JUNÇÃO DE DOCUMENTO EM SEDE DE RECURSO
DECISÃO SURPRESA
FALTA DE CONTRADITÓRIO
PENHORA DE IMÓVEIS
CLÁUSULA GERAL DE PROPORCIONALIDADE E ADEQUAÇÃO
CRÉDITOS DE TERCEIROS COM GARANTIA REAL
Sumário

I – A previsão do art. 425º do CPC tem como âmbito a apresentação de documento que, ainda que já existente, não tivesse sido possível a sua junção até ao encerramento da discussão ou até a apresentação de documento de formação posterior a tal momento, e sempre para prova de factos já ocorridos e alegados na ação ou incidente em causa, mas não o documento que, embora posteriormente formado, prove um facto não alegado e, ele próprio, de ocorrência posterior.
II – A decisão surpresa, que o nº3 do art. 3º do CPC não permite, é a que pode resultar de falta de contraditório no plano dos factos principais da causa (oportunidade de contrariar todos os factos alegados pela parte contrária a título de causa de pedir ou como fundamento de exceção), no plano da prova (oportunidade de pronúncia sobre todos os meios probatórios potencialmente relevantes) ou no plano das questões de direito, visando-se neste último as questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado.
III – Tendo-se o tribunal servido de factos e de meios probatórios sobre os quais as partes tiverem oportunidade de se pronunciar e não tendo ocorrido o conhecimento oficioso de qualquer questão jurídica que as partes não tenham suscitado, mas sim, e apenas, e com a leitura jurídica que se entendeu fazer, o conhecimento da questão posta no incidente, não houve quebra de contraditório sob o prisma de qualquer dos planos anteriormente referidos e, como tal, a decisão proferida não integra, sob o prisma da previsão do art. 3º nº3 do CPC, uma decisão surpresa.
IV – A penhora de bens, neles se incluindo os imóveis, deve, conforme previsões dos arts. 735º nº3 e 751º nºs 1 a 3 do CPC, respeitar a cláusula geral de proporcionalidade e adequação;
V – A apreensão de bens terá em conta o montante da dívida exequenda e o das despesas previsíveis da execução, a eles se devendo adequar, tanto quanto possível, o valor pecuniário estimado como realizável com a alienação dos bens a apreender.
VI – O valor dos créditos de terceiros com garantia real sobre os bens apreendidos é indiretamente considerado neste cálculo, na medida em que sejam conhecidos: uma vez que a existência das garantias diminui o valor do bem para o efeito da realização do direito do exequente, o princípio da adequação leva a que, na altura da penhora, se tenham em conta, na estimativa do produto da venda dos bens, aqueles que devam ser satisfeitos antes do exequente.

Texto Integral

Processo: 19464/23.8T8PRT-B.P1

Relator: António Mendes Coelho

1º Adjunto: José Nuno Duarte

2º Adjunto: Teresa Pinto da Silva

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório

Na execução ordinária para pagamento de quantia certa instaurada por Banco 1... S.A. contra A..., Lda., AA e BB, que corre termos no Juízo de Execução do Porto sob o nº19464/23.8T8PRT, vieram os executados deduzir oposição à penhora sobre dois imóveis ali efetuada, defendendo que tal penhora deve permanecer unicamente em relação ao imóvel sito na Rua ..., na ..., ..., da Freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz urbana sob o art. ... com o valor patrimonial tributário de 223.340, 00 euros.

Alegaram para tal que “os valores patrimoniais dos referidos bens imóveis penhorados à ordem dos presentes autos superam largamente a dívida exequenda” e, relativamente ao imóvel cuja penhora defendem dever permanecer, que “o respetivo valor de mercado, e, bem assim, do valor patrimonial tributário, é suficiente para garantir o crédito da Exequente”.

A exequente deduziu contestação, pugnando pela improcedência da oposição.

De seguida, a 8/11/2024, foi proferida decisão que julgou improcedente a oposição deduzida pelos executados.

De tal decisão vieram os executados interpor recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

a) Tem o presente recurso por objeto a sentença que veio julgar improcedente a oposição à penhora deduzida pelos ora Recorrentes, na qual vieram alegar a excessividade da penhora incidente sobre dois bens imóveis, uma vez que o valor obtenível da venda de apenas um deles, à luz do seu valor patrimonial tributário, ser suficiente para garantir o pagamento da dívida exequenda nos presentes autos.

b) Os Recorrentes não se conformam com a decisão ou com a fundamentação que a veio sustentar, entendendo, salvo o devido respeito, que o douto Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento na aplicação do direito tendente à boa decisão da causa e justa composição do litígio;

c) Pelo que o presente recurso versa sobre a respetiva matéria de direito, concretamente sobre a interpretação efetuada pelo douto Tribunal a quo das normas previstas nos arts. 735.º, n.º 3 e art. 751.º, n.º 3 do Código de Processo Civil;

d) No âmbito da presente execução encontram-se penhorados os seguintes bens imóveis:

− Prédio urbano consubstanciado numa moradia com quatro pisos, T3, destinada habitação denominada pelo loto 47 sita na Rua ..., na ... ..., da Freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... e inscrita na matriz, urbana sob o art. ..., com o valor patrimonial tributário de €223.340,00 (duzentos e vinte e três mil e quarenta euros);

− Prédio urbano consubstanciado numa fração autónoma designada pela letra B, destinada a habitação, correspondente ao 1.º andar, T3, com garagem; nas traseiras com 30m2, que faz parte do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sita na Rua ..., ..., 1.º, ..., da freguesia ..., concelho de Valongo, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...-B, e inscrita na matriz urbana sob o art. ...-B, com o valor patrimonial tributário de €75.881,40 (setenta e cinco mil oitocentos e oitenta e um euros e quarenta cêntimos).

e) Quanto ao imóvel sito em ..., encontra-se registada a hipoteca voluntária sob a AP. ... de 2021/09/07, pelo capital de € 476.000,00 e o montante máximo assegurado de €637.840,00, bem como duas penhoras, sob a AP. ... de 2024/03/26, pela quantia exequenda de € 130.891,87 e respeitante ao proc. ..., a correr os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Execução do Porto - Juiz 6, e sob a AP. ... de 2024/06/28, pela quantia exequenda de € 77.502,64, respeitante aos presentes autos principais;

f) Quanto ao imóvel sito em ... encontram-se registadas as hipotecas voluntárias sob a AP. ... de 2002/09/05, pelo capital de € 94.771,60 e o montante máximo assegurado de € 124.491,96, sob a AP. ... de 2002/09/05, pelo capital de € 17.228,40 e o montante máximo assegurado de € 22.624,51, bem como as penhoras sob a AP. ... de 2011/05/23, pela quantia exequenda de € 11.763,39, sob a AP. ... de 2024/03/26, pela quantia exequenda de € 130.891,87 e respeitante ao proc. ..., a correr os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Execução do Porto - Juiz 6, e sob a AP. ... de 2024/06/28, pela quantia exequenda de € 77.502,64, respeitante aos presentes autos principais;

g) Face à penhora dos dois imóveis supra referidos na presente execução, vieram os ora Recorrentes peticionar a redução da penhora ao imóvel sito em ..., em virtude de o valor patrimonial do mesmo superar largamente a dívida exequenda;

h) Na sua fundamentação, veio o douto Tribunal a quo considerar que a excessividade de penhora alegada pelos ora Recorrentes carecia de fundamento, sem mais, e desde logo, “(…) pelo simples facto de somando todos os valores dos encargos registados sobre os bens penhorados e os prédios pelos respetivos valores tributários (223.340,00 e 75.881, 40 Euros respetivamente) = 302 280,04 €, o valor destes bens é três vezes menor que o valor dos encargos.”

i) Tal apreciação, com o foco exclusivo nos encargos registados e no valor tributário dos bens, vem desconsiderar por completo o valor de mercado dos imóveis penhorados, concretamente o sito em ...;

j) Com relevância para a questão sub judice, caberá considerar as execuções que se encontram atualmente pendentes com penhoras registadas sobre os referidos imóveis:

− AP. ... de 2024/03/26, pela quantia exequenda de €130.891,87, sendo as despesas previsíveis de execução correspondentes a cerca de €6.544, 60, totalizando, o valor de €137.436,7;

− AP. ... de 2024/06/28, pela quantia exequenda de €77.502,64, sendo as despesas previsíveis de execução correspondentes a cerca de €7.750, 26, totalizando o valor de €85.252,9;

− AP. ... de 2011/05/23, pela quantia exequenda: de € 11.763,39, sendo as despesas previsíveis de execução correspondentes a cerca de €1.176,34, totalizando o valor de €12.939,73;

k) Ainda que em sede abstrata de apreciação da proporcionalidade da penhora, os encargos registados não se traduzem, necessariamente, no valor atual em dívida ou a sua efetividade futura por credor reclamante no seu montante máximo, nem o valor patrimonial tributário dos imóveis representa, fielmente, o valor obtenível em venda judicial;

l) A penhora de ambos os imóveis, com base apenas nos valores apresentados pelo douto Tribunal a quo, configura uma penhora excessiva e desproporcional, desde logo por perante os indícios existentes nos autos se verificar uma liquidez indiciária quanto à penhora do imóvel sito em ... face à dívida exequenda (€223.340,00 de valor patrimonial tributário do imóvel, face a €222.689,60 de dívida exequenda);

m) Sendo que os encargos registados quanto ao imóvel sito em ... são alheios, na sua consideração objetiva, à liquidez indiciária do imóvel sito em ... no respeitante aos presentes autos, reportando-se a uma dívida exequenda que facilmente seria satisfeita pela venda do imóvel pelo seu valor patrimonial tributário;

n) A consideração efetuada pelo douto Tribunal a quo, em sede de avaliação da proporcionalidade da penhora, de valores referência de dívida exequenda como correspondendo, em abstrato, ao montante máximo assegurado da respetiva hipoteca, desconsiderando por completo o lapso de tempo decorrido desde a constituição da hipoteca, a situação concreta de cumprimento/incumprimento dos Executados, desde logo pelo credor ser distinto do Exequente, viola o princípio legal da proporcionalidade da penhora, lesando os legítimos interesses dos Executados;

o) Pelo que à luz do critério de proporcionalidade da penhora, deveria a mesma ter sido reduzida, permanecendo unicamente quanto ao imóvel sito em ...;

p) Na sequência do decidido pelo douto Tribunal a quo, de forma contrária e inesperada face ao peticionado, vieram os Recorrentes obter avaliação quanto ao imóvel sito em ...;

q) Sendo a sua junção, enquanto documento subjetivamente superveniente, admitida nos presentes autos, segundo entendimento jurisprudencial e ao abrigo do disposto no art. 651.º, n.º 1 do Código de Processo Civil;

r) Desde logo, os Recorrentes peticionaram a sua oposição com base nos valores objetivos de que tinham conhecimento e sobre os quais seria expectável que a decisão do douto Tribunal a quo incidisse: o valor patrimonial do mesmo face à dívida exequenda, sendo que sendo que aos Recorrentes não foi ainda concedida a oportunidade de se pronunciar quanto à questão da consideração de todos os encargos registados sobre os imóveis, o que constitui uma decisão surpresa.

s) Documento que, para os devidos e legais efeitos, deverá ser considerado no seu teor, mormente no valor de mercado atual que lhe veio atribuir: €864.000, valor idóneo a suportar a dívida exequenda, bem como todos os respetivos encargos;

t) Pelo que, ainda que se considerasse para efeito da proporcionalidade da penhora todos os encargos registados sobre os bens penhorados, o que apenas por mera hipótese académica se admite, vem o presente documento demonstrar que o valor de mercado atual do imóvel sito em ... é idóneo a suportar os encargos, ainda que nessa extensão, o que, na presente sede, deverá relevar.

Com as suas alegações, os executados juntaram um documento constituído por um “Relatório de avaliação” do imóvel situado na Rua ..., ..., Vila Nova de Gaia, composto ao todo por 38 páginas, e no qual, sob o seu ponto 9, se atribui a tal imóvel o valor de €864.000 (oitocentos e sessenta e quatro mil euros), datado de 11 de dezembro de 2024.

A exequente apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.

Foram dispensados os vistos ao abrigo do art. 657º nº4 do CPC.

Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), são as seguintes as questões a tratar:

a) – da admissão do documento junto pelos recorrentes com as alegações de recurso (integrado pelo relatório de avaliação do imóvel nele referido);

b) – da excessividade da penhora efetuada sobre os dois imóveis.


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II – Fundamentação

É a seguinte a matéria de facto assente referida na decisão recorrida, a qual não se mostra impugnada no recurso (corrige-se apenas o seu nº6 quando, logo no seu início, se remete para o “prédio descrito em 4º”, pois resulta claro que tal remissão pretende ser feita para o anterior ponto 5, o que se faz ao abrigo dos arts. 663º nº 2 e 607º nº4 do CPC):

1. A execução de que estes autos dependem, em que a exequente exige o pagamento da quantia de 77 502,64 €, teve início em 07-11-2023, com base na livrança junta aos autos principais.

2. No âmbito da presente execução foi penhorado, no dia 2024/06/28 o prédio urbano composto por uma moradia com quatro pisos, T3, destinada a habitação, denominada pelo lote ... sita na Rua ..., na ... ..., da Freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... e inscrita na matriz, urbana sob o art.º ..., com o valor patrimonial tributário de 223.340, 00 Euros (duzentos e vinte e três mil trezentos e quarenta euros).

3. Sobre o referido imóvel está registada uma hipoteca voluntária que garante o montante de 637.840,00 Euros, a favor do Banco 2..., S.A e constituída pelos opoentes, mediante a AP. ... de 2021/09/07.

4. Está também registada uma penhora à ordem do processo de execução n.º ..., a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Porto – Juízo de Execução – Juiz 6, mediante a AP. ... de 2024/03/26, garantindo o montante de 130.891,87 Euros.

5. Também foi penhorado no dia 2024/06/28 o prédio urbano composto de fração autónoma designada pela letra B, destinada a habitação, correspondente ao 1.º andar, T3, com garagem «BA»; nas traseiras com 30m2, que faz parte do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sita na Rua ..., ..., 1.º, ..., da freguesia ..., concelho de Valongo, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... - B, e inscrita na matriz urbana sob o art.º. ... -B, com o valor patrimonial tributário de 75.881, 40 Euros (setenta e cinco mil oitocentos e oitenta e um euros e quarenta cêntimos).

6. Sobre o prédio descrito em 5 encontram - se registados, para além da penhora dos autos (AP. ... de 2024/06/28) os seguintes ónus e encargos: hipoteca voluntária a favor do Banco 3..., S.A, garantindo o montante de 124.491,96 Euros (AP. ... de 2002/09/05); hipoteca voluntária a favor do Banco 3..., S.A, garantindo o montante de 22.624,51 Euros (AP. ... de 2002/09/05); penhora a favor do Banco 4..., S.A. AP. ... de 2024/03/28, garantindo 130.891,87 Euros.

7. No dia 12-07-2024 a Sr.ª Agente de Execução decidiu: «Ao abrigo do disposto no nº 1 do art. 794º do C.P.C. susto a execução quanto a estes bens, podendo o exequente reclamar o seu crédito no processo onde a penhora é mais antiga.


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Vamos à questão enunciada sob a alínea a).

Com as suas alegações de recurso, os recorrentes juntaram o documento que supra se referiu: relatório de avaliação do imóvel penhorado e identificado sob o nº2 do elenco de factualidade que antecede, datado de 11 de dezembro de 2024.

Invocaram para tal o disposto no art. 651º nº1 do CPC, defendendo que “face ao decidido pelo Tribunal a quo, e sendo que aos Recorrentes não foi concedida a oportunidade de se pronunciar quanto à questão da consideração de todos os encargos registados sobre os imóveis, tal constitui para si uma decisão surpresa, o que motiva e legitima a presente junção de novo documento”, documento esse que, por referência àquele imóvel, “deverá ser considerado no seu teor, mormente no valor de mercado atual que lhe veio atribuir: €864.000”.

Note-se que o documento em causa foi elaborado posteriormente à decisão sob recurso (esta foi proferida a 8/11/2024 e o documento mostra-se datado de 11/12/2024) e, como os próprios recorrentes reconhecem, é relativo a avaliação por eles exclusivamente mandada efetuar também já após a prolação daquela decisão [conforme conclusão p) do recurso].

Analisemos.

Prevê-se no artigo 425º do CPC que “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.”.

Por sua vez, prevê-se no nº 1 do artigo 651º do Código de Processo Civil que “As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.”.

Cumpre, desde logo, fazer notar que a previsão do art. 425º do CPC tem como âmbito a apresentação de documento que, ainda que já existente, não tivesse sido possível a sua junção até ao encerramento da discussão ou até a apresentação de documento de formação posterior a tal momento, e sempre para prova de factos já ocorridos e alegados na ação ou incidente em causa, “mas não o documento que, embora posteriormente formado, prove um facto não alegado e, ele próprio, de ocorrência posterior[1].

No caso, a avaliação do imóvel no valor referenciado pelos recorrentes não foi alegada na sua oposição à penhora nem pelos mesmos foi requerida a realização no âmbito dos autos de uma qualquer perícia de avaliação quanto ao mesmo (apenas se referem, no artigo 10º da petição do incidente, de forma vaga, ao “respetivo valor de mercado”, mas nada concretizam quanto a ele nem nada requerem no sentido de um seu qualquer apuramento).

Isto é, o documento em causa é de formação posterior e é apresentado para prova de um facto não alegado (a avaliação do bem em determinado valor), sendo esse próprio facto (a referida avaliação) de ocorrência posterior.

Assim sendo, não tem cabimento a junção de tal documento ao abrigo do art. 425º do CPC.

Vejamos agora se a junção de tal documento tem cabimento por via da previsão da segunda parte do nº1 do art. 651º do CPC.

Nesta sede, a junção de documentos pode tornar-se necessária em virtude da decisão da primeira instância se esta, nomeadamente, “se basear em factos de que o tribunal conheça oficiosamente, nos termos do art. 5-2 (não, evidentemente, em factos que hajam sido sujeitos a prova), em meio probatório produzido ao abrigo do princípio do inquisitório (art. 411), ou em solução jurídica com que razoavelmente as partes não contavam, com violação do art.3-3 e assim se constituindo uma decisão-surpresa[2].

Os recorrentes, invocando aquele nº1 do art. 651º, defendem, como acima referimos, que não lhes foi concedida “a oportunidade de se pronunciar quanto à questão da consideração de todos os encargos registados sobre os imóveis e tal [a consideração de todos os encargos registados tida em conta da decisão recorrida] constitui para si uma decisão surpresa.

Vejamos.

Considerando o incidente de oposição à penhora deduzido, a solução jurídica perfilhada é uma das duas possíveis com que os executados, ora recorrentes, não podiam deixar de contar: o levantamento da penhora quanto ao imóvel identificado sob o nº5 do elenco factual acima referido ou o não levantamento de tal penhora.

O tribunal enveredou por esta última e, no caminho para tal decisão, mais não fez do que se servir dos dados que já constavam dos autos quanto a cada um dos imóveis penhorados: no caso, a informação documental sobre cada um deles (conforme auto de penhora, certidões da Conservatória e Cadernetas prediais juntas aos autos a 12/7/2024), da qual consta, designadamente, o valor patrimonial, as hipotecas de terceiros sobre eles registadas, os montantes de créditos que estas asseguram e também as penhoras que, além da dos autos, já sobre eles existem e valores dos créditos que as baseiam.

Todos aqueles dados constavam dos autos aquando da decisão e de toda a documentação a eles atinentes foram ambas as partes (exequente e executados) notificadas em 12/7/2024, como se vê dos autos de execução.

Como tal, a interpretação jurídica que o tribunal fez daqueles dados constantes dos autos, porque já existentes aquando da decisão e porque sobre eles as partes se puderam pronunciar, não se pode considerar como integrante de decisão surpresa.

A decisão surpresa, que o nº3 do art. 3º do CPC não permite, é a que pode resultar de falta de contraditório no plano dos factos principais da causa (oportunidade de contrariar todos os factos alegados pela parte contrária a título de causa de pedir ou como fundamento de exceção), no plano da prova (oportunidade de pronúncia sobre todos os meios probatórios potencialmente relevantes) ou no plano das questões de direito, visando-se neste último as questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado[3].

No caso dos autos, além de, como já se fez notar, o tribunal se ter servido de factos e de meios probatórios sobre os quais as partes tiverem oportunidade de se pronunciar, não ocorreu o conhecimento oficioso de qualquer questão jurídica que as partes não tenham suscitado, mas sim, e apenas, e com a leitura jurídica que se entendeu fazer (note-se que, como previsto no nº3 do art. 5º do CPC, “O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regaras de direito”), o conhecimento da questão posta no incidente.

Deste modo, não houve quebra de contraditório sob o prisma de qualquer dos planos anteriormente referidos e, como tal, a decisão proferida não integra uma qualquer decisão surpresa. Pode ser uma surpresa para os executados a consideração dos encargos existentes sobre cada um dos prédios para se avaliar sobre a excessividade da penhora, mas isso não transforma a decisão numa decisão surpresa sob o prisma da previsão do art. 3º nº3 do CPC.

Assim, também por via da previsão da segunda parte do nº1 do art. 651º do CPC não é de admitir o documento em causa.

Na sequência de tudo quanto se veio de expor, há que concluir pela não admissão da junção do documento em referência aos autos, ordenando-se o seu desentranhamento, sendo as custas do incidente de desentranhamento da responsabilidade dos recorrentes.


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Passemos à segunda questão enunciada.

No âmbito desta, cumpre desde logo precisar que a avaliação do prédio e valor nela considerado de 864.000 euros que os recorrentes referem no recurso [conclusões p) e s)] – e para cuja prova juntaram o documento analisado na questão anterior – não pode ser tida em conta nesta sede.

Além de, como se viu, ter sido indeferida a junção de tal documento – único contributo documental passível de sustentar aquele valor –, essa avaliação foi efetuada depois de proferida a decisão sob recurso e foi exclusivamente mandada efetuar pelos recorrentes.

Como se preceitua no art. 415º nº1 do CPC, “[s]alvo disposição legal em contrário (que no caso não se vislumbra), não são admitidas nem produzidas provas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas”, e, nos termos do nº2, “[q]uanto às provas constituendas – que seria o caso da diligência de avaliação levada a cabo pelos recorrentes (pois são constituendas as provas “que se formam só depois de nascida em juízo a necessidade de demonstrar a realidade do facto”[4]) -, “a parte é notificada, quando não for revel, para todos os atos de preparação e produção da prova, e é admitida a intervir nesses atos nos termos da lei”.

Ora, a referida diligência de avaliação foi da livre iniciativa dos recorrentes e teve lugar até já depois de proferida a decisão sob recurso. Portanto, sem nada ter sido requerido ao tribunal em tal sentido, do que resulta não ter sido acautelado qualquer contraditório quer sobre a pertinência/utilidade daquela avaliação quer sobre o próprio desenrolar da mesma.

Como tal, como se prevê naquele nº1 do art. 415º e já acima se adiantou, não pode aquela avaliação do prédio e valor nela considerado ser objeto de ponderação no âmbito da questão em apreço.

Tal questão deverá, pois, como o foi pelo tribunal de primeira instância, ser analisada com base nos dados existentes nos autos aquando da decisão recorrida.

Na decisão recorrida, concluiu-se pela falta de fundamento para a excessividade de penhora invocada pelos executados equacionando-se a mesma nos seguintes termos: somando todos os valores dos encargos registados sobre os dois imóveis penhorados, por um lado, e somando os valores tributários destes mesmos prédios (223.340,00 e 75.881,40 euros, num total de 302 280,04 €), por outro, considerou-se ali que o valor destes bens é três vezes menor que o valor dos encargos.

Efetivamente, assim é: considerando os valores de encargos atinentes ao prédio identificado em 2, de 637.840,00 euros (como montante máximo de crédito a garantir pela hipoteca que sobre ele tem o Banco 2... – vide certidão registral junta aos autos de execução a 12/7/2024) e de 130.891,87 euros (crédito a assegurar por penhora anterior), e os encargos atinentes ao prédio identificado em 5, de 124.491,96 euros (crédito de tal montante a garantir pela hipoteca que sobre ele tem o Banco 3..., S.A) e de 130.891,87 euros (crédito a assegurar por penhora anterior a favor do Banco 4..., S.A.), chega-se à conclusão que a soma global de tais encargos (nela se considerando a quantia de 130.891,87 euros só uma vez, pois este crédito é só um, ainda que com penhora sobre cada um dos prédios – como se vê das certidões juntas aos autos de execução a 12/7/2024) é de 893.223,83 euros, a qual é quase o triplo daquela quantia de 302 280,04 €, correspondente ao valor patrimonial tributário de ambos os prédios.

A penhora de bens, neles se incluindo os imóveis, deve, conforme previsões dos arts. 735º nº3 e 751º nºs 1 a 3 do CPC, respeitar a cláusula geral de proporcionalidade e adequação e, nesta sede, como refere José Lebre de Freitas, “a apreensão terá em conta o montante da dívida exequenda e o das despesas previsíveis da execução, a eles se devendo adequar, tanto quanto possível, o valor pecuniário estimado como realizável com a alienação dos bens a apreender[5], sendo que “[o] valor dos créditos de terceiros com garantia real sobre os bens apreendidos é indiretamente considerado neste cálculo, na medida em que sejam conhecidos: uma vez que a existência das garantias diminui o valor do bem para o efeito da realização do direito do exequente, o princípio da adequação leva a que, na altura da penhora, se tenham em conta, na estimativa do produto da venda dos bens, aqueles que devam ser satisfeitos antes do exequente[6] (o sublinhado é nosso).

Como se vê, e em contrário da “surpresa” dos executados quanto a tal, a consideração dos encargos existentes sobre cada um dos prédios – nomeadamente se integrados por garantia real a favor de créditos de terceiros anteriores à penhora efetuada nos autos – é decisiva para se avaliar sobre a proporcionalidade e adequação da penhora [neste sentido, entre outros, vide o Acórdão da Relação de Lisboa de 28/3/2023 (proc. nº17330/15.0T8LRS-C.L1-7) e o Acórdão da Relação de Évora de 10/10/2024 (proc. nº1154/18.5T8MMN-B.E1), ambos disponíveis em www.dgsi.pt].

No caso dos autos, como decorre dos nºs 2, 3, 4, 5 e 6 do elenco de factualidade da decisão recorrida que acima se transcreveu, o valor patrimonial tributário dos prédios ascende ao referido valor total de 302 280,04 €, sendo que antes do crédito da exequente (no montante de 77.502,64 €, acrescido de juros nos termos peticionados no requerimento executivo) e, portanto, a pagar antes dele em caso de venda executiva de tais bens, estão créditos garantidos por hipoteca e por penhora que podem ascender àquele montante global também já referido de 893.223,83 euros.

Como tal, e em conformidade com a decisão recorrida, não se pode concluir que a penhora dos dois imóveis é excessiva.

Por tudo quanto se expôs, há que julgar improcedente o recurso e manter a decisão recorrida.

As custas do recurso ficam a cargo dos recorrentes, que nele decaíram (art. 527º nºs 1 e 2 do CPC).


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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):

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III – Decisão

Pelo exposto, acorda-se no seguinte:

- em não admitir a junção aos autos do documento oferecido pelos recorrentes com o seu recurso, ordenando-se o seu desentranhamento;

- em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas do recurso e do incidente de desentranhamento dos documentos pelos recorrentes.


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Porto, 27/10/2025
Mendes Coelho
José Nuno Duarte
Teresa Pinto da Silva
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[1] Neste sentido, vide José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, volume 2º, 4ª edição, Almedina, 2019, pág. 243, anotação 2 ao art. 425º, de onde se extraiu a asserção transcrita.
[2] Citamos José Lebre de Freitas, Isabel Alexandre e Armindo Ribeiro Mendes, “Código de Processo Civil Anotado”, volume 3º, 3ª edição, Almedina, 2022, pág. 141, anotação 3 ao art. 651º.
[3] Neste sentido, vide José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, volume 1º, 4ª edição, Almedina, 2018, págs. 29 a 32, anotações 6, 7 e 8 ao art.3º.
[4] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 441.
[5] “A Ação Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013”, 7ª edição, Gestlegal, 2017, pág. 278.
[6] Vide nota que sob o nº 2 consta a págs. 278 da obra referida na nota anterior.