SIMULAÇÃO
CONSTITUTO POSSESSÓRIO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO POR BENFEITORIAS
Sumário

I - O cumprimento dos requisitos da impugnação da matéria de facto deve ser apreciado de acordo com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, tendo presente a atribuição à Relação de efectivos poderes de sindicância sobre os factos, como instrumento de realização da justiça, sendo admissível nesse âmbito, face às circunstâncias do caso, que a indicação menos completa das passagens da gravação dos depoimentos seja suprida e completada com a alegação de concretos juízos de experiência relevantes para a decisão sobre a factualidade provada.
II - A simulação constitui uma causa de nulidade do negócio cujos requisitos assentam na intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, por acordo entre declarante e declaratário e no intuito de enganar terceiros.
III - O constituto possessório representa uma forma de aquisição da posse solo consensu, sem necessidade de acto material ou simbólico de entrega da coisa, onde a posse é atribuída sem a detenção e o antigo possuidor passa a mero detentor.
IV - Reconhecido o direito de propriedade e a ocupação do imóvel por outrem, a restituição pode ser recusada, ainda assim, com fundamento na existência de uma relação, obrigacional ou real, tituladora da posse ou detenção da coisa, incluindo a que resultar da celebração de um contrato de comodato.
V - O direito à indemnização por benfeitorias úteis é exigível no momento da entrega da coisa ao titular do direito ou no qual este proceda à venda do bem, pois só então ocorrerá o enriquecimento sem causa a seu favor.

Texto Integral

Processo: 3631/22.4T8OAZ.P1

ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO (3.ª SECÇÃO CÍVEL):

Relator: Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
1.º Adjunto: José Eusébio Almeida
2.º Adjunto: Ana Olívia Esteves Silva Loureiro

RELATÓRIO.
AA, titular do NIF ..., residente habitualmente em Rue ..., ..., em França, intentou a presente acção de condenação, com processo comum, contra BB, sua irmã, portadora do NIF ... e residente na Rua ..., ..., Lugar ..., em ..., concelho de Oliveira de Azeméis.
Pediu, pela procedência da acção:
a) a condenação da R. a reconhecer que a A. é dona e legítima proprietária, com exclusão de outrem, dos prédios identificados no artº 1º, als a) e b) desta P.I., e a assim respeitar, abstendo-se de qualquer acto que perturbe a posse e propriedade da A.;
b) seja declarada a nulidade da declaração negocial da A. junta como documento nº 6 desta P.I. (decorrente de vício de forma por inobservância da forma legalmente prescrita para o acto) ou, por mera cautela se assim não se entender, a anulação da mesma (decorrente de vício da vontade – divergência não intencional entre a vontade real e a vontade declarada da A. - causado por dolo da R.);
c) a condenação da R. a deixar e a restituir de imediato à A., livres e devolutos de pessoas e bens que não sejam pertença da A., os prédios acima identificados no artº 1º, als a) e b) desta P.I., no estado em que aquela os recebeu;
d) a condenação da R. no pagamento de uma indemnização à A. não inferior a 50,00 € por cada dia, após a data de 30-09-2022 (correspondente ao termo do prazo concedido pela A. para a restituição dos imóveis pela R.) ou, se assim se não entender, após a data da citação da R., em que a R. continue a ocupar o(s) supra mencionado(s) prédios da A. e/ou quaisquer outras partes dele(s) e até à data em que se vier a verificar a sua restituição integral e efectiva à A., inteiramente livres e devolutos de pessoas e bens que não sejam pertença da A.;
e) a condenação da R. no pagamento de quantia pecuniária não inferior a 50,00 € a título de sanção pecuniária compulsória (artº 829º-A do Código Civil) por
cada dia, após aquela data de 30-09-2022 ou, se assim se não entender, a contar da data da citação da R., de atraso no cumprimento da obrigação de restituição integral e efectiva à A. do(s) imóvel(is) da A. e/ou quaisquer outras partes dele(s), acima identificados no artº 1º, als a) e b) desta PI, inteiramente livres e devolutos de pessoas e bens que não sejam pertença da A.;
f) Em qualquer caso, a condenação da R. a reconhecer e respeitar o direito da própria A. e/ou de outrem que não directamente a A. mas a quem esta para tanto autorize, de usar e habitar nos prédios identificados nas als a) e b) desta P.I., respectivamente, abstendo-se a R. de qualquer acto, por si e/ou interposta pessoa, que impeça e/ou perturbe, total ou parcialmente, essa utilização pela A. e/ou por terceira(s) pessoa(s) por esta autorizada(s), sob pena do pagamento de quantia pecuniária não inferior a 50,00 € (cinquenta euros) a título de sanção pecuniária compulsória (artº 829º-A do Código Civil), por cada dia em que essa privação e/ou perturbação ocorram.
Para o efeito e em síntese, alegou que é legítima proprietária dos prédios rústico e urbano identificados no art. 1 da PI, o primeiro descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Azeméis sob o nº ... e o segundo na mesma conservatória sob o nº ..., e inscritos a seu favor na sequência de doação dos seus avós paternos, em 1997, quando ainda era menor.
Os usufrutuários faleceram em 2006 e 2010 e, já antes da morte do último, os pais de A. e R., com autorização dele, fizeram obras no imóvel e nele passaram a residir, o que subsistiu mesmo após o divórcio do casal, quer com o pai, quer quanto à mãe nos períodos em que não estava em França a ajudar a A.
Até que, em Março de 2017, a R. pediu à A. o favor de também poder habitar nessa casa de habitação, temporariamente e de forma gratuita, com os seus filhos, pelo período de 2 ou 3 meses, o que a A. consentiu e foi perdurando com a aquiescência desta, mesmo depois de a mãe de ambas, por não suportar mais a violência exercida pela R. e filhos, ter sido compelida a deixar a habitação.
A dado momento, e sob pretexto de necessitar de um documento para comprovar em como estava a ali habitar gratuitamente, a R. pediu à A. que lhe assinasse um documento que a isso fizesse menção, que a R. previamente elaborou e enviou para a A. através de email, com data de Julho do ano 2020, pedindo à A. que o imprimisse e assinasse, denominado “autorização de residência em propriedade privada”. Por disso estar plenamente convencida em função do que lhe dissera e pedira a R., e porque na realidade correspondia à verdade a R. (e filhos) estarem a habitar naquele imóvel, a A. acedeu, de boa-fé, a assinar “de cruz” o referido documento, junto como nº 6 com a PI.
Meses mais tarde, vindo a ter conhecimento de que a R. vendera um imóvel de que era dona, destinado a habitação, e continuava a habitar no referido imóvel, pertença da A., esta comunicou à R. para que o deixasse e procedesse à entrega do imóvel livre e devoluto de pessoas e bens que não fossem seus.
Na contestação, em resumo, a R. arguiu a excepção da simulação: o pai de A. e R., CC, nos anos 90 do século XX, atravessou graves dificuldades económicas decorrentes da sua atividade empresarial e, temendo que os pais falecessem, e o inerente quinhão hereditário fosse penhorado, acordou com os pais que estes transmitiriam os dois prédios urbanos e o prédio rústico de que eram donos, a favor das suas filhas, aqui A. e Ré.
Assim, e em cumprimento do plano gizado, no dia 24.10.1997, os avós paternos celebraram escritura de justificação notarial e compra e venda, referente ao prédio urbano sito no lugar da ..., freguesia ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..., a favor da R., e na mesma data a escritura de doação, relativa aos prédios urbano e prédio rústico sitos no lugar ..., freguesia ..., do mesmo concelho de Oliveira de Azeméis, inscritos na respetiva matriz sob os artigos ... urbano e ... rústico, a favor da A.
Mas foi tudo simulado: nem os avós paternos quiseram vender ou venderam tal prédio, nem a Ré o quis comprar ou comprou, quanto ao primeiro negócio, nem os avós paternos quiseram doar ou doaram tais prédios à A., nem quiseram reservar ou reservaram o usufruto a seu favor, bem como a A. não quis aceitar ou aceitou tal doação, mesmo após ter atingido a maioridade, quanto ao segundo.
Relativamente ao primeiro imóvel, em 20.10.2020, a R. vendeu-o pelo preço de € 35.000,00, o qual, após desconto dos custos com obras, IMI e mais-valias por si suportados, entregou ao pai, por ser o legítimo dono do prédio, enquanto único e universal herdeiro de seus avós.
No que concerne ao prédio “doado” à A., foi destinado a arrendamento e, após o óbito da avó DD, entrou na posse dos pais de A. e R., CC, que ali realizou obras de restauro e instalou residência com a sua então mulher, mãe de A. e R., a partir de meados de 2009.
Com o divórcio, o pai CC ali manteve a residência, sem carecer do consentimento da A., dado ser o verdadeiro dono do prédio e que ela sempre reconheceu como tal, e também o fez a mãe, quando intercalou as suas estadas em França, com o consentimento do pai, mesmo depois de interpelada em 2017 pela A., através de mandatário, para desocupar e entregar o imóvel em causa.
Por outro lado, foi ao pai que a R. solicitou, em 2017, que a acolhesse, com os seus filhos, no referido imóvel, e que nisso consentiu e deu-o a conhecer à A.
Na sequência, a R. passou a pagar os impostos e despesas com a casa desde 2017, tal como antes o tinha feito o seu pai, enquanto a A. nada pagou, pelo que, a R. e seu pai, CC, por si e antepossuidores, de forma ininterrupta, desde há mais de 40, 50 e mais anos e até desde tempos imemoriais, têm estado a deter e fruir, com exclusão de quaisquer outras pessoas, os prédios em causa, de uma forma pública, pacífica e contínua; em consequência, pode agora o pai da A. e R. invocar, como invoca, a usucapião, como forma de aquisição originária dos dois prédios em causa.
Quanto à declaração emitida em Julho de 2020, porque a transmissão de propriedade dos imóveis da esfera patrimonial da A. para a do pai, acabou por não se concretizar, por dificuldades económicas deste, e temendo ele que, em caso da sua morte, a A., alegando a propriedade dos prédios, pudesse exigir a desocupação e entrega destes à Ré, foi o pai da A. e R., CC, quem solicitou à A. subscrevesse uma declaração a reconhecer que a Ré poderia habitar no imóvel a título vitalício, assim assegurando uma habitação a esta, tendo A. e R. definido telefonicamente os termos da declaração.
Deduziu ainda reconvenção, a R., pedindo:
a) declarar-se a nulidade, por simulação, da escritura de “doação com reserva de usufruto”, celebrada em 24.10.1997, no Cartório Notarial de Oliveira de Azeméis, lavrada a partir de fls 112 v do Livro ...-C, condenando-se a A. no seu reconhecimento;
b) declarar-se o pai da A. e R., CC, como autor e legítimo proprietário dos prédios identificados no artigo 1º da p.i., por aquisição originária, por usucapião, condenando-se a A. no reconhecimento do referido direito de propriedade do pai;
c) declarar-se a nulidade do registo predial de aquisição dos prédios em causa (artigo ... urbano e ... rústico da freguesia e ..., deste concelho) efetuados a favor da A., com base da aludida escritura de doação, ordenando-se o respetivo cancelamento;
d) declarar-se a restituição ao património do pai da A. e Ré dos prédios identificados no artigo 1º da p.i., com as legais consequências.
e) Sem prescindir, caso assim se não entenda, julgar-se o comportamento contraditório da A. - ao declarar expressamente consentir numa ocupação/fruição vitalícia da parte urbana do prédio misto em causa pela Ré, e ao assegurar verbalmente ao longo dos anos tal autorização -, um manifesto abuso de direito (artigo 334º do CC), na categoria de comportamento abusivo “venire contra factum proprium” (um comportamento não pode ser contraditado, quando tenha suscitado a confiança dos sujeitos envolvidos), previsto no artigo 334º do CC, sendo ilegítimo o exercício do direito por si alegado, com as legais consequências.
Por fim, para além da condenação da A. como litigante de má-fé, requereu a intervenção principal provocada de CC, para intervir nos autos na qualidade de réu.
A A. replicou, invocando a ilegitimidade processual e substantiva activa e a falta de interesse em agir da R. quanto ao pedido reconvencional, bem como a sua inadmissibilidade e, assim não se entendendo, a improcedência da reconvenção, pedindo ainda a condenação da reconvinte por litigância de má fé.
Foi proferida decisão que fixou à acção o valor de €58.494,13 e determinou a remessa dos autos ao Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira, onde o incidente de intervenção de terceiros foi admitido, ordenando-se a citação de CC, o qual ofereceu articulado onde:
1) aceitou parte da matéria alegada na petição inicial, impugnando a outra;
2) aceitou parte da matéria alegada na contestação, impugnando a outra;
3) deduziu os seguintes pedidos reconvencionais:
a) Ser reconhecida e declarada a nulidade, por simulação, da doação com reserva de usufruto, objecto da escritura celebrada em 24 de outubro de 1997, lavrada de fls. cento e doze-verso, a fls. cento e treze-verso, do Livro ...-C, do Cartório Notarial de Oliveira de Azeméis;
b) A Ré condenada a reconhecer tal nulidade para todos os efeitos;
c) Decretada a nulidade e, consequentemente, ordenado o cancelamento da inscrição de aquisição a favor da Autora – AP ... de 1997/12/12, sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo predial de Oliveira de Azeméis, sob o nº ...;
d) Decretada a nulidade e, consequentemente, ordenado o cancelamento da inscrição de aquisição a favor da Autora – AP ... de 1997/12/12, sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo predial de Oliveira de Azeméis, sob o nº ...;
e) Declarado legitimo proprietário dos prédios identificados no Art. 1º da douta petição inicial, o aqui Interveniente/Reconvinte CC, por aquisição originaria, por usucapião;
f) Condenada a Autora/Reconvinda a reconhecer tal direito de propriedade do seu pai;
g) Declarada a restituição ao património do aqui Interveniente/Reconvinte CC, dos prédios identificados no Art. 1º da douta petição inicial.
Caso não proceda o pedido formulado nas alíneas anteriores - o que não se aceita e apenas por mera cautela e dever de patrocínio se invoca – requereu fosse a A. ser condenada a pagar ao aqui Interveniente/Reconvinte, a titulo de indemnização pelo incremento patrimonial que os prédios descritos no Art. 1º, da petição inicial beneficiaram à custa e, por força, das obras realizadas pelo Interveniente/Reconvinte, uma quantia igual ao custo dessa mesma obra, que vier a ser liquidada em execução de sentença, nos termos do disposto no nº 2, do Art. 609º, do Cód. Proc. Civil.
A A. replicou novamente, impugnando a matéria da segunda reconvenção e afirmando, entre o mais, que não existiu qualquer simulação quanto à doação, pois a vontade expressa ou declarada pelos doadores correspondeu à sua vontade real, mesmo a admitir como boa a “tese” do chamado sobre a falta de pagamento do preço, na realidade essa compra e venda feita à Ré pelos seus avós paternos correspondeu a uma doação, sendo esta o verdadeiro negócio (dissimulado) que os avós paternos terão, nesse caso, querido de facto fazer e não a declarada compra e venda (simulado), por um lado.
Por outro, constatou que o seu pai, desde a realização desses negócios e até à data, ao longo de mais de 25 anos, nada fez em defesa dos seus hipotéticos e putativos direitos alegadamente prejudicados, nunca reagindo contra tal doação, seja em vida ou após o óbito dos doadores, ao passo que que a R., em 20/10/2020, vendeu o seu imóvel a quem, quando e nas condições que quis e entendeu.
Finalmente, constitui a maior evidencia do reconhecimento de que é a A. e não outrem (nomeadamente o chamado) a proprietária, de facto e de iure, do mencionado prédio misto doado pelos seus avós paternos, é o escrito particular datado de julho de 2020 e junto como doc. nº 6 da PI, no qual é referida expressamente a qualidade de “proprietária” da aqui A.
Ao abrigo do contraditório, a R. emitiu pronúncia sobre as questões suscitadas na réplica.
Dispensada a audiência prévia, foi elaborado o despacho saneador, no qual a reconvenção foi admitida, as excepções da ilegitimidade activa e da falta de interesse em agir para o pedido reconvencional julgadas improcedentes, foi identificado o objecto do processo, selecionados os factos assentes e fixados os temas da prova.
Decididos os meios probatórios, incluindo pericial, e realizada a audiência de julgamento, em duas sessões, foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente e a reconvenção totalmente procedente; em consequência:
a) declarou nula, por simulação, a doação com reserva de usufruto, objecto da escritura celebrada em 24 de Outubro de 1997, lavrada de fls. cento e doze-verso, a fls. cento e treze-verso, do Livro ...-C, do Cartório Notarial de Oliveira de Azeméis;
b) declarou a nulidade e determinou o cancelamento da inscrição de aquisição a favor da Autora através da AP ... de 1997/12/12 sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo predial de Oliveira de Azeméis, sob o nº ...;
c) declarou a nulidade e determinou o cancelamento da inscrição de aquisição a favor da Autora através da AP ... de 1997/12/12, sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo predial de Oliveira de Azeméis, sob o nº ...;
d) declarou que o Interveniente/Reconvinte CC é o legítimo proprietário dos prédios identificados no art.º 1.º da petição inicial e nos pontos 1., 3., 4., 6. e 7. da matéria provada, por aquisição originária, por usucapião;
e) condenou a Autora/Reconvinda a reconhecer tal direito de propriedade do seu pai; e
f) declarou a restituição ao património do aqui Interveniente/Reconvinte CC, dos prédios identificados no art.º 1.º da petição inicial e nos pontos 1., 3., 4., 6. e 7. da matéria provada.
Dessa sentença, inconformada, a A. interpôs o presente recurso, admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo, que integrou as conclusões seguintes:
(…)
A R. ofereceu resposta ao recurso, que culminou com as conclusões seguintes:
(…)

*
Também o chamado respondeu ao recurso, mediante requerimento sem conclusões, e no qual, em suma, considerou que o julgamento da matéria de facto não merece qualquer censura e que foi feita pelo tribunal “a quo” uma correcta interpretação do direito aplicável, aderindo integralmente, no mais, à resposta apresentada pela R.
Nada obsta ao conhecimento da apelação, a qual foi admitida na forma e com os efeitos legalmente previstos.
*
OBJECTO DO RECURSO.
Sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões, as quais, assim, definem e delimitam o objeto do recurso (arts. 635.º/4 e 639.º/1 do CPC).
Assim sendo, importa em especial apreciar:
a) Se foi validamente deduzida, releva e procede a impugnação da matéria de facto, quanto aos pontos provados nº15, 31 a 33, 35, 38 a 41 e 46 a 48, de modo a que os dois primeiros tenham redacção diversa e os restantes resposta negativa, e quanto às alíneas a) a q) da matéria não provada, de modo a que sejam julgadas provadas (conclusões 1 a 5 e respostas);
b) Se não estão verificados os requisitos da simulação quanto à doação feita à recorrente pelos seus avós paternos (conclusão 6);
c) Se o chamado não assume a qualidade de possuidor dos imóveis doados à recorrente ou não exerceu a posse sobre eles pelo tempo necessário para a aquisição da propriedade por usucapião (conclusões 7 e 8); e
d) Se o documento nº 6 da PI constitui declaração da recorrente anulável por dolo ou, assim não se entendendo, a criação de direito de habitação sobre os imóveis, nula por vício de forma e, na afirmativa, se ocorreu abuso do direito por parte da A. (conclusões 9 e segs. e respostas).
e) Em caso de improcedência do pedido reconvencional principal, e nos termos do art. 665.º/2 do CPC, se procede o pedido subsidiário deduzido pelo chamado relativo à condenação da A. no pagamento das benfeitorias realizadas no imóvel, a liquidar ulteriormente.
*
SOBRE A MATÉRIA DE FACTO E A SUA IMPUGNAÇÃO.
Como se sabe, a admissibilidade do recurso em matéria de facto depende do cumprimento de alguns ónus.
De acordo com o disposto no artigo 640.º/1 do Código de Processo Civil, é imposto ao recorrente que especifique:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas
Enquanto o nº2 prevê que quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Por outro lado, nos termos do art. 663.º/2 do CPC, o acórdão principia pelo relatório, em que se enunciam sucintamente as questões a decidir no recurso, expõe de seguida os fundamentos e conclui pela decisão, observando-se, na parte aplicável, o preceituado nos artigos 607.º a 612.º.
Ao passo que art. 607.º do mesmo diploma impõe ao juiz que tome ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência (nº4), de acordo com o princípio geral de que aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, sem prejuízo dos casos em que a lei submete a prova dos factos a exigências especiais e dos factos que estão já assentes (nº5).
Finalmente, dispõe o art. 662º/1 que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Segundo entendemos, a análise do recurso evidencia, em atenção às conclusões e demais alegações, que a recorrente cumpriu satisfatoriamente o regime legal previsto no art. 640.º do Código de Processo Civil.
Desde logo, descreveu os concretos pontos de facto que, a seu ver, foram incorretamente julgados provados e não provados, acima identificados na alínea a) do objecto do recurso.
Para além disso, indicou de modo suficiente os concretos meios probatórios que, na sua óptica, justificam outra decisão para a factualidade cuja resposta censurou e que não se cingem às declarações da A. e ao depoimento de EE (mãe de A e R. e ex-mulher do Chamado), estendendo-se ainda aos documentos e, sobretudo, às máximas de experiência comum e de coerência na apreciação da prova que, embora apenas enunciadas nas conclusões, foram devidamente densificadas nas alegações na sua aplicação ao caso concreto.
Por fim, mencionou claramente a resposta que considera adequada, em face da forma como analisou a prova, para os factos impugnados.
Por outro lado, no plano material e dos interesses em jogo, importa apreciar o cumprimento dos requisitos da impugnação da matéria de facto, de modo a passar à apreciação do respectivo mérito, de acordo “com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade”.
E tendo presente “a atribuição à Relação de efetivos poderes de sindicância da decisão da matéria de facto, como instrumento de realização da justiça” e a circunstância de constituir “um Tribunal de 2.ª instância, a quem incumbe a reapreciação da decisão da matéria de facto proferida pela instância hierarquicamente inferior” (A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., pp. 202-3).
Tal como deve destacar-se, neste âmbito, que a exigência da especificação dos pontos de facto concretos impugnados tem por função delimitar o objecto do recurso, em obediência ao princípio do dispositivo.
Valendo ainda como garantia de cumprimento do contraditório, para o qual contribui igualmente a indicação dos meios probatórios convocados pelas partes, nesta incluindo a referência às passagens de gravação dos depoimentos.
Ao mesmo tempo, estas menções servem ainda para definir preliminarmente a amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre todos os meios probatórios disponíveis e que possa julgar relevantes para o efeito.
De modo que o cumprimento dos requisitos impostos pelo legislador tem como propósito essencial o de esclarecer devidamente, ao tribunal e à contraparte, sobre o âmbito e o sentido da impugnação.
Estando em causa, paralelamente, exigências que constituem manifestação da ideia de que a impugnação traduz um pedido de reapreciação dos factos que deve transmitir de imediato algum nível de viabilidade, suficiente para justificar uma análise de mérito em segunda instância e que, como se disse, pode inclusivamente abranger toda a prova.
Em ordem a, desse modo, escapar a um juízo de indeferimento liminar ou, como refere a doutrina, permitir que a “impugnação da matéria de facto ultrapasse a fase liminar” (cfr. Abrantes Geraldes, Ob. cit., p. 202).
Ora, estes fundamentos materiais subjacentes à previsão dos referidos ónus são igualmente idóneos a, com razoabilidade, atenuar a exigência da indicação com exactidão das passagens da gravação quando ela, na sua plena e mais rigorosa extensão, seja de difícil ou impossível observância, para além de legitimarem a possibilidade de ela ser suprida ou completada com a alegação de concretos juízos de experiência relevantes para a decisão sobre a factualidade provada.
É o que sucede, por exemplo, nas situações em que a impugnação se funda na ausência de qualquer referência nos depoimentos e nos documentos a certos factos que, não obstante, a primeira instância julgue provados.
O mesmo devendo ainda suceder se, como ocorre no caso dos autos, o recurso tem por base a inexistência de motivos para que tais meios de prova, conjugados com regras de experiência devidamente concretizadas, justifiquem determinadas respostas dadas na decisão recorrida à matéria de facto.
Casos nos quais, portanto, não é justificada a imediata recusa da impugnação, a qual, como explica a doutrina, deve ficar reservada para situações de gravidade significativa e, em especial, para alguma das seguintes circunstâncias:
“a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635.º, nº4, e 641.º, nº2, al. b)).
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640.º, nº1, al. a)).
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v. g., documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.).
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda.
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., pp. 200-1).
Sendo certo ainda que a indicação do início das gravações, sem referência ao seu final, não se confunde com a completa omissão dessa exigência, por um lado e, por outro, que a natureza e a complexidade da factualidade debatida nos autos sempre convocariam a necessidade da audição integral dos depoimentos, mesmo que a indicação da recorrente os limitasse a certos segmentos.
Com efeito, como se refere na jurisprudência, “o apuramento dos factos não se faz com pedaços de prova ou com excertos parciais de depoimentos ou declarações”, mas, “antes com um ponderação equidistante e crítica da prova produzida, à luz das regras da lógica, da experiência e da ciência, e sobretudo de toda a prova, numa visão global da mesma, sem ceder, pois, a leituras ou interpretações descontextualizadas ou unilaterais dos meios probatórios” (cfr. Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 8/10/2018, proc. 28867/15.0T8PRT.P1, relator Jorge Seabra, disponível na base de dados da Dgsi em linha).
Assim sendo, e vistas as alegações e as respostas na sua globalidade, crê-se que no caso dos autos estão presentes os requisitos formais e materiais, associados ao dispositivo, ao contraditório e ao juízo preliminar sobre a própria consistência, necessários para que a impugnação ultrapasse a fase liminar e justifique a devida apreciação de mérito.
Em consequência, passa a recair sobre este Tribunal da Relação o dever de, na apreciação dos factos, analisar criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais, bem assim, compatibilizar toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência (nº4 do art. 607.º do CPC).
Subordinando a sua actuação ao princípio da livre apreciação da prova segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, sem prejuízo dos casos em que a lei submete a prova dos factos a exigências especiais e dos factos que estão já assentes (nº5 do art. 607.º do CPC).
No dizer da doutrina, observados os referidos ónus, do art. 662.º do CPC, nº1 e 2, als. a) e b), “fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia” (A. Abrantes Geraldes, Ob. cit., p. 334).
Ou, segundo a jurisprudência, “o reforço dos poderes conferidos ao Tribunal da Relação na reapreciação da decisão sobre a matéria de facto pelo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, tem a virtualidade de colocar os juízes desembargadores num plano decisório que, tanto quanto possível e pese embora a falta de imediação, é equivalente ao do juiz da 1ª instância”.
Desse modo, “em sede de reapreciação da prova, tratando-se de meios de prova sujeitos à livre apreciação, o que importa é que a Relação forme a sua própria convicção com base nos indicados pelas partes ou oficiosamente investigados (art. 640º, nº 1, al. b) e nº 2, al. b) do CPC), devendo fundamentar a decisão tomada” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/9/2019, tirado no processo 1555/17.6T8LSB.L1.S1, relatado por Ribeiro Cardoso e acessível no mesmo sítio).
No mesmo sentido, tem decidido este Tribunal da Relação do Porto que “ambas as instâncias estão sujeitas às mesmas normas e regras atinentes à valoração da prova que, exceptuados os casos previstos na lei, se rege pelo princípio da livre apreciação” (cfr. Acórdão de 6/5/2024, relatado por Jorge Martins Ribeiro, no âmbito do processo 6227/21.4T8VNG.P1 e disponível em dgsi.pt).
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Identicamente, segundo pensamos, não tem cabimento legal rejeitar liminarmente a impugnação da recorrente por ela ter incidido em bloco sobre vários factos.
Desde logo, porque a matéria impugnada está indissociavelmente ligada entre si e a sua apreciação global tem respaldo nos mesmos meios de prova, o que satisfaz às exigências impostas para a sua devida apreciação.
Como tem afirmado o Supremo Tribunal de Justiça, “tendo em conta os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade ínsitos no conceito de processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da CRP), nada obsta a que a impugnação da matéria de facto seja efetuada por “blocos de factos”, quando os pontos integrantes de cada um desses blocos apresentem entre si evidente conexão e, para além disso - tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, nomeadamente, o número de factos impugnados e a extensão e conexão dos meios de prova - o conteúdo da impugnação seja perfeitamente compreensível pela parte contrária e pelo tribunal” (cfr. Acórdão de 1/6/2022, relator Mário Belo Morgado, proc. nº1104/18.9T8LMG, e disponível na mesma base de dados).
Por outro lado, tendo em conta que é facilmente compreensível, face ao teor das conclusões, em conjugação com o corpo das alegações, que a recorrente dirige a sua censura à decisão de facto, em especial, sobre a prova da simulação da doação outorgada pelos avós e pais a seu favor, por um lado e, por outro, sobre a comprovação da actuação possessória do chamado, seu pai.
E assim se explica que as referências à “suposta nulidade, por simulação, da escritura pública de doação, com reserva de usufruto, outorgada em 24/10/1997, lavrada de fls. 112 verso a fls. 113 verso do Livro ...-C, do Cartório Notarial de Oliveira de Azeméis” e à “suposta aquisição originária, por usucapião, do direito de propriedade do recorrido/interveniente” intitulem as duas partes fundamentais em que se espraiam as alegações de recurso e dominem as máximas de coerência e de experiência que ali se convocam na apreciação da factualidade relevante.
Ao passo que a última parte do recurso, relativa à “nulidade, por vício de forma, e da anulabilidade, por dolo, da autorização de residência em propriedade privada junta como doc. 6 com a p.i.”, recai já, em grande medida, sobre matéria de interpretação e aplicação do direito.
Tal como dessa forma se compreende que, embora de forma mais difusa e de evidente maior prolixidade, as conclusões da recorrida debatam, em especial desde a nº12, o julgamento de facto e de direito a respeito da simulação (conclusões 30 e segs.) e da verificação da usucapião (conclusões 38 e segs.).
Sendo certo que, nessa resposta ao recurso, a R. procedeu igualmente ao emprego de regras de experiência e de lógica na apreciação da prova com interesse para a avaliação daquela factualidade.
E que, assim, têm préstimo para enquadrar e completar, suprindo a indicação menos exacta das passagens da gravação, que também existe nas suas alegações, os concretos depoimentos a que a R. fez apelo em abono das suas pretensões.
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Isso não significa, no entanto, que todos os pontos impugnados pela A. e debatidos por R. e Chamado devam ser apreciados em segunda instância.
Na verdade, assente que está a essencial observância dos ónus estabelecidos no art. 640.º do CPC, no plano formal e material, importa ainda delimitar com precisão o âmbito que a reapreciação de facto deve merecer por parte deste Tribunal da Relação do Porto.
O que implica, completando a resposta à primeira questão colocada no objecto do recurso, a necessidade de determinar se a impugnação da matéria de facto, para além de ter sido validamente deduzida, assume relevância para a decisão do recurso e, na afirmativa, em que medida.
A tal propósito, importa previamente advertir que, atentas as regras gerais de gestão processual e de proibição da prática de actos inúteis, consagradas nos arts. 6.º e 130.º do CPC, a falta de interesse dos factos para a decisão final constitui circunstância impeditiva da tarefa de reapreciação da prova.
Como bem se compreende, se os factos impugnados, conjugados com aqueles que têm de manter-se inalterados, por falta de impugnação e não existir quanto a eles motivos para intervenção oficiosa, não tiverem a virtualidade de alterar o segmento decisório objecto de recurso, a sua reapreciação será inútil e nenhum proveito poderá trazer às pretensões essenciais das partes.
Neste sentido, tem sentenciado o Supremo Tribunal de Justiça que “nada impede a Relação de apreciar se a factualidade indicada pelos recorrentes é ou não relevante para a decisão da causa, podendo, no caso de concluir pela sua irrelevância, deixar de apreciar, nessa parte, a impugnação da matéria de facto, por se tratar de ato inútil” (cfr. Acórdão de 09/02/2021, proc. 27069/18.3T8PRT.P1.S1, da autoria de Maria João Vaz Tomé e disponível em jurisprudencia.pt).
Entendimento que, aliás, tem sido repetido para destacar que “de acordo com os princípios da utilidade e pertinência a que estão sujeitos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto só é admissível se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte”.
E por isso que “o dever de reapreciação da prova por parte da Relação apenas existe no caso de o recorrente respeitar os ónus previstos no art. 640.º, n.º 1 do CPC, e, para além disso, a matéria em causa se afigurar relevante para a decisão final do litígio” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3/11/2023, relatado por Mário Belo Morgado, no proc. 835/15.0T8LRA e acessível em www.dgsi.pt).
Da mesma forma, coerentemente com este princípio, a apreciação da impugnação factual deve limitar-se aos pontos com interesse para a decisão da causa e do recurso, ficando prejudicada por inutilidade no restante.
Ora, no caso dos autos, como se disse, a impugnação incide sobretudo na matéria factual atinente à simulação da doação outorgada favor da A. e à actuação possessória do chamado, que são decisivas também no plano do direito.
Daqui resultando que, dentro do elenco dos factos referidos no recurso, a apreciação do tribunal ad quem deve recair sobre os pontos 31 a 33, 35 e 38 da factualidade julgada provada em primeira instância.
Aos quais acrescem, embora apenas na parte que releva para os referidos temas: o início do número 15, sobre a data até a qual FF e DD actuaram sobre os prédios referidos em 1. e 4. como seus donos (matéria extraída do art. 47 da contestação), a parte dos factos 39, 40, 41 e 46 relativa ao afirmado consentimento do chamado, o final do 47 e a alínea f) da matéria não provada.
E incluindo ainda, mas agora por terem interesse para o mérito do pedido formulado pela A., a que respeita a última questão do objecto do recurso, os factos questionados no ponto 48 dos provados e nas alíneas i) a o) dos não provados.
Segundo entendemos, nos demais segmentos, a matéria factual abordada por recorrente e recorridos é insusceptível de preencher a referida exigência de utilidade no recurso, pois não assume relevância para a decisão final da acção e da reconvenção face às soluções plausíveis de direito.
Nessa parte, por isso, a impugnação não merece apreciação no recurso.
Em consequência, e de modo a organizar devidamente a análise subsequente, cumpre elencar os factos ou temas que devem ser sindicados nesta decisão na sequência da impugnação da recorrente:
A) Deve ou não manter-se provado que, em virtude de dificuldades económicas, temendo que os pais falecessem e o seu quinhão hereditário fosse penhorado pelos credores, CC, juntamente com a esposa, acordou com os pais daquele, que estes transmitiriam os dois prédios urbanos e o prédio rústico de que eram donos a favor das suas filhas, aqui A. e R. (facto 32)?
B) Deve ou não manter-se provado que FF e a DD (avôs de A. e R.) não quiseram doar a raiz, nem reservar para si o usufruto, dos prédios referidos em 1. e 4. à A. e esta, enquanto representada pelos seus pais, não quis tal doação de raiz, com reserva de usufruto, não querendo tais pessoas celebrar qualquer negócio (factos 31 e 35)?
C) Deve ou não manter-se provado que, em cumprimento do seu plano, para iludir os credores do CC, o FF e a DD celebraram os negócios referidos em 7. e 8. (facto 33)?
D) Deve ou não manter-se provado que a Autora sempre reconheceu, perante todos, ser o CC, após a morte dos avós, o proprietário dos prédios referidos em 1. e 4. (facto 38)?
E) Deve ou não manter-se provado que FF e DD actuaram sobre os prédios referidos como seus donos até 2010 (facto 15)?
F) Deve ou não manter-se provado que os factos nº39, 40, 41 e 46 ocorreram com o consentimento ou a autorização do chamado?
G) Deve ou não manter-se provado que, desde o falecimento da mãe, em Junho de 2010, o chamado CC praticou os actos em causa sobre o imóvel na convicção de exercer um direito próprio, correspondente ao direito de propriedade (facto nº47)?
H) Deve ou não manter-se provado que a declaração referida em 10. foi emitida por causa dos conflitos da R. com a mãe e porque o pai, o CC, por razões que se desconhecem, não formalizou a transmissão dos prédios para seu nome (facto 48)?
I) Deve permanecer não provado que, sob o pretexto de necessitar de um documento para comprovar em como estava a habitar gratuitamente de favor da Autora, a Ré pediu-lhe que assinasse um documento que a isso fizesse menção nas circunstâncias referidas nas alíneas i), j), k) e o) não provadas?
J) Deve permanecer não provado que, em Março de 2017, a Ré pediu à A., no que ela consentiu, o favor de também poder habitar nessa casa de habitação, onde já habitavam os pais de ambas, de forma gratuita, pelo período de 2 ou 3 meses (alínea f) não provada)?
L) Devem permanecer não provados os factos relativos às interpelações da A. para deixar o imóvel e às respostas da R. mencionadas nas alíneas l) a n)?
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Por outro lado, atentas as indicações concretas constantes nas alegações de recorrente e recorridos, a par do teor da matéria relevantemente sindicada, e sempre com apoio em máximas de experiência comum e de análise crítica da prova, procedeu-se, respectivamente, à audição através do sistema media-studio e à avaliação da seguinte prova pessoal e documental:
● Depoimento e declarações de parte da A., prestados no início da primeira sessão da audiência, a 5/12/2024, e documentados ainda na assentada lavrada na acta correspondente;
● Depoimento e declarações de parte da R., inquirida em último lugar na manhã da mesma sessão do julgamento;
● Depoimento da testemunha EE, mãe de A e R. e ex-mulher do Chamado, indicada pela A. para a audiência e para o recurso, ouvida em terceiro lugar na sessão da tarde de 5/12/2024;
● Depoimento da testemunha da A., GG, indicada pelos recorridos, prestado em segundo lugar na mesma sessão;
● Depoimento da testemunha comum, HH, indicada pelos recorridos e inquirida em quarto lugar naquela sessão;
● Depoimento da testemunha comum, II, indicada pelos recorridos e ouvida em penúltimo lugar na mesma data;
● Depoimento da testemunha da A., JJ, que adquiriu o imóvel anteriormente pertencente à R., a primeira a ser ouvida na última sessão do julgamento (de 23/1/2025);
● Depoimento da testemunha da A., KK, indicada pelos recorridos, prestado em segundo lugar na mesma sessão;
● Depoimento da testemunha da R., LL, indicada pelos recorridos e inquirida logo depois na referida data;
● Depoimento da testemunha MM, também indicada na acção e no recurso pelos recorridos e que foi a última a ser ouvida em audiência de julgamento;
● Escritura pública de doação, com reserva de usufruto, outorgada em 24/10/1997, lavrada de fls. 112 verso a fls. 113 verso do Livro ...-C, do Cartório Notarial de Oliveira de Azeméis;
●Escritura pública outorgada em 24 de Outubro de 1997, no Cartório Notarial de Oliveira de Azeméis, lavrada a fls. 45v do Livro ...-F, denominada de “Justificação e Venda”;
●Documento junto como nº6 com a PI, assinado pela A. e designado de “Autorização de residência em propriedade privada”;
● Emails e sms juntos como documentos nº3 a 6 da contestação da R., enviados pela A. ao seu pai;
● Carta apresentada como documento nº 7 da mesma peça processual, assinada pela mãe de A. e R. e dirigida a il. mandatário da primeira;
Salientando-se ainda que, a despeito do cariz familiar do conflito tratado nos autos, de ser pai da A. e da R. e de ter sido anotada em acta a sua presença na primeira sessão do julgamento, o Chamado não prestou depoimento.
Em todo o caso, apreciada a referida prova e de um modo geral, diga-se já que as declarações da A., no essencial, foram coerentes, assertivas e com esforço de apego à verdade, para além de, em boa medida, terem sido corroboradas por EE, que denotou credibilidade e a quem deve ser creditada a maior isenção que resulta da maternidade comum sobre ambas as partes.
Diversamente, a R. foi evidenciando ao longo da sua inquirição, salvo o devido respeito, um discurso muitas vezes evasivo e até desconexo.
Estes foram os meios probatórios mais importantes a nível pessoal, ao passo que, das testemunhas indicadas pelos recorridos, GG e HH, embora unânimes no sentido de que o imóvel em causa nos autos pertencia à A., não conseguiram responder a várias questões que lhes foram colocadas.
Já o depoimento de II foi manifestamente contraditório, referindo inicialmente que as casas eram dos pais da A., para terminar dizendo que uma casa era da AA (A.) e outra da BB (R.), e KK foi inquirido sobre uma matéria (os termos da execução que propôs contra o Chamado) que só muito remotamente poderia relevar no nosso processo.
De maior importância, porém, foi também o depoimento de JJ, por ter incidido sobre as circunstâncias relativas à aquisição do imóvel que pertencia à R. e que, a nosso ver, juntamente com os factos atinentes à elaboração do documento nº6 da PI, constituíram os temas da prova preponderantes para aquilatar a credibilidade e verosimilhança das diversas versões das partes.
Ora, sobre esse primeiro tema, JJ denotou total espontaneidade e sinceridade no sentido de que, depois de ter conversado com o chamado (pai de A. e R.) para negociar a aquisição, foi contactado telefonicamente pela R. que lhe comunicou que “a casa era dela” (fez esta referência por mais que uma vez), tendo sido exclusivamente com ela, a R., que depois a negociação prosseguiu.
Sem que existissem, no prosseguimento dos contactos entre JJ e a R., quaisquer outras intervenções conhecidas do Chamado, tendo ainda sido apenas a favor dela, a R., que a referida testemunha realizou todas as transferências pecuniárias inerentes ao pagamento do preço.
O que apenas pode ser interpretado como assunção pela família de que, na sequência da alienação, pelos seus avós, de um imóvel à A. e outro à R., esta conservou sempre, na negociação do segundo, um papel decisivo, não apenas formal, na outorga da escritura, mas também, no plano substancial, na definição dos termos do contrato e no recebimento do preço, o que, aliás, a própria admitiu.
Finalmente, foi extremamente reduzido ou mesmo nulo o valor probatório que se atribuiu aos depoimentos de LL e NN.
Desde logo, pelo interesse que manifestaram no desfecho da causa – o primeiro por ser filho da R., que até há pouco residiu no imóvel reivindicado, o segundo por ser pai dele e do outro filho da R. e que com ela usufrui desse bem – mas também pela própria inconsistência das respostas dadas, chegando ao ponto de declararem sem dúvidas que uma casa (a reivindicada) era do avô (o chamado) e já nada conhecerem sobre a propriedade da outra (entregue à R. e alineada por ela).
Posto este enquadramento geral da prova pessoal produzida em audiência, estamos agora em condições de passar ao plano, mais detalhado, referente às respostas que ela justifica para cada facto ou tema questionado.
A) Deve ou não manter-se provado que, em virtude de dificuldades económicas, temendo que os pais falecessem e o seu quinhão hereditário fosse penhorado pelos credores, CC, juntamente com a esposa, acordou com os pais daquele, que estes transmitiriam os dois prédios urbanos e o prédio rústico de que eram donos a favor das suas filhas, aqui A. e R. (facto 32)?
Segundo entendemos, este facto deve manter-se provado, reconhecido que foi por A. e pela sua mãe, EE, e corroborado pelas demais pessoas ouvidas.
Com efeito, embora dissonantes em largos segmentos, neste ponto as versões de ambas as partes já coincidiram no essencial: face às dificuldades económicas do chamado e à avançada idade dos seus pais, estava em causa o fim de preservar o mais importante património deles na esfera familiar e, ao mesmo tempo, assegurar uma distribuição antecipada e igualitária da herança que, desse modo, “garantisse um tecto a cada neta” (A. e R.).
B) Deve ou não manter-se provado que FF e a DD não quiseram doar a raiz, nem reservar para si o usufruto, dos prédios referidos em 1. e 4. à A. e esta, enquanto representada pelos seus pais, não quis tal doação de raiz, com reserva de usufruto, não querendo eles celebrar qualquer negócio (nº31 e 35)?
A nosso ver, este facto não pode manter-se provado, desde logo, porque é manifestamente incompatível com o anterior: se o entendimento familiar (entre chamado, a sua mulher à época, as filhas de ambos e os pais do primeiro) passava por transmitir os dois prédios a favor de A. e R., de modo a manter o património na família, não é possível ou coerente julgar provado que, afinal, a mesma transmissão não foi pretendida, nem se quis celebrar qualquer negócio.
Por outro lado, a realidade deste facto foi negada pela citada EE, pela A. e pela generalidade das testemunhas que ela indicou, sendo tal negação, demais, plenamente conforme a elementares máximas de lógica e normalidade e cujo sentido aponta para que FF e a DD, cumprindo o acordo familiar, quiseram transmitir o imóvel à neta, reservando para si o usufruto, nos termos que declararam.
Ao ponto, inclusivamente, de distinguirem, como foi referido em audiência, entre a doação a favor da A., por ela ser menor, e a compra em benefício da R., por ser maior de idade, sendo esta compra da R., na verdade, o único negócio que eles simularam, para encobrir outra doação, agindo assim igualitariamente em prol das duas irmãs, visto que resultou consensual da produção de prova que nenhum preço foi pago ou cogitado a cargo da R. pela aquisição do segundo imóvel.
Nem teria qualquer sentido, em nosso juízo e salvo o devido respeito por outro, considerar que os avós de A. e R. não pretenderam reservar o usufruto do imóvel, pois esse era um elemento fulcral para a prossecução do propósito de manter o património em seio familiar, garantindo simultaneamente que dele essas pessoas poderiam fazer uso até ao final dos seus dias.
Deste modo, o estabelecimento do usufruto constituiu outro factor importante para criar a nossa convicção no sentido de que os negócios de transmissão dos imóveis foram celebrados pelos interessados precisamente com os resultados que deles advieram e, portanto, no essencial, com o intuito de dispor dos bens sem prescindir do usufruto sobre eles a favor dos transmitentes.
Tal como seria incompreensível, se bem pensamos, que o verdadeiro intuito familiar fosse o de manter tudo nas mãos dos avós, passando depois inteiramente para o chamado, seu filho, embora às ocultas dos credores, como se A. e R. não passassem a ter qualquer direito sobre os bens, quando a verdade é que a primeira se assumiu como “proprietária responsável” por um dos prédios, no doc. nº6 da PI, e a segunda fez questão de liderar a negociação do outro imóvel.
É certo que, neste concreto ponto, o depoimento da mãe de A. e R. foi aparentemente contraditado pelo doc. 7 da contestação, constituído por uma carta que a mesma D. EE enviou ao Sr. Dr. OO afirmando, entre o mais, que “a minha filha bem sabe que a casa só está em nome dela, para os credores do pai, ao tempo, não terem bens para satisfazer os seus créditos”.
Todavia, pareceu-nos que o depoimento de EE, como acima se esboçou, foi bastante consistente e credível, não se notando, ao contrário do que foi entendido pela primeira instância, qualquer condicionamento pela circunstância de, actualmente, a testemunha não manter relacionamento com a R.; ao invés, a maternidade relativa às partes principais afigurou-se-nos sólido respaldo de isenção, em acréscimo ao elevado grau de objectividade que reconhecemos nas respostas que prestou em audiência.
Por isso, entre o teor do desse depoimento e o conteúdo daquela missiva do doc. 7 da contestação, considerou-se ser o primeiro que deveria prevalecer, tanto mais que tudo o que é referido no documento é deveras estranho, desde o facto de ter sido dirigido a quem agora representa o Chamado em juízo, como ainda por evidenciar um suposto conflito entre a A. e a sua mãe de cuja existência a prova pessoal em audiência não produziu o mínimo vestígio.
Em todo o caso, nessa carta a referida testemunha nunca afirmou que o imóvel é seu ou do marido, e não da A., mas apenas que a existência dos credores do pai dela constituiu o motivo para que o bem “passasse” para o nome da filha.
C) Deve ou não manter-se provado que, em cumprimento desse plano, para iludir os credores do CC, o FF e a DD celebraram os negócios referidos em 7. e 8. (facto 33)?
Parece-nos que também este facto merece resposta negativa, não apenas na medida em que, em parte, repete o ponto 32, como também e sobretudo porque não estava em causa, no momento da celebração dos negócios, produzir qualquer ilusão aos credores, pois aos avós de A. e R. não eram conhecidas dívidas e o seu filho não era proprietário dos imóveis.
Diversamente, como acima se disse, quis-se garantir imediatamente a distribuição, à geração seguinte, desses bens, assegurando às netas um tecto para o futuro, embora isso tenha resultado, mediatamente, do receio de que, com a futura transmissão hereditária dos bens para o chamado, eles fossem objecto de penhoras pelos credores deste.
D) Deve ou não manter-se provado que a Autora sempre reconheceu, perante todos, ser o CC, após a morte dos avós, o proprietário dos prédios referidos em 1. e 4. (facto 38)?
A propósito deste tema, diga-se previamente que, face à prova documental e pessoal produzida em audiência, é indiscutível que, em 2017, 2018 e Maio de 2020, a A. declarou ao pai, por sms e emails, “Volta para a tia casa”, “Trata de recuperar a tua casa”; “A casa não é minha, é tua”, “Por isso, eu AA, aceito assinar uma procuração no teu nome para tirar a casa (…) do meu nome”.
Todavia, a mesma prova nenhum indício gerou de que a A. tenha dirigido semelhantes afirmações a qualquer outra pessoa.
Pelo contrário, no doc. 6 da PI, a A. assumiu-se perante a R., de forma inequívoca, em Julho de 2020, com a “qualidade de proprietária responsável pela residência” e apôs no documento, ao assinar, o que denominou a “assinatura da proprietária”.
Da mesma forma, segundo pensamos, seria incompreensível e iníquo, não sendo minimamente de presumir em atenção ao desígnio igualitário que presidiu à distribuição antecipada da herança, que, na sequência dos negócios dos avós, a R. se assumisse perante terceiros, como fez quanto à testemunha JJ, com a qualidade de dona de um dos imóveis, enquanto a A., diversamente, expusesse a todos os demais a ausência de qualquer direito sobre o outro prédio.
Para assim concluir que, em nossa convicção, a prova produzida em audiência justifica uma resposta restritiva ao mencionado tema, julgando-se provado que, em 2017, 2018 e Maio de 2020, a A. declarou ao pai, por sms e emails, “Volta para a tia casa”, “Trata de recuperar a tua casa”; “A casa não é minha, é tua. Eu não tenho de querer nada. Tu o que queres que eu faça? Dá-me a tua ideia”, “Por isso, eu AA, aceito assinar uma procuração no teu nome para tirar a casa (…) do meu nome” e que, por documento de Julho de 2020, assumiu-se perante a R. com a “qualidade de proprietária responsável pela residência” e assinou-o pelo próprio punho com o que denominou a “assinatura da proprietária”.
E) Deve ou não manter-se provado que FF e DD actuaram sobre os prédios referidos como seus donos até 2010 (facto 15)?
Vista a prova documental e ouvida a pessoal, não vislumbramos qualquer elemento que possa justificar a demonstração desse facto e evidenciar que, feita a doação e a venda dos imóveis em 1997, com reserva de usufruto a seu favor, os avós de A. e R. tenham actuado sobre os prédios como sendo seus donos.
E embora esteja comprovado, sem reparo das partes, que o chamado, então no estado de casado com EE, iniciou, no ano de 2006, a realização de obras na casa com autorização dos seus pais, isso não representa de modo algum, se bem pensamos, uma actuação típica de donos da parte deles, certo que é perfeitamente compatível com a condição de usufrutuários que realmente detinham.
Em consequência, o quesito merece resposta restritiva reportada a 1997.
F) Deve ou não manter-se provado que os factos nº39, 40, 41 e 46 ocorreram com o consentimento ou a autorização do chamado?
Citando o depoimento de EE, ao qual se atribuiu a importância e credibilidade maiores, mercê da sua consistência e da isenção creditada a quem é ao mesmo tempo mãe de A. e R.: em 2017, a Ré passou a residir na casa de habitação do prédio em causa nos autos mediante o consentimento da A. e do chamado CC.
E não se verificou a existência de qualquer meio probatório credível no processo ou produzido em audiência que desmentisse esta factualidade.
A qual, ademais, é ainda corroborada pelo facto de a R. ter reconhecidamente solicitado à A. a assinatura do doc. 6 da PI, para “autorização de residência em propriedade privada”, por um lado e, por outro, de, como resulta da resposta dada ao tema D, em especial das afirmações “Eu não tenho de querer nada. Tu o que queres que eu faça? Dá-me a tua ideia”, a A. manifestar acentuado respeito pelas opiniões do pai, quanto ao destino e utilização dos imóveis.
Identicamente, de resto, ao que fazia a R. e como bem se compreende, aliás, não apenas pela relação paternal, como também por ele ser o único filho e herdeiro legitimário dos avós.
Segundo tal depoimento, o consentimento ocorreu a pedido da R., para que ela fosse acolhido juntamente com os filhos enquanto não obtivesse outro imóvel para viver, e também aqui não encontramos meios de prova que contrariassem a veracidade do facto.
Assim sendo, a resposta ao facto 39 deve ser alterada para: desde 2017, a R. passou a residir com seus filhos no prédio, a seu pedido, enquanto dele necessitasse, por não dispor de outro imóvel para viver, com o consentimento da A. e do Chamado.
Devendo corrigir-se em coerência com a referida prova e em nossa convicção os factos nº40 e 41 de modo a incluir a autorização de A. e Chamado.
Ao passo que o ponto 46, na parte em que foi contrariado, com credibilidade, pela mencionada testemunha - segundo a qual, o Chamado deixou de habitar na casa em 2017 - tal como pela A., deve merecer resposta restritiva, tanto que, segundo máximas de experiência comum, no mesmo sentido aponta a circunstância de que os dois quartos do imóvel dificilmente albergariam cómoda e simultaneamente a R., os seus filhos e o avô destes.
Passando a constar, assim, que desde o falecimento da mãe, em Junho de 2010, até data não concretamente apurada de 2017, o chamado CC viveu nos prédios referidos em 1. e 4., cuidando e tratando dos mesmos, com a correspondente restrição dos factos nº29 e 37.
G) Deve ou não manter-se provado que, desde o falecimento da mãe, em Junho de 2010, CC praticou os actos em causa sobre o imóvel doado na convicção de exercer um direito próprio, correspondente ao direito de propriedade (facto nº47)?
Segundo pensamos, este facto repete na primeira parte o ponto anterior.
Para além disso, na sua parte essencial, não encontra respaldo em qualquer meio probatório fidedigno, tendo em conta, desde logo, a completa inércia, acertadamente destacada no recurso, que o chamado sempre manifestou relativamente à situação jurídica do imóvel, apesar das já mencionadas comunicações da A. para a sua eventual alteração.
De resto, além de não se vislumbrar qualquer acção objectiva do chamado no sentido de actuar com a convicção de ser proprietário do imóvel, a generalidade da prova pessoal que mereceu credibilidade afirmou que a casa pertencia à A.
Daqui resultando, pois, a exclusão do ponto 47 do elenco dos factos provados.
H) Deve ou não manter-se provado que a declaração referida em 10. foi emitida por causa dos conflitos da R. com a mãe e porque o pai, o CC, por razões que se desconhecem, não formalizou a transmissão dos prédios para seu nome (facto 48)?
Salvo o devido respeito, não descortinamos qualquer fundamento na prova produzida para que a decisão recorrida tenha julgado provado este facto.
Na verdade, apenas a R. referiu que o documento resultou de conflitos com a mãe e somente o fez na segunda parte do seu depoimento, depois de, inicialmente, e de modo totalmente contraditório, ter dito que era “acompanhada na altura por duas doutoras, precisando da declaração para entregar à Dra. PP”.
Sendo certo, ademais, que o discurso evasivo e muitas vezes desconexo da R., a que já se fez referência, sempre seria bastante para não atribuir a tal meio de prova, isoladamente, credibilidade suficiente para a demonstração do facto.
Em acréscimo, as declarações da A., com apoio no depoimento da mãe, contrariaram de forma clara a veracidade do referido facto, tanto que a versão que manifestaram (“a R. disse estar a ser seguida pela assistente social e precisava por isso da declaração”) vai de encontro ao teor da parte inicial do depoimento da R.
Em consequência, também este facto deve ser julgado não provado.
I) Deve permanecer não provado que, sob o pretexto de necessitar de um documento para comprovar em como estava a habitar gratuitamente de favor da Autora, a Ré pediu-lhe que assinasse um documento que a isso fizesse menção nas circunstâncias referidas nas alíneas i), j), k) e o) não provadas?
Atento o acima exposto, este facto merece resposta afirmativa, embora com a troca das expressões “sob pretexto de” por “afirmando” e até “fizesse menção”.
Importa, todavia, verificar o teor restante daquelas alíneas não provadas:
j) Elaborou e enviou o documento 6 junto com a p.i. para a autora assinar com tal finalidade;
k) Convencida em função do que a Ré lhe dissera e pedira, porque na realidade correspondia à verdade, a Autora acedeu e assinou de cruz tal documento, não se apercebendo que autorizava a Ré a residir ou permanecer na habitação por tempo vitalício;
o) Caso a Autora se tivesse apercebido que, com tal declaração, permitiria que a Ré permanecesse vitaliciamente na habitação não teria assinado a declaração.
Desta matéria, parece-nos evidente que a alínea j) merece a resposta já contida no facto provado nº30, tendo sido nesses termos que a factualidade correspondente foi afirmada pela A. e reconhecida pela R. em audiência.
No restante, porém, consideramos que persistem fundadas dúvidas sobre a verificação dos factos questionados naquelas alíneas.
É que, embora eles tenham sido afirmados pela A. e pela testemunha EE, mãe dela e da R., não foram, desta feita, corroborados por quaisquer elementos probatórios atendíveis, aqui incluindo máximas de experiência comum e de razoabilidade na apreciação da prova, as quais, ao invés, alimentam sérias dúvidas sobre a realidade de tais factos.
Desde logo, em função do destaque que as palavras “tempo vitalício” têm no final do texto do doc. 6 da PI, onde para mais são usadas em tamanho grande e de forma bastante visível e que, nesse contexto, muito improvavelmente escapariam à leitura de qualquer pessoa medianamente atenta.
A isso acrescendo de forma decisiva que, como acertadamente se apercebeu a primeira instância, a A. tem o 12.º ano de escolaridade, evidenciando para mais o uso correcto da língua portuguesa, não sendo razoável a falta de compreensão do significado daquelas expressões, nem da atenção mínima para verificar a sua colocação no texto, tanto mais que dispôs de longo tempo para o efeito, pois foi consensualmente referido em audiência que a declaração foi enviada pela R. por email, para que a A. a imprimisse, assinasse e posteriormente devolvesse.
Por isso, as alíneas k) e o) devem manter-se no rol dos factos não provados.
J) Deve permanecer não provado que, em Março de 2017, a Ré pediu à A., no que ela consentiu, o favor de também poder habitar nessa casa de habitação, onde já habitavam os pais de ambas, de forma gratuita, pelo período de 2 ou 3 meses (alínea f) não provada)?
Parece-nos que a apreciação deste facto fica grandemente prejudicada face à resposta dada ao ponto 39, devendo eliminar-se, pois, da factualidade relevante, destacando-se ainda que, embora tenha sido realmente mencionado em audiência o período de 2 ou 3 meses, da prova produzida prevaleceu, em nossa convicção, a ideia de que o pedido da R. e o correspondente consentimento de A. e Chamado, para habitação no imóvel com a família, tiveram sobretudo em vista o período durante o qual a R. dele necessitasse por não dispor de outro imóvel para viver.
Desta matéria da al. f), porém, releva a parte sobre a utilização gratuita do imóvel pela R., com ressalva do pagamento de impostos e despesas de consumo.
E que, na verdade, foi referida consensualmente em audiência, pelo que, deve ser aditada ao referido facto nº39.
L) Devem permanecer não provados os factos relativos às interpelações da A. e respostas da R. mencionados nas alíneas l) a n)?
Neste ponto, concordamos com a resposta negativa dada em primeira instância, visto que, embora os factos em questão tenham sido afirmados pela A. e pela testemunha EE, também aqui não existiram outros juízos probatórios que corroborassem a sua veracidade.
Por um lado, em atenção à ausência de qualquer documento de interpelação à R. para entrega do imóvel, que fosse anterior à carta que constitui o doc. 7 da PI, elaborada pelo próprio causídico que nestes autos representa a A., e por outro lado tendo em conta a circunstância de, como resultou evidente face à forma como foi produzido o doc. 6 da PI, as partes fazerem uso corrente do email como forma de comunicação, através do qual a realização das interpelações seria o meio mais idóneo e de que poderiam facilmente fazer prova.
*
FACTOS PROVADOS E NÃO PROVADOS.
Em face do exposto, considerando a decisão recorrida e as alterações acima operadas, estão provados os seguintes factos (corrigindo-se a sua numeração, mas com referência à anterior no final de cada um):
1) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Azeméis, com o n.º ..., o prédio rústico situado em ..., inscrito na matriz rústica sob o art.º ... (1).
2) Através da AP ... de 1997/12/12, mostra-se registada na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Azeméis a aquisição de tal prédio a favor da Autora, por doação efectuada por FF e mulher (2).
3) Encontra-se inscrito na matriz predial rústica da freguesia ..., concelho de Oliveira de Azeméis, sob o art.º ..., o prédio identificado em 1., tendo como titular a Autora (3).
4) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Azeméis, com o n.º ..., o prédio urbano situado em ..., inscrito na matriz rústica sob o art.º ... (4).
5) Através da AP ... de 1997/12/12, mostra-se registada a aquisição de tal prédio a favor da Autora, por doação efectuada por FF e mulher (5).
6) Encontra-se inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., concelho de Oliveira de Azeméis, sob o art.º ..., o prédio identificado em 4., tendo como titular a Autora (6).
7) Em virtude de dificuldades económicas, temendo que os pais falecessem e o seu quinhão hereditário fosse penhorado pelos credores, CC, juntamente com a esposa, acordou com os pais daquele, que estes transmitiriam os dois prédios urbanos e o prédio rústico de que eram donos a favor das suas filhas, aqui A. e R. ...).
8) Mediante escritura pública outorgada em 24 de Outubro de 1997, no Cartório Notarial de Oliveira de Azeméis, lavrada no livro de Notas para Escrituras Diversas número ...-C, de fls. 112 verso a fls. 113 verso, denominada de “Doação”, FF e esposa DD, na qualidade de 1.ºs outorgantes, declararam:
“Que, pela presente escritura, com reserva de usufruto, doam à sua neta, AA, menor, (…), cujos pais são vivos, os seguintes prédios:
1. Rústico composto de terreno a cultura de sequeiro, com a área de 180 metros quadrados, sito no Lugar ..., freguesia ..., deste concelho de Oliveira de Azeméis, a confrontar (…), omisso no registo predial, inscrito na respectiva matriz sob o artigo rústico ..., com o valor patrimonial de 1.285$00 e atribuído de cem mil escudos;
2. Urbano composto de casa de habitação de um pavimento, uma ramada na frente, páteo e quintal, com a área coberta de 70 metros quadrados, logradouro com 40 metros quadrados e quintal com 200 metros quadrados, sito no lugar ..., freguesia ..., deste concelho, a confrontar (…), omisso no registo predial e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..., com o valor patrimonial de 15.584$00 e atribuído de cem mil escudos.
Que adquiriram o identificado prédio urbano e quintal por escritura de compra de 5 de Julho de 1954, lavrada a folhas (…).
Que atribuem a esta liberalidade o valor de duzentos mil escudos” (7).
9) Mediante escritura pública outorgada em 24 de Outubro de 1997, no Cartório Notarial de Oliveira de Azeméis, lavrada a fls. 45v do Livro ...-F, denominada de “Justificação e Venda”, FF e esposa DD, na qualidade de 1.ºs outorgantes, QQ, RR e SS, na qualidade de 2.ºs outorgantes, BB, na qualidade de 3.º outorgante, e CC e esposa EE, na qualidade de 4.ºs outorgantes, declararam:
“(…) pelos 1.ºs outorgantes foi dito: Que são donos, com exclusão de outrem do seguinte imóvel:
- Prédio urbano composto de casa de dois pavimentos com pequeno pateo, com a superfície coberta de 105 metros quadrados e descoberta de 5 metros quadrados, sito no lugar ..., freguesia ..., deste concelho de Oliveira de azeméis, que confronta (…), omisso no Registo Predial e inscrito na matriz em nome do justificante marido sob o artigo urbano ..., com o valor (…).
Que não são detentores de qualquer título formal que legitime o domínio do referido prédio, o qual veio a sua posse por doação de TT do que também usava UU, viúvo, pai dele outorgante que foi residente (…), por volta do ano 1942, doação essa verbal, nunca se tendo efectuado a respectiva escritura.
Que, não obstante isso, têm usufruído o mesmo prédio, colhendo os respectivos frutos, (…).
Que dadas as enunciadas características de tal posse, adquiriram o indicado prédio, por usucapião, (…).
Declararam os 2.ºs outorgantes: que confirmam as declarações prestadas pelos 1.ºs.
Mais declaram os 1.ºs outorgantes:
Que, pela presente escritura, e pelo preço de três milhões trezentos e oitenta mil escudos, que já receberam, vendem à 3.ª outorgante, sua neta, o prédio acima identificado.
Declarou a 3.ª outorgante que aceita a presente venda e que o mesmo prédio se destina exclusivamente a habitação (…).
Declararam os 4.ºs outorgantes, que autorizam os 1.ºs, seus pais e sogros à venda aqui efectuada” (8).
10) Nem o FF e a DD quiseram vender, nem a Ré comprar o prédio referido em 9., nem a Ré pagou, nem aqueles receberam, o preço da alegada venda (34).
11) Mediante escritura pública outorgada em 20 de Outubro de 2020, no Cartório Notarial de São João da Madeira, denominada de “Compra e venda”, a Ré, BB, na qualidade de 1.ª outorgante, e Dr. VV, da advogado, na qualidade de 2.º outorgante e de gestor de negócios e em representação de JJ, declararam:
“(…) pela 1.ª outorgante foi dito:
Que é dona e legítima proprietária e possuidora do seguinte: Prédio urbano, casa de dois pavimentos e páteo, destinado a habitação, situado em ..., à Rua ..., freguesia ..., concelho de Oliveira de azeméis, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., com o valor (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de azeméis sob o número .../..., cuja aquisição está registada a favor da vendedora, divorciada, pela apresentação (…).
Que, pela presente escritura, vende ao representado do 2.º outorgante, JJ, o dito prédio urbano pelo preço de 35.000,00 €, já recebido.
Declarou o 2.º outorgante:
Que, para o seu representado, JJ, aceita este contrato nos precisos termos exarados” (9).
12) A Ré entregou o valor referido em 11., após desconto com obras, IMI e mais valias, ao pai, CC (36).
13) Autora e Ré são filhas de CC e de EE (11).
14) CC é filho de FF e de DD e de DD, falecidos em 21/09/2006 e 03/06/2010, respectivamente (12).
15) CC é o único filho e herdeiro legitimário de FF e DD (14).
16) Por carta registada com a/r, datada de 03/08/2022 e recepcionada em 05/08/2022, junta como doc. 7 com a p.i. e aqui dada por reproduzida, a Autora, através de advogado, comunicou à Ré que deveria restituir os prédios livres de pessoas e bens até 30/09/2022 (13).
17) Até 1997, durante mais de 20, 30 e 40 anos, FF e DD sempre actuaram sobre os prédios referidos em 1. e 4. como seus donos, tratando-os como seus e colhendo os seus frutos, recebendo as rendas do prédio referido em 4., praticando tais actos à vista de todos, sem qualquer oposição e na convicção de exercerem um direito próprio correspondente ao direito de propriedade (15).
18) O chamado CC, então casado com EE, por altura do ano de 2006, com autorização dos seus pais, iniciou a realização de obras de beneficiação na casa de habitação do prédio referido em 4., suportando o respectivo custo, nomeadamente:
a) Na arte de pedreiro custeou a preparação e betonagem de chãos, edificação de paredes quer exteriores quer divisões interiores, placa de cobertura e respetivo telhado.
b) Na arte de trolharia suportou todos os acabamentos finos nomeadamente reboco de paredes, tetos, chãos, revestimentos térmicos, respetivos acabamentos, nomeadamente materiais cerâmicos nas paredes e chão da casa de banho, despensa e cozinha;
c) Na arte de carpinteiro suportou os custos com fornecimento e colocação de todas as portas, rodapés, chão da sala, corredor e quartos, bem guarda factos embutido e armários quer superiores quer inferiores de cozinha;
d) Na arte de serralharia suportou todas a despesas com portas, janelas e portadas exteriores em alumínio anodizado e vidros;
e) Na arte de pichelaria suportou os custos com toda a rede de águas quentes e frias, rede de gás, rede de esgotos, louças de casa de banho, torneiras, bem como toda a vedação do telhado na arte de funilaria;
f) Na arte de eletricista suportou custos com toda a instalação elétrica, nomeadamente colocação de tubos, fios, tomadas, interruptores, luzes e quadro eléctrico;
g) Na arte de pintor suportou custos de toda a pintura interior e exterior (16).
19) Ascendendo o custo das obras a cerca de € 45.000,00 (17).
20) Tais obras valorizaram o prédio referido em 4. e não podem ser levantadas sem deteriorar o prédio (18).
21) É possível levantar as serralharias, louças sanitárias e móveis de cozinha sem a deterioração das mesmas, não sendo possível levantar as demais obras sem a sua deterioração (19).
22) O valor do prédio referido em 4. sem as obras seria de € 48.500,00 (20).
23) Com as obras, o valor do prédio referido ascende a € 97.500,00 (21)
24) Os prédios referidos em 1. e 4. destinam-se fundamentalmente, a habitação familiar (22).
25) O prédio referido em 1. necessita de uma entrada pelo prédio referido em 4. (23).
26) Após a conclusão das obras, no ano de 2009, o CC e a esposa passaram a residir nos prédios, com autorização da mãe daquele (24).
27) Após o divórcio do CC e esposa, no ano de 2016, esta última foi viver para França, permanecendo o CC a residir no prédio (25).
28) No ano de 2017, a Ré, juntamente com os seus filhos, foi viver para a casa de habitação, onde já habitava o pai (26).
29) Em Julho de 2019, a EE regressou definitivamente a Portugal, tendo passado a residir habitualmente na mencionada casa de habitação (27).
30) No ano de 2021, em virtude de conflitos com a Ré e filhos desta, a EE deixou de lá residir (28).
31) A Ré e seus filhos, juntamente com o CC, este durante 2017, continuaram a viver na casa de habitação do prédio referido em 4. (29).
32) Afirmando necessitar de um documento para comprovar de que estava a habitar gratuitamente o imóvel de favor da Autora, a Ré pediu-lhe que assinasse uma declaração que a isso fizesse menção (alínea i).
33) Com data de Julho de 2020, a aqui Autora assinou o documento particular junto como doc. 6 com a p.i. e aqui dado por reproduzido, com o seguinte teor:
“Autorização de residência em propriedade privada
Eu, AA, portadora da identidade nº ..., na qualidade de proprietária responsável pela residência em Rua ..., ..., ... ...-Portugal, declaro para os devidos fins que concedo autorização à permanência de BB, portadora da Identidade nº... como inquilina desde 03/03/2017 por tempo vitalício” (10).
34) A Ré elaborou e enviou à Autora, através de email, o documento referido, pedindo à Autora que o imprimisse e assinasse (30 e alínea j).
35) CC passou a residir no prédio desde 2009 até data não exactamente apurada de 2017 (37).
36) Em 2017, 2018 e Maio de 2020, a A. declarou ao pai, por sms e emails, “Volta para a tia casa”, “Trata de recuperar a tua casa”; “A casa não é minha, é tua. Eu não tenho de querer nada. Tu o que queres que eu faça? Dá-me a tua ideia”, “Por isso, eu AA, aceito assinar uma procuração no teu nome para tirar a casa (…) do meu nome” e, por documento de Julho de 2020, assumiu-se perante a R. como “proprietária responsável pela residência” e assinou-o pelo próprio punho com o que denominou a “assinatura da proprietária” (38).
37) Desde 2017, a Ré passou a residir com os filhos no prédio referido em 4., a seu pedido, de forma gratuita, com ressalva do pagamento de impostos e despesas de consumo, e enquanto dele necessitasse, por não dispor de outro imóvel para viver, com o consentimento da A. e do chamado (39).
38) A mãe da Ré e da Autora ocupou o prédio referido em 4. entre 2019 e 2021 com o consentimento da A. e do chamado CC (40).
39) Porque reside no imóvel com a autorização da A. e do pai de ambas, a Ré suportou as seguintes despesas respeitantes ao mesmo: - IMI relativo aos anos de 2016 a 2020 (sendo, no entanto, um destes anos pago pela mãe), no valor global de € 488,46; - limpeza de fossa nos anos de 2020 a 2022, no valor global de € 342,50; - fornecimento de energia eléctrica (41).
40) Em 2019, a R. adquiriu bens móveis, pelo preço de € 1.000,00, que colocou na casa de habitação (42).
41) É o CC quem paga o seguro multirriscos referente ao prédio referido em 4. (43).
42) A A. nunca pagou despesas, impostos ou obras da casa, nem praticou quaisquer actos sobre os prédios referidos em 1. e 4. (44).
43) Até ao falecimento da mãe, o CC viveu nos prédios referidos em 1. e 4. com autorização dos pais (45).
44) Desde o falecimento da mãe, em Junho de 2010, até data não concretamente apurada de 2017, o chamado CC viveu nos prédios referidos em 1. e 4., cuidando e tratando dos mesmos (46).
*
Por outro lado, consideram-se não provados, com relevância para a decisão da causa:
a) O chamado fez obras de restauro como se fosse dono dos prédios (b).
b) Convencida em função do que a Ré lhe dissera e pedira, porque na realidade correspondia à verdade, a Autora acedeu e assinou de cruz tal documento, não se apercebendo que autorizava a Ré a residir ou permanecer na habitação por tempo vitalício (k).
c) Meses mais tarde, vindo a ter conhecimento de que a Ré vendeu um imóvel destinado a habitação, a Autora comunicou-lhe para que deixasse e procedesse à entrega do prédio referido em 4., livre e devoluto de pessoas e bens (l).
d) A R. dizia que ia sair mas pedia algum tempo e acabava por não o fazer (m).
e) Na sequência da interpelação através de Advogada, a Ré respondeu que poderia lá viver por tempo vitalício se assim o quisesse, com base naquele documento, só então se apercebendo a A. que tinha sido enganada pela Ré (n).
f) Caso a Autora se tivesse apercebido que, com tal declaração, permitiria que a Ré permanecesse vitaliciamente na habitação não teria assinado a declaração (o).
g) No início de 2022, após interpelação da Autora, a Ré voltou a prometer que deixava e entregava a casa até Outubro de 2022, mas a primeira não aceitou e indicou como data limite até final de Junho de 2022 e que até lá deveria passar a pagar-lhe uma renda, o que a Ré ignorou (p).
h) A Autora passou uma procuração ao CC para que este pudesse passar os prédios para seu nome (s).
i) Antes do falecimento da mãe, o CC praticou os actos sobre os prédios na convicção de exercer o direito de propriedade sobre os mesmos (t).
j) FF e a DD não quiseram doar a raiz, nem reservar para si o usufruto, dos prédios referidos em 1. e 4. à A. e esta, enquanto representada pelos seus pais, não quis tal doação de raiz, com reserva de usufruto (31).
l) FF e a DD celebraram os negócios referidos em 8. e seguintes com o propósito de iludir os credores do CC (33).
m) Nem o FF e a DD, nem a Autora, nem a Ré e seus pais, quiseram celebrar qualquer negócio (35).
n) A Autora sempre reconheceu, perante todos, ser o CC, após a morte dos avós, o proprietário dos prédios referidos em 1. e 4. (38).
o) O chamado reside, pratica e praticou os actos sobre os referidos prédios até à actualidade e na convicção de exercer um direito próprio, correspondente ao direito de propriedade (47).
p) A declaração referida em 10. foi emitida por causa dos conflitos da Ré com a mãe e porque o pai, o CC, por razões que se desconhecem, não formalizou a transmissão dos prédios para seu nome (48).
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O DIREITO.
Segundo dispõe o art. 240.º/1 do Código Civil se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado.
Trata-se de uma causa de nulidade do negócio (art. 240.º/2 do CC) cujos principais requisitos assentam, como resulta daquela norma e explica a doutrina, na “intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração” e em resultado de um “acordo entre declarante e declaratário”, designado de “acordo simulatório” (cfr. C. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., p. 472).
A eles acresce, no dizer da lei, o intuito de enganar terceiros.
Nestes termos, existe simulação, por exemplo, se a A e B declaram na escritura de compra e venda que o preço é de € 35.000,00, quando na verdade o comprador pagou € 50.000,00 para a aquisição do bem, da mesma maneira que o vício está verificado se C declara vender a D, quando na realidade acordaram que nenhum preço seria devido e que o bem seria simplesmente doado.
Estes são os casos de simulação relativa, em que sob a aparência de um negócio está outro (art. 241.º do CC), e que se distinguem das situações de simulação absoluta, nas quais não é realmente pretendido negócio nenhum.
Assim sucede, nomeadamente, se E e F assinam uma escritura de compra a favor do segundo, quando na substância o primeiro se mantém como dono do bem, que paga e conserva, e a quem deve reverter formalmente no futuro nos termos que forem combinados pelos contraentes.
Em atenção aos factos provados, porém, no caso dos autos, os mencionados requisitos não estão presentes relativamente à doação à A. do prédio misto identificado no art. 1 da petição inicial, desde logo, por não existir discrepância entre a vontade real das partes e o teor do que elas fizeram constar no título: assim como acordaram que o imóvel seria transmitido à A., em conformidade com esse desígnio outorgaram uma doação a favor dela (factos 7 e 8).
Donde resulta, a nosso ver, que a alteração da factualidade relevante, mercê da impugnação da A., embora apenas parcial, determina a procedência da segunda questão suscitada no recurso.
Razão pela qual, não pode manter-se a decisão de primeira instância quanto à reconvenção e no que tange à nulidade da doação e consequentes efeitos em sede de registo predial.
Por outro lado, estabelece o art. 1287.º do CC que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião.
Trata-se de um dos mais importantes efeitos associados à verdadeira posse, que o art. 1251.º do CC trata como o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real e que o art. 1253.º do CC distingue da mera detenção.
Sendo precisamente com base nesse efeito que a R., primeiro, e o chamado, depois, pretenderam a aquisição a favor deste da propriedade sobre o prédio misto identificado no art. 1 da petição inicial.
No entanto, segundo pensamos, sem razão.
Com efeito, os factos apurados evidenciam que, em 1997, os avós da A., que eram os proprietários e possuidores do imóvel, celebraram a favor dela a escritura de doação referida no ponto 8, embora com reserva de usufruto.
Algo que, em plano de posse, tem tratamento no art. 1264.º/1 do CC, nos termos do qual, se o titular do direito real, que está na posse da coisa, transmitir esse direito a outrem, não deixa de considerar-se transferida a posse para o adquirente, ainda que, por qualquer causa, aquele continue a deter a coisa.
É o que a lei designa por constituto possessório e que a doutrina explica como “uma forma de aquisição da posse solo consensu, ou seja, sem necessidade de ato (material ou simbólico) de entrega da coisa”, onde “a posse é atribuída sem a detenção” e “o possuidor passa a detentor, sendo a posse adquirida pelo beneficiário da operação” (cfr. A. Santos Justo, Direitos Reais, 8.ª ed., p. 214).
No mesmo sentido, a jurisprudência afirma que “o constituto possessório é uma forma de aquisição solo consensu da posse, tratando-se, pois, de uma aquisição derivada da posse com tradição real implícita, já que não é necessário um acto de empossamento” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7/3/2017, proc. 3585/14.0TBMAI.P1.S1, relator Hélder Roque, acessível em linha na citada base de dados).
Em consequência, por força da doação, os avós da A. transmitiram a verdadeira posse sobre o imóvel para essa sua neta, apesar de, na qualidade de usufrutuários, terem permanecido na detenção desse bem, e concomitantemente com posse causal de usufrutuários, e muito embora a A. não tenha sido empossada por acto material.
Logo, com a morte dos seus pais, não sucedeu o Chamado em qualquer direito ou situação de facto que pertencesse aos seus pais, seja a propriedade (e a posse de proprietário), porque doada à A., seja o usufruto ou a correspondente posse, por se ter extinguido com a morte dos usufrutuários.
Quando muito, o Chamado permaneceu na detenção do imóvel que já tinha recebido em vida dos seus pais.
E mesmo que, em benefício da sua posição, se considerasse isoladamente o facto de que, desde o falecimento da mãe, em Junho de 2010, até data não concretamente apurada de 2017, foi o Chamado quem passou a viver no prédio misto em questão, dele cuidando e tratando (facto 44), a verdade é que, ainda assim, estaria inviabilizada a aquisição do bem por usucapião.
Na verdade, enquanto essa factualidade ocorreu em 2010, a aquisição do imóvel a favor da A. está inscrita no registo desde 1997 (factos 2 e 5).
Todavia, de acordo com o disposto no art. 1268.º/1 do CC, o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse.
Daqui resultando, pois, que no conflito entre o registo e a posse, seria sempre o primeiro, no caso dos autos, que teria prevalência, em prol da posição da A., atenta a sua anterioridade aos actos praticados pelo pai.
Logo, também aqui, embora parcial, a alteração da factualidade relevante, em consequência da impugnação, impõe a improcedência do pedido reconvencional na parte restante, relativa à aquisição do referido prédio por parte do Chamado com base em usucapião.
Com a consequente revogação da decisão recorrida em tudo o que respeite às reconvenções deduzidas a título principal por R. e Chamado, em função do provimento que se justifica conceder à segunda e terceira questões suscitadas pela recorrente.
Isto posto, importa agora apreciar a última questão suscitada pela A., i. é, a de saber se o documento nº 6 da PI constitui declaração da recorrente anulável por dolo ou, assim não se entendendo, a constituição de direito de habitação sobre os imóveis eivada de nulidade por vício de forma.
O que, no fundo, a A. invoca apenas como fundamento da procedência dos pedidos essenciais que formulou, de reconhecimento da sua propriedade sobre o imóvel, de condenação da R. na respectiva restituição e de aplicação das demais consequências ao nível da indemnização e da sanção pecuniária compulsória.
Assim sendo, é indesmentível que a presente deve ser qualificada como uma acção de reivindicação a que alude o art. 1311.º do CC.
E que tem sido definida como a acção declarativa de condenação que o proprietário pode instaurar contra quem tenha a posse ou detenção da coisa que lhe pertence, para pedir o reconhecimento do seu direito de propriedade, mediante a prova do facto ou de alguma presunção de que ele possa emergir, e a restituição da coisa reivindicada, através da demonstração da sua indevida ocupação.
Traduzindo, pois, um corolário da sequela atribuída ao titular do direito de propriedade, expressa no brocardo latino ubi rem meam invenio, ibi vindico, e no âmbito da qual esse direito serve como pressuposto do pedido de restituição (cfr. A. Santos Justo, Ob. cit., 312).
Em consequência, à A. incumbia somente a alegação e prova dos factos inerentes ao direito de propriedade e à ocupação, como também resulta do disposto no art. 581.º/4 do CPC e do princípio da substanciação segundo o qual cabe a quem invoca um direito em juízo a demonstração dos factos concretos dos quais ele possa emergir, para além, naturalmente, da violação desse direito.
Pelo que, em rigor, não lhe competia, pelo menos num primeiro momento, preocupar-se com a invocação de causas de nulidade ou anulabilidade de algum título para a ocupação do imóvel pela contraparte.
Ao invés, era sobre a R. que recaía o ónus de, a título de excepção de direito material à procedência dos pedidos da acção, e nos termos do art. 1311.º/2 do CC, comprovar a legitimidade da referida ocupação, a fim de com sucesso obstar à procedência do pedido de reivindicação.
Como refere a jurisprudência, mesmo “reconhecido o direito de propriedade da autora e a ocupação do imóvel pela ré, a restituição pode ser recusada com fundamento na existência de uma relação, obrigacional ou real, tituladora da posse ou detenção da coisa” (cfr. Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 22/2/2024, proc. 7254/21.7T8VNG.P1, relatado por Ana Luísa Loureiro e disponível em dgsi.pt).
Sendo certo que, “uma vez provada a propriedade do autor e a detenção pelo réu, caberá ao demandado, se quiser eximir-se à condenação de restituição da coisa, provar que a detém a título legítimo, enquanto facto impeditivo do efeito essencial reivindicante” (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 16/5/2023, proc. 14782/22.5T8LSB.L1-7, relator José Capacete e acessível no mesmo sítio).
Assinalando a doutrina, no mesmo sentido, que para repelir a reivindicação, pode o demandado, entre o mais, contestar o dever de entrega, mesmo “sem negar o direito de propriedade do autor, com base em qualquer relação (obrigacional ou real) que lhe confira a posse ou a detenção da coisa” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª ed., p. 116).
Em todo o caso, configurado com rigor, no plano legal, o litígio em presença e a distribuição do ónus de alegação e de prova impostos a cada parte, decisivo agora é verificar o que resulta dos factos, de relevante, quanto à pretensão essencial da A., certo que, como resulta do disposto no art. 413.º do CPC, o tribunal deve tomar em consideração todos os factos comprovados e as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las.
Ora, nesse particular, apesar de se ter provado a inscrição no registo sobre o imóvel a favor da A. e a ocupação pela R., também se demonstrou, relativamente a esta, que desde 2017 passou a residir no prédio, a seu pedido, de forma gratuita, com ressalva do pagamento de impostos e despesas de consumo, acompanhada dos seus filhos e enquanto dele necessitasse, por não dispor de outro imóvel para viver, o que fez na sequência do consentimento da A. e do chamado.
E aqui reside, se bem pensamos, o título ou a relação, neste caso obrigacional, eventualmente susceptível de legitimar à R. a detenção do bem e que pode servir para neutralizar a consequência da restituição resultante do reconhecimento do direito de propriedade que a favor da A. emerge da presunção do registo.
Este é o facto relevante, a nosso ver, para tal efeito, e não propriamente a circunstância de, com data de Julho de 2020, ter sido assinado pela A. o documento junto como doc. 6 da PI, designado de “Autorização de residência em propriedade privada” e ali previsto por “tempo vitalício”.
É que esse documento consubstancia uma declaração negocial unilateral, que serviu para exibir a terceiros que a R. estava a habitar a casa gratuitamente de favor da A. (factos 32 e 33), ao passo que a residência consentida no imóvel traduz o verdadeiro acordo, alcançado na sequência de pedido da R. e do consentimento da A. e Chamado, com base no qual a primeira passou a residir no imóvel.
A esta luz, procurando o enquadramento jurídico adequado para tal acordo, configura-se de imediato, a nosso ver, a presença de um comodato, definido na lei como o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir (art. 1129.º do CC).
Devendo notar-se que a natureza gratuita da cedência e a qualificação do acordo como comodato não são excluídas pelo dever atribuído à R. de pagar os impostos e consumos, sendo de “aceitar que o pagamento de despesas referentes ao período a que se reporta o uso, como despesas de condomínio e até o respetivo imposto não afastam a gratuitidade” (cfr. Júlio Vieira Gomes, Comentário ao Código Civil, Contratos em especial, UCP, p. 571).
Deste modo, afigura-se estarem verificados, in casu, todos os requisitos materiais previstos no art. 1129.º do CC para que se conclua que a utilização do imóvel por parte da R. ocorre ao abrigo de um contrato de comodato.
Justamente um daqueles que configura uma relação obrigacional capaz de neutralizar a pretensão de reivindicação, certo que, como afirma a jurisprudência, “a existência de um contrato de comodato configura, precisamente, uma relação obrigacional passível de obstar à obrigação de entrega” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/2/2024, acima citado).
E que, no caso dos autos, produz efectivamente esse efeito, pois nenhuma causa relevante ficou demonstrada, segundo entendemos, para afirmar a cessação do referido vínculo contratual entre as partes.
Na verdade, a esse nível, provou-se apenas que, por carta registada com a/r, datada de 03/08/2022 e recepcionada em 05/08/2022, junta como doc. 7 com a p.i. e aqui dada por reproduzida, a Autora, através de advogado, comunicou à Ré que deveria restituir os prédios livres de pessoas e bens até 30/09/2022 (facto 16).
O que tem pressuposto (e é até expressamente referido na carta) a extinção do contrato ao abrigo do disposto art. 1137.º do CC.
Nos termos dessa disposição legal, se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação (nº1); porém, se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida.
Todavia, como refere a doutrina, “o entendimento é o de que o uso como moradia familiar do prédio emprestado permite concluir pela existência de um termo, ainda que incerto, devendo o comodato perdurar enquanto subsistir esse uso” (cfr. Júlio Vieira Gomes, Ob. cit., p. 593).
É certo que a jurisprudência não tem sido tão linear acerca desta conclusão, como se constata pela análise da resenha que a esse respeito foi feita no recente Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 19/9/2024 (proc. 7254/21.7T8VNG.P1.S1, relator João Cura Mariano, disponível na base de dados em linha do STJ).
O qual, representando, segundo pensamos, o culminar de um percurso há muito trilhado nos nossos tribunais a respeito do prazo do comodato, salientou que, em tal contrato, “devendo o uso acordado ser temporário, deve o mesmo ter um grau de concretização que permita determinar quando ocorre o seu termo. O uso acordado deve encontrar-se associado a um tempo de utilização”.
Por isso, considerou que “o simples uso para habitação do comodatário e sua família de um imóvel, por ser demasiado genérico, não é suficientemente determinativo desse momento, uma vez que não define um uso limitado no tempo do imóvel emprestado”.
No polo oposto, todavia, estaremos perante a convenção de um uso suficientemente determinado quando se convencione uma utilização do imóvel durante uma prova desportiva ou durante a frequência de um curso universitário, situações em que o termo do contrato se mostra suficientemente fixado, tendo a cedência do gozo do imóvel um cariz temporário, independentemente da sua duração poder ser mais ou menos prolongada”
Acrescentando, porém, que “o mesmo poderá ocorrer quando se acorde que a cedência gratuita do imóvel se destina a satisfazer as carências habitacionais do comodatário, desde que resulte inequivocamente, dos termos do acordado, que a cedência perdurará enquanto se mantiverem essas carências”.
Para enfim concluir que, nestas situações, “o uso do imóvel emprestado também se mostra suficientemente delimitado, aplicando-se o disposto na 1.ª parte, do n.º 1, do artigo 1137.º, do Código Civil”.
É o que se passa, segundo pensamos, no caso dos autos, atento o acordo alcançado pelas partes no sentido de a R. utilizar o imóvel, mediante consentimento da A. e do Chamado, com o seu agregado familiar enquanto dele necessitasse, por não dispor de outro imóvel para viver.
Para significar que, nos termos do contrato que vincula A. e R., o uso do imóvel pela segunda ficou condicionado e delimitado pela subsistência da situação de carência económica justificativa da necessidade da R., em conjugação com a manutenção da ausência de outro imóvel de que dispusesse para o efeito.
Acresce, decisivamente, no sentido da improcedência do recurso quanto às conclusões 9 e segs., respeitantes ao mérito da acção, que não foi com base no comodato e na sua extinção que a A. estribou os pedidos que deduziu em primeira instância e no recurso e que, diversamente, sem reconhecer sequer a celebração de semelhante contrato, fez assentar na anulabilidade, por dolo, e na nulidade, por vício de forma, da declaração junta como doc. 6 da PI.
No entanto, em tema de dolo, dispõe o art. 253.º/1 do CC que entende-se por dolo qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante, enquanto o art. 254.º/1 prevê que o declarante cuja vontade tenha sido determinada por dolo pode anular a declaração.
O que significa, como realça a jurisprudência, que “o dolo, como erro-vício, traduz-se num erro provocado ou qualificado, por contraposição ao erro simples ou espontâneo, e consiste na utilização pelo declaratário ou por terceiro de qualquer sugestão ou artifício (activo ou omissivo) com o fito ou a consciência de provocar o erro do declarante ou de o manter em erro”.
E cuja relevância “para efeitos anulatórios depende da verificação do requisito da dupla causalidade, ou seja, que o dolo seja a causa do erro do declarante e este, por seu turno, seja a causa do negócio” (cfr. Ac. desta Relação de 8/10/2018, acima citado).
Sendo certo, porém, que dos factos provados e não provados nestes autos, mesmo com a alteração empreendida por este tribunal, resulta inequivocamente que, tal como sucedera em primeira instância, a A. não logrou demonstrar nem um nem o outro requisito.
Mantendo-se sem comprovação, nesta instância, que a A. tenha assinado de cruz o referido documento, sem se aperceber que autorizava a Ré a residir na habitação por tempo vitalício (alínea b), e que, caso se tivesse apercebido do facto, não teria assinado a declaração (alínea f).
Ao passo que, relativamente à nulidade por vício de forma, a A. fez assentar a sua posição na qualificação do contrato celebrado entre as partes como sendo de constituição de um direito real de habitação, ou de uso do imóvel que, claramente, não nos é possível acompanhar.
Desde logo, nesse particular, por se concordar com a interpretação dada na decisão recorrida no sentido de que a leitura acertada do doc. 6 da PI, face ao seu teor, é que dela resulta a configuração de um comodato.
E, ainda com maior importância, na medida em que, como acima se disse, o acordo que nos parece essencial, referente à ocupação do imóvel pela R., e que ressuma do facto provado nº37 (desde 2017 passou a residir no prédio, a seu pedido, de forma gratuita, com ressalva do pagamento de impostos e despesas de consumo, acompanhada dos seus filhos e enquanto dele necessitasse, por não dispor de outro imóvel para viver, o que fez na sequência do consentimento da A. e do chamado), reflecte claramente os elementos previstos no art. 1129.º do CC.
Daqui resultando, pois, que deve recusar-se provimento ao recurso quanto à última questão suscitada pela recorrente e em suma que, dos seus pedidos, apenas reúne condições para proceder aquele que deduziu no segmento inicial do primeiro, atinente à condenação da R. a reconhecer que a A. é dona e legítima proprietária, com exclusão de outrem, dos prédios identificados no artº 1º, als a) e b) da petição inicial.
Com a inerente confirmação da decisão recorrida na parte em que julgou improcedentes os demais pedidos formulados pela A. na acção e sem necessidade de, para esse efeito, entrar na apreciação do abuso do direito que a R. havia suscitado.
Importa, por fim, apreciar o pedido reconvencional subsidiário deduzido pelo Chamado, cujo conhecimento em primeira instância ficou prejudicado mercê da procedência das pretensões principais e que agora foram julgadas improcedentes, espoletando a aplicação do disposto no art. 665.º/2 do CPC.
Recorde-se que o pedido subsidiário em causa reconduz-se à condenação da A. pagar ao Chamado, a titulo de indemnização pelo incremento patrimonial que os prédios descritos no Art. 1º, da petição inicial beneficiaram à custa e, por força, das obras por ele realizadas, uma quantia igual ao custo dessa mesma obra, que vier a ser liquidada em execução de sentença, nos termos do disposto no nº 2, do Art. 609º, do Cód. Proc. Civil.
Por outro lado, de acordo com o que estipula aquele preceito legal, se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.
Suscitou a A., nisso configurando o obstáculo à apreciação do pedido em causa a que se refere aquela norma, a questão da inadmissibilidade da reconvenção (cfr. arts. 1 a 10 do requerimento de 29/9/2025, emitido perante esta Relação em observância do princípio do contraditório).
Segundo entendemos, porém, não lhe assiste razão.
Com efeito, sobre a questão da admissibilidade dos pedidos reconvencionais, a primeira instância proferiu despacho, integrado no saneador e devidamente fundamentado, de sentido afirmativo: atendendo a que os pedidos reconvencionais emergem dos factos jurídicos que servem de fundamento à defesa da Ré, admitem-se os pedidos reconvencionais deduzidos pela Ré e pelo Chamado (cfr. despacho de 16/11/2023).
Verificando-se, para além disso, que a A. e apelante não impugnou o despacho de admissão da reconvenção no recurso que interpôs da sentença, apesar de tal ainda ser possível, pois aquela decisão não admitia apelação autónoma, por escapar à previsão do art. 644.º do CPC.
Ora, como tal despacho não foi impugnado pela A. no recurso e também não foi colocado em crise pelas demais partes, ficou revestido da força de caso julgado formal, nos termos conjugados dos arts. 620.º e 628.º do CPC.
Em consequência, deixou de poder ser impugnado no decurso da instância recursória, não podendo a A. aproveitar o contraditório previsto no art. 665.º/2 do CPC para validamente introduzir questões novas face ao objecto do recurso.
Por outro lado, também não merece acolhimento, salvo o devido respeito, o argumento da A. no sentido de que não foram comprovados os factos relativos aos trabalhos realizados pelo chamado (cfr. arts. 11 a 14 do requerimento de 29/9/2025), pois eles estão abundantemente demonstrados nos pontos 18 e segs. da decisão de facto, na redacção dada neste acórdão.
Tal como não merece a nossa adesão a alegação de que, sendo o Chamado casado no momento da realização das obras, não lhe é devido o valor peticionado na totalidade, mas apenas, no limite, o correspondente à sua metade (cfr. arts. 15 a 18 do requerimento de 29/9/2025).
Isto porque a circunstância de o Chamado ser casado não constitui facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito por si invocado, em resultado das obras que apenas o próprio realizou (cfr. facto provado nº18) e como já seria, por exemplo, se tivesse sido alegado que, na sequência do divórcio entretanto ocorrido, o eventual direito teria sido partilhado e atribuído à ex-cônjuge, o que não sucedeu.
Nestes termos, assente a inexistência de obstáculo processual ou material ao seu reconhecimento, importa verificar se o direito reclamado pelo Chamado realmente se constituiu, à luz das normas substantivas aplicáveis e, desde logo, do disposto no art. 1273.º do CC.
Mercê do nº1 desta norma, tanto o possuidor de boa fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela.
Ao passo que, nos termos do seu nº2, quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa.
Atentas essas previsões legais, o primeiro aspecto a resolver, com relevância para a decisão sobre o pedido reconvencional subsidiário, prende-se com a situação jurídica do chamado face aos imóveis no momento da realização das obras, ou seja, entre 2006 e 2009 (factos provados nº18 e 26).
Já acima se disse que, com a morte dos pais, o chamado não sucedeu em qualquer direito ou situação de facto que a eles pertencesse, seja a propriedade (e a posse de proprietário), porque doada à A., seja o usufruto ou a correspondente posse, por se ter extinguido com a morte dos usufrutuários.
Acresce que as obras foram realizadas em vida dos pais, mediante autorização destes, tendo sido com base nela, igualmente, que com o final dos trabalhos o chamado e a sua então esposa passaram a habitar o imóvel.
Ora, segundo pensamos, também aqui estão presentes os elementos típicos do comodato, nos termos do art. 1129.º do CC, que o caracteriza como contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir.
Duas objecções, porém, podem ser colocadas nesta sede.
Por um lado, o facto de os pais do Chamado terem permanecido na plena utilização do imóvel, o qual, todavia, não parece afastar os requisitos previstos no art. 1129.º do CC, visto que, apesar de tal permanência, a verdade é que eles cederam gratuitamente a outrem o gozo do imóvel.
Por outro lado, a circunstância de nada ter ficado demonstrado a propósito da obrigação de restituição do imóvel aos pais do chamado, o que, no entanto, apenas significa, in casu, que semelhante comodato não conhecia prazo determinado e não cessava necessariamente com a morte dos comodantes.
Em todo o caso, deve acrescentar-se que, mercê do disposto no art. 1138.º/1 do CC, o comodatário é equiparado, quanto a benfeitorias, ao possuidor de má fé.
Ora, reconhecendo-se o direito às benfeitorias ao detentor que no comodato tenha o dever de restituição, o mesmo deve ser reconhecido, por maioria de razão, ao detentor quanto ao qual não se provou o momento ou mesmo a existência da obrigação de restituir o bem.
Já o segundo aspecto relevante a resolver respeita à natureza das benfeitorias levadas a efeito pelo Chamado.
De acordo com o disposto no art. 216.º do CC, existem três categorias fundamentais de benfeitorias: necessárias, úteis ou voluptuárias.
As primeiras são as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa; diversamente, são úteis as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, aumentam o valor do bem; e, por fim, são voluptuárias aquelas que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante.
No caso dos autos, uma vez que se apurou que as obras valorizaram o prédio detido pelo chamado, sem que servissem para evitar a respectiva destruição ou deterioração, estão em causa benfeitorias úteis.
Valendo tal qualificação, dispõe o art. 1273.º do CC que o possuidor tem direito a ser indemnizado pelas benfeitorias, desde que não a possa levantar sem detrimento para o bem, exigência que igualmente está demonstrada na espécie em juízo, como resulta do facto provado nº20.
Por isso, importa finalmente resolver a questão do cálculo da indemnização e que o nº2 daquela norma remete para as regras do enriquecimento sem causa.
Assim convocando a aplicação do art. 479.º do CC, segundo o qual a obrigação, em geral, compreende o valor correspondente ao que foi obtido à custa do empobrecido, embora subordinado à medida máxima do locupletamento do beneficiado à data da citação ou do conhecimento da falta de causa.
O que significa, em sede de indemnização por benfeitorias úteis, ao abrigo do art. 1273.º do Código Civil, a imposição simultânea de dois limites, o primeiro fornecido pelo custo que aquelas importaram ao seu autor e o segundo constituído pelo valor das benfeitorias.
Sendo este, por sua vez e de acordo com a jurisprudência, balizado por dois critérios, “o valor que cada uma das despesas acrescentou à coisa e a medida do seu benefício no momento actual (data da entrega)”.
Ponderando-se o valor actual ou no momento da entrega uma vez que, “mantendo-se a coisa sobre o seu domínio anos a fio, mal andaria o direito – seria até um pouco “torto” – se viesse a consagrar como solução a obrigação do titular/proprietário reembolsar todos os gastos feitos com benfeitorias, ainda que feitos há 15 ou 20 anos, ainda que respeitantes a conservações e melhoramentos que, entretanto, com o passar/erosão/desgaste dos anos e da utilização/gozo por parte do possuidor, tivessem perdido todo ou a maior parte do seu valor” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10/2/2015, relator Barateiro Martins, processo 1289/12.8TBACB.C1, disponível na citada base de dados).
No mesmo sentido, refere-se a doutrina aos “dois limites à indemnização: o valor das benfeitorias ao tempo da entrega e o seu custo”, defendendo que o actual Código Civil continua a impor a sua aplicação, à semelhança do que sucedia anteriormente ao abrigo do diploma de 1867 (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª ed., pp. 42-3).
Deste modo, sendo decisivo o valor das benfeitorias à data da entrega do imóvel ao titular do direito, tem de concluir-se que, no caso dos autos, mercê da improcedência da reivindicação, é evidente que não existem elementos para fixar o montante da indemnização, com a consequência prevista no art. 609.º/2 do CPC.
Todavia, o tema da data da entrega, além da inviabilidade de fixar o quantum do direito por benfeitorias, suscita ainda, mais relevantemente, a questão do seu reconhecimento actual, certo que alguma doutrina e jurisprudência consideram-no um “contradireito relativamente à pretensão reivindicatória”.
Defendendo que “o direito do possuidor à indemnização das benfeitorias necessárias e úteis só pode ser exercido quando o proprietário reivindica triunfantemente a coisa” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Ob. cit., p. 43).
De forma semelhante, já se sentenciou que “o pagamento de indemnização por benfeitorias úteis que não possam ser levantadas só pode ter lugar quando a coisa regressa à posse do seu titular, por só então se poder verificar o enriquecimento sem causa por parte deste último” (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 3/7/2003, relator Pereira Rodrigues, proc. 5767/2003-6, dgsi.pt).
Preconizando-se ainda a este respeito que “o regime das benfeitorias apenas pode ser invocado pelo possuidor formal que se veja na contingência de ver a coisa reivindicada pelo titular do direito” (cfr. Armando Triunfante, Comentário ao Código Civil, Direito das coisas, Ed. UCP Editora, p. 70).
Segundo pensamos, esta questão deve ser resolvida tendo presente o regime dos arts. 610.º/1 e 621.º do CPC.
No primeiro caso, dispõe a lei que o facto de não ser exigível, no momento em que a ação foi proposta, não impede que se conheça da existência da obrigação, desde que o réu a conteste, nem que este seja condenado a satisfazer a prestação no momento próprio.
Aqui, o pedido procede, mas a condenação é reportada ao momento próprio ou no qual a obrigação se tornou exigível.
No segundo, prevê que se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique.
Diferentemente, nestas situações, quem formula o pedido decai, mas o caso julgado inerente à absolvição não impede a parte de, noutra acção, renovar oportunamente a sua pretensão.
Se bem pensamos, no caso dos autos, é a primeira norma que se justifica aplicar, visto que os autos ostentam a prova necessária para conhecer a obrigação de indemnizar por benfeitorias e o exercício em juízo do direito correspondente resultou da formulação do pedido de reivindicação pela contraparte.
Todavia, para além data da entrega do imóvel à proprietária, crê-se que o momento próprio para o vencimento do direito do chamado a esse respeito ocorrerá igualmente com a alienação do imóvel por parte da A., visto que nesse caso também estará presente o enriquecimento sem causa a seu favor.
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DECISÃO:
Pelo exposto, i) concede-se provimento à apelação quanto à reconvenção, revogando a decisão recorrida nessa parte e julgando improcedentes os pedidos que R. e Chamado deduziram a título principal, deles absolvendo a A.; ii) pelo parcial provimento da apelação quanto à acção, revogando-se a decisão recorrida nessa parte, condena-se a R. a reconhecer que a A. é dona e legítima proprietária, com exclusão de outrem, dos prédios identificados no artº 1º, als a) e b) da PI; iii) nega-se provimento ao recurso quanto aos demais pedidos que a A. deduziu na acção, confirmando-se nessa parte a decisão recorrida; e iv) julga-se parcialmente procedente o pedido reconvencional subsidiário, condenando-se a A. a pagar ao Reconvinte, a titulo de indemnização por benfeitorias, a quantia que se liquidar ulteriormente, após a entrega do imóvel à A. ou a realização da sua venda.
Custas da acção pela A. e pela R. e Chamado, na proporção do decaimento, que se fixa em 5/6 para a primeira e 1/6 para os demais; custas da reconvenção por R. e Chamado e por A., na proporção de 5/6 para os primeiros e 1/6 para a A.; e custas do recurso em partes iguais (art. 527.º do CPC).
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SUMÁRIO
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(o texto desta decisão não segue o Novo Acordo Ortográfico)

Porto, d. s. (27/10/2025)
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
José Eusébio Almeida
Ana Olívia Loureiro