RESPONSABILIDADE POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
FACTOS ESSENCIAIS
FACTOS NOVOS
DIREITO A ALIMENTOS
DANOS MORAIS PRÓPRIOS DA VÍTIMA
Sumário

I - O Tribunal da Relação goza no âmbito da reapreciação da matéria de facto dos mesmos poderes e está sujeito às mesmas regras de direito probatório que se aplicam ao juiz em 1ª instância, competindo-lhe proceder à análise autónoma, conjunta e crítica dos meios probatórios convocados pelo recorrente ou outros que os autos disponibilizem, introduzindo, nesse contexto, as alterações que se lhe mostrem devidas.
II - Na vigência do Código de Processo Civil anterior, mas igualmente após 01/09/2013, ocasião em que passou a vigorar a Lei 41/2003, de 26 de junho (NCPC) a matéria de facto à qual há que aplicar o direito tem de cingir-se a verdadeiros factos e não a questões de direito ou a meros juízos conclusivos, razão pela qual a revogação do artigo 646, n.º 4 do anterior CPC, não significa que o princípio nele estabelecido haja sido alterado devendo, assim, eliminar-se da fundamentação factual os pontos que contenham meras conclusões.
III - Os factos essenciais têm de ser alegados pela parte e os complementares ou concretizadores se resultarem da instrução da causa e o Sr. juiz do processo não os tenha tomado em consideração não pode a Relação, em princípio, substituir-se à 1.ª instância e valorar já em termos definitivos a prova produzida quanto aos novos factos, ampliando em 2.ª instância a matéria de facto sem que previamente, em fase de audiência de julgamento, as partes estejam alertadas para essa possibilidade e lhes seja facultado produzir toda a prova que entenderem.
IV - O nº 3 do artigo 495.º do CCivil pelo seu carácter excecional, deve ser interpretado no sentido de que os beneficiários do direito a alimentos apenas poderão in abstrato exigir indemnização pelos danos efetivos-que não pelos meramente potenciais–da cessação de prestação de alimentos.
V - Se não se provou que a vítima teve consciência da morte iminente ou sofreu com as lesões, não há lugar a indemnização por danos morais próprios da vítima, pois esses pressupõem uma experiência sensível do sofrimento.
VI - Parece-nos justo e equilibrado fixar em € 80.000,00 a indemnização aos pais pela morte do filho com 25 anos de idade, bem como em € 50.000,00 e € 35.000,00 o montante indemnizatório pelos danos morais por eles sofridos em consequência dessa perda.

Texto Integral

Processo nº 1466/23.6T8PVZ.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim-J6
Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Dr. Filipe César Osório
2º Adjunto Des. Dr. Miguel Baldaia
Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
Os autores AA, residente na Rua ..., freguesia ..., concelho da Trofa, e BB, residente na Alameda ..., nº ..., 1º esquerdo, freguesia ..., concelho da Maia, intentarem a presente ação declarativa de condenação com processo na forma comum, contra “A..., S.A.”, com sede em Avenida ..., ..., em Lisboa pedindo a sua condenação a pagar-lhes a quantia global nunca inferior a 502.995,65€ a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, estes últimos respeitantes quer ao sofrimento suportado pelo seu filho CC antes de morrer, quer à perda de direito à vida, quer finalmente no que tange aos danos sofridos pelos A.A. enquanto pais e herdeiros do falecido CC, quantia acrescida de juros de mora à taxa legal desde a sua citação até efetivo e integral pagamento.
Alegam em resumo que o falecido CC em 25/09 foi vítima de um atropelamento mortal pelo veículo de matrícula ..-..-EG que era propriedade de DD e era conduzido por este no momento do atropelamento ocorrido no túnel existente na Rua ..., em ..., Maia.
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Devidamente citada contestou a Ré, aceitando a ocorrência do sinistro invocado pelos autores, mas não aceitando a responsabilidade civil emergente deste acidente, porquanto foi a infeliz vítima a única e exclusiva responsável pela sua ocorrência.
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Tendo o processo seguido os seus regulares termos teve lugar a audiência de discussão e julgamento que decorreu com observância do legal formalismo.
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A final foi proferida decisão com a seguinte parte dispositiva:
Pelo exposto, decide-se julgar a presente ação parcialmente procedente, por provada e, em consequência, condenar a ré, “A..., S.A.”, a pagar:
- aos autores AA e BB a quantia de €839,61 (oitocentos e trinta e nove mil e sessenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação e até efetivo e integral pagamento;
- à autora AA a quantia de €47.500,00 (quarenta e sete mil e quinhentos euros) acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a presente decisão e até efetivo e integral pagamento;
- ao autor BB a quantia de €37.500,00 (trinta e sete mil e quinhentos euros) acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a presente decisão e até efetivo e integral pagamento.
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Não se conformando com o assim decidido vieram os Autores interpor o presente recurso rematando com extensas conclusões que aqui nos abstemos de reproduzir.
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Devidamente notificada contra-alegou a Ré pugnando pela improcedência do recurso.
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Também a Ré veio interpor recurso da decisão final rematando com as seguintes conclusões:
(…)
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cf. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são duas as questões que importa apreciar e decidir:
Recurso dos Autores:
a)- saber se tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b)- decidir em conformidade face à alteração, ou não, da matéria factual.
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Recurso da Ré
a)- saber se a distribuição da concorrência das culpas na produção do sinistro se encontra ou não corretamente efetuada e, daí decorrente, os respetivos montantes indemnizatórios.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1. CC (doravante designado apenas por CC) nasceu em ../../1995 e faleceu no pretérito dia 27/09/2020, pelas 19h50m, no estado de solteiro.
2. O mesmo era filho dos autores, sendo estes os seus únicos herdeiros.
3. O mencionado CC foi atropelado pelo veículo automóvel de matrícula ..-..-EG que era propriedade de DD (doravante designado apenas por DD) e era conduzido por este no momento do atropelamento.
4. A responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros em consequência da circulação do veículo automóvel de matrícula ..-..-EG estava, à data do acidente, transferida para a ré, através de contrato titulado pela apólice nº ....
5. O atropelamento ocorreu no túnel existente na Rua ..., em ..., Maia.
6. No local do acidente, a Rua ... configura uma reta com duas vias de trânsito separadas entre si por uma linha longitudinal contínua.
7. Essa via trata-se de uma estrada alcatroada e é uma reta superior a 1 Km.
8. Essa via, no local do acidente, tem uma largura total de 6,40 metros.
9. A Rua ... no interior do túnel mencionado em 5 é marginada em ambos os lados por bermas com cerca de 80 cm de largura, as quais se mostram devidamente delimitadas por linhas contínuas pintadas no pavimento.
10. No interior do túnel a Rua ... é dotada de passeios destinados ao trânsito de peões, de ambos os lados.
11. Os referidos passeios localizam-se sobre construções em betão armado situadas imediatamente após as bermas do túnel da Rua ... e a uma cota superior à da faixa de rodagem da aludida artéria, com cerca de 1m de altura acima desta última.
12. Os mencionados passeios para peões existentes em ambos os lados do túnel da Rua ... são dotados de guarda-corpos de segurança e proteção.
13. O tempo estava, na altura do sinistro, seco.
14. No interior do túnel a velocidade máxima permitida era de 50Km/h.
15. No interior do túnel mencionado em 5, momentos antes do atropelamento de CC, estavam a decorrer corridas de veículos automóveis, nas quais participavam diversos veículos automóveis “tuning”, competindo uns contra os outros, ora em aceleração pura, ora em corridas de veículos.
16. Também decorriam naquele local exercícios de perícia automóvel, nos quais os condutores das mencionadas viaturas faziam acrobacias nas vias públicas, os chamados “drifts” ou derrapagens controladas, os chamados “piões” ou veículos a rodopiarem sobre si próprios, ou a queimarem a borracha dos pneus em acelerações violentas.
17. O local do acidente estava iluminado.
18. Em consequência do mencionado em 15 e 16 no momento do sinistro a visibilidade era reduzida visto que havia muito fumo no ar.
19. CC era um aficionado da atividade de afinação de veículos automóveis, denominada “tuning” e, bem assim, era um assíduo expectador de corridas de automóveis como aquela que decorria aquando do acidente dos autos.
20. O mencionado CC sabia que no dia e hora em que ocorreu o acidente dos autos estavam a decorrer no interior do túnel mencionado em 5 provas de velocidade, nas quais os condutores dos veículos nelas participantes conduziam os respetivos veículos no interior do túnel da Rua ..., procurando atingir a maior velocidade possível, muito superior ao limite legal ali aplicável.
21. CC dirigiu-se àquele local porque sabia que no mesmo iam ou estavam a decorrer corridas de veículos e pretendia assistis às mesmas.
22. Momentos antes do atropelamento de CC estava a ser realizada uma corrida entre o veículo automóvel de matrícula ..-..-HR e o veículo de matrícula ..-..-EG.
23. Essa corrida decorria no interior do túnel da Rua ..., no sentido de marcha .../....
24. O HR circulava pela hemifaixa de rodagem direita do túnel, atento o seu sentido de marcha, em direção a ....
25. O EG circulava no encalce do HR, igualmente pela hemifaixa de rodagem direita do túnel, atendo o seu sentido, tentando não se afastar do veículo que o precedia.
26. Ambos os veículos circulavam a velocidade de, pelo menos, 70 km/h.
27. CC havia acedido ao interior do túnel e nele passou a caminhar pelo lado esquerdo, atendo o sentido .../..., em sentido oposto ao dos veículos EG e HR, estando o mesmo a filmar os veículos que vinham na direção oposta à sua.
28. Uma outra viatura entrou no interior no túnel da Rua ..., pela hemifaixa de rodagem direita, atento o sentido .../..., cujo condutor, apercebendo-se dos veículos HR e EG a circularem no sentido oposto, quase imobilizou o veículo que tripulava após ter circulado alguns metros no interior do túnel.
29. Ao chegar próximo do local onde se encontrava o CC o condutor do veículo HR acionou os mecanismos de travagem do veículo que conduzia.
30. Nesse momento, o condutor do EG, apercebendo-se da manobra encetada pelo condutor do veículo que o precedia, e para não embater frontalmente na traseira deste último, acionou também os mecanismos de travagem do veículo que conduzia.
31. Não obstante, o condutor do EG perdeu o controlo do veículo que conduzia derrapou para a sua direita, acabando por raspar na parede do túnel do seu lado direito, 32. e, de seguida, acabou por colher e embater no filho dos autores com a respetiva frente, tendo o CC sido projetado mais de 25 metros.
33. Nesse momento, o peão caminhava em direção aos veículos que circulavam em sentido oposto ao seu, na berma do lado direito da via, atento o sentido de marcha dos veículos.
34. O filho dos autores sabia que os veículos que se aproximavam em sentido contrário estavam a realizar uma corrida e, ainda assim, optou por caminhar pela berma da faixa de rodagem em vez de fazer uso dos passeios destinados ao trânsito dos peões mencionados nos pontos 10 a 12.
35. Esses passeios estavam, naquele momento, ocupados por várias pessoas que assistiam à corrida e ao acidente, mas não sofreram qualquer lesão.
36. CC apercebeu-se de que, no troço da via em questão, que se desenvolvia em reta, os veículos participantes naquela corrida ilegal progrediam a velocidade elevada e em aceleração.
37. O mesmo apercebeu-se que as bermas no local eram estreitas e delimitadas por muro de betão.
38. O mesmo ter-se-á apercebido que no local havia um passeio para peões numa posição mais elevada do que a faixa de rodagem da Rua ..., dotado de guarda-corpos, destinado a impedir as consequências de um eventual despiste de um automóvel no interior do túnel para qualquer peão que nele circulasse.
39. O mesmo sabia que os passeios para peões acima identificados constituíam o local adequado para caminhar no interior do túnel e que não poderia transpor os guarda-corpos existentes no limite desses passeios para peões.
40. Em consequência do sinistro o veículo de matrícula ..-..-EG ficou com a pintura riscada e raspada na parede exterior do pneumático e jante do rodado frontal direito e na zona envolvente do guarda lamas traseiro direito.
41. E ficou com a zona frontal danificada ao nível do para-choques, óticas, capot, vidro para-brisas e tejadilho.
42. Após o embate, o CC ficou prostrado na via já depois da saída do túnel mencionado em 5.
43. Como consequência direta do sinistro CC sofreu traumatismo crânio encefálico grave, edema cerebral difuso, contusões pulmonares, lacerações esplenicas e hematomas renais, trauma do músculo esquelético, fratura do acetábulo esquerdo, fratura do punho esquerdo e diversas lesões internas.
44. Foi depois transportado para o Hospital ..., onde permaneceu totalmente inconsciente até ao seu decesso.
45. Acabando por falecer em consequência das lesões sofridas às 19h50m do dia 27 de setembro de 2020.
46. Os serviços fúnebres e enterro de CC importaram um custo de 2.995,65€.
47. A autora recebeu em novembro de 2020 um subsídio de funeral no valor de €1.316,43.
48. CC trabalhava na empresa B..., onde auferia uma remuneração base no valor de €650,00, sendo que a última remuneração que recebeu foi no mês de maio de 2020 e que entre esse mês e agosto de 2020 recebeu prestações por doença.
49. O mesmo vivia com a sua mãe, em casa desta, contribuindo para as despesas do agregado familiar com parte do seu vencimento.
50. Em consequência do falecimento de CC os autores sofreram desgosto e dor emocional, sendo que a autora, que tinha uma forte ligação ao seu filho, em consequência do óbito do mesmo, vive em desalento e depressão, nunca mais tendo recuperado a alegria que tinha anteriormente.
51. Na data do sinistro os autores encontravam-se profissionalmente ativos, auferindo como contrapartida do trabalho que prestavam um rendimento mensal.
52. Em 30/5/2020, o filho dos autores havia sofrido um Aneurisma Roto do Complexo que demandou uma cirurgia.
53. Por essa razão esteve internado entre 30/5/2020 e 18/7/2020 no Hospital ... – Porto, sendo que, em 13/8/2020, foi assistido novamente no Hospital ... por queixas relacionadas com diminuição da acuidade visual há 2 semanas,
Factos não provados
Não se provou que:
1. Nos últimos instantes do dia 25 de setembro de 2020 CC conduzia o seu veículo automóvel no concelho da Maia quando decidiu aparcar a sua viatura e dar um passeio a pé na companhia de outros amigos e, verificando que se encontrava uma grande aglomeração de pessoas junto do túnel do aeródromo de ..., por mera curiosidade decidiu abeirar-se do local para perceber o que se estaria a passar.
2. No momento do acidente CC encontrava-se na berma da estrada atenta a circunstância de inexistir via pedonal naquele local, e estava afastado vários metros da via de circulação.
3. O mesmo envergava roupa clara o que permitia a qualquer condutor avistá-lo a centenas de metros de distância.
4. O veículo automóvel de matrícula ..-..-EG após o embate no CC embateu no lateral da via, danificando o muro de betão ali existente.
5. Aquando da chegada ao local do acidente da equipa de socorro médico, o CC estava sem sentidos, apresentando um estado de total inconsciência.
6. CC em consequência do atropelamento gemeu convulsivamente até ter perdido a consciência vários minutos depois de sofrer dores dilacerantes.
7. O mesmo quedou-se no meio da via gritando com dores e com a desesperada visão do seu corpo mutilado, por um período superior a 30 minutos, tendo sofrido dores horríveis e teve plena consciência da gravidade das suas lesões e da iminência da sua própria morte.
8. Repetindo aquele CC, à exaustão e entrecortadamente com os gritos de dor e desespero, que “iria morrer, já não se safava” e que “sentia dores horríveis” e que “era uma poça de sangue”.
9. Interpolando os gritos de desespero pelas dores que sentia e por antever a inevitabilidade da sua morte com orações e pedidos de clemência a Deus, a quem rogava que o recebesse porquanto ia morrer.
10. CC manteve-se lúcido e consciente enquanto aguardava a chegada da equipa de emergência médica ao local do sinistro, acabando por desfalecer entretanto face às dores insuportáveis que o afligiam.
11. CC antes do acidente gozava de férrea saúde, era uma pessoa dinâmica e divertida, com um espírito inquebrantável e muito louvado por todos quantos com ele privavam, que não se fartavam de reconhecer a sua bondade e solidariedade com os mais vulneráveis.
12. Era tradição familiar o almoço de Domingo, confecionado pela própria Vítima.
13. O Fenecido não fumava nem ingeria bebidas alcoólicas, cultivando um estilo de vida saudável e dinâmico, o que explica como gozava de tão boa saúde.
14. Muitíssimo respeitado e acarinhado na comunidade em que se inseria, o que ficou bem patente nas centenas de pessoas que compareceram no seu funeral, a Vítima sempre foi pessoa disposta a ajudar os mais desfavorecidos, inúmeras vezes praticando atos de generosidade e solidariedade perante os mais desprotegidos da freguesia, assumindo ainda papel relevante na paróquia em que estava incluído.
15. Após o divórcio dos autores, estes procuraram no filho CC compreensão e conforto.
16. CC desempenhava um papel fundamental na coesão familiar.
17. O mesmo era uma pessoa alegre, bem-disposta, humana, caridosa, bondosa, era feliz e proporcionava felicidade às pessoas que a rodeavam.
18. Na sequência do malfadado evento, a Mãe foi proceder ao reconhecimento do corpo e despedir-se do Filho, o que lhe causou profundo abalo emocional, ao verem-no com as lesões terríveis que o sinistro rodoviário lhe provocou.
19. Os Pais choraram durante dias, inconsoláveis com a perda irreparável e repentina do seu filho.
20. Todos tendo sido forçados, devido ao fortíssimo trauma emocional provocado pelo decesso do seu Filho nas circunstâncias aludidas, a tomar medicação calmante, o que se prolongou por vários dias após o sucedido devido aos sintomas depressivos que todos demonstravam, inconsoláveis pela perda irremediável do Filho.
21. O autor pai, foi residir para o estrangeiro, por não suportar passar nos locais onde privava com o seu Filho.
22. Os guarda corpos mencionados no ponto 12 dos factos provados são em aço tubular de elevada resistência.
23. O condutor do HR efetuou uma travagem brusca que provocou a fusão da borracha dos seus pneus no asfalto, com a emissão de muito fumo de cor branca, ao mesmo tempo que se desviou um pouco para a sua esquerda.
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III. O DIREITO
Recurso dos Autores
Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir prende-se com:
b)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como resulta do corpo alegatório e das respetivas conclusões os recorrentes abrangem, com o recurso interposto, a impugnam a decisão da matéria de facto, não concordando quer com a resenha dos factos provados quer não provados.
Vejamos, então, se lhe assiste razão.
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Efetivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente impercetível na gravação/transcrição.[1]
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[2]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CP Civil).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[3]
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[4]
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão aos Autores apelantes, neste segmento recursivo da impugnação da matéria de facto, nos termos por eles pretendidos.
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Os pontos 27., 33. e 34. têm, respetivamente a seguinte redação:
- “CC havia acedido ao interior do túnel e nele passou a caminhar pelo lado esquerdo, atento o sentido .../..., em sentido oposto ao dos veículos EG e HR, estando o mesmo a filmar os veículos que vinham na direção oposta à sua;
- Nesse momento, o peão caminhava em direção aos veículos que circulavam em sentido oposto ao seu, na berma do lado direito da via, atento o sentido de marcha dos veículos;
- O filho dos autores sabia que os veículos que se aproximavam em sentido contrário estavam a realizar uma corrida e, ainda assim, optou por caminhar pela berma da faixa de rodagem em vez de fazer uso dos passeios destinados ao trânsito dos peões mencionados nos pontos 10 a 12”.
Alega os recorrentes que os pontos 33. e 34. deviam ser considerados não provados e o ponto 27. passar a ter a seguinte redação:
“CC havia acedido ao interior do túnel, mantendo-se imobilizado no interior da berma, do lado esquerdo, atento o sentido .../..., em sentido oposto ao dos veículos EG e HR, que estavam a realizar uma corrida, estando o mesmo a filmar os veículos que vinham na direção oposta à sua”.
Para a pretendida alteração convoca os depoimentos das testemunhas EE, FF, GG e HH.
Importa, desde logo, enfatizar, que as indicadas testemunhas o que referem é que o CC estava encostado à parede a filmar.
Ora, o facto de em certo momento estar encostado à parede daí não se infere que esteve sempre imobilizado nessa posição, ou seja, podia, em certo momento, estar encostado à parede, mas depois continuar a caminhar pela via.
Portanto, dos indicados depoimentos não se retira que antes e até ao momento do acidente o CC tenha estado sempre imobilizado no interior da berma como advogam os apelantes.
Aliás, sob esse conspecto, o tribunal recorrido exarou o seguinte:
“Tais testemunhas conseguiram também explicar que, nesse momento, o CC estava a caminhar na berma pelo lado esquerdo, em sentido oposto àquele em que estavam a circular esses veículos, sendo que as testemunhas HH, EE e FF explicaram que o CC estaria naquele local a filmar, sendo que as duas últimas estavam posicionadas no passeio pedonal localizado acima da via, num local muito próximo daquele em que o CC estava posicionado, tendo este tribunal ficado, assim, convicto que efetivamente aquele jovem estava ali a filmar a corrida dos veículos que circulavam em sentido contrário”.
Daqui decorre que não existe fundamento probatório convocado pelos apelantes que permita alterar a redação do ponto 27. dos factos provados e dar como não provado o ponto 33. da mesma resenha.
Analisemos agora o ponto 34.
Na sua formulação o ponto em causa tem natureza manifestamente conclusiva e não factual.
“Sabia que os veículos (…) estavam a realizar uma corrida”- contém uma inferência sobre o estado psicológico do sujeito (o conhecimento do perigo), o que não é um facto direto, mas uma conclusão.
“Optou por caminhar pela berma (…) em vez de fazer uso dos passeios” - A expressão “optou” traduz uma avaliação sobre uma escolha consciente e voluntária, também conclusiva, pois não descreve apenas o comportamento (andar na berma), mas a motivação ou intenção subjacente.
Portanto, o ponto em questão sentado é conclusivo, por conter inferências sobre o conhecimento e a vontade do sujeito.
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O artigo 607.º, nº 4 do CPCivil[5] dispõe que na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
No âmbito do anterior regime do Código de Processo Civil, o artigo 646.º, nº 4 do CPCivil, previa, ainda, que: têm-se por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes”.
Esta norma não transitou para o atual diploma, o que não significa que na elaboração da sentença o juiz deva atender às conclusões ou meras afirmações de direito.
Ao juiz apenas é atribuída competência para a livre apreciação da prova dos factos da causa e para se pronunciar sobre factos que só possam ser provados por documento ou estejam plenamente provados por documento, admissão ou confissão.
Compete ao juiz singular determinar, interpretar e aplicar a norma jurídica (artigo 607.º, nº 3 do CPCivil) e pronunciar-se sobre a prova dos factos admitidos, confessados ou documentalmente provados (artigo 607.º, nº 4).
Às conclusões de direito são assimiladas, por analogia, as conclusões de facto, ou seja, “os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados e exprimindo, designadamente, as relações de compatibilidade que entre eles se estabelecem, de acordo com as regras da experiência[6].
Antunes Varela considerava que deve ser dado o mesmo tratamento “às respostas do coletivo, que, incidindo embora sobre questões de facto, constituam em si mesmas verdadeiras proposições de direito[7].

Em qualquer das circunstâncias apontadas, confirmando-se que, em concreto, determinada expressão tem natureza conclusiva ou é de qualificar como pura matéria de direito, deve continuar a considerar-se não escrita porque o julgamento incide sobre factos concretos.

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Como assim, o citado ponto 34. deve ser eliminado da fundamentação factual.
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Os pontos 37., 38. e 39. da resenha dos factos provados têm, respetivamente, a seguinte redação:
- “O mesmo apercebeu-se que as bermas no local eram estreitas e delimitadas por muro de betão;
- O mesmo ter-se-á apercebido que no local havia um passeio para peões numa posição mais elevada do que a faixa de rodagem da Rua ..., dotado de guarda-corpos, destinado a impedir as consequências de um eventual despiste de um automóvel no interior do túnel para qualquer peão que nele circulasse.
- O mesmo sabia que os passeios para peões acima identificados constituíam o local adequado para caminhar no interior do túnel e que não poderia transpor os guarda-corpos existentes no limite desses passeios para peões”.
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Propugnam os apelantes que os pontos 37. e 38. Devem ser dados como não provados e que ponto 39. deve passar a ter a seguinte redação:
“Existia um passeio para peões numa posição mais elevada do que a faixa de rodagem da Rua ..., dotado de guarda-corpos, todavia tal patamar não estava acessível para a circulação pedonal do lado em que se encontrava o CC, o que o forçou a caminhar no interior da berma da estrada.”
Como se torna evidente os citados pontos encerram, manifestamente, conclusões e não factos.
Analisando.
Ponto 37.
A descrição de que “as bermas no local eram estreitas e delimitadas por muro de betão” é factual (objetivamente observável).
Contudo, o verbo “apercebeu-se” exprime um juízo sobre o estado de consciência ou perceção do sujeito, que não é diretamente observável, é uma inferência que só pode se retirada a partir de outra materialidade.
Portanto, a expressão “apercebeu-se” torna a afirmação conclusiva quanto ao conhecimento do sujeito.
Ponto 38.
Conclusivo em vários aspetos.
A expressão “ter-se-á apercebido” é novamente uma inferência sobre o estado mental do sujeito.
A frase contém também uma interpretação funcional e finalística do “guarda-corpos-“destinado a impedir as consequências de um eventual despiste”-que constitui um juízo valorativo ou técnico, não um facto direto.
Ponto 39.
Claramente conclusivo.
Aqui há dois tipos de conclusão:
Conclusão psicológica- “sabia que (…)” é uma inferência sobre o conhecimento ou consciência do sujeito.
Conclusão normativa ou valorativa-“constituíam o local adequado para caminhar”- é uma apreciação sobre o dever-ser e não um facto descritivo.
Daqui resulta que todos os pontos me questão contêm elementos conclusivos, sobretudo pela referência: ao estado mental do sujeito (“apercebeu-se”, “sabia”); e a valorações normativas ou funcionais (“local adequado”, “destinado a impedir…”).
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Como assim, valem aqui, mutatis mutandis, as mesmas considerações feitas a propósito do ponto 34., razão pela qual devem também os citados pontos ser eliminados da fundamentação factual.
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Vejamos agora a redação proposta para o ponto 39. pelos apelantes.
A primeira parte do citado ponto já consta dos pontos 11. e 12. dos factos provados e que não foi objeto de impugnação.
A segunda parte contém também ele uma conclusão.
Efetivamente a expressão “não estava acessível” é uma inferência que teria de ser retirada de outra factualidade que uma vez provada levasse à conclusão da inacessibilidade do passeio em causa.
Acresce que, “(…) o que o forçou a caminhar no interior da berma da estrada” a expressão “forçou” traduz um juízo de causalidade e de necessidade comportamental, isto é, uma interpretação do motivo da conduta.
Portanto, a alteração da redação do ponto nos termos pretendidos pelos apelantes encerraria seria parcialmente conclusivo, porque: a) contém uma inferência sobre a acessibilidade (“não estava acessível”), e b) e uma conclusão causal (“o que o forçou a caminhar…”).
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Mas ainda que assim não se entendesse, importa ainda sopesar o seguinte.
O artigo 5.º do CPCivil define em sede de matéria de facto o que constitui o ónus de alegação das partes e como se delimitam os poderes de cognição do tribunal.
Assim, nos termos do seu n.º 1, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
Todavia, o n.º 2 acrescenta que além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
Resulta desta norma que o tribunal deve considerar na sentença factos não alegados pelas partes. Não se trata, contudo, de uma possibilidade sem limitações.
Desde logo, não cabe ao juiz supor ou conceber factos que poderão ter relevo, é necessário que estejamos perante factos que resultem da instrução da causa, isto é, factos que tenham aflorado no processo através dos meios de prova produzidos e, portanto, possuam já alguma consistência prática, não sejam meras conjeturas ou possibilidades abstratas.
Por outro lado, o juiz só pode considerar factos instrumentais e, quanto aos factos essenciais, aqueles que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado. E isto é assim porque mesmo no novo Código de Processo Civil o objeto do processo continua a ser delimitado pela causa de pedir eleita pela parte [artigos 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, alínea d), 581.º e 615.º, n.º 1, alínea d), segunda parte] e subsistem ainda as limitações à alteração dessa causa de pedir (artigos 260.º, 264.º, 265.º).
Acontece que, no caso concreto, a pretendida alteração, não se reconduz a um facto que seja complementar ou concretizador dos que os Autores alegaram.
Efetivamente o referido facto da redação proposta revelava-se essencial no sentido de afastar a concorrência da culpa do CC na eclosão do sinistro e, por via isso, devia ter sido aduzido na respetiva contestação como o determina o já citado art.º 5.º, nº 1 do CPCivil, coisa que os apelantes, manifestamente não fizeram, sendo que, na decisão, não se podem considerar factos principais diversos dos alegados pelas partes.
Aliás, mesmo que fosse complementar, como alega a apelante, nunca ele podia ser dado como provado nesta sede recursiva.
Na verdade, ainda que se entenda que a redação do atual 5.º, nº 2 al. b) do CPCivil tenha deixado de exigir a manifestação da parte interessada, para que seja integrada a factualidade relevante, isto é, os factos complementares ou concretizadores dos factos já alegados que apenas resultem da instrução da causa, podendo, por isso, a sua inclusão na factualidade integrante do objeto do processo ser da iniciativa do tribunal[8], de modo a garantir o imprescindível exercício do contraditório, continua, no entanto, a exigir-se que ambas as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre os factos que se pretendem aditar, o que inclui a possibilidade de produzir prova e contraprova sobre eles.[9]
Ora, essa possibilidade só pode ser proporcionada se o tribunal, antes de proferir a sentença, sinalizar às partes os factos que, apesar de não terem sido por elas alegados, se evidenciaram na instrução da causa e sejam relevantes para a decisão da mesma, permitindo que estas se pronunciem sobre eles, concedendo-lhes prazo para indicarem os meios de prova que pretendam produzir, relativamente aos factos aditados ao objeto do litígio.[10]
Como bem se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/02/2017[11]: “Admitir-se que o juiz possa, sem mais (isto é, apenas com a exigência de audiência contraditória na produção do meio de prova), considerar o facto novo, essencial (complementar ou concretizador), corresponderia a exigir ao mandatário da parte interessada um grau de atenção e diligência incomum, dirigida não só à produção e valoração da prova que fosse sendo realizada, mas também, antecipando o juízo valorativo do tribunal, à possibilidade de vir a ser retirado desse meio de prova e considerado provado um novo facto nele mencionado.
Crê-se que a disciplina prevista no art.º 5.º, nº 2, al. b), do CPC exige que o tribunal se pronuncie expressamente sobre a possibilidade de ampliar a matéria de facto com os factos referidos, disso dando conhecimento às partes antes do encerramento da discussão. Só depois poderá considerar esses factos (mesmo que sem requerimento das partes nesse sentido).
Só assim é conferida à parte "a possibilidade de se pronunciar" sobre o facto que o tribunal se propõe aditar. E só assim se assegurará um processo equitativo (art.º 547.º do CPC), facultando-se às partes o exercício pleno do contraditório, requerendo–como é admitido por qualquer das teses–, se for caso disso, novos meios de prova em relação aos factos novos, quer para reafirmar a realidade desses factos, no sentido da sua prova, quer para opor contraprova a respeito dos mesmos, infirmando a realidade que aparentam”.
Consultando os autos, constata-se que essa sinalização nunca foi efetuada na 1.ª instância, pelo que não foi garantido o exercício do contraditório nem o direito à prova, relativamente às alterações que a apelante pretende introduzir nos pontos 10., 18. e 19. dos factos provados.
A sua invocação nas alegações do recurso de apelação, com a consequente possibilidade da parte contrária, na resposta, se pronunciar sobre a pretensão das pretendidas alterações de factos não alegado, mas que sobressaíram na instrução da causa, não é suficiente para que encontre garantido o contraditório exigido na parte final da alínea b), do n.º 2, do artigo 5.º, do Código de Processo Civil, não sendo, pois, permitido ao tribunal da Relação, nos casos em que o contraditório não foi assegurado na 1.ª instância, valorar a prova aí produzida, e decidir que os factos em causa se encontram provados, aditando-os nos mencionados pontos factuais.[12]
Nesta situação teria a Relação, se estivéssemos perante factos complementares dos já alegados (o que como se decidiu não é o caso) que se evidenciaram na instrução da causa e que eram relevantes para o seu desfecho, que utilizar o poder que lhe é conferido pelo artigo 662.º, n.º 1, c), do Código de Processo Civil, para ampliação da matéria de facto, anulando a respetiva decisão.[13]
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O ponto 49. Dos factos provados tem a seguinte redação:
O mesmo vivia com a sua mãe, em casa desta, contribuindo para as despesas do agregado familiar com parte do seu vencimento”.
Pretendem os apelantes que o citado ponto passe antes a ter a seguinte redação:
O mesmo vivia com a sua mãe, em casa desta, contribuindo para as despesas do agregado familiar com a totalidade do seu vencimento”.
Para o efeito convoca o depoimento da testemunha II.
Na motivação da decisão da matéria de facto o tribunal recorrido sobre o ponto em questão discorreu do seguinte modo:
“Quanto ao ponto 49 valorou-se, desde logo, o depoimento da testemunha II (irmão do falecido CC) que explicou que o seu irmão vivia com a mãe, o que foi corroborado pelo depoimento das testemunhas JJ e KK, colegas de trabalho da autora que demonstraram ter conhecimento direto que o CC vivia com a mãe.
Embora o irmão do CC tenha referido no seu depoimento que este vivia em economia comum com a sua mãe e que entregava todo o dinheiro que recebia à mãe, este tribunal considerou como provado que o mesmo contribuía com parte do seu vencimento para as despesas do agregado familiar já que, desde logo, tal é o que é consentâneo com regras de experiência comum e juízos de normalidade.
Na verdade, apurou-se em juízo que a mãe do CC estava profissionalmente ativa pelo que auferia rendimentos (factualidade que resultou do depoimento das colegas de trabalho da mãe, JJ e KK e da cópia das declarações de IRS e notas de liquidação da mãe juntas aos autos em 26/11/2024).
Ora, resulta de regras de experiência comum que nas situações em que um jovem vive com algum dos pais e já trabalha é usual que contribua com algum rendimento para as despesas, designadamente de renda e alimentação, sendo também usual que haja situações em que entregam o que ganham aos pais que vão gerindo os montantes recebidos.
De qualquer forma, auferindo a mãe do CC rendimentos bastantes que asseguram as suas próprias despesas, o facto de o CC entregar o que ganhava à mãe não significa que a mãe necessitasse do rendimento do filho, mas, sim, que preferia gerir ela esse rendimento.
Assim, considerando que a autora trabalha e ganha o seu próprio rendimento, ficou este tribunal convencido que o CC contribuiria para as despesas do agregado familiar”.
Ora, nada temos a censurar à referida fundamentação que, fazendo uma análise crítica da prova, sopesou o depoimento da testemunha II e lançou mão das regras da experiência, análise que, diga-se, não é contrariada pelos apelantes que se limitaram a transcrever o depoimento sem fazer qualquer análise crítica do mesmo.
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Assim, deve o ponto em questão permanecer no rol dos factos provados com a mesma redação.
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O ponto 44. dos factos provados e os pontos 6. e 10. dos factos não provados têm, respetivamente, a seguinte redação:
“- Foi depois transportado para o Hospital ..., onde permaneceu totalmente inconsciente até ao seu decesso;
- CC em consequência do atropelamento gemeu convulsivamente até ter perdido a consciência vários minutos depois de ter sofrido dores dilacerantes;
- CC manteve-se lúcido e consciente enquanto aguardava a chegada da equipa de emergência médica ao local do sinistro, acabando por desfalecer entretanto face às dores insuportáveis que o afligiam”.
Alegam os apelantes que o ponto 44. devia ser dado como não provado ou então provado com a seguinte redação:
“Foi depois transportado para o Hospital ..., onde deu entrada com algum grau de consciência, acabando por falecer nessa instituição de saúde”.
Relativamente os pontos 6. e 10 dos factos não provados referem que deviam ser dados como provados.
Para o efeito convoca o depoimento das testemunhas HH e LL e ainda o Relatório de Patologia Forense.
Relativamente aos depoimentos das indicadas testemunhas que estiveram junto do corpo de CC após o mesmo ter sido projetado e ficado prostrado no chão, limitaram-se a pouco mais que afirmar de que o CC apresentava respiração ruidosa, forte, sendo que, depois de tanta insistência na instância feita pelo ilustre mandatários dos recorrentes, a testemunha HH lá acabou por dizer que o CC gemia, ou seja, sem que qualquer convicção daquilo que estava a afirmar.
Analisemos agora o ponto o ponto 44. dos factos provados.
Um doente que reage a uma punção venosa pode estar consciente, mas a reação, por si só, não prova necessariamente consciência plena. Depende do tipo de reação e do contexto clínico.
A reação à punção venosa não significa que o CC estivesse consciente.
A reação é voluntária (consciente) se verbaliza dor, se apresenta expressão facial de desconforto, ou mostra qualquer comportamento dirigido e intencional.
A reação é reflexa (inconsciente) se o doente apenas mexe o membro ou contrai os músculos em resposta ao estímulo, sem qualquer outro sinal de perceção, ou seja, isso pode ser uma resposta reflexa medular, isto é, uma reação automática do sistema nervoso periférico, sem intervenção cortical (sem consciência).
Portanto, reagir à punção venosa indica atividade neuromuscular, mas só indica consciência se a resposta for dirigida, intencional ou acompanhada de outros sinais cognitivos, o que, no caso, não vêm descritos.
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Devem por isso os citados pontos continuar quer no rol dos factos provados quer nos não provados.
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Os pontos 12. e 20. dos factos não provados têm, respetivamente, a seguinte redação:
- “Era tradição familiar o almoço de Domingo, confecionado pela própria Vítima;
- Todos tendo sido forçados, devido ao fortíssimo trauma emocional provocado pelo decesso do seu Filho nas circunstâncias aludidas, a tomar medicação calmante, o que se prolongou por vários dias após o sucedido devido aos sintomas depressivos que todos demonstravam, inconsoláveis pela perda irremediável do filho”.
Pretendem os recorrentes que os citados pontos deviam ser dados como provados.
Para este desiderato convocam os depoimentos das testemunhas II, JJ e MM.
Na motivação da decisão da matéria de facto o tribunal recorrido e sob este conspecto discorreu do seguinte modo:
“Por outro lado, embora o seu irmão tenha dito em audiência que era frequente o CC fazer convívios aos domingos, sendo ele que tratava dos petiscos, não foi feita qualquer prova de que era tradição familiar haver um almoço de Domingo e que era o CC que confecionava as refeições, sendo certo que o facto de fazer petiscos não permite que possamos concluir que era ele quem cozinhava e que todos os domingos havia um almoço de família.
(…)
Quanto à toma de medicação por parte dos autores apenas o filho dos mesmos, II, referiu que a sua mãe toma medicação para dormir, pelo que não foi feita prova bastante quanto ao ponto 20.”.
Ora, os depoimentos das indicadas testemunhas não contrariam, por alguma forma, a transcrita fundamentação, sendo muitas vezes vagos e imprecisos sem qualquer circunstância objetivante que lhe pudesse dar consistência, sendo que, outros elementos probatórios não foram convocados para o efeito.
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Por esse razão devem os citados pontos continuar a constar da resenha dos factos não provados.
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Procedem, assim, em parte, as conclusões L) a VV) formuladas pelos apelantes.
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Alterada pela forma descrita a fundamentação factual a segunda questão que importa apreciar e decidir prende-se com:
b)- saber se a subsunção jurídica que foi feita pelo tribunal recorrido deve ou não permanecer inalterada.
1- A questão da concorrência de culpas.
Como se evidencia da decisão recorrida aí se fixou na proporção de 50% a culpa de cada um dos intervenientes na eclosão do sinistro.
Deste entendimento dissentem quer os Autores apelantes quer a Ré.
Os primeiros pugnam que culpa exclusiva na produção do acidente do condutor do veículo EG, ou caso assim não se entende devem as culpas ser repartidas na proporção de 90% para o condutor do EG e 10% para o lesado CC.
Por sua vez a Ré entende que tal proporção deve ser fixada na proporção de 75% para o lesado e 25% para o condutor do EG.
Que dizer?
A factualidade apurada revela (cf. pontos 9. e 12. e 15. 3 33. dos factos provados) um quadro de elevada perigosidade, decorrente da conjugação de condutas ilícitas tanto por parte dos condutor do EG envolvido em corridas ilegais no interior do túnel da Rua ..., como por parte do lesado, CC, que, ciente das circunstâncias de risco, optou por circular pela berma da faixa de rodagem, em detrimento dos passeios existentes e devidamente protegidos por guarda-corpos[14] e, como tal, arredada está, respeitando-se entendimento diverso, a imputação da culpa exclusiva na produção do acidente ao condutor do EG.
Mas qual então a proporção de culpa na produção do acidente de cada um dos intervenientes?
A ação do condutor EG traduz uma violação grave e consciente das regras de trânsito, constituindo uma atuação perigosa em manifesta violação das regras estradais e dos deveres de prudência e segurança.
As corridas e manobras de perícia “acrobacias” ou “drifts”, além de infrações rodoviárias graves, representam uma criação consciente de um risco proibido, que afasta qualquer expectativa legítima de segurança por parte de terceiros., incompatível com o dever de prudência imposto pelo artigo 24.º do Código da Estrada, que exige que o condutor adapte a velocidade às condições do local, garantindo o domínio do veículo em todas as circunstâncias.
Aliás, tal comportamento é ainda subsumível ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto no artigo 291.º do Código Penal, revelando, portanto, uma censurabilidade particularmente acentuada.
Por outro lado, também o comportamento do CC revela um grau de culpa juridicamente relevante.
Na verdade, o mesmo, conhecendo o local, apercebendo-se da estreiteza das bermas e da existência de passeios elevados, optou por circular pela faixa de rodagem, expondo-se a um perigo que lhe era objetivamente reconhecível.
Além disso, estava a filmar os veículos em plena corrida, o que demonstra uma diminuição da sua atenção e vigilância.
Tal conduta contraria o artigo 99.º do Código da Estrada, que impõe aos peões o dever de utilizar os passeios, passagens ou bermas sempre que existam, abstendo-se de circular na faixa de rodagem salvo absoluta necessidade.
Assim, verifica-se uma situação de culpa concorrente, em que tanto o condutor do EG como o lesado CC contribuíram causalmente para a eclosão do sinistro.
Contudo, o peso relativo das culpas não é equivalente.
A conduta do condutor do veículo EG foi a causa direta, imediata e predominante do acidente, constituindo um risco extremo e ilícito, enquanto a do lesado, embora imprudente, se limitou a colocá-lo em situação de vulnerabilidade acrescida.
Foi a corrida ilegal e a condução em excesso de velocidade que determinaram o despiste e o atropelamento, representando o comportamento predominante e determinante para a eclosão do sinistro.
Conclui-se, pois, que o acidente resultou da conjugação causal e culposa das condutas de ambos, condutor do EG e lesado CC.
Ora, tendo em conta o critério de equidade e proporcionalidade consagrado no artigo 570.º, n.º 1, do Código Civil, e o grau de censurabilidade de cada comportamento, parece adequado fixar uma repartição de culpas na proporção de 70% para o condutor do EG e de 30% para o lesado CC, cuja atuação, embora imprudente, não teria por si só causado o resultado se não fosse o comportamento ilícito e absolutamente negligente do condutor do EG.
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Improcedem, assim, as conclusões 1ª a 18ª formulados pela Ré e, em parte, as conclusões WW) a NNN) formuladas pelos Autores.
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2- A questão da fixação da prestação de alimentos a favor dos Autores.
Na decisão recorrida não se fixou qualquer quantitativo a esse nível estribando-se na circunstância de que com o falecimento do CC cessou a sua capacidade de auferir rendimentos e, de outra sorte, os Recorrentes não lograram demonstrar que estavam carecidos der alimentos.
Deste entendimento dissentem os apelantes alegando que o direito indemnizatório da perda de alimentos, suportado nos lucros cessantes provocado pelo falecimento, não carece da efetiva demonstração da necessidade deles por parte dos potenciais alimentandos, até porque a vida é dinâmica e uma situação de facto pode alterar-se num lampejo, pelo que a única interpretação conforme com o espírito do Legislador do teor dos artigos 495º/3, 562º, 564º e 2009º, todos do Código Civil, não pode deixar de ser aquela que credita a potenciais alimentandos, independentemente da sua necessidade atual, a ressarcibilidade do dano decorrente do desaparecimento de quem, deles carecendo, seria chamado a alimenta-los.
Quid iuris?
Estatui o nº 3 do artigo 495.º do CCivil[15] que “Têm igualmente direito à indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural”.
Consagra este preceito (todo ele, embora aqui só esteja em questão o seu nº 3) uma exceção à regra (no âmbito da responsabilidade civil extracontratual), estabelecida no artigo 483.º nº 1 do mesmo diploma legal, de que só o titular do direito violado tem direito à indemnização e de que o mesmo já não acontece relativamente a terceiros, ainda que reflexamente prejudicados pela atuação do lesante–a outra exceção (mas atinente a danos não patrimoniais, pois aquela refere-se a danos de natureza patrimonial) está proclamada no artigo 496.º nºs 2 e 3, parte final.[16]
Prevê-se nele aquilo que vem sendo designado por “dano da perda de alimentos” e que abarca duas situações em que o terceiro (ou terceiros) reflexamente prejudicado tem direito a ser indemnizado pelo lesante (ou por quem legalmente o substitui): a) quando pudesse exigir alimentos ao lesado e b) quando este lhos prestasse no cumprimento de uma obrigação natural. A primeira tem subjacente uma obrigação legal de prestação de alimentos; a segunda uma mera obrigação natural na sua prestação, nos termos definidos nos artigos 402.º e 404º.
Aqui está em causa a primeira situação, já que entre pais e filhos (o falecido CC era filho dos Autores, ora apelantes), conforme estatui o artigo 1874.º nºs 1 e 2, vigora, além de outros, o dever de mútua assistência que compreende “a obrigação de prestar alimentos e de contribuir, durante a vida em comum, de acordo com os recursos próprios, para os encargos da vida familiar”. O mesmo dever legal resulta, ainda, do disposto no artigo 2009.º, nº 1 al. b), segundo o qual “estão vinculados à prestação de alimentos (…) os descendentes”.
Analisando o nº 3 do artigo 495.º, começa o Prof. Antunes Varela[17] por perguntar se têm direito à indemnização por danos patrimoniais “apenas as pessoas que, no momento da lesão, podiam exigir já alimentos ao lesado, ou também aquelas que só mais tarde viriam a ter esse direito, se o lesado fosse vivo”, respondendo de imediato que “o espírito da lei abrange manifestamente também estas últimas pessoas”. E acrescenta que “se a necessidade de alimentos, embora futura, for previsível (…), nenhuma razão há para que o tribunal não aplique a doutrina geral do nº 2 do artigo 564º” e, bem assim, que “ainda que a necessidade futura não seja previsível, nenhuma razão há para isentar o lesante da obrigação de indemnizar a pessoa carecida de alimentos do prejuízo que para ela advém da falta da pessoa lesada”.
Tendo por base estes ensinamentos, a jurisprudência vem maioritariamente entendendo que, para que nasça o direito à indemnização pelo denominado dano da perda de alimentos, basta a verificação da qualidade de que depende a possibilidade do exercício de alimentos, não relevando a efetiva necessidade dos mesmos.[18]
Não perfilhamos, salvo o devido respeito, este entendimento.
Na verdade, tal como se refere no Ac. do STJ de 16/03/1999 citado na nota 7, o nº 3 do artigo 495.º pelo seu carácter excecional, deve ser interpretado no sentido de que os beneficiários do direito a alimentos apenas poderão in abstrato exigir indemnização pelos danos efetivos-que não pelos meramente potenciais–da cessação de prestação de alimentos.
A exigência de alimentos a que se refere o preceito, considerando a sua letra e escopo finalístico, pretende significar as pessoas envolvidas da necessidade dessa prestação alimentar.
Mas, ainda que se aceite a supramencionada tese restritiva sempre, cremos, será de exigir, para tornar efetivo o direito a alimentos previsto no citado artigo 495.º, nº 3, a demonstração de que se estava em condições de legalmente os poder vir a exigir e da previsibilidade dos mesmos nos termos do artigo 564.º, nº 2, tal como se defendeu no Ac. do STJ de 25/01/2002, também citado na nota 7.
Efetivamente, se o Tribunal não tiver elementos que lhe permitam determinar se os eventuais titulares a alimentos poderão vir a carecer deles não pode, então, fixar uma indemnização por danos futuros, por não serem previsíveis.[19]
O que, diga-se, está, aliás, em consonância com o estatuído no artigo no artigo 2004.º, nºs. 1 e 2 que estipula que os alimentos são proporcionados aos meios daquele que haja de prestá-los, à necessidade de quem houver de recebê-los.
Ora, respingado a matéria factual ela não acomoda quer aquela necessidade quer aquela previsibilidade.
Aliás, os proventos do CC eram assim tão significativos, pois que, se restringiam ao vencimento mensal com uma remuneração base no valor de € 650,00.
Acresce que, como vem provado, o CC vivia com a sua mãe, em casa desta, contribuindo para as despesas do agregado familiar com parte do seu vencimento (cf. ponto 49. dos factos provados).
Decorre, pois, do exposto que não resultou provado nos autos um acervo factual que nos permita concluir que os Autores estivessem carecida de alimentos à data da morte do infeliz CC, já que na data do sinistro encontravam-se profissionalmente ativos, auferindo, como contrapartida do trabalho que prestavam, um rendimento mensal (cf. ponto 51. dos factos provados).
Destarte, porque cabia aos Autores apelantes alegar e provar a necessidade e a impossibilidade de, por si, obter os alimentos, coisa que não fez, não lhe pode ser concedida uma indemnização de alimentos nos termos do nº 3 do mencionado artigo 495.º.
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Improcedem, desta forma, as conclusões OOO) a UUU) formuladas pelos apelantes.
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3- A questão dos danos morais sofridos pelo CC antes de falecer.
Na decisão recorrida não se fixou qualquer montante indemnizatório a esse nível por se ter entendido que a factualidade dada como provada nos autos factualidade provada não permite considerar que o CC tenha sofrido dores ou pressentido a aproximação da morte e que essa perceção lhe acarretou angústia; não se fez qualquer prova nos autos de que o mesmo esteve consciente nos momentos que antecederam a sua morte, se sofreu ou se teve perceção da antecipação do seu fim de vida.
Com este entendimento não concordam os Autores apelantes.
Que dizer?
Salvo o devido respeito por entendimento diverso, nada temos a censurar à decisão recorrida sob este conspecto.
Com efeito, a indemnização pedida relativamente aos referidos danos não tem qualquer respaldo na factualidade que se mostra assente nos autos, sendo que, a não prova de um facto equivale à sua não alegação.
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Improcedem, assim, as conclusões VVV) a DDDD) formuladas pelos apelantes.
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4- A indemnização pela perda do direito à vida
Na decisão recorrida foi fixado o montante de € 80.000,00 para a indemnização do referido dano.
Deste montante discorda a Ré apelante dizendo que o referido montante se devia fixar nos € 50.000,00.
Atentemos.
O artigo 496.º, nº 3 dispõe que em caso de morte do lesado podem ser atendidos os danos não patrimoniais sofridos pela própria vítima.
Os danos não patrimoniais sofridos pela falecida abrangem, sem margem para dúvidas, a perda do bem da vida (artigo 24.º da C.R.P. e artigos 70.º e 483.º).
O Prof. Leite de Campos[20] considera que “o direito à vida é um direito ao respeito da vida perante as outras pessoas, é um direito “excludendi alios” e só nesta medida é um direito. É um direito a exigir um comportamento negativo dos outros. Eis o único conteúdo do direito à vida – expressão incorreta, mas que não rejeitaremos, utilizando-a a par “de direito ao respeito da vida”, por causa da dignidade que obteve em mil combates ao serviço do homem.
Atentar contra o direito ao respeito da vida produz um dano – a morte – superior a qualquer outro no plano dos interesses da ordem jurídica.”
E continua “ O dano da morte é o prejuízo supremo, é a lesão de um bem superior a todos os outros”...” A morte é um dano único que absorve todos os outros prejuízos não patrimoniais. O montante da sua indemnização deve ser, pois, superior à soma dos montantes de todos os outros danos imagináveis.”.
E mais à frente[21] fala no “imperativo ético de indemnizar o dano da morte”.
A jurisprudência do S.T.J. tem vindo a encontrar, para ressarcir o dano morte, no geral, montantes entre 50.000,00 € e 60.000,00 €, atribuindo, maioritariamente, em decisões proferidas nos anos de 2008 e 2009, o montante de 50.000 €, sendo certo que outras decisões atribuíram indemnizações superiores (num caso 75.000,00 € e noutro 70.000,00 €).[22]
Ainda mais recentemente, a compensação pelo dano morte tem variado entre os 50.000,00 € e os 80.000,00 €, com ligeiras oscilações para mais ou para menos, tendo o Ac. S.T.J. de 8/09/2011[23] fixando mesmo a compensação desse dano em 100.000,00 €.[24]
Não pode negar-se que o valor geralmente atribuído pela jurisprudência para indemnizar este dano é fortemente influenciado pelo facto de não se destinar a compensar o lesado, ele próprio, pelo dano sofrido-tal compensação ou reparação é recebida por terceiros (as pessoas mencionadas no artigo 496.º, nº 2).
Todavia, o que não pode escamotear-se é que o valor indemnizatório deve ser minimamente suficiente para conter em si a afirmação da validade do bem tutelado e para sancionar a conduta do lesante.[25]
Como se escreveu no Ac. STJ 86.05.13[26] na indemnização devida pela perda do direito à vida, há que atender, não só ao valor do bem da vida, em si mesmo considerado, que é o mais valioso dos bens que integram os chamados direitos de personalidade, como ainda ao apego da vítima à vida, que pode ser aferido, à falta de outros elementos para o efeito relevantes, pela sua idade, o seu estado civil, a sua situação profissional e familiar, e a sua condição sócio-económica.
Sopesando todo o exposto e tendo como ponto de referência os padrões jurisprudenciais vigentes a propósito da valorização do dano morte, pondo de lado os critérios miserabilistas que outrora marcaram a nossa jurisprudência, e ponderando a idade do falecido CC à data do acidente,-25 anos-, portanto, no auge da vida, entendemos que o montante do dano fixado pelo tribunal recorrido se mostra justo e equilibrado, nada justificando que se altere o assim decidido.
Improcedem, assim as conclusões 19ª a 22ª formuladas pela Ré apelante.
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5- A questão dos danos morais sofridos pelos progenitores do CC.
Na decisão recorrida o tribunal a quo arbitrou € 55.000,00 para a progenitora e € 35.000,00 para o progenitor.
Destes montantes discorda também a Ré apelante pugnando que pela indemnização destes danos deve ser fixado montante não superior a € 35.000,00 para a progenitora e € 20.000,00 para o progenitor.
Que dizer?
Não vem posto em causa a indemnização arbitrada a esse nível que, aliás, encontra o seu fundamento legal no artigo 496.º nº 3, 2ª parte, pelo que a questão que importa resolver é da justeza dos montantes fixados pelo tribunal recorrido.
Quando estejam em causa danos não patrimoniais, como é o caso, o nº 1 do citado artigo 496.º diz que na fixação da indemnização deve atender-se aos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, ou seja, o legislador erigiu a gravidade do dano como (única) condição de ressarcibilidade.
O recurso à gravidade do dano como critério delimitador abre a porta a uma ponderação baseada na dignidade, no valor intrínseco, do bem ou interesse jurídico.
Como assim, danos consequentes a lesões de bens da personalidade podem ser rotulados, em regra, como graves, mas já não meros atentados à propriedade. Todavia, não existe, um absoluto paralelismo entre a gravidade do dano e a dignidade do bem jurídico, porquanto outros fatores podem conferir esse carácter ao dano (ainda que o interesse a proteger não figure como um interesse supremo).
Assim ocorrerá, por exemplo, com a intensidade da lesão (quer em termos temporais, quer em termos de afetação do bem ou interesse em causa); lesões mais intensas provocam danos mais graves. Também sobre este aspeto não é despicienda a censurabilidade da conduta do agente, apta a justificar a qualificação como grave de um dano que pelos outros critérios (dignidade e intensidade) poderia ficar sem proteção.
A este nível cumpre também chamar à colocação a componente subjetiva no apuramento da gravidade do dano. Na verdade, embora o padrão objetivo seja aqui preponderante, a casuística vai mostrando que no âmbito de danos causados por lesões dos direitos de personalidade e no âmbito das relações de vizinhança, existe uma forte tendência para valorar aqueles danos à luz de fatores atinentes à especial sensibilidade do lesado. A doença, a idade, a maior fragilidade ou vulnerabilidades emocionais são tidas em conta.
De facto, nestes casos por impossibilidade de recurso a fatores objetivos (por exemplo, critérios médico-legais) o julgador sente de uma forma mais premente a necessidade de chamar à colação todos os fatores que compõem a lesão, não chocando nestes casos atender a especiais características do lesado.
Feito, por esta forma, o recorte do dano indemnizável, o nº 3 do mesmo preceito (artigo 496.º) estipula que o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
Ora, respigando a matéria factual que neste âmbito se encontra assente verifica-se que o CC vivia com a sua mãe e em consequência do seu falecimento de os autores sofreram desgosto e dor emocional, sendo que a autora, que tinha uma forte ligação ao seu filho, em consequência do óbito do mesmo, vive em desalento e depressão, nunca mais tendo recuperado a alegria que tinha anteriormente (cf. pontos 49. e 50. dos factos provados).
Perante este quadro factual e os tópicos teóricos atrás expostos e tendo em consideração que a perda de um filho vai contra a ordem natural da vida, que causa nos progenitores um profundo abalo, prostração e desgosto, dos quais muitas vezes não se consegue recuperar, e não olvidando que, como noutro passo já se referiu, o falecido CC estava no auge da sua vida e, portanto, com o ciclo normal e natural (não fora esta interrupção abrupta) da mesma para percorrer ao lado dos seus entes queridos, não nos merece censura a decisão recorrida ao fixar a esse nível os montantes indemnizatórios, nos moldes em que o fez, os quais se mostram conforme aos padrões da nossa jurisprudência[27].
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Improcede, assim, as conclusões 23ª a 30ª formuladas pela Ré recorrente.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta parcialmente procedente e consequentemente revogando a decisão recorrida condenam a Ré a pagar:
a)- aos autores AA e BB a quantia de € 1.175,45 (mil cento e setenta e cinco euros e quarente e cinco cêntimos);
b)- à autora AA a quantia de € 66.500,00 (sessenta e seis mil e quinhentos euros) acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a presente decisão e até efetivo e integral pagamento;
c)- ao autor BB a quantia de € 52.500 (cinquenta e dois mil e quinhentos euros) acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a presente decisão e até efetivo e integral pagamento.
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Custas da apelação dos Autores na proporção do decaimento entre eles e a Ré e custas pela Ré apelante em relação à sua apelação (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 27 de outubro de 2025.
Manuel Domingos Fernandes
Filipe César Osório
Miguel Baldaia de Morais
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[1] De facto, “é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objeções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc.”-Abrantes Geraldes in “Temas de Processo Civil”, II Vol. cit., p. 201) “E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de perceção das referidas reações que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância” (ibidem). “Existem aspetos comportamentais ou reações dos depoentes que apenas podem ser percecionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores” (Abrantes Geraldes in “Temas…” cit., II Vol. cit., p. 273).
[2] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.
[3] Cf. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Cf. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] No que diz respeito aos factos conclusivos cumpre observar que na elaboração do acórdão deve observar-se, na parte aplicável, o preceituado nos artigos 607.º a 612.º CPCivil aplicáveis ex vi artigo 663.º, nº 2 do mesmo diploma legal.
[6] José Lebre de Freitas e A. Montalvão Machado, Rui Pinto Código de Processo Civil–Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, pág. 606.
[7] Antunes Varela, J. M. Bezerra, Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Atualizada de acordo com o DL 242/85, S/L, Coimbra Editora, Lda. 1985, pág. 648.
[8] Cf. Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª ed., almedina, 2014, p. 43-45, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª ed., Almedina, 2022, p. 31, Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2018, p. 62, Miguel Teixeira de Sousa, cpc online, livro i, p. 10, e Miguel Mesquita, A Morte do Princípio do Dispositivo, R.L.J. n.º 147, p. 100/ 103.
Em sentido oposto, continuando a exigir uma manifestação de qualquer uma das partes no aditamento do novo facto, em nome do princípio do dispositivo, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 4.ª ed., Almedina, 2018, p. 39-40.
[9] Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. cit. pág. 46, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, obra citada pág. 32 e Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit. pág. 40 e Rui Pinto ob. cit. pág. 62/63.
[10] Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. cit. p. 45-46, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, ob. cit., p. 32, Rui Pinto, ob. cit., p. 62-63, e os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 07.02.2017, Proc. 1758/10 (Rel. Pinto de Almeida) e de 06.09.2022, Proc. 3714/15 (Rel. Graça Amaral), todos consultáveis em www.dgsi.pt..
[11] Citada na nota anterior.
[12] Neste sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça citados na nota anterior.
[13] Cf. Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. cit. p. 45.
[14] Não vem provado nos autos que os referidos passeios estavam inacessíveis ao CC, aliás, vem provado nos autos que estavam, naquele momento, ocupados por várias pessoas que assistiam à corrida (cf. ponto 33. dos factos provados).
[15] Diploma a que pertencerão as restantes normas citadas sem menção de origem.
[16] Segundo o Prof. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 9ª ed., pg. 646, há na concessão do direito indemnizatório previsto no artigo 495º nº 3 “uma verdadeira exceção à regra de que só os danos ligados à relação jurídica ilicitamente violada contam para a obrigação imposta ao lesante”; idem, Prof. Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, 11ª ed., pág. 401 e Dario M. de Almeida, in “Manual de Acidentes de Viação”, 3ª ed., págs. 264 e segs.
[17] Obra e vol. cit., pág. 647.
[18] Neste sentido, Abrantes Geraldes, in “Temas da Responsabilidade Civil”, vol. II, pg. 15, e sendo suficiente para a sua atribuição a simples previsibilidade futura de que iriam ser exigidos alimentos ao lesado (art.º 564º, nº 2) cf. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, p. 379 e Ribeiro Faria, Obrigações, vol. I, p. 527, nota 3. No mesmo sentido Acórdãos do STJ de 08/05/2008 proc. 08B726, relatado pelo Cons. Serra Baptista, disponível in www.dgsi.pt/jstj, que decidiu que o terceiro reflexamente lesado “tem direito a indemnização pelo facto de poder exigir alimentos ao lesado”, “podendo a própria necessidade de alimentos ser futura”, “apenas tendo que ser previsível”; de 20/10/2009 proc. 85/07.9TCGMR.G1, relatado pelo Cons. Nuno Cameira, disponível no mesmo “sítio” que decidiu que “parece certo que o exercício do direito de indemnização excecionalmente reconhecido pelo art.º 495.º, nº 3, não depende da prova em concreto de que ao tempo da verificação do facto danoso se estava a receber alimentos; basta demonstrar que nesse momento se estava em situação de legalmente os exigir”; e desta Relação do Porto de 09/02/2009 proc. 0835934, relatado pela Des. Deolinda Varão, disponível in www.dgsi.pt/jtrp, que declarou perfilhar a posição do Prof. Antunes Varela, no sentido de que “basta a verificação da qualidade de que depende a possibilidade legal do exercício de alimentos, não relevando a efetiva necessidade dos mesmos”; e de 24/11/2005, proc. 0534035, relatado pelo Des. Pinto de Almeida, disponível no mesmo “sítio”], que decidiu que “é de todo indiferente (…) que eventualmente não fossem pagos alimentos anteriormente”, pois “o que releva é a possibilidade de eles serem exigidos”-contra, defendendo que a indemnização depende da prova da necessidade de alimentos, presente ou futura, por banda daquele que invoca esse direito, decidiram, os Acs. do STJ de 16/03/1999 BMJ nº 485–386/396, de 25/02/2002, in Col. Jur. Ano X, pág. 62/64 (Relator Silva Paixão) de 21/05/2009, proc. 213/09.0YFLSB e de 17/12/2009, proc. 77/06.5TBAND.C1.S1, disponíveis in www.dgsi.pt/jstj.
[19] Cf. Adriano Vaz Serra in Revista de Legislação e de Jurisprudência (RLJ), Ano 108, pág. 185.
[20] Cf. BMJ, n. 365-13.
[21] Cf. BMJ, n. 365-13.
[22] Veja-se, dando disso notícia, o Ac. S.T.J. de 17/12/2009, disponível no sítio www.dgsi.pt.
[23] In www.dgsi.pt.
[24] Veja-se também o Ac. S.T.J. de 31/01/2012.
[25] A este propósito é bem elucidativa a resposta dada por E. A.Posner/C.R.Sunstein, “Dolllars and death”, Chic. Law Review, 2005, 2, 545, citados por Manuel Maria Veloso nas Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, quanto à pergunta do quantum a pagar: “considerando uma função preventiva ou disuasora (deterrence), o agente deve pagar o montante que a vítima estaria disposta a pagar para evitar o risco gerado pelas ações do lesante, comprando alarmes de incêndio ou Volvos, dividida por esse risco”.
[26] Cfr. BMJ 357, 399.
[27] Cf. Ac. do STJ já citado de 31/01/2012.