INVENTÁRIO INSTAURADO EM CARTÓRIO NOTARIAL
PRESTAÇÃO DE CONTAS PELO CABEÇA-DE-CASAL
Sumário

A ação de prestação de contas do cabeça de casal contra ele requerida por interessado na partilha deve correr por apenso a processo de inventário quando o mesmo tenha sido instaurado em cartório notarial antes da entrada em vigor da Lei 117/2019 e ainda ali esteja pendente.

Texto Integral

Processo número 3933/23.2T8GDM.P2, Juízo Local Cível de Gondomar, Juiz 2

Recorrente: AA

Recorrida: BB

Relatora: Ana Olívia Loureiro

Primeiro adjunto: António Mendes Coelho

Segunda adjunta: Anabela Mendes Morais

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

1. Em 20-12-2023 AA intentou ação de prestação de contas contra BB, alegando que esta é cabeça de casal da herança aberta por óbito do seu pai, de quem a ré é viúva, correndo o respetivo inventário em cartório notarial. Alegou que já a interpelou por várias vezes a prestar contas da respetiva administração, o que a mesma nunca fez. Pediu a intervenção principal, pelo lado ativo, das suas duas irmãs, CC e DD.

2. Conclusos os autos foi proferido despacho a facultar à requerente contraditório sobre a eventual incompetência em razão da matéria do tribunal dada a pendência de inventário notarial, ao que a mesma se opôs.

3. Em 07-02-2024 foi proferida sentença que absolveu a requerida da instância por incompetência absoluta do tribunal, condenou a requerente em custas e fixou à ação o valor de 30.000, 01 €.

4. Tal despacho, com que a requerente não se conformou, veio a ser revogado por acórdão deste coletivo de juízes, de 06-05-2024, que julgou nulo o processado posterior à entrada da petição inicial em juízo e ordenou a citação da requerida para contestar.

5. Regressados os autos ao Tribunal a quo foi ordenada a citação da requerida e, do mesmo passo, a notificação de ambas as partes para se pronunciarem quanto a uma eventual incompetência do tribunal em razão da matéria.

6. A requerida foi citada e prestou contas em 03-10-2024, alegando, contudo, que a autora nem pagou a taxa de justiça devida pela propositura da ação nem goza do benefício do apoio judiciário uma vez que a decisão do Instituto de Segurança Social, Instituto Público que juntou aos autos foi proferida mais de um ano antes da entrada da petição inicial em juízo, estando, assim caducado, o que determina a não admissão da petição inicial[1].

7. A autora apresentou requerimento em 17-10-2024, sustentando a aplicação ao processo de inventário por óbito do seu pai do regime jurídico aprovado pela Lei 23/2013 de 5 de março de que a seu ver decorre que a prestação forçada de contas pedida contra o cabeça de casal por qualquer interessado não é da competência do notário, mas dos tribunais.

8. Em 13-11-2024 a requerente apresentou resposta à prestação de contas apresentada pela requerida, anunciou que iria pedir a sua remoção do cargo e juntou aos autos novo pedido de concessão do benefício do apoio judiciário entretanto apresentado no Instituto de Segurança Social, Instituto Público e a aguardar decisão, alegando que se o pedido de concessão do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido antes não for considerado, terá ainda a oportunidade de proceder ao pagamento da taxa de justiça devida.

9. Em 07-01-2025 foi proferida sentença que julgou o Tribunal incompetente em razão da matéria, cabendo ao notário a competência para decidir a prestação de contas da cabeça de casal no âmbito do inventário pendente no respetivo cartório.


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II - O recurso:

É desta sentença que recorre a autora, pretendendo a sua revogação e o subsequente prosseguimento da ação.

Para tanto, alegou o que repetiu, ipsis verbis”, no que apelidou de “conclusões de recurso”:

“A- Foi proferida sentença, pelo Tribunal a quo que julgou incompetente em razão da matéria o juízo cível e, em consequência, absolveu da Instância a Ré. Concluindo para o efeito, que cabe ao Notário(a) a competência para decidir sobre a prestação de contas.

B- Ocorre que, tal, não é a decisão ajustada.

C- Foi instaurado no dia 15/01/2019 no Cartório Notarial EE, um processo de Inventário.

D- Processo esse anterior à entrada em vigor da Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, ou seja, anterior ao dia 01/01/2020 (artigo 15.º), pelo que lhe é aplicável o Regime Jurídico do Processo de Inventário (RJPI), aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 05 de março, sem prejuízo das alterações que lhe foram introduzidas por aquela Lei e que entraram imediatamente em vigor (artigo 8.º e 11.º, n.ºs 2 e 3).

E- Compete ao tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado praticar os atos que, nos termos da presente lei, sejam da competência do juiz”.

F- Presentemente, a redação deste último número foi alterada, para entrar imediatamente em vigor, passando a estipular que: “São aplicáveis ao notário, com as necessárias adaptações, as garantias de imparcialidade dispostas no Código de Processo Civil”.

G- Mas, no artigo 2.º do Regime do Inventário Notarial (RIN), aprovado pela referida Lei n.º 117/2019, continua a prever-se que “compete ao tribunal de comarca da circunscrição judicial da área do cartório notarial praticar os atos que caibam ao juiz, bem como apreciar os recursos interpostos de decisões dos notários”.

H- Ou seja, no âmbito do processo de Inventário Notarial, antes como agora, embora com distinta amplitude, continua a prever-se a direção desse processo por banda do Notário, sendo a intervenção do tribunal reservada a atos muito específicos.

I- Atos como, por exemplo, a prolação da sentença homologatória da partilha, o conhecimento dos recursos interpostos das decisões proferidas pelo notário em que se debata alguma questão prejudicial ou, como se prevê atualmente (também para os processos anteriores a 01/01/2020), atos que envolvam a apreensão de bens, a aplicação de multas processuais, a adoção de meios coercitivos e a verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo (artigo 26.º-A, n.ºs 1 e 2, e 66.º, n.º 1, do RJPI, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 117/2019). Atos, portanto, de cariz nitidamente jurisdicional.

J- Por outro lado, são também da competência jurisdicional os atos que envolvam a apreciação de questões que, “atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ser decididas no processo de inventário”.

K- Ao Notário, portanto, está reservado um papel de direção do processo de inventário, mas nunca em questões que contendam com direitos fundamentais, nem, por regra, em questões demasiado complexas.

L- O que é confirmado, por exemplo, com o regime instituído para a apreciação das contas do exercício do cabeçalato.

M- Nessa hipótese, prevê o artigo 45.º do RJPI, o seguinte: “1- O cabeça de casal deve apresentar a conta do cabecelato, até ao 15.º dia que antecede a conferência preparatória, devidamente documentada, podendo qualquer interessado proceder, no prazo de cinco dias, à sua impugnação. 2- Compete ao notário decidir sobre a impugnação prevista no número anterior”.

N- Ou seja, ao Notário compete a tomada desta decisão, mas só em via incidental e quando haja apresentação espontânea de contas pelo cabeça de casal.

O- Nada se refere quanto à prestação forçada de contas por iniciativa de outro interessado, nem, menos ainda, que seja da sua competência julgar essas mesmas contas em ação autónoma.

P- Que, a nosso ver, está em linha com a intenção do legislador de, por um lado, tornar mais célere o processo de Inventário, mas, por outro, de preservar a função jurisdicional nos limites constitucionalmente previstos e internacionalmente aceites.

Q- Este entendimento, todavia, no sentido limitar a função do notário à apreciação de contas espontaneamente apresentadas pelo cabeça de casal em via incidental, não tem sido pacífico na jurisprudência.

R- Baseando-se no que se dispõe no artigo 947.º do CPC, já por mais de uma vez, se decidiu que “estando pendente o inventário na altura em que o cabeça de casal as presta ou o interessado na prestação de contas as pede, a competência é notarial”. Ocorre que, não é esse o nosso entendimento.

S- Vejamos o que se dispõe no citado artigo 947.º do CPC: “As contas a prestar por representantes legais de incapazes, pelo cabeça de casal e por administrador ou depositário judicialmente nomeados são prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita”.

T- Este preceito, que corresponde, no essencial, ao que já se dispunha no artigo 1019.º do CPC anterior, gerou duas correntes interpretativas:

U- Para uma primeira corrente, não constitui uma norma de atribuição de competência em razão da matéria, mas de fixação de competência funcional dos tribunais, de modo que o processo corre por apenso a outro (regras de conexão ou dependência e não de competência), mas sem perturbar a competência em razão da matéria (RG 17-12-13, 473/10 e RC 10-5-05, 1128/05). Outra corrente defende, porém, que a prestação de contas deve correr sempre por apenso ao processo que gerou a designação para o cargo de administração de bens em causa, independentemente das regras da competência material (RL 5-6-18, 503/14, RL 19-4-12, 9295/II e RL 26-04-07, 1944/2007)”.

V- Seja como for, no entanto, certo é que se partia do princípio de que estávamos perante dois processos judiciais.

W- O artigo 947.º do CPC atual, de resto, ainda reflete este pressuposto, na medida em que alude ao “administrador ou depositário judicialmente nomeados”, determinando que as contas sejam prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita”. O que não deve ser visto, necessariamente, como um lapso. Com efeito, o atual Código de Processo Civil entrou em vigor, praticamente, na mesma altura do Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei nº 23/2013 (artigo 8.º da Lei 41/2013 e artigo 8.º da Lei n.º 23/2013, respetivamente).

X- E, de acordo com este último, esse regime não era aplicável aos processos de inventário que então se encontrassem pendentes (artigo 7.º).

Y- Portanto, nessa altura, ainda havia processos judiciais em que o cabeça de casal era judicialmente investido nessas funções.

Z- Mas, a partir daí, passou a haver também processos de inventário nos cartórios notariais.

AA- E é em face desta realidade que cumpre determinar se a aludida norma, ou seja, o artigo 947.º do CPC, atribui competência material a esses cartórios para o julgamento de quaisquer ações de prestações de contas.

BB- Ora, a nossa resposta a esta questão só pode ser negativa.

CC- Isto é, nem esta é uma norma de atribuição de competência, nem do seu teor ou do Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei nº 23/2013, resulta que os cartórios notariais tenham jurisdição em relação às ações de prestação forçada de contas que sejam instauradas contra o cabeça de casal, para seguir termos nos parâmetros definidos no artigo 941.º e segts do CPC.

DD- Importa fazer notar, que no caso em apreço, estamos perante uma prestação forçada de contas.

EE- O próprio Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei nº 23/2013, apenas prevê que o notário aprecie as contas incidental e espontaneamente prestadas que sejam objeto de impugnação e não outras (artigo 45.º).

FF- E, por fim, mas não menos importante, é necessário ter também presente que nem a atribuição de competência aos cartórios notariais para o julgamento da prestação forçada de contas se enquadra no espírito da lei, que lhe reserva, como vimos, o papel de direção do inventário em questões de menor complexidade.

GG- Nem seriam de fácil resolução os problemas resultantes dessa eventual competência, como sejam os incidentes subsequentemente surgidos na própria ação de prestação de contas, bem como a competência para a prolação da decisão final e correspondente força executiva, o que redundaria na prática, por aplicação do disposto no artigo 16.º, n.º1, do RJPI, na remessa das partes para os meios judiciais comuns, com o que o ganho seria nulo, senão mesmo negativo, inclusive, para a imagem da justiça.

HH- Neste contexto, considerando todos os elementos interpretativos acabados de referir nos termos do disposto no artigo 9.º do Código Civil, é o tribunal e não o Notário o competente para o julgamento da prestação de contas exigidas ao cabeça de casal, na pendência do inventário notarial, por via de ação autónoma.

II- Importa fazer notar ainda que a Notória, já se tinha julgado incompetente para conhecer da prestação de contas, pelo que não restou alternativa à Recorrente, senão a de intentar a presente acção especial de prestação de contas, no Tribunal.

JJ- O art.º 45.º do RJPI prevê apenas o incidente de apresentação de contas do cabecelato pelo cabeça do casal (e não também motivada por qualquer outro interessado).

KK- O citado artigo impõe ao cabeça de casal, o dever de apresentar as contas do cabecelato “até ao dia 15.º dia que antecede a conferencia preparatória”, sujeita depois a impugnação dos interessados”.

LL- Daqui resulta que apenas a apresentação espontânea, das contas do cabeça de casal está regulada no RJPI e já não a apresentação “forçada”.

MM- Assim, qualquer outro interessado, que não o cabeça de casal, que queira ver apresentadas as contas do cabecelato, terá que ou aguardar até que o cabeça de casal o faça no prazo previsto da lei ou recorrer a uma acção de prestação de contas nos meios comuns. Sendo que foi o que aconteceu na situação em apreço.

NN- Assim, ao contrário do que foi decidido, o Tribunal onde deu entrada a presente ação, é o único competente em razão da matéria para conhecer da prestação de contas apresentada.”


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Não foram apresentadas contra-alegações.

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III – Questão prévia da admissibilidade do recurso:

Não tendo o recorrente formulado conclusões de recurso nos termos do disposto no artigo 639.º, número1 do Código de Processo Civil, já que se limitou a renumerar, reproduzindo-o, o teor das alegações apelidando-as de conclusões, poderia ser de ponderar a rejeição do recurso por omissão desse dever.

A repetição sob a designação de conclusões do teor das alegações de recurso na sua totalidade não cumpre a imposição legal que obriga a que as mesmas seja a indicação sintética dos fundamentos do recurso – cfr. artigo 639.º, número 1 do Código de Processo Civil. Tal imposição tem por objetivo permitir aos recorridos e ao Tribunal de recurso bem delimitar o seu objeto sem ter quaisquer dúvidas quanto às questões que se querem submeter a reapreciação.

Todavia, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que o não recebimento do recurso por omissão do dever de formular verdadeiras conclusões, sintéticas e claras (ou seja, não deficientes, obscuras e complexas) deve ocorrer apenas quando não se logre, do seu teor, compreender a pretensão do recorrente, sendo percetível quais as questões que pretende quer ver reapreciadas[2].

No caso, tendo em conta que a única questão decidida pelo Tribunal a quo e a decidir no recurso é a da competência material para o conhecimento da prestação de contas (provocadas) do cabeça de casal a pedido de um interessado, entende-se que é percetível o objeto do recurso, pelo que se conhecerá do mesmo, reverenciando ao princípio do primado do mérito sobre a forma.


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IV – Questões a resolver

Em face das conclusões do Recorrente nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, é apenas uma a questão a resolver: a de saber se o Tribunal a quo tem competência material para o conhecimento da pretensão da autora de que a ré preste contas enquanto cabeça de casal, apesar de a mesma ter sido nomeada para tal cargo em inventário notarial que ainda corre termos e foi instaurado quando vigorava a Lei 23/2013 de 5 de março.

V – Fundamentação:

O Tribunal a quo não enunciou quais os factos relevantes para a decisão proferida que julgou assentes.

Todavia, do histórico processual e do teor da fundamentação da sentença recorrida retira-se que está assente nos autos o seguinte:

1. No Cartório Notarial da Dr.ª EE corre inventário notarial instaurado em 15/1/2019, com o n.º 263/19, para partilha do acervo hereditário por óbito de FF, falecido em 20-03-2011.

2. São suas únicas e universais herdeiras a autora AA CC e DD, suas filhas e a ré BB, sua viúva.

3. Esta última desempenha as funções de cabeça de casal.


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À data em que foi instaurado o processo especial de inventário em que a ré desempenha a função de cabeça de casal estava em vigor a Lei 23/2013 de 05 de março que atribuía competência para a sua tramitação aos cartórios notariais sedeados no município do lugar da abertura da sucessão (artigo 3.º, número 1 desse Diploma). Do artigo 45.º dessa Lei decorria que: “1 – O cabeça de casal deve apresentar a conta do cabecelato, até ao 15.º dia que antecede a conferência preparatória, devidamente documentada, podendo qualquer interessado proceder, no prazo de cinco dias, à sua impugnação. 2 - Compete ao notário decidir sobre a impugnação prevista no número anterior.”.

Deste regime legal resultavam as regras para tramitação das questões incidentais do inventário e ali se previa que nele ficariam “definitivamente resolvidas as questões que, no inventário, sejam decididas no confronto do cabeça de casal ou dos demais interessado”. (cfr. artigos 14º e 17º).

Interessa ainda convocar o teor do artigo 16.º do mesmo Diploma de que decorria a possibilidade de o notário remeter as partes para os meios comuns se entendesse que as questões a decidir atenta a sua natureza ou complexidade de facto e de direito devessem ser apreciadas judicialmente.

Na vigência do Diploma a que nos vimos referindo, mantinha-se, contudo, previsto no Código de Processo Civil o processo especial de prestação de regulado nos artigos 941.º e seguintes do Código de Processo Civil.

O artigo 947.º, do Código de Processo Civil (cuja vigência, como se verá, é contemporânea da Lei 23/2013) já então previa a competência por conexão no que se refere ao processo de prestação de contas por “dependência de outra causa” estipulando-se que as do cabeça de casal fossem prestadas, no que aqui releva, por apenso ao processo em que a nomeação tenha sido feita.

Já então se podia discutir se tal determinava que também a prestação de contas pedida por um interessado era de tramitar pelo notário, quando tais contas não fossem prestadas espontaneamente, como especialmente previsto no artigo 45.º da Lei 23/2013, mas pedidas por um interessado.

Não obstante o referido artigo 45.º não referir expressamente esta forma de prestação de contas pelo cabeça de casal (a que chamaremos prestação de contas provocada), não vemos óbice a que também elas fossem requeridas e prestadas no cartório notarial onde pendia o inventário. É que, por um lado estava expressamente reconhecida na lei a competência do mesmo para as julgar, mesmo que viessem a ser impugnadas por um interessado, ou seja que fossem litigiosas, e, por outro, a questão a resolver não era substancialmente diversa fossem elas prestadas espontaneamente ou a pedido. Além de que, quer num caso quer noutro, sempre ao notário era oferecida a possibilidade de remessa das partes para os meios comuns quando entendesse que as questões suscitadas não podiam por ele ser decididas, dada a sua natureza ou complexidade, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 16.º, número 1 e 17.º do referido Diploma.

Assim, ainda que do artigo 45.º do DL 23/2013 não resultasse expressamente a competência material para conhecimento da prestação de contas do cabeça de casal pedida por interessado na partilha, sempre da conjugação do artigo 647.º do Código de Processo Civil com o referido preceito resultava, a nosso ver, que o notário tinha competência material para conhecer dessa forma de prestação de contas.

Vejamos porquê, tendo no horizonte as objeções a tal entendimento que levanta a recorrente.

Não divisamos onde fundamenta a apelante a afirmação de que o artigo 947.º do Código Civil não é uma norma de atribuição de competência. Parece-nos aliás que não é senão esse o seu fito.

Seguimos aqui, de perto, o defendido em acórdão deste Tribunal, de 24-10-2024[3] quando ali se afirma que a fixação da competência por conexão processual também é uma forma de atribuição de competência material.

Ali se pode ler o seguinte: “O artigo 947.º do Código de Processo Civil é uma norma especial que atribui a competência para preparar e julgar as acções de prestações de contas pelo cabeça de casal ao tribunal onde corre termos o processo onde teve lugar a nomeação do cabeça de casal.

Esta disposição, não tendo na sua previsão qualquer restrição em razão da competência material do tribunal que procedeu à nomeação do cabeça de casal, atribui a competência independentemente da matéria, logo também da competência em razão da matéria desse tribunal: ele é competente por ter sido quem procedeu à nomeação do cabeça de casal; logo, se era competente para a nomeação, é competente para a prestação de contas que o nomeado esteja obrigado a fazer por apenso ao processo onde foi nomeado.

A Lei de Organização do Sistema Judiciário e o Código de Processo Civil são diplomas complementares, que se ocupam de questões distintas, mas entre cujas disposições se podem estabelecer relações de exclusão ou de compatibilidade. Havendo no Código de Processo Civil normas que definem em que tribunal deve correr determinada acção por eleição de um determinado factor ou critério puramente processual (a relação de dependência entre os processos), deve entender-se que, precisamente porque a intenção do legislador foi eleger apenas esse critério para determinação da competência, essas normas se sobrepõem às disposições orgânicas que regulam a competência (em relação da matéria ou do território), excepto se e quando o contrário resultar expressamente das normas legais aplicáveis. Não se objecte com o argumento da especificidade da jurisdição dos juízos de família e menores. Essa especificidade não é algo que exista de per se, que seja concebível em abstracto, à priori e com efeitos determinantes para tudo o mais, é somente a que resulta das normas legais, aquela que o legislador decidiu atribuir-lhe em resultado da ponderação global que faz da distribuição de competências.”.

Este raciocínio, a que aderimos, é absolutamente transponível para a competência material fixada aos cartórios notariais por via do DL 23/2013.

As razões que levam à fixação da competência por conexão prevista do artigo 947.º do Código de Processo Civil são facilmente compreensíveis no que respeita à prestação de contas pelo cabeça de casal no processo em que foi decidido o cabeçalato. Prendem-se com a interdependência de algumas das questões essenciais aos dois processos (de inventário e de prestação de contas), como sejam a definição dos bens comuns a partilhar e de quem os está, de facto, a administrar. A este propósito refere Carla Câmara[4] “Por via desta prescrição, permite-se o aproveitamento dos elementos processuais relevantes para a prestação de contas e a aferição do exercício do cabeçalato, que constem do processo em que ocorreu a nomeação do cabeça de casal”.

Assim, enquanto vigorou o artigo 45.º do DL 23/2013, não se vê qualquer óbice a que se considere que do artigo 647.º do Código de Processo Civil resultava que o notário tinha competência para conhecer das prestações de contas pelo cabeça de casal, fossem elas prestadas espontaneamente pelo mesmo ou requeridas por um dos interessados (provocadas, portanto).

A mesma lógica perpassa pelas decisões de Tribunais superiores em que se admitiu que, muito embora a competência notarial para o julgamento da prestação de contas surgisse por via da nomeação do cabeça de casal naquele processo, era ali que se deviam julgar também as contas relativas ao período anterior a essa nomeação em que o cabeça de casal já se encontrasse a administrar bens da herança. Entre elas as seguintes, citadas na sentença recorrida: TRE 435/19.5T8ELV.E1, TRL 13079/16.4T8SNT.L1-6 e TRP 22255/17.1T8PRT.P1, sendo este último desta secção.

Estas três decisões, embora não se refiram à concreta questão em apreço neste recurso[5] constituem um contributo para a decisão da questão em apreço, deles resultando que mesmo quando a prestação de contas não tenha por causa imediata a nomeação do cabeça de casal em inventário notarial é por apenso a este que devem ser conhecidas.

No mesmo sentido, veja-se ainda o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-03-2018, relatado por Abrantes Geraldes e disponível em STJ 349/12.2TBALQ-A.L1.S3 em que, citando-se Luís Filipe de Sousa[6], “(o cabeça-de-casal tem existência jurídica desde a morte do autor da herança, independentemente de haver lugar a inventário”) se concluiu que “a prestação de contas de cabeça-de-casal, ao abrigo do art. 947º do CPC, abarca tanto o período posterior à sua nomeação formal para o cargo, no âmbito do processo de inventário, como o período anterior em que a Requerida, viúva do de cujus e mãe da Requerente, veio a ser designada e exerceu de facto esse cargo. Aliás, sempre seria de duvidar, ao menos, que de uma mera competência por conexão, que é aquela que emerge do art. 947º do CPC, pudesse extrair-se uma solução que procederia a uma divisão artificial de uma mesma realidade substancial que é representada pela efetiva administração dos bens da herança indivisa desde o óbito do de cujus, com os inconvenientes da duplicação de processos e com os riscos da contradição.”.

Assenta esta lógica na consideração do verdadeiro objeto e interesse na prestação de contas pelo cabeça de casal e nas vantagens de que as mesmas sejam apreciadas por quem tem competência para a tramitação do inventário, afastando-se artificiais e não justificadas distinções entre situações que em tudo são equiparadas. No caso dos acórdãos acima identificados, estava em causa a administração de bens da herança em período anterior ou posterior à nomeação do seu administrador para o cabeçalato, considerando-se injustificada a distinção entre ambas para efeitos de atribuição de competência material para o seu conhecimento. Igualmente artificiosa nos parece que seria a distinção entre as contas do cabeça de casal prestadas espontaneamente ou provocadas, já que ambas têm o mesmo fito e também ambas se relacionam da mesma forma com questões de facto e direito que têm que ser conhecidas no processo especial de inventário.

Assente que à luz do regime legal em vigor aquando da instauração do inventário notarial cabia ao notário a competência, por conexão, para o conhecimento da prestação de contas do cabeça de casal, fosse ela feita de forma espontânea ou provocada, resta afirmar que ao inventário notarial instaurado por óbito do pai da requerente, em que é cabeça de casal a sua viúva, aqui requerida, e que foi instaurado em 15 de janeiro de 2019, se continua a aplicar tal regime legal.

Ora, se é certo que perante a Lei 117/2019 de 13 de setembro, aquele regime foi alterado, tendo o artigo 45.º sido revogado a partir da sua entrada em vigor (em 1 de Janeiro de 2020), do artigo 11º deste Diploma, contudo, resulta que o mesmo apenas se aplica aos processos instaurados após a sua entrada em vigor e aos que ainda estivessem pendentes em cartório notarial, mas que viessem a ser remetidos a tribunal (cfr. artigo 11.º, número 1 da Lei 117/2019).

Do número 2 do referido artigo 11º consta mesmo expressamente o seguinte: “O regime jurídico do processo de inventário, aprovado em anexo à Lei n.º 23/2013, de 5 de março, continua a aplicar-se aos processos de inventário que, na data da entrada em vigor da presente lei, estejam pendentes nos cartórios notariais e aí prossigam a respetiva tramitação”.

Pelo que é absolutamente infundada a pretensão do recorrente de que quaisquer normas decorrentes da Lei 117/2019 sejam aplicáveis ao inventário notarial pendente desde data anterior à da sua entrada em vigor, mantendo-se aquele, por via da referida disposição transitória expressa, a ser tramitado à luz da Lei 23/2013 de 5 de março. Pelo que a competência do cartório notarial onde tal inventário pende para apreciação da prestação de contas do cabeça de casal continua a decorrer da conjugação do artigo 947.º do Código de Processo Civil com o artigo 45.º da Lei 23/2013.

Cumpre ainda afirmar que em face da aplicabilidade dessa lei ao inventário notarial em curso é manifestamente equivocada, salvo o devido respeito, a afirmação da apelante de que a redação do artigo 947.º pressupõe que se esteja em causa a conexão entre dois processos judiciais. A redação desse preceito entrou em vigor em 1 de setembro de 2013 (artigo 8.º da Lei 41/2013 que aprovou o Código de Processo Civil, lei essa publicada em 4 de junho de 2013), e no mesmo dia entrou em vigor a Lei 23/2013 (publicada em 22 de fevereiro de 2013, ou seja mais de três meses antes da publicação da Lei 41/2013) que estabeleceu o regime jurídico do processo de inventário, retirando a sua tramitação da competência dos tribunais judiciais e atribuindo-a aos cartórios notariais, sem prejuízo dos casos em que se mantivesse a competência dos primeiros nos termos do artigo 7º dessa Lei (processos de inventário já pendentes). Pelo que bem sabia o legislador quando fez publicar o Código de Processo Civil em vigor desde 1 de setembro de 2013 (publicado em 4 de junho) que já antes fora publicado e entraria em vigor no mesmo dia o Diploma que aprovou o regime legal do inventário notarial em que se atribuía ao notário a competência para nomeação do cabeça de casal. Pelo que não há qualquer fundamento para sustentar que com a redação dada ao artigo 947.º do Código de Processo Civil, quando ali se fixa a competência para a prestação de contas pelo cabeça de casal por conexão com o processo onde o mesmo foi nomeado, o legislador estivesse apenas e tão-só a pretender referir-se aos processos judiciais de inventário então pendentes.

Finalmente cabe dar resposta a uma questão apenas levantada pela apelante em sede de recurso e que, por isso, não foi conhecida na sentença recorrida nem é objeto do recurso: a de que já antes pedira a prestação de contas pela cabeça de casal no cartório notarial onde corre o inventário e que tal foi indeferido pela notária. A ser verdadeira tal alegação, a forma de reação à mesma passa pela impugnação dessa decisão, por via de recurso. Não o Tribunal vinculado pela decisão da Srª notária que lhe atribua competência, sendo tal decisão inócua para o objeto deste recurso.

Pelo que improcede o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.


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Por nele ter decaído as custas do recurso são a cargo da recorrente em face do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil e sem prejuízo do pedido de concessão do benefício do apoio judiciário que a mesma tenha na ação e que se desconhece se foi já eventualmente julgado caducado pelo Instituto de Segurança Social, Instituto Público, a quem cabe tal decisão nos termos dos artigos 11º e 12º da Lei 34/2004 de 29 de julho.

VI – Decisão:

Nestes termos julga-se improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela recorrente nos acima fixados e para a hipótese de se vir a julgar caducado o apoio judiciário que lhe foi concedido.


Porto, 27 de outubro de 2025
Ana Olívia Loureiro
Mendes Coelho
Anabela Morais
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