ESCUSA
JUÍZ DESEMBARGADOR
IMPARCIALIDADE
JUÍZ DE INSTRUÇÃO
DESPACHO
SUSPEIÇÃO
DEFERIMENTO
Sumário


I – Na interpretação e aplicação da cláusula geral enunciada no artigo 43.º, n.º1, do CPP, para justificar o afastamento do juiz do processo, a jurisprudência do STJ tem adotado um critério particularmente exigente, pois que, estando em causa o princípio do juiz natural, constitucionalmente consagrado, deve tratar-se de uma suspeição fundada em motivo sério e grave, a avaliar de forma exigente e em função das circunstâncias objetivas do caso, “a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade do julgador”.
II - O critério essencial que no pedido de escusa deve ser ponderado, na perspetiva da “imparcialidade objetiva” em que as aparências são de considerar, é o de que haja um motivo que, a avaliar de forma exigente e em função das circunstâncias objetivas do caso, em juízo de razoabilidade na consideração do “homem médio” que se revê num poder judicial imparcial e independente, seja tido como sério e grave para impor a prevenção do perigo de que a intervenção do juiz seja encarada com desconfiança e suspeita, pelo público em geral e, particularmente, pelos destinatários das decisões.
III – A alteração legislativa de 1998 (Lei n.º 59/98, de 25 de agosto) conexionou os institutos do impedimento e da suspeição (recusa ou escusa) ao introduzir o n.º2 do artigo 43.º, identificando claramente a intervenção do juiz em fase anterior do processo, fora dos casos a que se refere artigo 40.º, como causa de recusa ou escusa e não de impedimento.
IV - Tendo em consideração a extensão enunciativa do artigo 40.º, é razoável pressupor que só excecionalmente será de admitir que outras intervenções no processo possam integrar motivos de afetação da imparcialidade objetiva, o que dependerá da verificação, em concreto, do tipo de intervenção sucessiva do juiz e da natureza mais ou menos intensa da ou das suas intervenções anteriores no processo.
V - O juízo prudencial do tribunal terá de partir de uma ponderação casuística, tendo em vista a natureza, espécie, função e relevância das intervenções no processo, ou seja, a concreta participação efetuada e o grau de “imersão” do juiz no processo, suscetível de comprometer as condições de afirmação da sua imparcialidade objetiva.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO

1. A Ex.ma Sr.ª Juíza Desembargadora, Dr.ª AA, a exercer funções no Tribunal da Relação de Coimbra, vem, ao abrigo do disposto nos artigos 43.°, n.ºs 1, 2 e 4, do Código de Processo Penal, apresentar pedido de escusa com os fundamentos seguintes (transcrição):

«Foi-me distribuído, enquanto relatora, o processo 84/20.5PECBR.C3 e, aberta que foi conclusão para exame preliminar, constatei que, no exercício das funções que desempenhei enquanto Juíza de Instrução Criminal no Juízo Central de Instrução Criminal de Coimbra- Juiz 2, proferi diversos despachos no referido processo, ao longo de dois anos e quando o mesmo se encontrava em fase de inquérito e corria termos na 1ª secção do DIAP de Coimbra.

Proferi, em concreto, os seguintes despachos:

- em 17/12/2020, validei a sujeição do processo a segredo de justiça e autorizei o registo de voz e imagem, por qualquer meio e som, sem o consentimento e o conhecimento da então suspeita BB, na cidade de Coimbra e demais locais por ela frequentados, bem como das demais pessoas que com ela se relacionassem nessa atividade de tráfico de estupefacientes;

- em 5/3/2021, autorizei o registo de voz e imagem, por qualquer meio e som, sem o consentimento e o conhecimento dos suspeitos BB e CC, na cidade de Coimbra e demais locais por eles frequentados, bem como das demais pessoas que com ela se relacionem nesta atividade de tráfico de estupefacientes;

- em 5/3/2021, indeferi a autorização para obtenção da faturação detalhada e registos de trace back relativamente aos números de telefone referidos na promoção e pertencentes a DD, EE, FF e GG e autorizei a captura, através de meio electrónico adequado, dos IMEI correspondentes aos telemóveis utilizados pelos suspeitos BB e CC;

- em 8/5/2021, determinei a junção aos autos das imagens identificadas no relatório da PSP, ao abrigo dos arts. 188º n.º 7 e 9 do CPP e 6º n.º 3 da Lei 36/94

- em 4/6/2021, autorizei a interceção e gravação das comunicações telefónicas estabelecidas de e para os telefones móveis usados pela suspeita BB, e pelo suspeito CC, bem como dos IMEIS associados a tais números e ordenei que se determinasse às referidas operadoras de serviços de telefone móvel em causa os registos trace back, a localização celular e as correspondentes faturações detalhadas, registos de SMS e de MMS, bem como os IMEI que estão associados aos identificados números.

- em 23/6/2021, determinei a transcrição das sessões identificadas na promoção e prorroguei as interceções e gravação das conversações telefónicas de e para os alvos indicados na promoção;

- em 9/7/2021, autorizei o registo de voz e imagem, por qualquer meio e som, sem o consentimento e o conhecimento dos suspeitos BB e CC, relativamente à atividade de tráfico de estupefacientes;

- em 14/7/2021, determinei a transcrição das sessões identificadas na promoção;

- em 5/8/202,1 autorizei a realização de busca à residência do suspeito BB e CC, bem como a apreensão dos estupefacientes, objectos e valores relacionados com o crime em investigação e com interesse para os autos.

- por despacho datado de 18/11/2021 – e tendo o arguido CC sido sujeito à medida de coacção de prisão preventiva à ordem dos presentes autos em 21-08-2021 - procedi à revisão de tal medida de coação e mantive a situação coactiva do arguido.

- por despacho de 21/1/2022, indeferi o pedido do arguido CC de substituição da medida de coação de prisão preventiva pela medida de coação de proibições de frequentar locais conotados com o consumo e o tráfico de substâncias ilícitas e de acompanhar indivíduos que se dediquem a tais actividades ou, caso assim se não entenda, pela medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, com vigilância electrónica, e determinei a manutenção da medida de coacção de prisão preventiva.

- por despacho de 10/2/2022 procedi à revisão da medida de coação e mantive a situação coactiva do arguido: sujeição a prisão preventiva.

Entendo que esta minha intervenção no processo, não constituindo causa de impedimento, será causa de escusa, preenchendo a previsão do nº 1 do artigo 43º do Código de Processo Penal.

De facto, o pedido de escusa (ou de recusa) de juiz assenta na apreciação do risco de que, em determinado processo, a sua intervenção possa ser considerada suspeita, por haver motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

E o meu pedido de escusa respalda-se na necessidade de garantir e prevenir que sobre o sistema de justiça em geral, e em particular no caso em análise, recaia o perigo da suspeição e da desconfiança sobre a isenção e imparcialidade da decisão.

De facto, o conhecimento que tenho acerca da matéria de facto em análise no presente recurso, sobre a qual tomei já posição em sede de inquérito e na qualidade de Juíza de Instrução Criminal, quer em termos de prova, quer de enquadramento jurídico, podem conduzir a que, aos olhos dos intervenientes e da comunidade em geral, se entenda que não tenho a isenção necessária para decidir o recurso interposto nos autos pelo M.º P.º, que não estejam reunidas todas as condições para julgar com total imparcialidade.

Tal situação poderia também dar azo a incidente de recusa, com base na invocação de intervenção noutras fases do processo, o que se pretende evitar – 43 n.º 2 do CPP

Como tal, e ao abrigo do disposto no art.º n.ºs 1, 2 e 4, do Código de Processo Penal (CPP), requeiro a V. Exas. que se dignem escusar-me a intervir nos presentes autos, do Acórdão condenatório e do recurso interposto.»

2. Colhidos os vistos e remetidos os autos para serem submetidos à presente conferência, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Factos relevantes:

- À Ex.ma Sr.ª Juíza Desembargadora, Dr.ª AA, a exercer funções no Tribunal da Relação de Coimbra, foi distribuído, enquanto Juíza Relatora, o processo n.º 84/20.5PECBR.C3, onde estão em causa recursos, do Ministério Público e dos arguidos, que têm como objeto o acórdão proferido nos autos.

- A Sr.ª Juíza Desembargadora, no exercício das funções de Juíza de Instrução Criminal, no Juízo Central de Instrução Criminal de Coimbra - Juiz 2, proferiu diversos despachos no referido processo, ao longo de dois anos, quando o mesmo se encontrava em fase de inquérito e corria termos na 1.ª secção do DIAP de Coimbra.

- Proferiu, em concreto, os seguintes despachos:

- em 17/12/2020, validou a sujeição do processo a segredo de justiça e autorizou o registo de voz e imagem, por qualquer meio e som, sem o consentimento e o conhecimento da então suspeita BB, na cidade de Coimbra e demais locais por ela frequentados, bem como das demais pessoas que com ela se relacionassem nessa atividade de tráfico de estupefacientes;

- em 5/3/2021, autorizou o registo de voz e imagem, por qualquer meio e som, sem o consentimento e o conhecimento dos suspeitos BB e CC, na cidade de Coimbra e demais locais por eles frequentados, bem como das demais pessoas que com eles se relacionassem nessa atividade de tráfico de estupefacientes;

- em 5/3/2021, indeferiu a autorização para obtenção da faturação detalhada e registos de trace back relativamente aos números de telefone referidos na promoção e pertencentes a DD, EE, FF e GG, e autorizou a captura, através de meio electrónico adequado, dos IMEI correspondentes aos telemóveis utilizados pelos suspeitos BB e CC;

- em 8/5/2021, determinou a junção aos autos das imagens identificadas no relatório da PSP, ao abrigo dos artigos 188.º n.º 7 e 9 do CPP e 6.º n.º 3. da Lei n.º 36/94;

- em 4/6/2021, autorizou a interceção e gravação das comunicações telefónicas estabelecidas de e para os telefones móveis usados pela suspeita BB, e pelo suspeito CC, bem como dos IMEIS associados a tais números e ordenou que se determinasse às referidas operadoras de serviços de telefone móvel em causa os registos trace back, a localização celular e as correspondentes faturações detalhadas, registos de SMS e de MMS, bem como os IMEI associados aos identificados números;

- em 23/6/2021, determinou a transcrição das sessões identificadas na promoção do Ministério Público e prorrogou as interceções e gravação das conversações telefónicas de e para os alvos indicados na promoção;

- em 9/7/2021, autorizou registo de voz e imagem, por qualquer meio e som, sem o consentimento e o conhecimento dos suspeitos BB e CC, relativamente à atividade de tráfico de estupefacientes;

- em 14/7/2021, determinou a transcrição das sessões identificadas na promoção do Ministério Público;

- em 5/8/2021 autorizou a realização de busca à residência dos suspeitos BB e CC, bem como a apreensão dos estupefacientes, objetos e valores relacionados com o crime em investigação e com interesse para os autos;

- por despacho datado de 18/11/2021 – e tendo o arguido CC sido sujeito à medida de coação de prisão preventiva à ordem dos presentes autos em 21-08-2021 - procedeu à revisão de tal medida de coação e manteve a situação coativa do arguido;

- por despacho de 21/1/2022, indeferiu o pedido do arguido CC de substituição da medida de coação de prisão preventiva pela medida de coação de proibição de frequentar locais conotados com o consumo e o tráfico de substâncias ilícitas e de acompanhar indivíduos que se dediquem a tais actividades ou, caso assim se não entenda, pela medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica, e determinou a manutenção da medida de coação de prisão preventiva.

- por despacho de 10/2/2022, procedeu à revisão da medida de coação e mantive a situação coativa do arguido: sujeição a prisão preventiva.

2. Apreciação

2.1. Os tribunais são os órgãos de soberania a quem compete administrar a justiça em nome do povo (artigo 202.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa - CRP).

O artigo 203.º da CRP consagra o princípio fundamental da independência dos tribunais, estabelecendo que os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei, princípio que exige a independência e imparcialidade dos juízes.

No seu artigo 32.º, n.º 9, a CRP consagra o princípio do «juiz natural», configurado como uma garantia fundamental do processo criminal, assegurando, também por esta via, todas as garantias de defesa em processo criminal, em que se inclui o julgamento por um juiz aleatoriamente pré-determinado.

Sem isenção e imparcialidade dos juízes não se alcança o direito ao processo equitativo que a Constituição garante a todos os cidadãos (artigo 20.º), constituindo a imparcialidade do Tribunal um requisito fundamental do processo justo (artigo 10.º, da Declaração Universal dos Direitos Humanos; artigo 14.º, n.º 1, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos).

Há situações em que a garantia da imparcialidade dos Tribunais pressupõe exceções ao princípio do «juiz natural».

No entanto, o «juiz natural» só deve ser afastado quando a garantia da sua imparcialidade e isenção o impuser, isto é, quando se verifiquem circunstâncias assertivas e claramente definidas, sérias e graves, reveladoras de que o juiz aleatoriamente pré-definido como competente para determinada causa deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção.

A proteção da garantia de imparcialidade do juiz é assegurada pela categoria dos impedimentos, e, de forma complementar, pelo instituto das suspeições, que podem assumir a natureza de recusa ou de escusa, conforme consagrado no Código de Processo Penal (diploma que passaremos a nomear como CPP), que no seu Livro I, Título I, Capítulo VI, regula o regime dos impedimentos, recusas e escusas do juiz.

Dispõe o artigo 43.º, n.º 1, 2 e 4, do CPP:

«1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

2. Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º

4. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verifiquem as condições dos nºs 1 e 2.»

Os fundamentos da escusa (o mesmo com a recusa) podem referir-se à imparcialidade subjetiva, do foro íntimo, que se presume, só podendo ser posta em causa face a circunstâncias objetiváveis e certamente excecionais, ou à imparcialidade objetiva, por verificação de “circunstâncias relacionais ou contextuais objetivas suscetíveis de gerar no interessado o receio da existência de ideia feita, prejuízo ou preconceito em concreto quanto à matéria da causa”, ou circunstâncias ou contingências de relação com algum dos interessados (Henriques Gaspar, anotação ao artigo 43.º, Código de Processo Penal comentado, H. Gaspar et alii, Almedina, 2016).

Na interpretação e aplicação da cláusula geral enunciada no artigo 43.º, n.º1, para justificar o afastamento do juiz do processo, a jurisprudência do STJ tem adotado um critério particularmente exigente, pois que, estando em causa o princípio do juiz natural, constitucionalmente consagrado, deve tratar-se, como já se assinalou, de uma suspeição fundada em motivo sério e grave, a avaliar de forma exigente e em função das circunstâncias objetivas do caso, “a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade do julgador” (acórdão de 27.4.2022, Proc. 30/18.6PBPTM.E1-A.S1; acórdão de 26.10.2022, Proc. 193/20.0GBABF.E1-A.S1, em www.dgsi.pt, como outros que sejam indicados sem diversa indicação).

Em suma, para sustentar a escusa ou recusa do juiz é necessário verificar:

- se a intervenção do juiz no processo em causa corre “o risco de ser considerada suspeita”;

- e, se essa suspeita ocorre “por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”, para o que deverão ser indicados factos objetivos suscetíveis de preencher tais requisitos, a analisar e ponderar segundo as circunstâncias de cada caso concreto, de acordo com as regras da experiência comum e com “bom senso” (acórdão de 13.04.2023, Proc. 16/23.9YFLSB-A).

Neste campo, socorremo-nos do que se escreve no acórdão de 13.04.2005, Proc. 05P1138, onde a dado passo se refere:

«Mas a dimensão subjetiva não basta à afirmação da garantia. Releva, também, e cada vez mais com acrescido reforço, uma perspectiva objetiva, que é consequencial à intervenção no direito processual, com o suporte de um direito fundamental, de um conceito que não era, por tradição, muito chegado à cultura jurídica continental: a aparência, que é traduzida no adágio "justice must not only be done; it must also be seen to be done", que revela as exigências impostas por uma sensibilidade acrescida dos cidadãos às garantias de uma boa justiça.

Na abordagem objetiva, em que são relevantes as aparências, intervêm, por regra, considerações de carácter orgânico e funcional (v. g., a não cumulabilidade de funções em fases distintas de um mesmo processo), mas também todas as posições com relevância estrutural ou externa, que de um ponto de vista do destinatário da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando o receio, objetivamente justificado, quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra si.

Mas devem ser igualmente consideradas outras posições relativas que possam, por si mesmas e independentemente do plano subjetivo do foro interior do juiz, fazer suscitar dúvidas, receio ou apreensão, razoavelmente fundadas pelo lado relevante das aparências, sobre a imparcialidade do juiz; a construção conceptual da imparcialidade objetiva está em concordância com a concepção moderna da função de julgar e com o reforço, nas sociedades democráticas de direito, da legitimidade interna e externa do juiz.»

Continua o mesmo aresto:

«A imparcialidade objetiva apresenta-se, assim, como um conceito que tem sido construído muito sobre as aparências, numa fenomenologia de valoração com alguma simetria entre o "ser" e o "parecer". Por isso, para prevenir a extensão da exigência de imparcialidade objeciva, que poderia ser devastadora, e para não cair na "tirania das aparências" (cfr., Paul Martens, "La tyrannie des apparences", "Revue Trimestrielle des Droits de L´Homme", 1996, pag. 640), ou numa tese maximalista da imparcialidade, impõe-se que o fundamento ou motivos invocados sejam em cada caso, apreciados nas suas próprias circunstâncias, e tendo em conta os valores em equação - a garantia externa de uma boa justiça, que seja mas também pareça ser.

A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem é, a respeito da densificação do conceito de imparcialidade, de assinalável extensão (cfr., v. g., entre muitas outras referências possíveis, Renée Koering-Joulin, "La notion européenne de «tribunal indépendant et impartial» au sens de l’article 6º, par. 1 de la Convention européenne de sauvegarde des droits de l’homme", in Revue de science criminelle et de droit pénal comparé, nº 4, Outubro-Dezembro 1990, págs. 766 e segs.).»

Quer isto dizer que as aparências são de considerar, no contexto da imparcialidade objetiva, sem riscos de compreensão maximalista, quando o motivo invocado possa, em juízo de razoabilidade, ser considerado fortemente consistente para impor a prevenção do perigo de que a intervenção do juiz seja encarada com desconfiança e suspeita, ou seja, quando a projeção externa da sua imparcialidade suscite reparos no público em geral e, particularmente, nos destinatários das decisões.

Regressando ao mesmo acórdão de 13.04.2005:

«Dominam aqui as aparências, que podem afetar, não rigorosamente a boa justiça, mas a compreensão externa sobre a garantia da boa justiça que seja mas também pareça ser.

Os motivos que podem afetar a garantia da imparcialidade objetiva, que mais do que do juiz e do "ser" relevam do "parecer", têm de se apresentar, nos termos da lei, «sério» e «graves».

(…)

o motivo invocado tem de ser de tal modo relevante que, objetivamente, pelo lado não apenas do destinatário da decisão, mas também de um homem médio, possa ser entendido como susceptível de afectar, na aparência, a garantia da boa justiça, por poder ser visto externamente («encarado com desconfiança», na expressão do pedido) e ser adequado a afectar (gerar desconfiança) sobre a imparcialidade.»

O critério essencial que no pedido de escusa deve ser ponderado, na perspetiva da “imparcialidade objetiva”, é o de que haja um motivo sério e grave para que, exteriormente, na consideração do “homem médio” que se revê num poder judicial imparcial e independente, possa ser considerada a possibilidade de a intervenção do juiz não respeitar a exigência de imparcialidade a que nessa mesma perspetiva do cidadão comum a atividade de julgar deve estar sujeita.

2.2. A alteração legislativa de 1998 (Lei n.º 59/98, de 25 de agosto) conexionou os institutos do impedimento e da suspeição (recusa ou escusa) ao introduzir o n.º2 do artigo 43.º, identificando claramente a intervenção do juiz em fase anterior do processo, fora dos casos a que se refere artigo 40.º, como causa de recusa ou escusa e não de impedimento.

A referida alteração, ao tipificar como causa de recusa ou escusa a intervenção do juiz em fases anteriores do mesmo processo, fora dos casos de impedimento previstos no artigo 40.º, teve origem em jurisprudência suscitada em razão de intervenções processuais do juiz, nas fases preliminares do processo, e a sua subsequente intervenção em julgamento.

A aplicação do critério geral (o do n.º1) depende da participação decisória no processo que esteja em causa em concreto.

Tendo em consideração a extensão enunciativa do artigo 40.º, é razoável pressupor que só excecionalmente será de admitir que outras intervenções no processo possam integrar motivos de afetação da imparcialidade objetiva, o que dependerá da verificação, em concreto, do tipo de intervenção sucessiva do juiz e da natureza mais ou menos intensa da ou das suas intervenções anteriores no processo.

O juízo prudencial do tribunal terá de partir de uma ponderação casuística, tendo em vista a natureza, espécie, função e relevância das intervenções no processo, ou seja, a concreta participação efetuada e o grau de “imersão” do juiz no processo, suscetível de comprometer as condições de afirmação da sua imparcialidade objetiva.

Em suma, o que importa é avaliar o pedido formulado na perspetiva da imparcialidade objetiva, a partir da valoração, também objetiva, das circunstâncias, segundo o senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade.

No caso em apreço, a requerente, a quem foi distribuído o processo como relatora nos recursos interpostos, não se limitou a intervenções ocasionais e esporádicas na fase de inquérito, pois no exercício das funções de Juíza de Instrução Criminal, no Juízo Central de Instrução Criminal de Coimbra - Juiz 2, proferiu diversos e relevantes despachos no referido processo, ao longo de dois anos, quando o mesmo se encontrava em fase de inquérito e corria termos na 1.ª secção do DIAP de Coimbra.

O tipo de intervenção sucessiva da requerente no processo, a sua concreta natureza, relevância substancial e prolongamento ao longo de um período significativo – cerca de dois anos - conferiu à requerente, seguramente, um conhecimento da matéria de facto e das provas que, aos olhos dos intervenientes e da comunidade em geral, poderá ser tido como potencialmente influenciador da decisão, em prejuízo da exigência de garantia da imparcialidade na sua vertente objetiva, desde logo na referida dimensão de salvaguarda da aparência.

Relevam, em particular, os sucessivos despachos de autorização de registo de voz e imagem e de autorização da interceção e gravação de comunicações telefónicas, com os subsequentes despachos a determinar a junção aos autos das imagens e a transcrição das sessões relativas a interceções e gravação de conversações telefónicas – de que a requerente tomou conhecimento -, para além de despachos de revisão da medida de coação de prisão preventiva e de indeferimento da sua substituição.

A nosso ver, não cada uma das intervenções isoladamente consideradas, mas a sua tipologia, natureza, reiteração e intensidade ao longo do inquérito, tomadas no seu conjunto, sustentam a existência de um perigo, sério e grave, de que a intervenção como relatora da Sr.ª Juíza Desembargadora, ora requerente, possa suscitar sérias dúvidas ou apreensões, na vertente externa das aparências dignas de tutela, quanto à existência de algum pré-prejuízo sobre a matéria da causa, resultante do conhecimento que aquela forçosamente adquiriu em razão da sua continuada e prolongada intervenção como juíza de instrução no processo.

Entendemos, por conseguinte, que importa dissipar dúvidas ou reservas, na perspetiva da imparcialidade objetiva, devendo ser concedida a escusa para evitar que sobre a decisão, em que deveria participar, como relatora, a Sr.ª Juíza Desembargadora requerente, possa recair qualquer sombra de dúvida.

*

III - DISPOSITIVO

Em face do exposto, acordam os Juízes desta 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em deferir o presente pedido de escusa formulado pela requerente, Ex.ma Sr.ª Desembargadora Dr.ª AA.

Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 1 de outubro de 2025

(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)

Jorge Gonçalves (Relator)

Jorge Jacob (1.º Adjunto)

Ernesto Nascimento (2.º Adjunto)