ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
DIFERIMENTO DA DESOCUPAÇÃO DO IMÓVEL
INAPLICABILIDADE POR ANALOGIA
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Sumário

1 - Importa distinguir a suspensão da execução, ao abrigo dos art. 828, 861, nº 6 e 863 nº 3, do Código de Processo Civil (CPC), e o diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação, no âmbito do art.864 desta lei.
2 - No primeiro caso, a suspensão decorrerá de doença aguda, que coloque a pessoa atingida pela diligência de entrega, em risco de vida. No segundo caso, o diferimento limita-se aos fundamentos previstos no referido art.864, nº 2.
3 - Face à distinção legal, sua especificidade e razão de ser, este segundo incidente circunscreve-se exclusivamente a situações de arrendamento para habitação, não sendo passível de aplicação analógica.
4 - Ainda que assim não fosse, o caso não integra nenhuma das previsões.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

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Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            Está em causa a seguinte decisão:

“Requerimento de 25-10-2024 – A executada veio requerer que “seja diferida a desocupação nos termos dos artigos 861º nº 6 e 863º nº 3 a 5º, por razões sociais imperiosos, nomeadamente de saúde da executada AA, pelo período nele indicado de três meses”.

Alegou, para tanto, que padece de doença grave, estando atualmente incapacitada. Defende ainda que, tratando-se da casa de habitação dos executados e, não tendo estes local para onde ir, deve ser aplicado analogicamente o artigo 864.º do CPC, num quadro de razões sociais imperiosas.

Juntou atestado médico do qual resulta que a executada é portadora “de doença crónica, a justificar avaliações clínicas periódicas em contexto hospitalar, bem como em

cuidados de saúde primários”, indicando ainda os problemas de saúde apresentados pela

executada e a terapêutica por si seguida.

O artigo 861.º, n.º 6, do CPC, dispõe que “tratando-se da casa de habitação principal do executado, é aplicável o disposto nos nº 3 a 5 do artigo 863.º e, caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução comunica antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes”.

Por seu turno, estabelece o artigo 863.º do mesmo Código que: “3 - Tratando-se de arrendamento para habitação, o agente de execução suspende as diligências executórias, quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda. 4 - Nos casos referidos nos nº 2 e 3, o agente de execução lavra certidão das ocorrências, junta os documentos exibidos e adverte o detentor, ou a pessoa que se encontra no local, de que a execução prossegue, salvo se, no prazo de 10 dias, solicitar ao juiz a confirmação da suspensão, juntando ao requerimento os documentos disponíveis, dando do facto imediato conhecimento ao exequente ou ao seu representante. 5 - No prazo de cinco dias, o juiz de execução, ouvido o exequente, decide manter a execução suspensa ou ordena o levantamento da suspensão e a imediata prossecução dos autos.”

No presente caso, verifico que não só a Agente de Execução não suspendeu as diligências executórias, conforme previsto no n.º 3, como o atestado médico junto pela executada não indica fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, nem que a diligência põe em risco de vida a executada.

Por outro lado, entendemos também que, ao contrário do que a executada pretende, o artigo 864.º do CPC não tem aplicação nos presentes autos.

Dispõe tal normativo, sob a epígrafe “diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação”, que: “1 - No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três. 2 - O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos: a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção; b) Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.”.

Entendemos, em primeiro lugar, que o normativo em apreço não é suscetível de aplicação ao caso dos autos, uma vez que não está aqui em causa imóvel arrendado para

habitação. Este tem sido também o entendimento da jurisprudência, conforme pode ver-se no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20-02-2024 (disponível em www.dgsi.pt), no qual se escreveu que “o diferimento de desocupação previsto nos artigos 864º e 865º do CPC constitui um meio de tutela excecional, estando assim reservado aos casos nele previstos, ou seja, de execução para entrega de casa de habitação arrendada. (…) A restrição ao direito de propriedade em que se traduz o diferimento da ocupação só poderá ocorrer nos casos previstos na lei e se verificados os pressupostos nela exigidos, estando vedada a sua aplicação, quer por via da analogia, quer do recurso a interpretação extensiva, a outras situações que não as especificamente previstas”.

Ainda que assim não fosse, dir-se-á também que não se encontram reunidos os pressupostos previstos nas alíneas do artigo 864.º, n.º 2, uma vez que não está em causa resolução por não pagamento de rendas nem o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%. Com efeito, apenas alegou e provou ser portadora de doença crónica, o que é coisa distinta de ter uma incapacidade reconhecida superior a 60%.

Para além disso, mostra-se também ultrapassado o limite temporal estabelecido no artigo 864.º, n.º 1, do CPC, uma vez que o requerimento de diferimento não foi formulado dentro do prazo de oposição à execução.

Não se encontram, pois, reunidos os requisitos previstos para o diferimento da desocupação, pelo que cumpre indeferir o requerido.

Face ao exposto, indefiro o requerido, por inadmissibilidade legal.” (Fim da citação.)


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Inconformada, a Executada AA apelou, formulando as seguintes conclusões:

1. A executada requereu que lhe fosse aplicado o regime de diferimento de entrega da casa, previsto nos artigos 864.º e 865.º do CPC.

2. A executada AA padece de doença grave.

3. Está atualmente incapacitada devido ao seu estado de saúde.

4. Existem, razões sociais imperiosas para esse mesmo diferimento.

5. Isto porque, tendo a questão dos autos tem a ver com a desocupação de local que é casa de habitação da Recorrente executada e não tendo esta local para onde ir (para além das outras razões invocadas), o art. 864º do CPC é susceptível de aplicação analógica à situação, num quadro de razões sociais imperiosas.

6. O art. 11º do C.C. apenas proíbe a aplicação analógica das normas excecionais, sendo que uma norma é excecional quando consagra um regime que se tenha por contrário ao que deva ter-se como regime regra.

7. As normas especiais, que não se confundem com as excecionais e que não excluem a analogia, regulam um sector restrito de casos, consagrando uma disciplina diferente, mas que não é diretamente oposta à do direito comum.

8. O ponto de partida para a analogia é a similitude das situações, similitude que “in casu” é indiscutível.

9. Não havendo por isso, razão para que não seja aplicado o respectivo regime dos artigos 864º e 865º do C.P.C.

10. Todos os fatores de necessidade de proteção da sua situação, estão presentes “in casu” e, são fundamento para suspender a entrega.

11. Porque o incidente respeita à posse da casa de habitação, há que atribuir efeito suspensivo ao recurso, nos termos da alínea b) (2ª parte) do nº 3 do artigo 647.º do NCPC.

Termos em que, nos melhores de Direito e sempre com o Mui. Douto Suprimento de Vossa Exa., requer: seja alterada a decisão recorrida e, em consequência seja diferida a desocupação nos termos dos artigos 861º nº6 e 863º nº 3 a 5º, por razões sociais imperiosos, nomeadamente de saúde da executada AA, pelo período de três meses.


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            Não foram apresentadas contra-alegações.

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            A questão a decidir é a de saber se está justificado o pretendido diferimento da desocupação do imóvel.

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           Os factos a considerar são os que resultam do relatório antecedente e das considerações infra exaradas e, especificamente:

           Na execução hipotecária pendente desde 2013, vendido o imóvel, notificada a executada para o entregar em 7.10.2024, veio esta, em 25.10.2024, requerer o diferimento da desocupação nos termos do art. 864 do CPC.

            O atestado médico que junta refere que sofre de doença crónica, sem menção do grau de incapacidade permanente.


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           Subjacente ao título da execução e ao título que legitimava a ocupação do imóvel, atenta às dificuldades que considerou relevantes, a lei distinguiu a suspensão da execução, ao abrigo dos art. 828, 861, nº 6 e 863 nº 3, do CPC, e o diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação, no âmbito do art.864 desta lei.

No primeiro caso, sem prejuízo da comunicação às autoridades assistenciais, a suspensão decorrerá de doença aguda, que coloque a pessoa atingida pela diligência de entrega, em risco de vida. No segundo caso, quando o título que legitimava a ocupação era o arrendamento habitacional, o diferimento limita-se aos fundamentos previstos no referido art.864, nº 2.

Face à distinção legal, sua especificidade e razão de ser, este segundo incidente circunscreve-se exclusivamente a situações de arrendamento para habitação, não sendo passível de aplicação analógica, por ser norma excecional.

Ainda que assim não fosse, o caso não integra nenhuma das previsões.

De acordo com a previsão efetivamente integrável, verifica-se que a Agente de Execução não suspendeu as diligências executórias, assim como o atestado médico junto pela executada não indica, fundamentadamente, o prazo durante o qual se deve suspender a execução, nem que a diligência põe em risco de vida a executada.

Já em face da referida norma excecional, não aplicável, verifica-se que também falham os seus requisitos:

Não está em causa uma resolução por não pagamento de rendas;

Não está comprovado que o arrendatário é portador de deficiência com grau de incapacidade superior a 60%. (A executada apenas alegou e provou ser portadora de doença crónica.)

Mostra-se ultrapassado o limite temporal estabelecido no artigo 864, n.º 1, do CPC, uma vez que o requerimento não foi formulado dentro do prazo de oposição à execução.

Por fim, como mera nota do mérito, não conhecido, importaria sempre considerar, de acordo com a boa fé (art.864, nº 2), que a execução está pendente desde 2013 e desde o requerimento em causa passaram já mais de 10 meses.


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Decisão.

Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente, vencida, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Notifique.

2025-10-14


(Fernando Monteiro)

(Luís Cravo)

(Fonte Ramos)