I - Os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de se reconduzir, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de enumeração taxativa.
II - Como se tem afirmado, em jurisprudência uniforme, o STJ apenas tem de verificar (a) se a prisão, em que o peticionário (ou aquele em cujo beneficio tenha sido peticionado o habeas) atualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível, proferida por autoridade judiciária competente, (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e (c) se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial.
III - Constitui jurisprudência constante do STJ o entendimento de que, para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva previsto no artigo 215.º, n.º 1, al. a), do CPP (alargado que seja em função dos números 2 e 3), é relevante a data de dedução da acusação e não a notificação desta ao arguido, o que não corresponde a qualquer interpretação normativa inconstitucional.
I – RELATÓRIO
1. AA, com os restantes sinais dos autos, veio, através do seu advogado, com invocação do disposto nos artigos 222.º e 223.º, do Código de Processo Penal, apresentar petição de habeas corpus, nos termos e com os fundamentos que se transcrevem:
«1.º Em sede de Primeiro Interrogatório Judicial de Arguida Detida, no pretérito dia 14/03/2025, foi determinada a aplicação à ora Arguida da medida de coação mais severa, de Prisão Preventiva, prevista no artigo 202º do CPP, por existirem indícios de a mesmo ter praticado crime.
2.º A arguida invoca a presente providência de Habeas Corpus, por forma a ver tutelado o seu direito à liberdade individual ambulatória, que deve ser interpretado como um direito fundamental do cidadão e da sua própria dignidade como pessoa humana, tanto é que o referido instrumento é também proclamado em diversas legislações internacionais.
3.º A Declaração Universal dos Direitos Humanos assegura expressamente que ninguém pode ser arbitrariamente detido, razão pela qual não pode, igualmente, ser mantida a privação da liberdade com base em uma ordem de prisão ilegal, que desrespeite o devido processo legal, tampouco é admitido protelar a prisão para além de seus prazos máximos.
4.º O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos assegura especificamente que todo o indivíduo tem direito à liberdade pessoal, pelo que segue terminantemente proibida a detenção ou prisão arbitrárias, o que só poderia ser mitigado se fundamentado por lei e desde que respeitados os procedimentos legalmente estabelecidos.
5.º No mesmo sentido, é assegurado o direito a recorrer a um Tribunal a toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção, a fim de que este se pronuncie, com a maior brevidade, sobre a legalidade da sua prisão e em caso de prisão ilegal, deve ordenar a sua liberdade.
6.º A Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais resguarda ainda que toda a pessoa tem direito à liberdade, pelo que ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo se for preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente e desde que tal prisão seja determinada de acordo com o procedimento legal.
7.º Já a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 27º, n.º 1, reconhece e garante os direitos à liberdade individual, à liberdade física e à liberdade de movimentos e, expressamente, consagra no artigo 31º, que a providência do Habeas Corpus como sendo uma garantia extraordinária, expedita e privilegiada contra a prisão arbitrária ou ilegal, deve ser decidida no prazo de 08 (oito) dias.
8.º Quanto à competência para decidir sobre a providência liberatória em referência, não pairam dúvidas de que tal incumbência recai ao STJ, conforme entendimento que decorre do disposto no artigo 222º do CPP.
9.º Nesse sentido, a arguida reivindica através deste remédio excepcional a intervenção do poder judicial para imediatamente fazer cessar as ofensas ao seu direito de liberdade, eis que a manutenção da prisão é ilegal e reveste-se de notórios abusos de autoridade, razão pela qual pretende ver restituída a sua liberdade, pois encontra-se ilegalmente privada da sua liberdade física.
10.º Sucede que o disposto no artigo 215º, n.º 1, al. a) e o n.º 2 do CPP determina que a medida de coação de prisão preventiva torna-se ilegal quando não tenha sido proferido um Despacho de Acusação, até o limite do prazo máximo de 06 (seis) meses.
11.º Sucede que a arguida completou os seis meses de prisão preventiva no dia 15/09/2025, motivo pelo qual deve ser libertada na referida data, em decorrência do excesso do prazo da prisão preventiva.
12.º Ninguém pode se manter privado da sua liberdade fora das hipóteses legais e, restando evidente que a medida de prisão preventiva não pode durar mais do que 06 meses sem que tenha sido deduzida uma Acusação, resta evidente que a prisão preventiva tornou-se ilegal, designadamente por excesso de prazo.
13.º Após o decurso do prazo de 06 meses de prisão preventiva sem que o Ministério Público tenha deduzido um Despacho de Acusação, a verdade é que a arguida não pode permanecer por mais tempo privada da liberdade.
14.º A requerente da presente providência de Habeas Corpus vai continuar a ser arguida nos presentes autos, terá que se sujeitar à realização de um julgamento perante um Tribunal Coletivo, e, assegura que permanecerá totalmente à disposição das Autoridades Judiciais.
15.º A arguida está disponível para cumprir outras medidas de coação, inclusive apresentações periódicas na esquadra da zona de residência, entrega de passaporte, caso seja detentora de tal documento, assim como qualquer outra medida de coação, desde que não privativa da liberdade.
16.º Tendo sido extrapolado o prazo máximo da prisão preventiva e estando excedido o limite legalmente instituído de 06 meses, a arguida apresenta o presente Habeas Corpus e requer seja determinada a sua libertação imediata.
17.º O prazo máximo de vigência da Prisão Preventiva acabou por ter atingido o seu prazo limite de duração e não pode ser mantida a prisão para além dos prazos legalmente estipulados.
18.º A prisão preventiva acabou por atingir o seu prazo máximo de duração e já extrapolou o limite de 06 (seis) meses, desde a sua determinação, mas, a realidade é que ainda não foi proferida Acusação.
19.º Logo, o prazo máximo da prisão preventiva, nos presentes autos, acabou por ser ultrapassado, estando totalmente excedido o prazo desde o dia 15/09/2025, situação que determina a imediata conclusão de que a medida de coação torna-se ilegal, por excesso de prazo, motivo pelo qual a arguida deve ser imediatamente libertada.
20.º Nesse sentido, deve incidir o disposto no artigo 222º do CPP, nos termos devidamente transcritos abaixo:
“l - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.
2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida/ em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:
a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”
21.º Não é à toa que o Código de Processo Penal consagra prazos para a prática de actos, ainda mais quando se está em causa a manutenção de uma medida de coação tão severa como a Prisão Preventiva.
22.º De igual modo, a fixação de um prazo máximo para reexame dos pressupostos da medida de coação de prisão preventiva não foi estabelecida pela Lei para ser um mero prazo impróprio ou de cumprimento desnecessário.
23.º Para ser mantida a Prisão Preventiva, é indispensável que sejam observadas as necessidades cautelares, desde que justificadas e motivadas, mas, que jamais excedam o prazo máximo legalmente previsto.
24.º A arguida reitera que está disponível para cumprir religiosamente quaisquer outras medidas de coação não privativas da sua liberdade, estando à disposição para cumprir o determinado pelo Tribunal.
25.º Enquanto aguardar o desfecho do processo, a arguida sinaliza que pretende trabalhar dignamente.
26.º Considerando que o prazo máximo da prisão preventiva resta ultrapassado no dia 15/09/2025, concluímos que a manutenção da prisão do arguido no Estabelecimento Prisional de Tires, representa um atentado ilegítimo à sua liberdade individual, é ilegal e inconstitucional, na forma do Artigo 222º nº 2 alínea c) do CPP.
27.º Para além disso, invocamos os dispositivos constitucionais pertinentes à matéria, designadamente os artigos 2º; 20º, nº 4; 27º, nº 2; 28º, nº 4; 32º; 202º e 204º, da Constituição da República Portuguesa, tudo para dizer que a arguida não pode ser mantida privada da sua liberdade quando tenha esgotado os prazos estabelecidos por lei, sendo certo que deve sempre vigorar o princípio da presunção de inocência.
CONCLUSÃO:
Diante do exposto, resta configurada a ilegalidade da manutenção da Prisão Preventiva da arguida, pois o prazo máximo da prisão preventiva é de 06 (seis) meses para que seja proferido um Despacho de Acusação, restando evidente a impossibilidade de manutenção da prisão preventiva para além do dia 15/09/2025.
Portanto, a arguida requer à Vossas Excelências, o deferimento do pedido de Habeas Corpus, e em consequência, deverá ser ordenada a sua imediata libertação, a contar do dia 15/09/2025, isso porque o prazo legalmente previsto no artigo 215º, n.º 1, al. a) e o n.º 2 do CPP, foi ultrapassado, sendo certo que a arguida permanece disponível para cumprir outras medidas de coação não privativas da sua liberdade, caso o Tribunal considere pertinente a sua aplicação.
Por fim, a arguida requer o provimento do presente Habeas Corpus ea emissão do mandado de libertação imediata, a partir do dia 15/09/2025.»
2. Foi prestada a informação referida no artigo 223.º, n.º1, parte final, do Código de Processo Penal (doravante, CPP), nos termos que, seguidamente, se transcrevem:
«Veio a Arguida AA apresentar pedido de habeas corpus, para efeito da sua libertação imediata, por considerar que o prazo máximo de aplicação da medida de coação se completou em 15/09/2025.
Cumpre realizar a informação a que alude o nº 1 do artigo 223º do Código de Processo Penal, dirigida ao Exmo. Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, como segue:
A Arguida foi detida em 13/03/2025 (fls. 92) e presente a primeiro interrogatório judicial no dia 14/03/2025 – artigos 141º e 254º, nº 1, a) do Código de Processo Penal.
Nessa sede e data, foi considerada fortemente indiciada factualidade suscetível de consubstanciar a prática, pela Arguida, de um crime homicídio qualificado sob a forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, 23º, 131º, 132º, nºs 1 e 2, al. e) e i), do Código Penal.
À Arguida foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva (fls. 100 a 111) – artigo 202º do Código de Processo Penal.
Quanto ao reexame trimestral dos pressupostos da medida de coação previsto no artigo 213º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal, a mesma foi revista e mantida em 12/06/2025 (fls. 196) e em 10/09/2025 (ref.ª citius nº .......31).
Foi deduzida acusação contra a Arguida em 12/09/2025 (fls. 226 a 229), tendo-lhe sido imputada a prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime homicídio qualificado sob a forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), do Código Penal.
Foi novamente revista e mantida a medida de coação no dia de hoje, 16/09/2025 (fls. 230 e 231), nos termos do artigo 213º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal.
No que tange ao prazo de duração máxima da medida de coação em apreço, prevê o artigo 215º, nºs 1 e 8 do Código de Processo Penal que a medida se extingue quando, desde o seu início, tiverem decorrido “a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação; b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória; c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância; d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.”
Contudo, o nº 2 do citado preceito prescreve que os prazos referidos no número anterior são elevados, respetivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, ou por algum dos crimes ali previstos.
Ora, para além da moldura penal abstratamente aplicável ao ilícito imputado à Arguida o mesmo integra o conceito de “criminalidade especialmente violenta”, tal como previsto no artigo 1º, al. l) do Código de Processo Penal, aplicando-se assim esta elevação de prazos máximos de duração da medida de coação.
Deste modo e salvo melhor apreciação, quando, em 12/09/2025, foi deduzida Acusação, o prazo máximo de 6 meses de duração da medida de coação, ainda não se encontrava esgotado, assim se passando a considerar o prazo máximo seguinte, tal como previsto nas als. b) ou c) do nº do artigo 215º do Código de Processo Penal, justificando a manutenção da medida por revisão
operada no dia de hoje (primeiro dia útil seguinte à dedução de acusação; dia 15/09/2025 – feriado municipal) – artigo 215º, nº 1, al. a) e nº 2 do Código de Processo Penal.
Assim, até à presente data, ainda se não esgotaram os prazos referidos no artigo 215º, nº 1, als. b), c) e d) e nº 2 do Código de Processo Penal.
À luz do preceituado no artigo 223º, nº 1 do Código de Processo Penal, envie de imediato a petição de habeas corpus ao Exmo. Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, acompanhada da presente informação/despacho e, bem assim, instruindo certidão com o teor de fls. 92, 100 a 111, 196, ref.ª citius nº .......31, 226 a 229, 230 e 231.»
3. O processo encontra-se instruído com a documentação pertinente.
4. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, realizou-se audiência, em conformidade com o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.
Após o que a secção reuniu para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP), fazendo-o nos termos que se seguem.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Questão a decidir:
Saber se a peticionária se encontra ilegalmente em prisão preventiva, nos termos do artigo 222.º, n.º 2, al. c), do CPP - ilegalidade proveniente de, alegadamente, manter-se presa para além do prazo máximo fixado por lei.
2. Factos
A matéria factual relevante para o julgamento do pedido resulta da petição de habeas corpus, da informação prestada, da certidão que acompanha os presentes autos e da consulta CITIUS do processo, extraindo-se os seguintes dados de facto e processuais (em súmula):
1. A arguida/ora peticionária foi submetida a 1.º interrogatório de arguida detida, tendo-lhe sido imposta, no final dessa diligência, por despacho de 14 de março de 2025, a medida de coação de prisão preventiva prevista no artigo 202.º do CPP, por se considerar fortemente indiciada a prática por parte da mesma de factos integradores de um crime de homicídio qualificado sob a forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º, 132.º, nºs 1 e 2, al. e) e i), do Código Penal.
2. A medida de coação imposta foi sendo sucessivamente revista e mantida, em 12/06/2025 e em 10/09/2025.
3. Em 12 de setembro de 2025, foi deduzida acusação contra a arguida, tendo-lhe sido imputada a prática, em autoria material, de um crime homicídio qualificado sob a forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), do Código Penal (Referência CITIUS .......79).
4. Juntamente com a acusação, o Ministério Público emitiu pronúncia sobre o reexame dos pressupostos da medida de coação de prisão preventiva, no sentido da sua manutenção.
5. Na sequência, no dia 16/09/2025, foi proferido despacho judicial que determinou que a arguida continuasse a aguardar os ulteriores termos do processo sujeita a prisão preventiva.
6. No dia 16/09/2025, foi deduzida a presente providência de habeas corpus.
*
3. Direito
3.1. Nos termos do artigo 27.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), todos têm direito à liberdade e ninguém pode ser privado dela, total ou parcialmente, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança, excetuando-se a privação da liberdade, no tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos previstos no n.º 3 do mesmo preceito constitucional.
O artigo 31.º da CRP consagra o direito à providência de habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer pela própria pessoa lesada no seu direito à liberdade, ou por qualquer outro cidadão no gozo dos seus direitos políticos, por via de uma petição a apresentar no tribunal competente.
Em anotação ao artigo 31.º, n.º 1, da CRP, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, p. 508):
«Na sua versão atual, o habeas corpus consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros, garantido nos arts. 27.º e 28.º (...). A prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos no art. 27.º, quando efetuada ou ordenada por autoridade incompetente ou por forma irregular, quando tenham sido ultrapassados os prazos de apresentação ao juiz ou os prazos estabelecidos na lei para a duração da prisão preventiva, ou a duração da pena de prisão a cumprir, quando a detenção ou prisão ocorra fora dos estabelecimentos legalmente previstos, etc.
Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade.»
A lei processual penal, dando expressão ao referido artigo 31.º da CRP, prevê duas modalidades de habeas corpus: em virtude de detenção ilegal e em virtude de prisão ilegal.
Dispõe o artigo 222.º do CPP, sob a epígrafe “Habeas corpus em virtude de prisão ilegal”:
«1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.
2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:
a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.»
A jurisprudência deste Supremo Tribunal vem considerando que constituem fundamentos da providência de habeas corpus os que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos suscetíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade da prisão (acórdão de 06.04.2023, proc. n.º 130/23.0PVLSB-A.S1, disponível em www.dgsi.pt, como outros que sejam citados sem diversa indicação).
Tem também decidido uniformemente o Supremo Tribunal de Justiça que a providência de habeas corpus, por um lado, não se destina a apreciar erros de direito, nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade (por todos, o acórdão do STJ, de 04.01.2017, proc. n.º 109/16.9GBMDR-B. S1, e jurisprudência nele citada) e, por outro, que a procedência do pedido pressupõe a atualidade da ilegalidade da prisão, reportada ao momento em que é apreciado o pedido (entre muitos, o acórdão de 19.07.2019, proferido no proc. n.º 12/17.5JBLSB, com extensas referências jurisprudenciais).
Os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.
Como se tem afirmado, em jurisprudência uniforme, o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar (a) se a prisão, em que o peticionário atualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível, proferida por autoridade judiciária competente, (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e (c) se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial (acórdãos de 16.11.2022, proc. 4853/14.7TDPRT-A.S1, de 18.05.2022, proc. 37/20.3PJLRS-A.S1, e de 06.09.2022, proc. 2930/04.1GFSNT-A.S1).
3.2. No caso concreto, a arguida/peticionária considera que a prisão preventiva que lhe foi imposta se mantém para além do prazo fixado na lei.
Vejamos.
Em matéria de prisão preventiva, os prazos a considerar são os previstos no artigo 215.º, do CPP, sob a epígrafe «prazos de duração máxima da prisão preventiva», onde se dispõe, nomeadamente, e com interesse para o presente caso:
«1 - A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:
a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;
b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;
c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância;
d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.
2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respetivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, ou por crime:
(…).».
Tendo em vista o crime fortemente indiciado no momento da imposição da prisão preventiva, o prazo de duração máxima da prisão preventiva sem que fosse deduzida acusação era de seis meses [artigo 215.º, n.ºs 1, al. a) e 2, do CPP].
Constitui entendimento pacífico, na jurisprudência deste Supremo Tribunal, ser a partir do momento da aplicação da prisão preventiva que se contam os prazos máximos da medida de coação correspondentes à fase pré-acusatória, e não do momento da detenção que o tenha precedido (neste sentido, entre muitos, o acórdão de 11.11.2021, proc. 869/18.2JACBR-G.S1).
Do que decorre que, tendo como termo a quo o momento do decretamento da prisão preventiva – 14.03.2025 –, o prazo de seis meses atingiria o seu termo final no dia 14.09.2025, às 24h00, porquanto se trata de um prazo de natureza substantiva, devendo computar-se nos termos dos artigos 296.º e 279.º, do Código Civil (cf. o citado acórdão de 11.11.2021).
Constitui, igualmente, jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, o entendimento de que, para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva previsto no artigo 215.º, n.º 1, al. a), do CPP – com o alargamento que lhe seja aplicável, como ocorre no caso em apreço - é relevante a data de dedução da acusação e não a notificação desta ao arguido (entre muitos, os acórdãos de 17.05.2023, proc. 3233/21.2T9VNF-J.S1; de 29.06.2023, proc. 787/22.0PBMTA-B.S1; de 31.08.2023, proc. 442/23.3JABRG-B.S1).
Os autos documentam que a acusação foi deduzida no dia 12.09.2025, ou seja, antes de completado o referido prazo.
Com a dedução da acusação o prazo de duração máxima da prisão preventiva passou a ser o relativo à condenação em 1.ª instância, previsto no artigo 215.º, n.º1, al. c) e 2, ou, sendo requerida a instrução, o do artigo 215.º, n.º1, al. b) e 2, o que, no caso, está longe de se verificar.
Em suma, a medida coativa de prisão preventiva da arguida/peticionária mostra-se ordenada por entidade competente; é motivada por facto pelo qual a lei o permite; e não se mantém para além dos prazos fixados na lei, pelo que não se verificam os pressupostos para deferir o habeas corpus fixados nos artigos 31.º da CRP e 222.º do CPP.
3.3. O artigo 223.º, n.º6, do CPP, estabelece: «Se o Supremo Tribunal de Justiça julgar a petição de habeas corpus manifestamente infundada, condena o peticionante ao pagamento de uma soma entre 6 UC e 30 UC.»
Uma petição de habeas corpus deve ser considerada “manifestamente infundada” quando, através de uma avaliação sumária dos seus fundamentos, se pode concluir, sem margem para dúvidas, estar à partida votada ao insucesso, justificando-se, nesse caso, a aplicação de uma sanção processual pecuniária, penalizadora do uso manifestamente censurável da providência por evidente ausência de pressupostos e fundamentos.
Como já se assinalou, não oferece qualquer dúvida que para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva previsto no artigo 215.º, n.º 1, al. a), do CPP – com o alargamento que lhe seja aplicável - é relevante a data de dedução da acusação.
Porém, a circunstância de a petição de habeas corpus ter sido apresentada depois do referido dia 14.09, mas também antes das notificações da acusação, leva-nos a excluir a aplicação de sanção nos termos do referido artigo 223.º, n.º 6, do CPP.
*
III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus ora em apreciação.
Custas pela peticionária, com 3 UC de taxa de justiça (artigo 8.º, n.º 9, do R. Custas Processuais e Tabela III anexa).
Supremo Tribunal de Justiça, 25 de setembro de 2025
(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)
Jorge Gonçalves (Relator)
Ernesto Nascimento (1.º Adjunto)
Vasques Osório (2.º Adjunto)
Helena Moniz (Presidente da Secção)