CONTRATO DE EMPREITADA
ABANDONO DA OBRA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
LIQUIDAÇÃO DOS INTERESSES DAS PARTES EM FUNÇÃO DO QUE FOI CUMPRIDO
Sumário

1. - Apurando-se que o empreiteiro (réu na ação) abandonou a obra, deixando-a por acabar, mas recebeu do dono da obra (autor na ação), durante a execução dos trabalhos, valor superior ao preço total acordado – por via de adiantamentos e pagamentos que solicitou à contraparte – e que o contrato ficou extinto/resolvido por incumprimento definitivo do empreiteiro, o facto de não se ter determinado o valor dos trabalhos executados e por executar, não impede, na “relação de liquidação” que se impõe perante a resolução contratual, uma condenação imediata do réu no montante, já líquido, correspondente ao que foi entregue em excesso (para além do valor do preço).
2. - Na parte restante do que foi prestado pelo dono da obra – no pressuposto de que esta seria concluída –, dentro do valor de preço acordado, a não determinação do valor correspondente aos trabalhos por executar obriga à condenação do réu no que vier a liquidar-se em incidente de liquidação, por ainda ser possível a determinação do respetivo montante com recurso a provas adicionais (restituição do valor correspondente ao que ficou por executar).
3. - Tendo ocorrido execução parcial da obra e do respetivo contrato, com feitura de trabalhos no âmbito da empreitada, que aproveitam ao dono da obra, não pode o efeito da resolução ser linear – simplesmente restitutório integral, em termos retroativos –, mas, para evitar um enriquecimento injustificado do dono da obra, ter em conta a parte do programa contratual proveitosamente executada, obrigando a uma liquidação dos interesses das partes em função do que foi cumprido.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

*

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

AA, com os sinais dos autos,

intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra

BB, também com os sinais dos autos,

pedindo a condenação do R. (empreiteiro):

a) A reconhecer a resolução do contrato de empreitada, sem necessidade de interpelação admonitória prevista no art.º 808.º, n.º 1, do Código Civil (doravante, CCiv.);

b) A pagar ao A. o valor que este vier a despender com a execução dos trabalhos em falta; bem como

c) A restituir ao A. o valor de € 80.613,42, que lhe foi entregue e gasto em materiais englobados no custo da empreitada e da responsabilidade do R.;

d) A pagar indemnização por danos não patrimoniais, em valor não inferior a € 10.000,00, acrescidos de juros moratórios, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.

Para tanto, alegou, no essencial, que:

- enquanto dono da obra, celebrou com o R. um contrato verbal de empreitada, referente a obras de renovação em imóvel, pelo preço acordado de € 50.676,00, sendo, porém, que, perante as dificuldades invocadas pelo R. para concluir a obra, o A. acabou por lhe adiantar pagamentos e prestar quantias no montante global de € 80.613,42;

- não obstante, o R. não acabou os trabalhos e abandonou a obra, dizendo que não tinha capacidade para a concluir, nem dinheiro para restituir, o que traduz conduta definitiva de abandono e incumprimento, deixando grande parte do trabalho por realizar e, assim, levando o A. a optar pela resolução do contrato, como peticionado na ação;

- a conduta do R., para além do mais, causou ao A. danos não patrimoniais, que invoca e cujo ressarcimento pretende.

O R., citado, não contestou.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 567.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil (doravante, NCPCiv.), considerando-se confessados os factos articulados pelo A., não tendo sido apresentadas alegações escritas.

Após, foi proferida sentença, datada de 03/06/2025, com o seguinte dispositivo:

«(…) julgo a ação provada e o pedido parcialmente procedente, e em consequência:

1. Declaro resolvido o contrato de empreitada celebrado entre as partes, por incumprimento definitivo do Réu, nos termos do artigo 808º, n.º 1 do Código Civil.

2. Condeno o Réu a restituir ao Autor a quantia correspondente aos valores pagos e gastos com materiais e serviços da responsabilidade do Réu, a fixar em sede de liquidação de sentença.

3. Absolvo o réu do pagamento da quantia referente aos trabalhos em falta que vierem a ser realizados, com a conclusão dos trabalhos em falta.

4. Condeno o Réu a pagar ao Autor a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, a que acrescem juros de mora à taxa legal, desde a presente data e até efetivo e integral pagamento;

5. Custas da ação a cargo do réu.».

Inconformado, o A. recorre do assim decidido, apresentando alegação recursiva, onde formula as seguintes

Conclusões ([1]):

«A) O Tribunal deu como provado que o valor orçamentado ascendia a 50.676,00€ (cinquenta mil, seiscentos e setenta e seis euros) e que o Recorrente pagou 80.613,42€ (oitenta mil, seiscentos e treze euros e quarenta e dois cêntimos), o que dita desde logo uma diferença de 29.973,42€ (vinte e nove mil, novecentos e trinta e sete euros e quarenta e dois cêntimos), valor esse que não carece de liquidação de Sentença para o apuramento.

B) No entanto, o Tribunal a quo remeteu para liquidação de sentença o apuramento entre os valores pagos e gastos com materiais e serviços da responsabilidade do Réu.

C) Não se conforma o Recorrente com a falta de fundamentação de tal decisão, não se pode o Recorrente conformar com uma mera consideração e discordância infundamentada o que, por força do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al. c) do CPC, determina que o despacho saneador seja declarado nulo, o que aqui se requer para todos os efeitos legais.

Ademais,

D) O Recorrente intentou a presente demanda contra o Recorrido que, regularmente citado, não contestou.

E) Mais tarde, veio a ser proferida a Sentença aqui posta em crise que decidiu “1. Declaro resolvido o contrato de empreitada celebrado entre as partes, por incumprimento definitivo do Réu, nos termos do artigo 808º, n.º 1 do Código Civil. 2. Condeno o Réu a restituir ao Autor a quantia correspondente aos valores pagos e gastos com materiais e serviços da responsabilidade do Réu, a fixar em sede de liquidação de sentença. 3. Absolvo o réu do pagamento da quantia referente aos trabalhos em falta que vierem a ser realizados, com a conclusão dos trabalhos em falta. 4. Condeno o Réu a pagar ao Autor a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, a que acrescem juros de mora à taxa legal, desde a presente data e até efetivo e integral pagamento; 5. Custas da ação a cargo do réu.”

F) Foram dados como provados os seguintes factos de 1.1. a 1.31.

G) O recorrido não contestou, pelo que se consideraram confessados os factos alegados pela recorrente na Petição Inicial.

H) Dispõe o art. 567.º, n.º 1, que «se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor».

I) Foi, o que sucedeu neste processo, onde o recorrido, apesar de regulamente citado na sua própria pessoa, se manteve em revelia absoluta.

J) A circunstância de se considerarem confessados ou admitidos os factos alegados pelo autor, isso não implica, necessariamente, que o desfecho da causa seja exatamente o pretendido pelo demandante.

K) No caso de a petição inicial revelar insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, a situação de revelia absoluta em que o réu se encontre, não é fator impeditivo da prolação pelo juiz de despacho de aperfeiçoamento, desde que a manutenção do seu conteúdo original ponha em causa a procedência da ação, ou seja, sempre que os factos articulados na petição inicial e considerados confessados ou admitidos, sejam insuficientes ou imprecisos tendo em vista o efeito jurídico almejado pelo autor, deve o juiz convidá-lo a completar ou corrigir o inicialmente produzido, o mesmo sucedendo quando o demandante não tiver procedido à junção de documentos necessários à demonstração dos factos alegados na petição inicial, caso em que o julgador deve proferir despacho a convidá-lo a proceder à sua junção

L) Como é bom de perceber, inexistiu qualquer convite ao aperfeiçoamento, pelo que os factos articulados pelo Recorrente foram considerados suficientes para a prolação de uma Decisão.

M) É inequivoco – e resulta diretamente dos factos dados como provados – os valores pagos pelo Recorrente por conta do Recorrido. O Recorrente adiantou valores e ainda pagou pelos materiais e serviços a realizar – pagamentos estes da responsabilidade do Recorrido, que estão certos e quantificados, bem como devidamente provados, pelo que se impõe decisão diferente da recorrida.

N) Mesmo que se considere que não é possivel quantificar alguma parcela, o que não se concebe, sempre se dirá que, entre o preço da empreitada – se fosse devidamente finalizada pelo Recorrido, que não foi – e o pago pelo Recorrente, entre adiantamentos, valor pedido a mais e valores pagos por conta deste de materiais e mão-de-obra, temos uma diferença de 29.973,42€ (vinte e nove mil, novecentos e trinta e sete euros e quarenta e dois cêntimos) (80.613,42-50.676,00), impondo-se assim condenação diferente ao decidido em 2 “Condeno o Réu a restituir ao Autor a quantia correspondente aos valores pagos e gastos com materiais e serviços da responsabilidade do Réu, a fixar em sede de liquidação de sentença”

O) Por tudo o exposto, deve a Sentença aqui posta em crise ser revogada, devendo ser substituída por outra que a julgue a ação totalmente procedente e condene o Reu/Recorrido a restituir a quantia de 80.613,42€ ou, caso assim não se considere, pelo menos, fixando-se desde já como valor liquido à restituição o montante de 29.973,42€ (vinte e nove mil, novecentos e trinta e sete euros e quarenta e dois cêntimos), ao qual deverá acrescer o valor que não corresponda ao preço dos trabalhos executados pelo Recorrido, valor esse a apurar em sede de liquidação de sentença, pelos motivos supra expostos.

Nestes termos e nos melhores de direito:

Deve o presente recurso ser procedente e, em consequência, ser revogada a douta Sentença recorrida devendo ser substituida por outra que a julgue a ação totalmente procedente e condene o Reu/Recorrido a restituir a quantia de 80.613,42€ ou, caso assim não se considere, pelo menos, fixando-se desde já como valor liquido à restituição o montante de 29.973,42€ (vinte e nove mil, novecentos e trinta e sete euros e quarenta e dois cêntimos), ao qual deverá acrescer o valor que não corresponda ao preço dos trabalhos executados pelo Recorrido, valor esse a apurar em sede de liquidação de sentença, pelos motivos supra expostos.

ASSIM FARÃO V/EXAS. INTEIRA JUSTIÇA.».

Não foi apresentada contra-alegação recursiva.

O recurso foi admitido como de apelação, com o regime e efeito fixados no processo ([2]), tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foram mantidos tais regime e efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação recursiva, ao conhecimento do mérito da apelação, cumpre apreciar e decidir.


***

II – ÂMBITO DO RECURSO

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo fixado em sede de articulados – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([3]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do NCPCiv. –, está em causa na presente apelação saber:

a) Se ocorre nulidade da sentença, nos termos do disposto no “art.º 615.º, n.º 1, al.ª c)”, do NCPCiv., como consta da conclusão C) [ou, diversamente, da respetiva al.ª b), por o recorrente se referir ao vício de “falta de fundamentação”];

b) Se, por erro de julgamento de direito, deve a sentença ser revogada (na parte absolutória), com substituição por acórdão que determine a total procedência da ação ou, assim não sendo entendido, mediante fixação desde já de valor líquido, para além de parcela ilíquida a apurar em subsequente incidente de liquidação, nos termos do petitório recursivo.


***

III – FUNDAMENTAÇÃO

         A) Matéria de facto

Na 1.ª instância foi considerada a seguinte factualidade como provada ([4]):

«1.1. O autor é dono e legítimo proprietário de um prédio urbano sito na Rua ..., freguesia ... e paços de ..., concelho ..., destinado a habitação, inscrito na matriz urbana sob o nº ...58.

1.2. O referido prédio foi adquir[id]o por escritura de compra e venda por parte do autor à herança ilíquida e indivisa por óbito de CC, encontrando-se descrito e inscrito a favor do autor na conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...19.

1.3. O autor levou a registo a referida aquisição em 24 de setembro de 2012, através da AP:3583, encontrando-se o prédio dos AA registado em seu nome na competente Conservatória do Registo Predial.

1.4. O A, por si e antecessores que legitimamente representa, vem detendo e fruindo o imóvel acima descrito, dele cuidando, zelando e conservando, do mesmo passo que, mantendo-o em seu nome inscrito nos tombos matriciais, lhe suportam todos os encargos, O que faz e sempre fez à vista e com o conhecimento de toda a gente, e sem oposição de ninguém, No ânimo de quem é dono e exerce direito próprio, E desde há mais de vinte e de trinta anos, continuadamente, dia após dia, mês após mês, ano após ano, sem qualquer interrupção.

1.5. O autor resolveu adquirir o imóvel identificado em 1.1. com vista a ali formar e nele reconstruir a sua casa de habitação e para a sua família.

1.6. O imóvel necessitava de obras, pelo que o autor iniciou, no inic[i]o do ano de 2022, a auscultação do mercado para obter orçamentos com vista a levar a cabo obras de reconstrução do imóvel.

1.7. Em 2022, o Autor contratou verbalmente o Réu, construtor civil, para realizar obras de remodelação no imóvel, tendo acordado para realização das obras (renovação da casa do autor) o pagamento do orçamento no valor de €50.676,00.

1.8. O autor entregou os trabalhos ao réu.

1.9. Não foi celebrado contrato escrito.

1.10 O réu iniciou os trabalhos de remodelação na habitação do Réu em meados de 2022.

1.11. O réu começou por apresentar enorme dificuldade em coordenar, queixava-se que não tinha dinheiro, revelando dificuldades em coordenar a obra, alegando falta de mão de obra e materiais.

1.12. O autor ia adiantando dinheiro ao Réu, bem como ia adquirindo o material necessário para se fazer os trabalhos, a pedido do Réu

1.13. O autor ainda se via confrontado com inúmeros pedidos de adiantamento de valores por parte do réu, a que o autor ia anuindo, a ver se conseguia levar a diante o projeto.

1.14. Assim, o autor entregou em 24 de Outubro de 2022 ao Réu com forma de adiantamento pelos trabalhos a fazer a quantia de € 11.000,00 (onze mil euros) .

1.15. Entregou em 14 de Agosto de 2023 a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), sendo que já havia entregue a quantia de 6.000,00 € ao Réu, tudo conforme resulta do manuscrito junto. Depois, em 22 de setembro de 2023, o autor adiantou ao Réu mais 16.000,00 €

1.16. Em 27 de outubro, acabou o autor por lhe dar mais € 10.000,00 (dez mil euros).

1.17. O autor acabou por entregar ao Réu mais € 5.000,00 (cinco mil euros).

1.18. Tendo ainda entregue mais € 10.000,00 (dez mil euros) e ainda mais € 5.000,00 (cinco mil euros).

1.19. O autor ia cedendo aos pedidos do réu de que necessitava de dinheiro e se lhe podia adiantar por conta dos trabalhos e o autor ia cedendo.

1.20. O autor chegou a pagar os alugueres os andaimes da obra ao Réu, da sua inteira responsabilidade, na quantia de € 2.138,97 (dois mil, cento e trinta e oito euros e noventa e sete cêntimos) a uma empresa designada de A..., Unipessoal Lda..

1.21. O autor, porque pretendia fazer a remodelação, foi anuindo nos pedidos do Réu, que lhe disse que os descontava ao preço final.

1.22. Totalizando os pagamentos por conta do réu no valor de € 6.924,45 (seis mil, novecentos e vinte e quatro euros e quarenta e cinco cêntimos).

1.23. O autor fez também um pagamento, por conta do réu, no valor de € 2.650,00 (dois mil, seiscentos e cinquenta euros) à empresa moveis DD - DD com sede na rua ... em ....

1.24. Tendo ainda o autor pago por conta dos trabalhos a cargo do réu conforme orçamentado o valor de € 900,00 (novecentos euros) por serviços de canalizar/pichelaria.

1.25. Pagou assim o autor ao réu, entre adiantamentos, valor pedido a mais pelo Réu e valores pagos por conta deste de materiais e mão de obra, ao Réu a quantia de € 80.613,42 (oitenta mil, seiscentos e treze euros e quarenta e dois cêntimos), quantia essa, superior àquela que estava orçamentada.

1.26. O autor tentou obter explicações do réu, tendo fixado o prazo de 10 dias úteis para retomar os trabalhos, tendo o réu referido que não tinha mais capacidade para concluir a obra.

1.27. Confrontado com a restituição do valor, o réu afirmou que não tinha o dinheiro para restituir.

1.28. A obra encontra-se por concluir.

1.29. Terá ainda a o autor que despender valores de materiais e mão de obra que não pode por ora indicar.

1.30. O réu deixou grande parte do trabalho a que se propôs por realizar.

1.31. Com a atuação do réu, sofreu o autor momentos de angústia, ansiedade e frustração, por ver o seu projeto de habitação familiar comprometido.» ([5]).

B) Substância do recurso

1. - Da nulidade da sentença

Como resulta das suas conclusões recursivas A) a C), o A./Apelante começa por arguir a nulidade da sentença, ao abrigo do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al.ª c), do NCPCiv., o que nos transportaria para a invocação da causa de invalidade traduzida em contradição/oposição (entre os fundamentos e a decisão) ou ininteligibilidade (por ambiguidade ou obscuridade) [cfr., especificamente, a conclusão C)].

Porém, se o Recorrente não mostra onde se encontre tal vício de “oposição” ou “ininteligibilidade”, certo é que na sua antecedente alegação o vício imputado é sempre reconduzido à “FALTA DE FUNDAMENTAÇAO” (cfr. ponto II da motivação recursiva).

Assim, do que pode retirar-se da sua peça recursiva, o Apelante pretende, na realidade, invocar o vício de falta de fundamentação, a que alude a al.ª b) do n.º 1 do dito art.º 615.º, traduzindo-se a menção à al.ª “c)” num manifesto lapso de escrita (quanto à qualificação concreta do vício).

Por isso, apreciar-se-á aqui a causa de nulidade traduzida na aludida falta de fundamentação (e não contradição ou ininteligibilidade).

Invoca o Apelante, como visto, que o Tribunal a quo incorreu em falta de fundamentação da decisão, mormente quando “remeteu para liquidação de sentença o apuramento entre os valores pagos e gastos com materiais e serviços da responsabilidade do Réu”, âmbito em que não se conforma “com a falta de fundamentação” a respeito.

Apreciando.

A fundamentação da decisão em crise contém, manifestamente, fundamentação de facto e justificação da convicção, o que o Recorrente nem sequer põe em causa.

Na fundamentação jurídica, por sua vez, consta a qualificação jurídica do contrato – contrato de empreitada –, a identificação dos deveres inerentes para as partes no contrato, bem como referências ao incumprimento contratual, designadamente por abandono da obra, à decorrente resolução do contrato pela parte adimplente e respetivas consequências.

Nessa senda, concluiu-se ali que ocorreu incumprimento definitivo por parte do R./empreiteiro e consequente responsabilidade contratual pelo mesmo.

Neste âmbito, concretizou-se a fundamentação pelo seguinte modo (quanto ao que agora importa):

«O Autor tem, assim, direito à restituição dos valores pagos, que não correspondam ao preço dos trabalhos executados pelo réu na obra e à indemnização por danos não patrimoniais, nos termos dos artigos 483º e 496º do Código Civil.

Uma vez que não é possível concluir pelo valor dos trabalhos efetivamente executados pelo réu, por forma a permitir calcular o valor da peticionada indemnização, relega-se a sua determinação para liquidação de execução de sentença.».

Assim, embora sucinta, mas com expressa convocação de preceito legal fundante, não pode dizer-se que tal decisão é destituída de qualquer fundamentação, nem sequer neste particular, compreendendo-se, ao invés, as razões – suficientemente ali explicitadas – pelas quais se julgou no sentido de não fixar ainda valor indemnizatório, relegando-se, diversamente, a sua determinação para ulterior incidente de liquidação.

Pode não se concordar com o sentido decisório adotado, mas não se evidencia ausência de fundamentação, isto é, falta de menção (muito embora sucinta) às razões pelas quais assim se decidiu, o que logo determina a improcedência da arguição de nulidade da sentença.

Com efeito, quanto ao vício de falta de fundamentação, dispõe o art.º 615.º, n.º 1, al.ª b), do NCPCiv. que a sentença – ou despacho – é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

E é entendimento pacífico – na nossa doutrina e jurisprudência – que a fundamentação insuficiente ou deficiente da sentença não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, mas apenas a falta absoluta da respetiva fundamentação.

É que a causa de nulidade referida na al.ª b) do n.º 1 do 615.º do NCPCiv. (anterior art.º 668.º do CPCiv. revogado) ocorre quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido, mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão, violando o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (cfr., desde logo, o art.º 208.º, n.º 1, CRPort.).

Assim, como refere, a este propósito, Teixeira de Sousa – cfr. “Estudos sobre o Processo Civil”, p. 221 –, “o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (...) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (...); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível”. E já Alberto dos Reis enfatizava – cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. V, p. 140 – que deve distinguir-se a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.

Em suma, não padecendo, manifestamente, a decisão em crise de falta absoluta de fundamentação, tem de improceder a argumentação do Recorrente em contrário, inexistindo a assacada nulidade.

2. - Do erro de julgamento de direito

Cabe agora saber se deve a sentença ser revogada (na parte absolutória), com substituição por acórdão que determine a total procedência da ação ou, assim não sendo entendido, mediante fixação desde já de valor líquido, para além de parcela ilíquida a apurar em subsequente incidente de liquidação, nos termos do petitório recursivo.

Defende o Recorrente [conclusões L) a N)] que inexiste dúvida quanto aos valores (e sua quantificação) por si pagos/adiantados (por provados), pagamentos esses que eram da responsabilidade do Recorrido.

Por isso, mesmo “que se considere que não é possível quantificar alguma parcela (…), entre o preço da empreitada (…) e o pago pelo Recorrente, entre adiantamentos, valor pedido a mais e valores pagos por conta deste de materiais e mão-de-obra, temos uma diferença de 29.973,42€” (correspondente, alegadamente, a “80.613,42 - 50.676,00”), “impondo-se assim condenação diferente”, com liquidação, desde já, desse valor de € 29.973,42, caso não se determine a total procedência da ação.

Vejamos, começando por esta pretensão recursiva de procedência integral da ação.

Como resulta do dispositivo da sentença, perante pedidos cumulados, foi decidido:

a) Absolver o R. “do pagamento da quantia referente aos trabalhos em falta que vierem a ser realizados, com a conclusão dos trabalhos em falta”;

b) Condenar o R. “a restituir ao Autor a quantia correspondente aos valores pagos e gastos com materiais e serviços da responsabilidade do Réu, a fixar em sede de liquidação de sentença”; e

c) Condenar o R. “a pagar ao Autor a quantia de € 2.000,00 (…), a título de indemnização por danos não patrimoniais, a que acrescem juros de mora à taxa legal, desde a presente data e até efetivo e integral pagamento”.

Ora, desde logo, o A./Recorrente nada contrapõe, que se veja, à fixação desta quantia de € 2.000,00 de indemnização por danos não patrimoniais ([6]), quando peticionara € 10.000,00.

Por isso, não se poderia esperar que fosse agora julgada integralmente procedente a ação nesta parte, com condenação naquele montante peticionado.

Com efeito, cabia ao Recorrente mostrar as razões pelas quais deveria a sentença ser alterada e fixado o montante (superior) de € 10.000,00, já que, como é consabido, compete ao impugnante, se entende ocorrer erro de julgamento (no caso, de direito), indicar os fundamentos por que pede a alteração da decisão (cfr. art.º 639.º, n.º 1, do NCPCiv.). O que, porém, não fez, não observando ónus legal a seu cargo.

Daí a improcedência do recurso nesta parte.

O mesmo se diga em relação ao pedido de pagamento da quantia referente aos trabalhos em falta que vierem a ser realizados.

A absolvição teve aqui o seguinte fundamento:

«Quanto aos valores necessários para executar a obra, esta pretensão será de indeferir, por não poder o réu ser responsabilizado no pagamento dos trabalhos e realizar por terceira pessoa, pois que tal configuraria um enriquecimento sem justa causa do autor, não sendo o pagamento dos valores que o autor vier a despender da responsabilidade do réu, apenas a devolução dos valores recebidos que não correspondam a obras efetivamente realizadas pelo Réu.».

Cabia ao A./Recorrente, à luz do disposto no mencionado art.º 639.º, n.º 1, o ónus de indicar os fundamentos por que pede a alteração da decisão, de molde a deixar evidenciado o pretendido erro de julgamento de direito. O que – mais uma vez – não fez.

Por isso, logo tem de improceder também esta vertente recursiva, com manutenção, por consequência, da decisão em crise neste particular.

Resta a questionada condenação ilíquida, posto não se conformar o Apelante com a condenação – apenas – do R. “a restituir (…) a quantia correspondente aos valores pagos e gastos com materiais e serviços da responsabilidade do Réu, a fixar em sede de liquidação de sentença”.

O Tribunal a quo entendeu – recapitulando – “que não é possível concluir pelo valor dos trabalhos efetivamente executados pelo réu, por forma a permitir calcular o valor da peticionada indemnização”.

Vejamos quem tem razão.

Vem provado – sem controvérsia – qual o valor do preço acordado para a empreitada: acordada ficou a realização das obras mediante o pagamento “do orçamento no valor de € 50.000,00” (facto 1.7).

Por isso, não restam dúvidas de que a quantia a pagar pela realização (integral) da obra era a de € 50.000,00 (com o acrescento de € 676,00, a que alude o Apelante na sua peça recursiva), nada mostrando que tenham sido acordados ou realizados quaisquer trabalhos para além do convencionado por referência ao dito valor do “orçamento” (cfr. art.ºs 1207.º e 1214.º a 1216.º, todos do CCiv.).

Porém, é sabido que o R./empreiteiro, não obstante os adiantamentos/pagamentos efetuados pelo A./dono da obra, veio a abandoná-la, incorrendo em incumprimento definitivo – com consequente resolução/extinção do vínculo contratual (operada nesta via judicial) –, deixando-a inacabada.

Prova-se, nesse sentido, que o A. facultou ao R., entre adiantamentos e valores pagos – no pressuposto, logicamente, de que a obra seria concluída a seu contento –, o montante total de € 80.613,42 (factos 1.12 a 1.25), acabando o R. por assumir que não acabaria a obra (por falta de capacidade para tanto), deixando-a por concluir, até em “grande parte”, posto se apurar ter deixado “grande parte do trabalho (…) por realizar” (factos 1.26 a 1.30).

Aliás, o R. nem contestou a ação.

Assim sendo, é líquido que os adiantamentos/pagamentos efetuados, tal como apurados, superam em muito o valor de preço acordado, havendo entregas em excesso no montante (da diferença suscitada) de € 29.937,42 ([7]).

Montante este – já líquido – que o R. deve ser condenado a entregar/restituir ao A., na “relação de liquidação” que se impõe perante a resolução contratual ([8]), por excedente ao preço acordado e resultante de pedidos (pelo R.) de adiantamentos/pagamentos para conclusão da obra, todavia inacabada, em definitivo, por motivo imputável, em exclusivo, ao demandado.

Só na parte restante se justificando, salvo sempre o devido respeito, o relegar para liquidação ulterior em incidente próprio: até ao montante de € 50.676,00 importa aferir, aí sim, do nível de realização dos trabalhos/execução da empreitada – o que não se mostra evidenciado nos factos provados, mas ainda o poderá ser em incidente de liquidação ([9]) –, só devendo, por ora, ser o R. condenado a pagar/restituir o montante (ilíquido) correspondente ao valor dos trabalhos por executar.

Termos em que a apelação procede em parte, com alteração em conformidade da sentença impugnada.

Custas da ação – sem prejuízo de definitivo apuramento na ulterior instância incidental de liquidação – e do recurso a suportar por A./Apelante e R./Apelado na proporção do respetivo decaimento, que se fixa (provisoriamente quanto à ação) em ¼ para o A. e ¾ para o R. (cfr. art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).


***

IV – SUMÁRIO (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.): (…).


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V – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação, na procedência em parte da apelação, em:

a) Alterar a decisão recorrida, cujo dispositivo passa a ter a seguinte redação:

Julga-se a ação provada e o peticionado em parte procedente e, em consequência:

1. Declara-se resolvido o contrato de empreitada celebrado entre as partes, por incumprimento definitivo do Réu, nos termos do artigo 808.º, n.º 1, do Código Civil;

2. Condena-se o Réu a restituir ao Autor a quantia, já líquida, de € 29.937,42 (vinte e nove mil novecentos e trinta e sete euros e quarenta e dois cêntimos), correspondente aos adiantamentos/pagamentos efetuados ao empreiteiro para além do valor de preço acordado para a empreitada (entregas em excesso);

3. - Condena-se o Réu a restituir ao Autor a quantia correspondente ao valor dos trabalhos por executar, a fixar em sede de ulterior incidente de liquidação, dentro do montante de preço de € 50.676,00 (em função do apuramento, a realizar, do nível de execução dos trabalhos da empreitada).

4. Absolve-se o réu do pagamento da quantia referente ao preço dos trabalhos em falta, que vierem a ser realizados, para conclusão da obra;

5. Condena-se o Réu a pagar ao Autor a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, a que acrescem juros de mora à taxa legal, desde a data da sentença e até efetivo e integral pagamento;

6. Absolve-se o R. do demais peticionado;

b) Determinar que as custas da ação – sem prejuízo de definitivo apuramento na ulterior instância incidental de liquidação – e do recurso, a suportar por A./Apelante e R./Apelado, sejam repartidas na proporção do respetivo decaimento, que se fixa (provisoriamente quanto à ação) em ¼ para o A./Recorrente e ¾ para o R./Recorrido.

Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.


Coimbra, 14/10/2025    

Vítor Amaral (relator)

Fernando Monteiro

Luís Cravo


([1]) Que se deixam integralmente transcritas, com destaques retirados.
([2]) Subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
([3]) Excetuadas, logicamente, questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([4]) Com base na prova documental junta aos autos e na confissão tácita do Réu, nos termos do artigo 567.º, n.º 1 do CPC.
([5]) Não ficaram enunciados quaisquer concretos factos não provados, podendo ler-se, a respeito, na sentença; “Não se provaram, com relevância para a decisão da causa, quaisquer outros factos alegados na petição inicial, sendo que quanto aos demais factos ali alegados o tribunal não se pronuncia por se tratarem de factos repetidos, conclusivos, sem interesse para a resolução jurídica do caso ou revestirem matéria ou conclusões de direito; os artigos da petição inicial cujo teor aqui não se mostra refletido contêm considerações, declarações, ilações ou juízos de valor, razão pela qual não se faz aos mesmos não se faz qualquer referência.”.
([6]) Na decisão em crise ponderou-se “os critérios da equidade e a gravidade moderada dos danos sofridos”, em termos de considerar o montante indemnizatório atribuído “adequado à compensação do transtorno emocional causado pelo incumprimento do Réu”.
([7]) O Apelante alude a um valor de  € 29.973,42, como correspondente à operação aritmética de subtração de € 50.676,00 ao valor de € 80.613,42. Porém há erro de cálculo, já que € 80.613,42 - € 50.676,00 = € 29.937,42. De notar que não se compreende bem como o A. se determinou a ter facultado/adiantado, durante a mera execução da obra (sem acabamento), montante tão claramente superior ao contratado e, por isso, devido. Todavia, é o que resulta dos factos provados, os únicos (e incontroversos), por isso, a ter em conta na decisão da causa e do recurso.
([8]) Tendo ocorrido execução parcial da obra e do respetivo contrato, com feitura de trabalhos no âmbito da empreitada, que aproveitam ao dono da obra, não pode o efeito da resolução ser linear – simplesmente restitutório integral, em termos retroativos (cfr. art.º 289.º, n.º 1, ex vi art.º 433.º, e 434.º, n.º 1, todos do CCiv.) –, mas, diversamente, para evitar um enriquecimento injustificado do dono da obra, ter em conta a parte do programa contratual proveitosamente executada, obrigando a uma liquidação dos interesses das partes em função dessa parcial execução.
([9]) Cfr. art.ºs 609.º, n.º 2, e 358.º, n.º 2, do NCPCiv. e 566.º, n.º 3, a contrario, do CCiv.. Vide, por todos, o Ac. do STJ de 03/02/2009, Proc. 08A3942 (Cons. Mário Cruz), in www.dgsi.pt, cujo sumário, por pertinente, em parte se transcreve: “I. Quando fiquem provados danos mas não tenha sido possível estabelecer a sua quantificação, a opção entre equidade e liquidação prévia em fase posterior, deve obedecer àquela que dê mais garantias de se mostrar ajustada à realidade. // II. Assim, se apesar de provado o dano, não foi possível atingir-se na fase que vai até à Sentença um valor exacto para a sua quantificação, mas seja admissível que ainda é possível atingi-lo com recurso a prova complementar sobre o montante exacto ou muito próximo dos danos reais, não deve passar-se para a fase executiva na parte em que a condenação ainda não esteja líquida, sendo o instrumento adequado o incidente de liquidação (…). // III. Se, pelo contrário, apesar de provado o dano, não foi possível atingir-se a determinação do seu montante exacto, nem se veja forma de o poder atingir com prova complementar sobre a quantificação dele, o meio adequado para o estabelecer é utilizar desde logo a equidade – art. 566.º-3 do CC. (entre outras razões por racionalidade de meios), dentro dos limites que o tribunal tenha disponíveis para o efeito.”.