1. Quer o cônjuge meeiro do de cujus, quer o cônjuge meeiro do herdeiro, têm legitimidade para requerer o inventário e nele ser parte principal, intervindo em todos os actos do processo de inventário, nos termos do artigo 1085.º, n.º 1, al. a), do CPC.
2. Se só for possível definir os concretos bens da herança do de cujus após a realização da partilha da herança aberta por óbito da sua 1.ª mulher, deve admitir-se a cumulação de inventários, nos termos do artigo 1094.º, n.º 1, alínea c), do CPC.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra,[1]
AA veio requerer, em 18-03-2025, inventário cumulado para partilha dos bens da herança de seu falecido marido, BB, juntamente com a partilha dos bens da herança da primeira mulher deste, pré-falecida, CC, com quem o de cujus fora casado sob o regime da comunhão geral de bens.
“Da Legitimidade da Requerente
Veio AA requerer o inventário do seu falecido cônjuge e da primeira mulher deste, CC.
Estabelece o artigo 1085.º, alínea a), do Código de Processo Civil que “Têm legitimidade para requerer que se proceda a inventário e para nele intervirem, como partes principais, em todos os atos e termos do processo: a) Os interessados diretos na partilha e o cônjuge meeiro (…)”.
Os interessados diretos na partilha são os herdeiros que são diretamente beneficiados pela partilha (cf. artigo 2101.º n.º1, do Código Civil).
Ora, a Requerente não é herdeira, por não ser diretamente beneficiada pela partilha e, por isso, não constar do elenco do artigo 2101 do Código Civil, de CC.
Para que seja requerida a cumulação de inventários, é necessário que o requerente tenha legitimidade em relação a ambos os inventariados, e não apenas a um deles, como é o caso dos autos.
Assim, embora a Requerente tenha legitimidade para requerer o inventário de BB, não tem para requerer o inventário da sua primeira mulher.
Em face do exposto, por não ter legitimidade para requerer o inventário de CC, os presentes autos prosseguirão, somente, para o inventário de BB. (…).”.
“1. Verificando-se que a partilha do inventariado BB se encontra dependente da partilha da sua 1.ª mulher, CC, deverá ser admitida a cumulação de inventários nos termos do disposto no artigo 1094.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil.
2. O Tribunal de 1.ª Instância fez errada interpretação da al. c) do n.º 1 do artigo 1094.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
3. Apenas será possível definir os concretos os bens da herança de BB após realização da partilha da herança aberta por óbito da sua 1.ª mulher, CC;
4. A maioria dos bens a partilhar são os mesmos.
5. Os bens serão repartidos pelas mesmas pessoas, salvo no que diz respeito à aqui recorrente.
6. Sendo que a aqui recorrente, enquanto herdeira do inventariado, marido poderá vir a herdar em qualquer um desses bens (como aconteceria com aquele se a partilha da 1ª mulher tivesse sido realizada).
7. Integrando a herança de BB um quinhão na herança aberta por óbito da sua 1.ª mulher, que é transportado ao seu acervo hereditário, a recorrente, que, não há dúvidas, detém legitimidade para requerer se proceda a inventário do marido, tem por inerência legitimidade para requerer a partilha da herança da 1.ª mulher, já que dela depende a partilha do marido.
8. Se não for admitida a cumulação de inventários não se poderá partilhar aqueles 12 imóveis que integravam o património conjunto com CC.
9. O interessado a quem couber o referido quinhão pertencente ao inventariado (que até poderá ser à aqui recorrente) terá de reiniciar um outro processo para partilha da herança de CC.
10. Tal conduz a uma duplicação desnecessária de processos, de despesas e de tempo e poderá criar até constrangimentos na partilha.
11. Verificando-se existir dependência parcial a cumulação é igualmente de admitir nos termos do n.º 3 do artigo 1094.º do Código de Processo Civil.
12. A cumulação de inventários é solução que permite a partilha do património em questão com menores gastos e de forma mais rápida e justa.
Nestes Termos E Nos Melhores De Direito, Com V/Exas. Doutamente Suprirão Deve O Presente Recurso Merecer Provimento E Em Consequência Ser Admitida A Cumulação De Inventários.”.
Com base na prova documental junta ao processo, regista-se que, além do supra exposto, a factualidade relevante a ponderar é a seguinte:
1. CC faleceu, em ../../2011, no estado de casada em 1.ªs núpcias de ambos e sob o regime da comunhão geral de bens com BB, desde ../../1957 – doc. nº 3.
2. BB faleceu, em ../../2020, no estado de casado em 2.ªs núpcias com AA sob o regime imperativo da separação de bens, desde ../../2019 – doc. n.º 15.
3. Do casamento de CC e de BB nasceram 10 filhos: 1) DD, 2) EE, 3) FF, 4) GG, 5) HH, 6) II, 7) JJ, 8)KK, 9) LL, e, 10) MM – docs. n.ºs 4 a 14.
4. Os inventariados deixaram património que se encontra por partilhar.
Recapitulando, a questão decidenda consiste em apurar se a recorrente tem legitimidade para pedir a cumulação do inventário do seu falecido marido com o inventário da 1.ª mulher deste.
A 1.ª Instância considerou que a requerente, embora tenha legitimidade para requerer o inventário de BB, não a tem para requerer o inventário da sua primeira mulher – CC –, pois não é sua herdeira, por não ser directamente beneficiada pela partilha e não constar do elenco do artigo 2101.º do Código Civil.
Diversamente, a recorrente considera que a partilha do inventariado BB está dependente da partilha da sua 1.ª mulher, CC, pelo que deve ser admitida a cumulação de inventários, nos termos do disposto no artigo 1094.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil.
Vejamos.
O n.º 1, alínea a), do artigo 1085.º do Código de Processo Civil (“Legitimidade”) estabelece que “[tê]m legitimidade para requerer que se proceda a inventário e para nele intervirem, como partes principais, em todos os atos e termos do processo: a) os interessados diretos na partilha e o cônjuge meeiro, ou no caso da alínea b) do artigo 1082.º, os interessados na elaboração da relação de bens”.
Este artigo regula a legitimidade processual definindo quem tem legitimidade para ser parte principal no processo de inventário.
A respeito do conceito de interessados directos na partilha, Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e outras alterações na Legislação Processual Civil, 2020, pp. 32/33, tecem as seguintes considerações:
“Vem, de há muito, constituindo matéria controvertida a exacta definição do conceito indeterminado de interessado directo na partilha (cf. Lopes Cardoso 1, 299 ss.):
a) Ao criar através da Reforma de 94 o conceito indeterminado de interessado directo na partilha, o legislador não pretendeu apenas abranger os herdeiros. Seria inexplicável que, se tais conceitos – o de interessado directo na partilha e o de herdeiro – tivessem exactamente o mesmo sentido, se tivesse utilizado aquele primeiro como estrito sinónimo do bem mais perceptível e incontroverso conceito de herdeiro. A figura jurídica do interessado directo na partilha pressupõe que o legislador admitiu que outros sujeitos, que não apenas os herdeiros do de cujus, possam ter legitimidade para requerer e intervir no inventário como parte principal.
Os interessados directos na partilha serão, deste modo, os sujeitos que, sendo ou não herdeiros do de cujus, vêem a sua esfera jurídica ser atingida, de forma imediata e necessária, pelo modo como se organiza e concretiza a partilha do acervo hereditário.
b) Uma das hipóteses em que se justifica a subsunção ao conceito de interessado directo é a do cônjuge do herdeiro, quando, por força do regime de bens que vigore entre os cônjuges, os bens que venham a ser adquiridos na partilha se integrem na comunhão conjugal, ou seja, no património comum de que são contitulares o herdeiro e o respectivo cônjuge (Lopes Cardoso I, 302 s.; Câmara et al., 40; cf. RC 3/7/12 (45/10); RE 8/6/17 (706/13); dif. RP 14/2/13 0625/09)). É o que ocorre no caso de vigorar entre os cônjuges o regime da comunhão geral de bens, tendo o cônjuge meeiro manifesto interesse face ao preceituado nos arts. 1732.º e 1689.º, n.º 1, CC, no modo como se realiza e concretiza a partilha (cf. RC 3/7/ 12 (45/10)); é o que também acontece na hipótese de vigorar entre os cônjuges um regime em que esteja convencionada a comunicabilidade de bens adquiridos a título sucessória, ao abrigo da liberdade de estipulação que é consentida pelo art. 1698.º CC; por fim, é ainda o que se verifica quanto à situação do adquirente de quinhão hereditário e respectivo cônjuge, quando o bem adquirido se lhe comunique por força do regime matrimonial de bens.
Não é, contudo, o que ocorre quando o regime de bens do casamento for o da comunhão de adquiridos, que, como regime supletivo (art. 1717.º CC), é, actualmente, o mais frequente. Isto porque, segundo o disposto no art. 1722.º, n.º 1, ªl- 13), CC, são bens próprios de cada cônjuge os que lhe advenham por sucessão depois do casamento.
c) No amplo conceito de interessado directo na partilha, largamente acolhido na doutrina e na jurisprudência, inclui-se o cônjuge meeiro, nos casos em que, por força do regime matrimonial, os bens a partilhar devam reverter para a comunhão conjugal. É a solução que melhor se harmoniza com a norma constante do art. 2101.º, n.º 1, CC, nos termos da qual qualquer co-herdeiro ou cônjuge meeiro tem o direito de exigir a partilha. Numa interpretação actualista, que é imposta por um sistema que há várias décadas reconhece o cônjuge como sucessível (cf. art. 2133.º, n.º 1, al. a), CC), o cônjuge meeiro referido no art. 2101.º, n.º 1, CC não pode deixar de ser quer o cônjuge do inventariado, quer o cônjuge do herdeiro.
Do disposto no art. 2101.º, n.º 1, CC – que se refere separadamente ao co-herdeiro e ao cônjuge meeiro – também resulta que este cônjuge tem legitimidade para requerer o inventário, mesmo que não seja herdeiro. Se o preceito pretendesse atribuir legitimidade ao cônjuge meeiro apenas no caso de ele também ser herdeiro, então a referência ao cônjuge meeiro seria tautológica.
Deste modo, perante eventuais dúvidas relativamente à qualidade de interessado directo do cônjuge meeiro de herdeiro e à sua legitimidade para requerer o inventário, a questão foi explicitamente solucionada através de uma verdadeira norma interpretativa, na qual se prevê que, quer ao cônjuge meeiro do de cujus, quer ao cônjuge meeiro do herdeiro, é reconhecida legitimidade para requerer o inventário e nele como parte principal, ou seja, em todos os actos e termos do processo (n.º 1, al. a)). A solução harmoniza o regime processual com a norma constante do art. 2101.º, n.º 1, CC.
O cônjuge meeiro, como interessado directo, possui a qualidade de parte principal, pelo que pode praticar em juízo todos os actos inerentes a essa qualidade (como, aliás, se decidiu no Ass. STJ 12/1/65 (DG (I.ª Série) 29/1/65)). Se o cônjuge meeiro não for requerente do inventário, terá de der demandado e citado como parte principal para os termos do processo, podendo, nesse caso, deduzir qualquer oposição, formular qualquer impugnação e fazer qualquer reclamação (cf. art. 1104.º), bem como participar nas diligências que integram a conferência de interessados e nela licitar (cf. arts. 1111.º e 1113.º)”.
Por seu turno, o n.º 1 do artigo 2101.º do Código Civil, intitulado “Direito de exigir a partilha”, dispõe que “[q]ualquer co-herdeiro ou o cônjuge meeiro tem o direito de exigir partilha quando lhe aprouver”.
Deste modo, em face do acima exposto, é incorrecta a afirmação da 1.ª Instância segundo a qual só os herdeiros que são directamente beneficiados pela partilha são os interessados directos na sua realização.
Por seu turno, o artigo 1094.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Cumulação de inventários”, preceitua:
“1. É admissível a cumulação de inventários para a partilha de heranças diversas quando:
a) As pessoas por quem tenham de ser repartidos os bens sejam as mesmas;
b) Se trate de heranças deixadas pelos dois cônjuges;
c) Uma das partilhas esteja dependente da outra ou das outras.
2. No caso referido na alínea c) do número anterior:
a) Se a dependência for total, a cumulação é sempre admissível, por não haver, numa das partilhas, outros bens a adjudicar além dos que ao inventariado tenham de ser atribuídos na outra;
b) Se a dependência for apenas parcial, o juiz pode indeferir a cumulação quando a mesma se afigure inconveniente para os interesses das partes ou para celeridade do processo, por haver outros bens a partilhar”.
A este respeito, expendeu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11-05-2021, Proc. 67/20.5T8LSA-A.C1, cujas palavras acompanhamos:
“A cumulação de inventários justifica-se porquanto:
«Os interessados partilham num só processo duas ou mais heranças a que concorrem e reduzem com isso a sua intervenção, evitam a repetição de diligências, a possível fragmentação da propriedade e até o pagamento de custas mais avultadas.
A actividade judiciária torna-se mais útil, porque de pronto esclarece as partilhas, são mais céleres o seu andamento e conclusão.
O inventário toca mais cedo o seu termo e dai advêm vantagens para a administração de cada um, no pagamento das despesas, dos impostos e na cobrança das receitas.
Resulta ainda uma partilha mais igualitária.
Por outro lado, não se descortinam inconvenientes vultosos, que os direitos de todos em nada são preteridos com a cumulação, e aos intervenientes asseguram-se os mesmíssimos meios de defesa» - Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, Vol. I, 4.ª edição. Almedina, 1990, pág. 192.
No caso da al. b) do nº1 cabem aí as situações em que «se não procedeu a inventário por óbito do cônjuge predefunto» sendo que no caso desse preceito legal «não pode a cumulação deixar de ser ordenada quando requerida» - cfr. Autor e ob. Cits. pgs. 196 e 201.
No caso vertente.
A cumulação não pode deixar de ser deferida, e, ao menos essencialmente, pelas razões aduzidas pela recorrente.
Em primeiro lugar porque as interessadas dos bens das duas heranças são as mesmas – al. a).
Em segundo lugar porque se trata de heranças deixadas pelos dois cônjuges que feneceram sucessivamente sem que as partilhas a cada um deles atinentes se tenham verificado – al. b).
Sendo que, e como se viu, nestes casos só, quiçá, excecionalmente, e por razões mui ponderosas claramente explicitadas, tal cumulação deve ser arredada.
Em terceiro lugar porque, tanto quanto emerge do recurso e dos factos nele alegados pela recorrente – que devem, porque não contestados pela recorrida, ser dados como assentes –, existe uma relação de total dependência entre os dois inventários, já que numa das partilhas inexistem outros bens a adjudicar para além dos que ao inventariado tenham de ser atribuídos na outra. (…)
Logo, existindo a necessidade, ou a possível necessidade, de uma apreciação relativamente ao acervo sucessório que possa colocar-se atenta, ou por referência, ao respetivo de cujus, ou numa ótica que possa contender ou ser influenciada, pela perspetivação de situações jurídicas ou direitos sucessórios a eles, individual ou dualmente consideradas, é óbvio que a sua dilucidação pelo mesmo juiz, a um tempo, e numa perspetiva global e unitária, é preferível a todos os títulos: de celeridade, de economia de meios e, quiçá, não de somenos, e como supra aludido, de uma partilha justa e equitativa – cfr. Ac. RC de 20.05.2020, p. 3311/12.9YXLSB-C.C1 in dgsi.pt.”
Revertendo ao caso sub judice, é evidente que a partilha da herança do inventariado BB depende da partilha da herança da sua 1.ª mulher, com quem foi casado sob o regime da comunhão geral, e só será possível definir os concretos bens da herança do de cujus, que foi casado com a cabeça-de-casal e recorrente, após a realização da partilha da herança aberta por óbito da sua 1.ª mulher, CC.
O artigo 1094.º, n.º 1, alínea c), do CPC, autoriza a cumulação de inventários quando “uma das partilhas esteja dependente da outra”, sendo certo que, como alegado pela cabeça-de-casal, a maioria dos bens a partilhar são os mesmos e os bens serão repartidos pelas mesmas pessoas, salvo no que diz respeito à aqui recorrente, verificando-se, por conseguinte, que a partilha do património do inventariado BB se encontra largamente dependente da partilha do património da sua 1.ª mulher, CC, pelo que deverá ser admitida a cumulação de inventários nos termos do disposto naquele preceito legal.
É indesmentível, como nota a recorrente, que a herança de BB integra um quinhão na herança aberta por óbito da sua 1.ª mulher, que é transportado ao seu acervo hereditário, e inexistem dúvidas que detendo a recorrente legitimidade para requerer se proceda a inventário do marido, tem por inerência legitimidade para requerer a partilha da herança da 1.ª mulher, já que dela depende a partilha do acervo hereditário do marido, pois de outra maneira inviabilizar-se-ia a partilha dos bens que integravam o património conjunto com CC.
Em consonância, é de julgar procedente a apelação, não havendo lugar ao pagamento de custas por parte da recorrente.
Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida, admitindo-se a cumulação dos inventários para partilha dos bens das heranças de BB e CC.
Não há lugar ao pagamento de custas processuais.
Luís Miguel Caldas
Francisco Costeira da Rocha
Hugo Meireles
[1] Juiz Desembargador relator: Luís Miguel Caldas /Juízes Desembargadores adjuntos: Dr. Francisco Costeira da Rocha e Dr. Hugo Meireles.