OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
PRIVAÇÃO DE USO DO VEÍCULO
DANO
QUANTIFICAÇÃO DO DANO
EQUIDADE
Sumário

1 - Para conceder a reparação da privação do uso de veículo automóvel bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente, sem necessidade de prova dos prejuízos efetivos.
2 - Se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

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Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A..., Lda., intentou ação contra B..., Sucursal em Portugal, pedindo a condenação desta a pagar-lhe 16.028,28€, a titulo de indemnização pelo dano da privação do uso de veículo.

Para tanto, alega, em síntese, que o acidente que descreve se deveu a culpa exclusiva do condutor do VV, encontrando-se transferida a responsabilidade por danos causados a terceiros por tal veículo para a Ré, responsabilidade que foi assumida por esta; o veículo SH ficou impedido de circular; a Ré não forneceu um veículo de substituição; esteve privada do uso do veículo até à reparação do mesmo (102 dias); o custo diário do aluguer de veículo idêntico ao SH é de 157,14€/dia.

A Ré contestou a responsabilidade pela privação do uso, dizendo que não pretende litigar no que respeita à responsabilidade pela produção do sinistro, a qual já foi assumida como pertencendo ao veiculo por si seguro.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença a julgar a ação parcialmente procedente e a condenar a Ré a pagar à Autora, a título de indemnização, a quantia de 6.375,00€ (seis mil trezentos e setenta e cinco euros), acrescida de juros vencidos desde a citação da Ré e vincendos até integral pagamento, à taxa legal de 4% ou à que eventualmente a substituir, absolvendo a Ré do mais peticionado pela Autora.


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Inconformada, a Autora recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

a) A Doutrina e Jurisprudência atual converge para o reconhecimento da privação de uso como dano patrimonial autónomo;

b) A sentença recorrida reconhece a privação de uso como dano indemnizável, mas fixa um valor manifestamente insuficiente, de apenas 85,00€ diários;

c) A paralisação ocorreu durante 102 dias, com perda total de utilidade da viatura que tinha uso comercial, e não apenas contabilizando dias uteis;

d) A indemnização deve refletir, no mínimo, €120,00/dia, com base em valores de mercado, e adequado ao dano causado pela privação de uso da viatura da Apelante;

e) Deve ser revogada a decisão no segmento impugnado, fixando-se nova indemnização justa e proporcional no mínimo de €120,00/dia e pelo período total da paralisação ou imobilização da viatura em apreço. Atendendo a tudo o que constitui matéria do presente Recurso, e com o devido respeito, que é muitíssimo, jamais se poderia extrair uma decisão como a constante da Sentença, com base naqueles factos pois os mesmos apontam precisamente para o sentido inverso, motivo pelo qual a prova carreada para os autos e mesmo a matéria de facto provada e assente deveriam levar a que o Tribunal a Quo proferisse outra Sentença.

Foram assim violadas as normas previstas nos Artigos 483.º, n.º 1, Artigo 562.º Artigo 563.º, Artigo 566.º, n.ºs 2 e 3 e Artigo 1305.º, todos do Código Civil e ainda o Artigo 42.º do DL n.º 291/2007, o que agora se alega, para os devidos e legais efeitos.

Nestes termos, e nos demais de Direito, e sempre com o mui douto suprimento de V. Exa., requer-se a V. Exas. que seja dado provimento ao presente recurso, e nessa sequencia, seja revogada a parte da sentença que fixou a indemnização em €6.375,00, substituindo-a por outra que fazendo a melhor interpretação e aplicação da lei aos factos apurados, condene a Apelada a pagar à Apelante, a quantia de €12.240,00 (120,00€ × 102 dias), tudo acrescido de juros de mora à taxa legal em vigor, desde a citação até integral pagamento.


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            A Ré contra-alegou, defendendo a correção do decidido.

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A questão a decidir é a de conferir da fixação do valor relativo à privação do uso. Antes, porém, diremos uma palavra sobre uma pretensa reapreciação da matéria de facto.

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Pretensa reapreciação da matéria de facto.

No início do recurso (pág.1), a Recorrente parece pretender discutir a decisão sobre a matéria de facto.

Na reapreciação dos factos, o Tribunal da Relação altera a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova produzida, reapreciada a pedido dos interessados, impuser decisão diversa (art.662, nº1, do Código de Processo Civil).

Imposta a necessidade daquele pedido dos interessados, o art.640º impõe um ónus a cargo do recorrente que impugne aquela decisão, estabelecendo o seguinte:

“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

O art.640º referido tem a sua correspondência no anterior art.685º-B do Código de Processo Civil, ainda que parcial, vindo a nova norma reforçar o ónus de alegação que impende sobre o recorrente, quem deve agora indicar também a resposta que deve ser dada às questões de facto impugnadas.

A norma não admite o recurso genérico contra a errada decisão da matéria de facto, mas apenas a possibilidade de revisão de factos individualizados.

O artigo esclarece, relativamente à prova gravada, que não é obrigatória a transcrição, mas é necessária a indicação exata das passagens da gravação relevantes.

No caso, a Recorrente não dá cumprimento à norma, o que constitui um obstáculo à reapreciação e implica, nos termos da mesma, a imediata rejeição do recurso, na parte da impugnação da matéria de facto.

A recorrente não especifica os factos mal julgados e não concretiza os meios probatórios disponíveis, aqueles que impunham uma decisão diversa sobre os factos.

Pelo exposto, entendendo-se que pretendeu a Recorrente impugnar a matéria de facto, decide-se rejeitar o recurso relativo à mesma.


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Os factos tidos por provados são os seguintes:

1. No dia 23/05/2022, cerca das 09h30m horas, ocorreu um acidente de viação no IC..., no semáforo do cruzamento do ..., em que foi interveniente o veículo de transporte de mercadorias marca Fiat Ducato, com a matrícula ..-SH-.. (SH), pertença da A, conduzido por AA, e o veículo automóvel, com a matrícula ..-..-VV (VV), pertença da C..., conduzido por BB, seu funcionário.

2. O veículo da A. estava imobilizado ao semáforo do cruzamento do ..., imediatamente atrás do veículo matrícula ..-..-CH com o reboque C-...07 quando, sem que nada o fizesse prever, foi embatido na sua traseira pelo veículo ..-..-VV, que assim o impulsionou contra a traseira do reboque C-...07 daquele veículo ....

3. Imediatamente antes do acidente, todos os veículos circulavam no mesmo sentido do veículo da Autora, sendo que o condutor do VV, sem prestar a devida atenção ao trânsito que circulava naquela faixa, sem respeitar a sinalização horizontal e vertical que ali se encontrava (de sinal vermelho) e sem respeitar a distância de segurança que deve guardar em relação ao veículo que circula à sua frente, não conseguiu imobilizar o veículo VV que veio a embater, com a sua frente na traseira do veículo da Autora.

4. Na referida data a responsabilidade civil por danos causados a terceiros emergentes de acidente de viação envolvendo o veículo da C..., ..-..-VV, encontrava-se transferida para a Ré, através da apólice n.º ...45, em vigor ao tempo do acidente.

5. O veículo da A. foi encaminhado para a oficina de CC, sita na Rua ..., ..., ... ..., escolhida pela A., onde ficou a aguardar peritagem, a qual foi agendada pela Ré para dia 25/05/2022.

6. Da peritagem efetuada resultou que para reparação integral, frente e traseira, do veículo SH, que se encontrava inapto para circular, seriam necessários 10 dias.

7. Tendo a Ré, por carta de 09/06/2022, comunicado à A. que assumia a responsabilidade pela produção do sinistro, sendo o valor da reparação nos termos do relatório a peritagem efetuada, de 12.734,51 euros, mais dizendo que “poderá de imediato dar ordem de reparação do seu veículo junto da oficina onde o mesmo foi peritado, sem prejuízo de informarmos a oficina da nossa posição.”

8. A mediadora de seguros da A., em 31/05/2022, a pedido desta, reclamou à Ré “a título de paralisação o valor diário de 120€ dia devido a imobilização forçada da viatura em consequência do sinistro (…).

9. A Ré não forneceu à A. viatura de substituição, nem pagou qualquer quantia a título de privação do uso do veículo SH.

10. Após a realização da peritagem ao veículo, a oficina referida em 5. não obteve peça original necessária à reparação do mesmo – pilar do painel traseiro – por falta de disponibilidade no fornecedor, que informou que não havia previsão de entrega, vindo a utilizar peça recondicionada para o efeito com a concordância da A.

11. A viatura SH foi entregue à A., reparada, em 02/09/2022.

12. A Autora, em 01/09/2022, através da mediadora de seguros, pediu à Ré o pagamento de privação de uso, 120€/dia, mas não informou a Ré das dificuldades sentidas na obtenção da mencionada peça.

13. A Ré tomou conhecimento, pela informação do perito de 05/09/2022, que “fomos informados de que uma das peças necessárias para a realização da reparação do veículo objeto de perícia, nomeadamente o pilar C esquerdo, continuava pendente de fábrica, não havendo disponível ainda para entrega, pelo que o reparador tomou a liberdade de, após pesquisa no mercado nacional e internacional, adquirir um pilar recondicionado”

14. A viatura SH, com capacidade de 17m3, era utilizada pela A. para recolha e distribuição dos produtos que comercializa diariamente (de 2ª a 6ª feira), não tendo a Autora, à data do acidente, outra viatura com tal capacidade de carga, o que lhe acarretou dificuldades acrescidas na recolha e entrega de mercadoria a clientes seus, durante período de tempo não concretamente determinado, dentro dos 102 dias em que esteve sem o SH.

15. AA, referido em II. 1. A) 1. em consequência do acidente ficou de baixa médica de 24/05/2022 a 09/06/2022, o que fez com que a Autora tivesse em tal altura que sobrecarregar outros funcionários.


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Juridicamente, apenas está em causa a fixação (insuficiente, no entender da Recorrente) do valor relativo à privação do uso.

Entendeu o Tribunal recorrido:

“Resulta dos factos provados que a Ré não disponibilizou veículo de substituição à A. e que o veículo SH, com capacidade de 17m3, era utilizada pela A. para recolha e distribuição dos produtos que comercializa diariamente (de 2ª a 6ª feira), não tendo a Autora, à data do acidente, outra viatura com tal capacidade de carga, o que lhe acarretou dificuldades acrescidas na recolha e entrega de mercadoria a clientes seus, durante período de tempo não concretamente determinado, dentro dos 102 dias em que esteve sem o SH. Não provou, pois, a Autora, como lhe competia, que a privação de veículo com as características do SH foi total, pois que não se provou que em todo o período de 102 dias teve as referidas dificuldades acrescidas por falta do SH ou de veículo com as suas características.

Tendo em conta o disposto no n.º 3 do art. 566º do Código Civil, se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (neste sentido, cfr. Ac. RL, de 10/03/2016, proc. 1132/13.0TVLSB.L1-2, in www.dgsi.pt. Fazendo apelo a tal normativo, ponderando as circunstâncias do caso, nomeadamente, o tipo de utilização do SH, os dias da semana em que era utilizado, o não ter sido provado que a privação de veículo com as características do mesmo foi total, os valores fixados pelos tribunais, cfr. Ac. RC, de 05/03/2024, proc. 1492/22.2 T8LRA.C1., in www.dgsi.pt (em que o veículo sinistrado é trator semirreboque utilizado todos os dias da semana por sociedade comercial que se dedicava ao transporte rodoviário de mercadorias, foi fixado o valor de 110,00€/dia), Acs. R.C. de 23/11/2021, proc. 2319/18.5T8ACB.C1 e de 07/11/2023, proc. 167/22.78VIS.C1 in www.dgsi.pt (em que foi fixado o valor diário de 100,00€ por privação do uso do semirreboque sinistrado, usado por empresa na sua atividade de transporte rodoviário de mercadorias), com recurso à equidade, afigura-se ser razoável atribuir à A. o quantitativo de 85,00€ (oitenta e cinco euros) por dia útil (sem fins de semana e feriados), ou seja, 75 dias, no valor total de 6.375,00€, improcedendo o pedido quanto ao mais peticionado a este título. (Fim da citação.)

Julgamos que esta fundamentação é correta, devendo ser confirmada a decisão.

A viatura (Fiat Ducato), conferindo a sua capacidade e função, pode ser qualificada num ponto intermédio entre os veículos ligeiros e os pesados de transporte de mercadorias.

Não se provou qualquer valor de mercado ou de aluguer, valor de faturação ou outro, para servirem de referência e de apoio à equidade, critério que ninguém discute como aplicável (art.566, nº 3, do Código Civil).

Os exemplos jurisprudenciais de referência, supra identificados e indicados pela Recorrente, são relativos a veículos destinados a muito maior carga.

O valor encontrado é ajustadamente intermédio (entre valores habitualmente utilizados, de 20 a 120 euros, de veículos ligeiros de passageiros a pesados de mercadorias, com mais ou menos intensa utilização), até ligeiramente superior ao ponto médio dos 70 euros.

O veículo era usado na atividade comercial, apenas de segunda a sexta feira.


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Decisão.

Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente, vencida.

2025-10-14


(Fernando Monteiro)

(Carlos Moreira)

(Moreira do Carmo)