutora, aqui A., como de algum dos demais ocupantes do veículo “GP”.
Além de que, mais uma vez, este “novo” facto que a autora quer aditar não foi alegado.
Pelo que na procedência apenas parcial da impugnação da matéria de facto, são os seguintes os factos provados e não provados, que se enumerarão com correção da numeração decorrente da eliminação de alíneas e que, no que não foi objeto de alteração, se mantêm tais como redigidos na sentença:
Provados:
“1- No dia 03 de Dezembro de 2018, pelas 23 horas, na Rua ..., freguesia ..., concelho de Espinho, a Autora conduzia o seu veículo, com matrícula ..-..-GP, registado em nome de CC, marca Mitsubishi, modelo ..., Segurado na C..., COMPANHIA DE SEGUROS Y RESSEGUROS, S.A, com a apólice nº ....
2 - Quando, depois de sair da Rua ... para entrar à sua esquerda na Rua ..., estando a entrar na hemi-faixa de rodagem da direita da Rua ... no sentido descendente (nascente/poente), a viatura por si conduzida foi embatida pelo veículo com matrícula ..-UV-.., da marca Kia, modelo ..., segurado na A... - COMPANHIA PORTUGUESA DE SEGUROS, SA., ora D..., aqui Ré, com a apólice nº ..., conduzido por DD, natural de Espinho, onde reside na Rua ..., ... – 1º esquerdo, propriedade de FF, que seguia na Rua ..., no sentido descendente (nascente/poente).
3 - Já depois de ter iniciado aquela manobra, o veículo que a A. conduzia, de matrícula GP, foi embatido brutalmente na sua parte lateral direita pelo veículo com a matrícula UV, acabando por perder o controlo efectivo da direcção, indo embater de frente com o muro de uma propriedade localizada da parte de baixo do dito cruzamento, do lado direito da hemifaixa de rodagem da direita, para quem circula no sentido descendente da dita Rua ....
4 - Por sua vez, o veículo de matrícula UV, devido ao impacto, rodou sobre si mesmo, acabando por ficar voltado para o sentido de marcha inverso àquele que seguia originariamente, e ainda dentro da sua hemi-faixa de rodagem.
5 - Na altura do acidente, o piso da via estava seco e em bom estado e, atenta a hora da ocorrência, com boa visibilidade, pois, aquela estrada já se encontrava iluminada artificialmente.”
6 - O local onde se deu o embate é ladeado por edificações e em ambas as vias que entroncam (Rua ... e Rua ...) existem passadeiras para travessia de peões junto ao local em que se cruzam.
“7 - Do acidente resultou um ferido grave e quatro feridos ligeiros, que tiverem de ser transportados para o Centro Hospitalar ... – Unidade I (antigo Hospital ...), sito na rua ..., ... Vila Nova de Gaia.
8 - Entre os feridos, estava A, a sangrar e em choque.
9 - Desde então, e em consequência do acidente aqui em apreço, a A. passou por várias consultas, exames, internamentos, cirurgias e tratamentos, não tendo, à data de propositura da presente acção, tido alta médica.
10 - O processo de inquérito crime nº … para averiguação de prática criminosa culminou com o seu arquivamento.
11 - O acidente aqui em causa foi noticiado e acompanhado o desencarceramento dos feridos por canal televisivo e por diversos jornais locais e nacionais.
12 - No acidente estiverem presentes 17 operacionais e 8 viaturas.
13 - O carro da A., com a matrícula GP, foi embatido na parte lateral direita, do meio das portas laterais direitas para trás.
14 - Da colisão resultou uma alteração da posição da viatura da matrícula UV que girou 180º sobre si mesma, ficando em sentido de marcha oposto àquele que originariamente seguia.
15 - Por sua vez, o veículo da A. acabou, após a colisão com o veículo “UV”, por ir embater de frente no muro da propriedade junta ao cruzamento.
16 - Em consequência do acidente, A. ficou em choque e a sangrar, com ferimentos no rosto, ombro direito e tornozelo esquerdo,
17 - Fracturou o seu tornozelo esquerdo devido à pressão que exerceu sobre o mesmo durante o embate.
18 - Apesar de se encontrar bastante ferida e sob intensas dores, empenhou esforços para que não perdesse os sentidos até a chegada das equipas de socorro, a fim de as informar sobre seus antecedentes médicos,
19 - Uma vez que faz controlo sanguíneo por sofrer de deficiência de proteína C, a A. receava que lhe fosse administrado algum medicamento incompatível com a esta sua doença.
20 - Após a chegada das equipas de socorro, a A. perdeu a consciência.
21 - Acabou transportada com carácter urgente para o Centro Hospitalar ..., apresentando várias feridas cortocontusas frontais, ferida da pálpebra direita, fractura do pilão tibial tornozelo esquerdo e fractura sem desvio troquiter ombro direito.
22 - Apresentava, igualmente, um discurso repetitivo e amnésia para o acontecimento.
23 - No dia 4 de dezembro, dia seguinte ao acidente, A. foi transferida para o hospital da área de residência, Hospital 1..., em Santa Maria da Feira, com indicação de vigilância clínica e radiológica por TCE em paciente hipocoagulada, com suspensão braquial provisória MS direito e tala gessada genopodálica membro inferior esquerdo.
24 - Foi no mesmo Hospital que, devido a fractura da Tíbia e do Perónio, foi submetida a osteossíntese ao tornozelo e a tratamento conservador da troquiter, aí permanecendo internada até dia 20 de dezembro de 2018
25 - A 02 de janeiro de 2019 voltou a dar entrada no Hospital 1... devido a infecção aguda após OOS ao tornozelo.
26 - A solução preconizada pela equipa médica para a referida infecção passava por equacionar a amputação do tornozelo esquerdo, que estava muito débil devido à carência de osso.
27 - Após reunião com a referida equipa médica, determinou-se que tentariam conservar o tornozelo., acabando A. por ter que ser submetida a nova cirurgia, desbridamento e lavagem, cumprindo o ciclo de antibioterapia.
28 - A A. teve Alta no dia 29 de janeiro de 2019, mantendo queixas álgicas.
29 - No período pós-operatório fez diversas consultas, exames, substituição de pensos, retiro de pontos, até iniciar um conjunto de tratamentos fisiátricos.
30 - A 15 de maio de 2019 A. foi submetida a exame de Ressonância Magnética ao ombro direito, tendo sido relatado que A. possuía sequelas de fractura avulsiva do troquiter, com desalinhamento superior a cerca de 5mm, assim como ligeiro edema da medula óssea. Do mesmo relatório consta a verificação de pequenas calcificações / fragmentos ósseos milimétricos.
31 - A 12 de Dezembro de 2019, A. foi novamente internada para ser submetida a nova cirurgia de EMOS Tíbia e Artrodese Tibiotársica Esquerda.
32 - Seguiu-se novo período pós-operatório, tendo sido submetida a diversas consultas, exames, substituição de pensos, retiro de pontos, até iniciar um conjunto de tratamentos fisiátricos.
33 - Devido às dores agonizantes, A. deslocava-se frequentemente aos serviços de urgência.
34 - A 29 de Maio de 2020, foi diagnosticado a A. intolerância a material de Osteossíntese, nomeadamente a um parafuso que estaria “aparentemente em conflito na subastragalina”, causando-lhe intensa dor.
35 - A 25 de Junho de 2020, A. foi internada para remoção de prótese de fixação interna referida no número anterior, tendo alta no dia seguinte.
36 - A A., ao dia de hoje, sente bastantes dores no seu tornozelo esquerdo.
37 - O referido tornozelo encontra-se sempre fixo, praticamente sem mobilidade.
38 - A autora possui insuficiência óssea no tornozelo esquerdo.
39 - No desempenho de tarefas diárias, que impliquem a mínima deslocação espacial, A. sente-se muito limitada e cansada, sobretudo em terrenos irregulares ou com planos inclinados, assim como dificuldades para acelerar o passo, subir e descer degraus.
40 - A A., amante da prática de atletismo, caminhadas, ginástica e ciclismo, não mais o consegue fazer.
41 - A A. tem dificuldades em colocar-se em posição de cócoras, ou de joelhos, ou mesmo mudar de posição (sentar-se, levantar-se) devido à falta de mobilidade e de força no seu tornozelo esquerdo.
42 - Por tudo aquilo que A. tem passado, e com receio de ficar física e psicologicamente ainda mais debilitada, A. relegou a cirurgia e tratamentos ao seu ombro direito para momento posterior, visto que, durante vários períodos, a autora necessitou do auxílio de canadianas para se deslocar, o que seria impraticável com o ombro imobilizado.
43 - Se a A. fosse operada ao ombro direito neste espaço de tempo, não poderia movimentar-se de forma alguma.
44 - Qualquer movimento no seu ombro causa-lhe sofrimento, não conseguindo executar muitas das tarefas que exigem o mínimo de esforço físico, em actividades normais da sua vida diária, seja carregar sacos de compras, ou simplesmente utilizar os talheres para se poder alimentar.
45 - A A., à data do acidente trabalhava por conta própria, não tendo qualquer funcionário a seu cargo, comercializando e produzindo artigos de cortiça, nomeadamente rolhas naturais,
46 - Era dessa actividade que a A. ganhava os seus créditos para fazer face às suas despesas pessoais, alimentação, vestuário, transporte, renda de casa, e actividades de lazer e recreativas.
47 - Desde a eclosão do acidente, a A. não conseguiu mais trabalhar ou desenvolver a sua actividade.
48 - A A. retirava, pelo menos, o valor mensal correspondente ao salário mínimo.
49 - A A. recebeu da segurança Social, por baixa médica subsidiada de 4/12/2018 a 3/12/2019 a quantia de € 1.746,09 a título de subsídio de doença.
50 - Tendo sobrevivido até à presente data com as poupanças que fora fazendo ao longo dos tempos, e da ajuda dos seus familiares.
51 - A partir de 04/03/2020 foi atribuído à aqui A. o rendimento de reinserção social, no valor de 169,14€, sendo o valor da renda mensal da sua habitação, no montante de 260,00€.
52 - A A. suportou a título de despesas médicas e medicamentosos a quantia de 531,40€, assim discriminadas:
- Em medicamentos, no valor de 406,58€;
- Em material de apoio ao pós-operatório, no valor de 79,82 €.
- Em consultas de ortopedia, no Hospital privado da ..., no valor de 45,00€;
53 - Em consequência do acidente o veículo pertença e conduzido pela aqui A. ficou inutilizado, sem possibilidade de reparação.
54- O veículo da Autora, matriculado em 1996, estava bem conservado, em óptimas condições de circulação e funcionamento, tendo um valor comercial à data do acidente, de cerca de 9.000,00€ (nove mil euros).
55 - A A. à data do acidente usava umas calças de ganga, botins, blusa, camisola e um casaco de couro, que ficaram para além de ensanguentados, inutilizados nas operações de salvamento a que foi submetida,
56 - Em resultado do acidente, a A. sofreu fractura dos ossos da tíbia e do perónio do pé esquerda.
57 - Foi submetida a 3 cirurgias, esteve imobilizada no leito durante vários dias.
58 - Sofre ainda de incapacidade parcial geral, pelo que embora não retida no seu leito tem muitas dificuldades de mobilidade,
59 - Sofreu muitas dores, sobretudo nos primeiros dias, com os tratamentos cirúrgicos e fisiátrico a que já foi submetida.
60 - A A. não pode fazer as actividades físicas que até então praticava regularmente.
61 - Sentindo-se inferiorizada, perdeu a alegria de viver e conviver com as pessoas, deixando de frequentar espaços sociais, fazer caminhadas, atletismo ou ciclismo.
62 - Passando a refugiar-se em casa, de onde sai muito pouco e a muito custo, quase “arrastada” pelos seus familiares, nomeadamente o seu filho.
63 - A cirurgia ao ombro terá de ser efectuada.
64 - No acidente foram intervenientes, os seguintes veículos:
Veículo ligeiro de passageiros, marca MITSUBISHI, com a matrícula ..-..-GP (doravante GP); e
Veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-UV-.. (doravante UV), marca KIA, conduzido por DD.
65 - O UV circulava na Rua ..., atento o sentido Este/Oeste, pela hemi-faixa direita da faixa de rodagem.
66 - Já o GP circulava na Rua ..., no sentido Sul/Norte, pela hemi-faixa direita da faixa de rodagem.”
67 - No local do sinistro cruzam-se as Ruas ..., a Rua ... e a Rua ..., convergindo a Rua ... com a Rua ... pelo lado sul (lado esquerdo atendo o sentido de marcha seguido pelo UV) e a Rua ... pelo lado norte com a mesma via (lado direito atento o mesmo sentido de marcha).
“68 - Era noite e o tempo estava seco sendo que a via era bem iluminada.
69 - O pavimento da via era de asfalto e encontrava-se em bom estado de conservação.
70 - A Rua ..., no preciso local em que se dá o acidente tem 8,95m de largura.
71 - E tem duas hemi-faixas de rodagem, uma para quem circula no sentido Este/Oeste e outra para quem circula no sentido Oeste/Este.
72 - Cada uma daquelas hemi-faixas de rodagem mede 4,47m.
73 - O local do embate caracteriza-se por ser uma recta com mais de 300 metros de comprimento em ambos os sentidos de marcha permitidos na Rua ....
74 - À data do acidente, a responsabilidade civil, emergente de acidentes de viação, relativa ao veículo UV, estava transferida para a aqui Ré, por contrato de seguro titulado pela apólice nº ....
75 - No dia 3/12/2018 pelas 23.00 H, o UV circulava na Rua ..., sendo que o seu condutor imprimia ao mesmo uma velocidade não apurada.
76 - A Autora, ao volante do GP, circulava na Rua ..., atento o sentido Sul/Norte e pretendia atravessar a Rua ... para prosseguir a marcha na Rua ....
77 - Na zona de cruzamento entre a Rua ... e a Rua ..., atento o sentido de marcha da Autora, existe sinalização (vertical e horizontal) de paragem obrigatória, de sinal de STOP.
78 - A Autora, ao aproximar-se do cruzamento entre as duas artérias não imobilizou o GP no sinal de STOP.
79 - Atravessou a Rua ... sem se certificar que com tal manobra não causava embaraço ao restante tráfego que ali circulava, como era o caso do veículo segurado na Ré.
80 - A Autora, que imprimia ao GP uma velocidade não apurada, atravessou a Rua ... sem, previamente, imobilizar o mesmo no sinal de STOP e sem prestar atenção ao trânsito que ali se processava.
81 - A Autora dispunha de visibilidade superior a 300 metros em ambos os sentidos de marcha permitidos na Rua ....
82 - O UV circulava com as luzes na posição de “médios”.
83 - No cruzamento entre a Rua ... e a Rua ... existe um sinal de STOP e, o UV apresentava-se pela direita do GP.
84 - O local do embate situou-se em plena hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito do UV, a cerca de 2 m da linha delimitadora das hemi-faixas de rodagem da Rua ..., atento o sentido de marcha prosseguido pelo UV.
85 - A Seguradora para a qual a Autora havia transferido a responsabilidade civil infortunística do GP (C...) assumiu a total responsabilidade pela eclosão do sinistro tendo procedido ao reembolso das despesas em que a Ré incorreu com o sinistro dos autos e que se computam em €17.790,70.
86 - Conforme Doc. datado de 20 de Julho de 2023 – Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Civel, realizado pelo INML, para o qual se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido e integrado, a A. apresenta:
- Conforme avaliação baseada na Tabela Nacional de Incapacidades, considerando o valor global da perda funcional decorrente das sequelas e o facto destas, não afectando o examinado em termos de autonomia e independência, são cusa de sofrimento, com um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica fixável em 15 pontos.
Em termos de Repercussão Permanente na Actividade Profissional, as sequelas são impeditivas do exercício da actividade profissional habitual, sendo compatíveis com outras profissões da área da sua preparação.
- A Data de Consolidação médico-legal das lesões é fixável em 27/02/2021.
- Período de Défice Funcional Temporário Total fixável num período de 52 dias.
- Período de Défice Funcional Temporário Parcial fixável em 765 dias.
- Período de Repercussão Temporária na Actividade Profissional Total fixável num período total de 817 dias.
- Quantum Doloris fixável no grau 4/7.
- Repercussão Permanente nas actividades desportivas e de Lazer fixável no grau 4/7.
- Dano Estético Permanente fixável no grau 4/7.”
“a) - No momento de intercepção do cruzamento entre a Rua ... e a Rua ..., A. cumpriu escrupulosamente com todas as diligências, nomeadamente com a obrigação de paragem e cedência de passagem, exigível pela presença imperativa do sinal de STOP, para quem circula pela Rua ..., naquele local.
b) - Não obstante, e depois de certificar que não passava ou se aproximava qualquer veículo a circular na dita Rua ..., num e noutro sentido, realizou com a diligência habitual a manobra de virar à sua esquerda, ingressando na Rua ... no sentido descendente (.../...), que ali faz uma lomba.
c) - O embate dá-se entre a parte frontal do GP a parte lateral esquerda, traseira, do UV.”
Ora, no seu essencial, a pretensão da recorrente de que se concluísse que o acidente decorreu do facto de o condutor do UV vir a imprimir ao mesmo velocidade muito superior à permitida e à adequada ao local estribava-se na impugnação dos factos relativos à dinâmica do acidente dados por provados nas alíneas 80 a 83 e na pretendida prova de que ela mesma parou na interseção das duas vias e se assegurou de que não vinha nenhum carro a circular naquela em que pretendia entrar (factos dados por não provados nas alíneas a) e b)) Provou-se, em vez disso, a versão articulada pela ré, de que a autora não parou antes de entrar no referido cruzamento e não ficou de todo demonstrada a alegada velocidade “excessiva” ou “desadequada” do UV, o que, ao contrário do que a apelante parece pretender, não pode decorrer do simples facto de alegadamente ser habitual que os automóveis que circulam na Rua ... andem a velocidades muito altas. Estava em causa apurar o comportamento de um concreto condutor numa determinada situação pelo que a generalização feita não tem interesse para a causa.
Tendo improcedido totalmente a sua pretensão de ver alterados os factos relativos à dinâmica do acidente, não há qualquer outro fundamento para que se julgue procedente o seu pedido de condenação da ré no pagamento de indemnização pela totalidade dos danos que sofreu, pois dos factos provados resulta que o embate, enquanto facto lesivo, ocorreu como consequência adequada do comportamento ilícito e culposo da própria autora que não parou e não cedeu passagem a quem vinha pela sua direita ao entrar na rua por onde queria passar a circular, apesar de na rua de onde provinha existir um sinal vertical de Stop.
Assim, pelos fundamentos de direito que constam da sentença e não foram censurados em sede de recurso, é de concluir pela culpa da lesada na produção do acidente, em face da violação das regras de trânsito ali analisadas, com especial incidência para o artigo 39.º do Código da Estrada. Subscreve-se o que ali se exarou com base nos factos dados por provados: “Destarte, revisitando a factualidade provada, decorre que a A. violou as regras do Código da Estrada, ao provar-se que o GT efectuou a manobra de virar para a esquerda, em desrespeito de um sinal STOP que se lhe apresentou na faixa onde se encontrava, -, regras definidoras de infracções em matéria de trânsito rodoviário que faz presumir a culpa na produção dos danos daí decorrentes, bem como a existência de causalidade (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Outubro de 2001, processo 01A2900, in www.dgsi.pt).
Ainda que dúvidas restassem, o que não se concede, resulta da dinâmica do acidente, conforme manancial fáctico apurado, a responsabilidade civil da condutora do GT.
(…) tudo leva a concluir pela ocorrência de um comportamento inconsiderado e ilícito da condutora da viatura GT ora A. que, ao efectuar a mudança de direcção para a esquerda, vindo de uma estrada com sinal de STOP, não atentou na viatura KIA que circulava na estrada onde pretendia entar, ou porque não viu pura e simplesmente a viatura KIA ou porque confiou que lograria efectuar a manobra de mudança de direcção para a esquerda para entrar na Rua ... sentido Nascente/Poente, antes de o veículo KIA alcançar o ponto de intercepção, obliterou o veículo KIA, cortando-lhe a passagem, provocando o violento embate, ao efectuar a manobra de mudança de direcção para a esquerda, atendo o facto de pretender passar a circular na Rua ..., sentido descendente Nascente/Poente, na hemifaixa de onde vinha o KIA, sem previamente se assegurar que o podia fazer em segurança, sem previamente verificar se seguia algum obstáculo do lado direito da estrada onde pretendia entrar, que a impedisse de realizar a manobra que pretendia efectuar. In casu, verifica-se que a condutora do GT violou o arts. 146º, al. n) do Código da Estrada, aprovado pelo D.L. 114/94, de 3 de Maio, 13ª versão, na redacção última introduzida pelo D.L. nº 72/2013, de 3/9 - vigente à data da ocorrência do acidente, e por isso aplicável ao caso sub judice, por virtude do princípio geral de aplicação de leis no tempo consagrado no art. 12º, nº 1, 1º segmento.
(…) o embate foi originado pela desacautelada manobra de mudança de direcção da condutora do veículo de matrícula GT, em desrespeito pelo sinal de paragem obrigatória (vulgo STOP) no entroncamento de onde provinha, ao pretender entrar na estrada ..., tendo de mudar de direcção para a esquerda, sem acautelar que não vinha qualquer veículo a circular na dita via (…).
Dúvidas não restam que o GT, com a sua actuação, atravessou-se à frente do KIA, que seguia a sua marcha, no sentido Nascente/Poente, não sendo de todo previsível para o condutor do KIA que o veículo GT, vindo de um STOP, lhe fosse cortar e obliterar abruptamente a marcha, ainda na hemi-faixa que o KIA utilizava (…). No nosso entendimento, face aos factos apurados, ao veículo KIA não pode ser assacado qualquer juízo de censura, porquanto o mesmo, em termos técnicos, não se apurou que violou a velocidade permitida naquele local nem adoptou qualquer conduta violadora de qualquer outra regra estradal.
Em suma, não se apurou qualquer manobra do KIA causal do acidente ou que tivesse contribuído para a ocorrência do mesmo, concluindo que o comportamento do KIA não contém nada de reprovável. Ainda que tivesse, o que não se concede porque não se apurou, não é o comportamento do KIA a manobra causal do acidente. A manobra do veículo GT é que é ilícita, porque violadora dos preceitos acima mencionados reguladores das normas estradais, e causal do sinistro, ao não tomar o condutor do GT as precauções legalmente impostas, quando pretende entrar numa estrada e mudar de direcção para a esquerda, vindo de uma estrada com um sinal STOP.”
Seguiremos aqui de perto o entendimento expresso no acórdão desta secção de 17-06-2024[8].
“Tradicionalmente esta concorrência da culpa e do risco era afastada com base na interpretação dos artigos 505º, 506º, número 1 e 570º, números 1 e 2 do Código Civil.
Por um lado, era considerado que o artigo 505º do Código Civil afastava a responsabilização de quem detivesse a direção efetiva do veículo com base nos seus riscos próprios quando o acidente fosse de imputar ao lesado ou a terceiro, por outro, o 506º do Código Civil que consagra a responsabilidade objetiva no caso de colisão de veículos apenas prevê a ponderação da contribuição de cada um deles para o resultado danoso “se nenhum dos condutores tiver culpa no acidente”, e, finalmente, o artigo 570º refere a redução ou afastamento da indemnização quando ocorra culpa do lesado em função da apreciação da “gravidade da culpa de ambas as partes” e o seu número 2 estipula a regra de que se exclui o dever de indemnizar perante a culpa efetiva do lesado quando a culpa do lesante for “simples” culpa presumida. A propósito deste último preceito e com base num argumento de “maioria de razão” Pires de Lima e Antunes Varela defendiam que se a culpa efetiva exclui a presumida é indiscutível que também deve excluir o risco[9]
Com base nesses preceitos, mas sobretudo na estatuição do artigo 505º do Código Civil autores como Antunes Varela defendiam, assim, a aplicação da máxima de que “a culpa exclui o risco”[10].
Tal interpretação está hoje maioritariamente ultrapassada, para o que contribuiu decisivamente o avanço jurisprudencial que tem levado a uma leitura mais atualista do preceito e o imperativo de interpretação do direito interno de acordo com o comunitário.
De facto, é manifesto que as preocupações com o risco inerente à circulação automóvel que estiveram na base da redação dos artigos 503º a 508º do Código Civil encontram hoje razões de ser muito mais evidentes do que as então sentidas. A massificação do uso do automóvel e de outros veículos motorizados e não motorizados e as condições de circulação em vias rápidas que potenciam uma maior velocidade de trânsito são hoje de grau muito superior do que existia à data da consagração da solução legal vigente e que já então dava mostras da sentida necessidade de um regime especial para acautelar os danos decorrentes dessa circulação, como atividade que comporta riscos de grande monta.
Vários diplomas avulsos posteriores ao Código Civil vieram aumentar a proteção dos lesados vítimas de acidentes de viação demonstrando a consciência do legislador ordinário da gravidade dos riscos dessa atividade. Por via do DL 408/79 de 25 de setembro foi (finalmente) instituído o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel que vinha sendo adiado desde o DL 165/75 de 28 de março (cuja vigência foi adiada sucessivamente), e o DL 522/85 de 31 de dezembro criou o Fundo de Garantia Automóvel. A conjugação destes dois diplomas trouxe à indemnização dos lesados em consequência de acidentes de viação uma proteção com cariz eminentemente previdencial e que se foi afastando do regime geral de responsabilidade delitual num sentido cada vez mais garantístico, de socialização do risco. Essa tendência, transnacional, está expressa também nas sucessivas diretivas comunitárias no domínio do seguro obrigatório automóvel que visam garantir “que as vítimas de acidentes causados por esses veículos beneficiem de tratamento comparável, seja qual for o local em que o acidente ocorra”.[11]
Nas conclusões do Acórdão do Tribunal de Justiça de 30 de junho de 2005 (Catja Candolin)[12] pode ler-se, à semelhança do que muitos outros arestos desse tribunal posteriormente afirmaram, o seguinte “Os Estados membros são, contudo, obrigados a exercer as suas competências no respeito do direito comunitário (…) as disposições nacionais que regula as indemnizações devidas por sinistros resultantes da circulação de veículos não podem, assim, privar as referidas disposições do seu efeito útil. Seria esse nomeadamente o caso se, apenas com fundamento na contribuição do passageiro para a produção do dano, uma legislação nacional, definida com base em critérios legais e abstratos, recusasse ao passageiro o direito a ser indemnizado ou limitasse esse direito de modo desproporcionado”.
Neste sentido evoluiu também a doutrina nacional, destacando-se entre as vozes mais ativas na defesa da possibilidade da concorrência da culpa e do risco para a produção do acidente, (além do já citado professor Vaz Serra como consta da nota 7), Calvão da Silva e Sinde Monteiro[13]’[14]. O primeiro, em anotação a Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-03-2001 conclui que “Sem prejuízo do concurso da culpa do lesado, a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”[15].
A tendência crescente para tal interpretação, que na falta de melhor nome chamaremos de atualista, tem sido grandemente impulsionada pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, sendo de destacar os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 01-10-2007 (071710), de 20-01-2009 (08A3807), de 19-03-2019 (5173/15.5T8BRG.G1.S1) de 25-05-2021 (388/18.4T8FAR.E1.S1), de 31-05-2023 (521/16.3T8VFR.P1.S1), e do Tribunal da Relação do Porto de 14-07-2021 (23399/19.0T8PRT.P1), e desta mesma secção de 12-09-2022 (2223/20.7T8VLG.P1) entre muitos outros (todos disponíveis em www.dgsi.pt).
O risco decorrente da circulação automóvel, pela sua expressão estatística e pelos resultados muitas vezes gravíssimos dos acidentes de trânsito tem, justamente, merecido um tratamento crescentemente mais atento à massificação desse perigo e ao reconhecimento da concorrência do mesmo para a produção dos danos mesmo quando para eles contribuem também, em maior ou menor medida, ações humanas qualificáveis causais dos sinistros. Não tendo por ora sido ultrapassada a fixação de jurisprudência que foi introduzida pelo Assento 1/80 de 29 de janeiro (DR24/1980, Série I, de 29-01-1980), no sentido de que “O disposto no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil não tem aplicação em matéria de acidentes de circulação terrestre” há muito que têm sido levantadas dúvidas sobre se deve manter-se tal entendimento[16] numa manifestação, também do reconhecimento crescente do papel do perigo da atividade decorrente da circulação rodoviária para a produção dos danos consequentes a acidentes de viação.
Lopes do Rego acentua que “(…) as condições e a intensidade da circulação rodoviária evoluíram drasticamente em relação ao que se verificava nos anos sessenta do século passado, implicando sensível agravamento dos riscos e da sinistralidade a ela associados (envolvendo atualmente, particularmente em ambiente urbano, não apenas a convivência normalmente problemática entre veículos automóveis peões e velocipedistas, mas também entre estes meios tradicionais de deslocação e circulação e as novas formas de circulação – trotinetes, patins…-, geradoras de inovatórios e acrescidos riscos na produção de eventos danosos, potencialmente com consequências pessoais gravosas)”[17].
É no respeito e em total concordância com essa tendência interpretativa atualista que defendemos que pode ocorrer, em termos de causalidade, concorrência da culpa (não no sentido de censura ética, mas de imputação) do lesado com o risco inerente à circulação de veículos para a produção de certos danos, não se justificando atualmente o afastamento dessa possibilidade em termos gerais e abstratos, mas apenas quando no caso concreto se deva imputar unicamente à conduta do lesado a produção do resultado danoso”.
Resta aferir se no caso concreto se justifica a ponderação dessa concorrência de culpa do lesado e do risco decorrente da circulação do veículo seguro na Ré, pois o risco “não se presume” como é afirmado no Acórdão deste Tribunal de 14-07-2021, no processo TRP 2399/19.0T8PRT.P1, sendo “necessário que o perigo latente no exercício da atividade se desencadeie” e que se demonstre o nexo causal entre o referido perigo ou risco e o resultado danoso.
Assim, a admissão de que possa ocorrer, no processo casual que conduz ao acidente e aos subsequentes danos, concurso de culpa do lesado e do risco inerente à circulação de veículo automóvel não deve levar a que sempre se considere que ocorreu contributo deste segundo fator. Sendo embora a circulação automóvel uma atividade que não pode deixar de se afirmar como perigosa no sentido de que comporta riscos imanentes à velocidade e à massa dos veículos - sobretudo perante a fragilidade do corpo humano -, não pode, daí retirar-se que há sempre a possibilidade de se imputar todo e qualquer dano ao risco.[18]
Como se pode ler no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-02-2024: “(a) admissibilidade da concorrência não é automática só porque o interveniente no acidente tenha sido um veículo, exigindo-se um juízo de adequação sobre a imputação objectiva do acidente.”[19] . Se assim fosse, aliás, não haveria nunca um acidente que envolvesse um automóvel em que não devesse imputar-se ao risco de circulação alguma quota de comparticipação para o resultado danoso.
O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 31-05-2023[20] emana a seguinte proposta de critério para aferir se a culpa do lesado deve ou não excluir, no caso concreto, a imputação objetiva da responsabilidade decorrente do risco de circulação: “O artigo 505º do CCiv. admite, nomeadamente em face da salvaguarda do prescrito no art. 570º do CCiv. o concurso da imputação do acidente ao lesado com o risco próprio do veículo desde que: i) o risco especial de circulação seja um risco agravado de funcionamento deficiente e/ou imprevidente da máquina ou das especificidades de perigo da circulação em concreto, que justifique e torne plausível, numa lógica equilibrada e racional do regime legal para tutela do lesado, especialmente quanto este apenas evidencia uma negligência de reduzida censurabilidade (culpa leve ou levíssima) e de diminuta relevância causal para a produção ou agravamento dos danos sofridos pelo próprio, uma comparticipação da parte lesante que responde independentemente de culpa; (ii) haja uma contribuição desse risco do veículo para a ocorrência do sinistro gerador dos danos, mobilizando-se um juízo de adequação e proporcionalidade atendendo à intensidade desses riscos próprios da circulação do veículo e à sua concreta relevância causal para o acidente.”
Assim justifica-se enveredar pela concorrência de responsabilidades nos casos de culpa leve ou levíssima do lesado ou mesmo quando ao mesmo não possa ser dirigido um juízo de censura por ter agido involuntariamente.
Tratando da distinção entre ilicitude e culpa, expende Antunes Varela[21] que abrangem aspetos diferentes, embora em certo sentido complementares, da conduta do autor do facto. A ilicitude considera esta conduta objetivamente, como negação dos valores tutelados pela ordem jurídica. A culpa olha o lado individual, subjetivo do facto ilícito. A conduta é culposa quando merecer a reprovação ou censura do direito, ou dito de outro modo, quando “o lesante, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outra maneira”[22] . A culpa pode revestir duas modalidades: o dolo ou a negligência. O facto será doloso se “o agente tem a representação do resultado danoso, sendo o acto praticado com a intenção de produzi-lo, ou apenas aceitando-se reflexamente esse efeito”. Será negligente se se deve “somente a falta de cuidado, imprevidência ou imperícia”[23].
Ora, em face da prova da não imobilização da autora antes de entrar na via apesar de ter obrigação de paragem imposta por sinal Stop e tendo em conta que a mesma violou a regra de cedência de passagem, entrando uma via onde já se circulava veículo que se lhe apresentava pela direita, em local onde tinha visibilidade por se tratar de reta com cerca de 300 metros, a sua conduta é muito grave. O critério legalmente estabelecido no número 2 do artigo 487º do Código Civil é o de que a culpa do agente será apreciada segundo a diligência de um bom pai de família em face das concretas circunstâncias de cada caso. O padrão abstrato estriba-se assim na diligência do homem médio, prudente e sagaz a que alude a fórmula romana do “bonus pater familiae”. Este conceito abstrato deve, contudo, atender sempre às circunstâncias da situação concreta. Assim, a culpa não será apenas uma deficiência da vontade, mas uma verdadeira deficiência da conduta devendo considerar-se culposos quer os descuidos e faltas de atenção ou cuidado como também as condutas que revelem falta de destreza ou perícia.
Ora, a autora foi imprevidente, agindo de forma temerária, sendo o comportamento esperado de um ser humano médio, usando de cautela e cuidados medianos e colocado naquela situação o de parar antes de iniciar a manobra de mudança de direção e assegurar-se que na via para onde prosseguia não circulava qualquer veículo a que tinha que dar prioridade de passagem, já que a sinalização vertical a tanto obrigava.
E esta conduta foi causal do acidente.
Nos já cima referidos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (bem como em muitos outros dos Tribunais superiores) a ponderação da contribuição casual do risco de circulação para o resultado danoso levou a que se excluísse a concorrência do risco para a produção do acidente numa situação em que a lesada, por excesso de velocidade, veio a embater em veículo parado na berma de uma autoestrada em situação de emergência devidamente sinalizada, concluindo-se pela não censurabilidade da conduta do respetivo condutor; também se afastou a concorrência causal do risco numa situação em que o lesado era um peão que caminhava pela faixa de rodagem, embora tal estrada tivesse uma berma de 1, 50 metros de largura, quando foi colhido por veículo automóvel que ali circulava, apesar deste não o ter avistado atempadamente e de não ter logrado desviar-se ou parar ante de o atingir.
Lopes do Rego [24] reconhecendo a tendência jurisprudencial, a seu ver consolidada, de admissão da concorrência da responsabilidade pelo risco com a culpa do lesado propõe-se também a enunciar os fatores ou critérios que permitem realizar uma concordância prática entre aqueles dois parâmetros o que tenta fazer “valorando e graduando a gravidade da culpa imputável ao lesado e simultaneamente procurando distinguir e dissociar, no que respeita aos riscos de circulação do veículo automóvel, o risco genérico inelutavelmente associado à circulação nas vias públicas de qualquer viatura automóvel e certos riscos específicos e agravados que possam ter contribuído para o sinistro”[25]. Cumpre o seu anunciado propósito de enunciação de um critério com a seguinte conclusão: “Na verdade, nestes casos, de ocorrência de comportamentos temerários e claramente injustificáveis, a gravidade do nexo de imputação do acidente e dos danos ao próprio lesado acaba por descaracterizar os riscos normais de circulação do veículo, enquanto elemento potencialmente concorrente para a eclosão de sinistros: nestas situações, de comportamentos temerários, nalguns casos quase suicidários do lesado, verifica-se que é a conduta censurável da vítima que vai, em última análise despoletar um risco atípico e agravado de sinistralidade, que manifestamente se sobrepõe ao risco genérico de circulação de um qualquer veículo, com o escrupuloso cumprimento de todas as regras estradais pelo respetivo condutor.”.[26] Pelo contrário, conclui ainda, não deve ser automaticamente afastada a concorrência do risco com ato do lesado quando este seja apenas censurável a título de “culpa leve ou levíssima, nalgumas situações no limiar da desculpabilidade, bem como factos em bom rigor involuntários (…) ou cometidos por sujeitos inimputáveis, por isso insuscetíveis do juízo de censura em que se consubstancia a cula, de reduzida gravidade objetiva, que se entenda não deverem, por si sós, descaraterizar a relevância dos riscos típicos de circulação do veículo interveniente no acidente”.
Ora, no caso estamos claramente perante um ato ilícito e culposo da lesada que violou de forma clamorosa normas do Código da Estrada destinadas a evitar exatamente os sinistros como o que ocorreu, sendo o seu comportamento muito censurável, por temerário. Foi esse comportamento a causa única do acidente não se justificando no caso a ponderação do contributo de qualquer risco de circulação do veículo seguro na Ré para a produção dos danos.
Pelo que também esta pretensão recursória tem que improceder.
V – Decisão:
Julga-se improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Porto, 27 de outubro de 2025.
Ana Olívia Loureiro
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
Manuel Domingos Fernandes
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