I - Como tem sido pacificamente entendido pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nos casos das alíneas e) e f), do n.º 1, do artigo 400.º, do CPP, os poderes deste tribunal estão delimitados negativamente pela medida das penas aplicadas pelo Tribunal da Relação, resultando da conjugação destas disposições, numa formulação sintética, que só é admissível o recurso para o STJ de acórdãos das relações, proferidos em recurso, que apliquem: penas superiores a 5 anos de prisão, quando não se verifique dupla conforme; penas superiores a 8 anos de prisão, independentemente da existência de dupla conforme.
II - Num caso de acórdão confirmatório da Relação, em que as diversas penas parcelares impostas ao recorrente são todas não superiores a 5 anos de prisão e, por sua vez, a pena única imposta é de 9 anos de prisão, é forçoso concluir ser inadmissível o recurso quanto às condenações nas diversas penas parcelares.
III – Estando o STJ, por razões de competência, impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, está também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão, tais como os vícios da decisão indicados no artigo 410.º do CPP, respetivas nulidades (artigo 379.º e 425.º, n.º 4) e aspetos relacionadas com o julgamento dos crimes que constituem o seu objeto, aqui se incluindo as questões relativas à apreciação da prova, à qualificação jurídica dos factos e à determinação da pena correspondente ao tipo de ilícito realizado pela prática desses factos (com penas de medida não superior a 5 ou 8 anos de prisão, consoante os casos das alíneas e) e f) do artigo 400.º do CPP), incluindo nesta determinação, por exemplo, a aplicação do regime de atenuação especial da pena previsto no artigo 72.º do Código Penal, bem como de questões de inconstitucionalidade que sejam suscitadas nesse âmbito. irrecorribilidade que abrange toda a matéria que se prenda com as infrações
IV – A pena acessória não integra, enquanto tal, os critérios legais de recorribilidade dos acórdãos da Relação, proferidos em recurso.
V - para a determinação da medida concreta da pena conjunta é decisivo que se obtenha uma visão de conjunto dos factos que tenha em vista a eventual conexão dos mesmos entre si e a relação com a personalidade de quem os cometeu.
VI - As conexões ou ligações fundamentais, na avaliação da gravidade do ilícito global, são as que emergem do tipo e número de crimes; da maior ou menor autonomia e frequência da comissão dos delitos; da igualdade ou diversidade de bens jurídicos protegidos violados; da motivação subjacente; do modo de execução, homogéneo ou diferenciado; das suas consequências e da distância temporal entre os factos – tudo analisado na perspetiva da interconexão entre todos os factos praticados e a personalidade global de quem os cometeu, de modo a destrinçar se o mesmo tem propensão para o crime, ou se, na realidade, estamos perante um conjunto de eventos criminosos episódicos, devendo a pena conjunta refletir essas singularidades da personalidade do agente.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I – RELATÓRIO
1. No processo comum coletivo n.º 276/22.2PBFIG, do Juízo Central Criminal de Coimbra, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, em que é arguido AA, com os restantes sinais dos autos, foi proferido acórdão nos termos da qual foi decidido:
«A)- absolver o arguido AA da prática de 73 dos imputados 189 crimes de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável;
B)- absolver o arguido AA da agravante prevista na alínea a) do nº 1 do artigo 177.º relativamente aos 116 crimes pelos quais vai condenado;
C)- condenar o arguido AA pela prática, em autoria singular e em concurso real, de 116 crimes de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, previstos e punidos pelo art.º 172.º n.º 1 alínea a), com referência ao artigo 171º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, nas penas de um ano e seis de prisão cada um;
D)- condenar o arguido AA, em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no artigo 77º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena única de nove anos de prisão efectiva;
E)- condenar o arguido AA, ao abrigo do disposto no artigo 69º-B, nº 2, do Código Penal, na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período de dez anos;
F)- condenar o arguido AA, ao abrigo do disposto no artigo 69º-C, nº 2, do Código Penal, na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de dez anos;
G)- condenar o arguido AA no pagamento de dez UC’s de taxa de justiça e demais encargos, nos termos conjugados dos artigos 513º, nºs 1, 2 e 3 e 514º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP e tabela III;
H)- ordenar a recolha de amostra para obtenção de perfil de ADN do arguido e posterior inserção na base de dados respectiva, nos termos do disposto nos artigos 8º, nº 2 e 18º, nº 3, ambos da Lei nº 5/2008, de 12.02;
I)- condenar o arguido AA, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 16º, nº 2, da Lei nº 130/2015, de 04 de Setembro e 82.º-A do Código de Processo Penal, a pagar a BB a quantia de 40.000,00 euros (quarenta mil euros), a título de indemnização, arbitrada oficiosamente, pelos danos não patrimoniais sofridos em resultado dos factos integradores dos crimes de abuso sexual de menor dependente cometidos pelo mesmo contra esta e pelos quais vai condenado.»
2. O mencionado arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 14 de maio de 2025, negou provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.
3. O arguido interpôs recurso do referido acórdão para este Supremo Tribunal, formulando as conclusões que a seguir se transcrevem:
1. O ora Recorrente vem recorrer da decisão do Tribunal da Relação de Coimbra que confirmou, integralmente, a sentença recorrida a qual condenou o Recorrente na pena única de 9 anos de prisão efetiva, nas penas acessórias de proibição de exercer profissão ou atividades que envolvam contacto regular com menores pelo período de dez anos e na proibição de assumir a confiança de menor (em qualquer das modalidades legais) também por dez anos e numa indemnização a favor da ofendida no valor de €40 000,00.
2. Assim, e tendo em conta que o acórdão condenatório, proferido, em recurso, pela Relação, confirmou a decisão da 1.ª instância na condenação de uma pena de prisão superior a 8 anos o presente recurso torna-se admissível para todo os efeitos legais, nos termos do art. 400.º n.º 1 al. f) CPP.
3. Com o presente recurso o recorrente pretende tão somente exercer o direito de “manifestação de posição contrária”, traduzido no legal e constitucionalmente consagrado direito de recorrer.
4. O art. 29.º n.º 6 da CRP consagra, precisamente, a possibilidade e revisão de uma decisão penal desde que esta seja condenatória e injusta, da forma como a lei o vier a definir.
5. Os tribunais estão vinculados pelos direitos fundamentais e tal vinculação “pelos direitos liberdades e garantias efetiva-se ou concretiza-se: 1- através do processo justo aplicado no exercício da função jurisdicional ou 2-através da determinação e direção das decisões jurisdicionais pelos direitos fundamentais materiais”.
6. Um Estado de Direito Democrático não pode executar uma sentença penal condenatória injusta. Desde que injusta a decisão, e se condenatória do arguido, a mesma tem de poder ser revista, desde que o arguido condenado consiga demonstrar a injustiça da condenação.
7. Em 1.º lugar teremos de nos debruçar sobre a forma como o Meritíssimo Tribunal a quo chegou ao número de crimes por que condenou o recorrente (factos provados com os números 9, 10, 15 e 15) e como o Tribunal da Relação manteve essa forma de chegar ao número de crime cometidos pelo recorrente, mantendo a decisão do coletivo, (pág. 44 do acórdão do TRC: “No que concerne à crítica assacada pelo recorrente quanto ao número de vezes em que terão ocorrido as relações sexuais antes de a ofendida atingir a maioridade que o tribunal a quo considerou provadas, não podendo este tribunal sindicar a credibilidade da prova pessoal pelas anteditas razões, pode, no entanto, apreciar o critério adotado e explicitado na motivação da decisão de facto de considerar o número de vezes referido pela ofendida pelo valor mais baixo, em consonância com o princípio basilar in dubio pro reo e que, assim, não merece qualquer reparo.”):
8. É importante realçar que a casa onde recorrente e ofendida viviam em ... era muito pequena e aberta (em open space), o que não permite grande privacidade a nenhum dos seus habitantes. E há também a questão da pandemia a ter em conta, a partir de março de 2020 houve um período de confinamento em que todos passaram a ficar mais tempo em casa. Sendo assim, como é que o Meritíssimo Tribunal a quo e depois o Tribunal da Relação, dá como provado que o recorrente tinha relações sexuais com a ofendida duas vezes por semana em ... e quatro vezes na ...?
9. A justificação dada foi a seguinte que agora se transcreve: “Todavia, o tribunal colectivo considera que o número de vezes em que BB refere prática de relações sexuais com o arguido deve ser analisado tendo presente o princípio in dubio pro reo”: isto é se são referidas quatro ou cinco vezes, devem ser tidas como provadas apenas 4 vezes, tal como quando diz duas ou três vezes somente se pode ter como firme que o facto tenha ocorrido por duas vezes e não por três; ora a acusação “nivela” pela hipótese mais elevada pelo que, salvo o devido respeito por diferente entendimento, tal viola aquele princípio porquanto em caso de “ou” a única certeza é o valor mais baixo, de outro modo, optando pelo valor mais alto do “ou” estaríamos a dar como provado algo sobre o qual pairava a dúvida, assim prejudicando o arguido.”
10. Decisão que foi mantida e aceite como correta pelo TRC, no entanto o depoimento da vítima, foi absolutamente contraditório, incoerente, contra as regras da lógica e da experiência, então a vítima não sabe a regularidade com que, alegadamente, foi abusada? A ofendida não fez qualquer distinção entre o período em que coabitou com o recorrente e aquele em que esteve afastada dele, em que um vivia em ... e o outro na ...… Ou durante o período em que fugiu de casa para viver com o seu namorado e depois com os seus avós maternos. Isto, por si só, já é indiciador da falta de veracidade das suas alegações, a ofendida quis fazer crer (e infelizmente com sucesso) que foi vítima do recorrente ininterruptamente de outubro de 2019 até fevereiro de 2022…
11. O Tribunal a quo e o TRC não tiveram em consideração que a ofendida tinha atividades extra curriculares e que poucas vezes estava sozinha em casa com o pai. Já na ..., o Tribunal a quo deu como provados que as relações sexuais aconteciam 4 vezes por semana, e sempre sem que a mãe da ofendida se apercebesse…Mais uma vez tal não nos parece ser credível e não há uma única prova nos autos que corrobore tal número. Apenas o depoimento da ofendida que diz entre 2 a 3 vezes em ... e entre 4 a 5 vezes na ..., e o recorrente é condenado porque o douto Tribunal entende que se se fala em 2 ou 3 vezes deve condenar em 2 vezes e se a ofendida diz 4 a 5 vezes vai o recorrente condenado em 4 vezes…
12. Na nossa humilde opinião, esta alegação da ofendida sem qualquer prova que a sustente, torna, para o recorrente, impossível provar que não fez aquilo de que veio acusado! Como se prova um facto negativo?
13. Ao recorrente parece que a existir um fundo de verdade em toda esta situação a ofendida recordar-se-ia muito bem de quantas vezes teria sido forçada a manter relações sexuais com o pai, mas não se recorda e generaliza, e sempre se dirá que quando a ofendida prestou o seu depoimento não houve ninguém que tentasse esclarecer estas questões para se deixar de ter uma acusação genérica para se passar a ter uma situação objetiva.
14. Não sendo possível apurar com exatidão o número de vezes em que o crime foi cometido, não deverá ser feita uma estimativa do mesmo, sob pena de se violar o direito à presunção de inocência do arguido, nos termos e para os efeitos do art. 32.º n.º 2 da CRP.
15. Ainda que se venha a considerar como provados que houve abusos sexuais, como foi, não se conseguiu provar o número de vezes que ocorreram. E por esse motivo não deveria o recorrente ter sido condenado da forma como foi. Ao proferir o acórdão condenando o recorrente da forma como o fez quanto ao número de crimes violou, o Tribunal da Relação, o princípio in dubio pro reo, violando o disposto no art. 32.º da CRP.
16. A decisão em análise condena o Recorrente por 116 crimes de abuso sexual de menor dependente, previsto e punido pelo artigo 172.º n.º 1 al.a), com referência ao art. 171.º n.º 1 e 2 CP, nas penas de 1 ano e 6 meses cada um, o que em cúmulo jurídico se traduziu na pena única de 9 anos de prisão efetiva, nas penas acessórias de proibição de exercer profissão ou atividades que envolvam contacto regular com menores pelo período de dez anos e na proibição de assumir a confiança de menor (em qualquer das modalidades legais) também por dez anos e numa indemnização a favor da ofendida no valor de €40 000,00.
Começamos por dizer que o legislador tem ampla margem de liberdade na fixação das sanções dos comportamentos que tipifica como crimes. No entanto, é imperativo que respeite os princípios constitucionais, nomeadamente, a necessidade das penas, a proporcionalidade e a igualdade.
17. As conceções sancionatórias de uma determinada sistémica penal constituem o espelho fiel da mundividência filosófica de uma determinada comunidade. Por isso, o abandono das doutrinas retributivistas está obviamente ligado à laicização do Estado e à total e irreversível separação entre a juridicidade e a moral religiosa inquinada da ideia transcendente de “pecado”. Por outro lado, as ruturas epistemológicas que interagem com as prevenções geral e especial estão intimamente ligadas à superação de um modelo, caracteristicamente repressivo, de Estado.
18. Se a prevenção geral fosse encarada num prisma marcadamente negativo, haveria toda a legitimidade para objetivar o arguido, tornando-o um paradigma carismático face aos olhos da restante comunidade de que “o crime não compensa”. Ora o enfoque, eminentemente positivo, de tal prevenção obriga a que o arguido seja encarado como um sujeito de uma ação humana que urge sancionar, para que a sociedade historicamente organizada veja reiterada a vigência intrínseca do bem jurídico violado. Também a prevenção especial não cristalizou historicamente. De facto, a pena deixou de se caracterizar pela necessidade de segregar da sociedade os agentes infratores, isolando-os preferencialmente no ostracismo longínquo de uma prisão, para proteger os membros sãos. Hoje ganham particular acuidade e dinâmica a ideia propedêutica de recuperação do arguido, dotando-o do manancial de instrumentos suscetíveis de contribuírem para uma relação padronizada com a sociedade em que se insere.
19. Obviamente que se a Lei Penal apenas visasse a eficácia preventiva ao sancionar os comportamentos desviados corria o risco, evidente, de se funcionalizar, de imolar às aras de um duvidoso pragmatismo a sua indispensável dimensão ética.
Daí a inexorável emergência do princípio da culpa como fundamento e limite inultrapassável de qualquer condenação. Haverá também de frisar-se, finalmente, que os postulados supra enunciados conhecem inteiro acolhimento no nosso tecido jurídico, desde logo constitucional – art. 1 e 18º, nº 2, ambos da CRP - e legal - art.s 70 e seguintes do Cód. Penal.
20. Acreditamos que a solução punitiva eleita pelo Douto Acórdão, de que ora se recorre, emerge em abrupta distonia com a legalidade aplicável. Na verdade, uma operação de determinação da pena não é matéria destituída de complexidade nem, tão pouco, passível de emergir absolutamente desprovida de subjetividade.
21. A determinação da pena não é nem pode ser uma operação de pura subjetividade, como tal insindicável e incontrolável, mas também não é, seguramente, uma mera atividade lógico-subsuntiva, apenas iluminada por critérios matemáticos: tem que revestir, de facto, a tendencial objetividade que deve presidir a todas as decisões judiciais.
22. A douta decisão de que se recorre não valorizou como atenuantes para considerar a medida da pena, o facto de que não há qualquer indício nos autos de que o recorrente tivesse condutas sexuais impróprias com outras menores; o facto de a ofendida já ser maior e já não viver com o recorrente (aliás não vive sequer no país); o facto de o recorrente não ter qualquer menor a seu cargo; o facto de não haver perigo de continuação de qualquer atividade criminosa (atente-se nos resultados das provas periciais), o recorrente está integrado socialmente e tem uma profissão, o que o torna ativamente produtivo, e o facto de já terem passados 6 anos desde o cometimento dos crimes.
23. As finalidades da aplicação de uma pena residem na tutela de bens jurídicos, sim, mas também na reinserção do agente na comunidade, prevenindo-se a prática de crimes futuros. O recorrente é membro ativo e positivo da sociedade, bem integrado profissionalmente e socialmente. Já passaram mais de 6 anos desde a prática dos crimes, sem que haja qualquer conduta ilícita a apontar ao recorrente. Os crimes por que foi condenado circunscrevem-se num apertado lapso temporal. Tudo isto conjugado justifica uma intervenção corretiva na pena única, motivo do presente recurso.
24. A determinação da medida da pena deve atender aos critérios gerais da prevenção e da culpa, mas também a um critério especial: a consideração conjunta dos factos e da personalidade do agente. Ao tribunal exige-se uma apreciação global dos factos, tomados em conjunto, e não enquanto mero somatório de factos desligados, na sua relação com a personalidade do agente.
Essa apreciação deverá indagar se a pluralidade dos factos criminosos corresponde a uma tendência da personalidade do agente, ou antes a uma mera pluriocasionalidade, de carácter fortuito ou acidental, não imputável a essa personalidade, para tanto devendo considerar vários factores, designadamente: a amplitude temporal da atividade criminosa, a diversidade dos tipos legais praticados, a gravidade dos ilícitos cometidos, a intensidade da atuação criminosa, o número de vítimas, o grau de adesão ao crime como modo de vida, as motivações do agente e as expetativas quanto ao futuro comportamento do mesmo.
25. No caso em apreço, podemos concluir que o recorrente não tem uma tendência para o crime, mas que houve uma pluriocasionalidade que não radica na sua personalidade, logo o número de crimes praticados não deverá ter um efeito agravante na moldura penal.
26. A fixação da pena única deve olhar para a imagem global do facto e atentar nas conexões de sentido espaciais, temporais e normativas passíveis de serem estabelecidas entre os factos e penas em concurso, tendo sido omitido pelo Tribunal de recurso qualquer valoração crítica da evolução da personalidade do agente/recorrente, nomeadamente, tendo postergado a efetivação de qualquer relatório social atualizado ou perícia à personalidade do agente, sabendo, que entre a prática dos factos e a decisão, fluíram mais de 6 anos!
27. Recordando jurisprudência constante deste Supremo Tribunal de Justiça, com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também, pelo seu conjunto, enquanto revelador da dimensão e gravidade global do seu comportamento. Há que atender ao conjunto de todos os factos cometidos pelo arguido e ao fio condutor presente na repetição criminosa, procurando estabelecer uma relação desses factos com a personalidade do agente, tendo-se em conta a caracterização desta, com sua projeção nos crimes praticados, levando-se em consideração a natureza destes e a verificação ou não de identidade dos bens jurídicos violados, tudo isto «tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto de factos praticados é a expressão de uma tendência criminosa, ou seja, se significará já a expressão de algum pendor para uma “carreira”, ou se, diversamente, a repetição comportamental dos valores estabelecidos emergirá antes e apenas de fatores meramente ocasionais», neste sentido os diversos acórdãos referidos na motivação do recurso.
28. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Estabelece o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente manifestada no facto, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele considerando, nomeadamente as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito. Como se tem afirmado, encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». A privação do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos – adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva (cfr. Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, notas aos artigos 18.º e 27.º).
29. Para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o artigo 71.º, n.º 2 CP, considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto. Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto, o comportamento anterior e posterior ao crime [com destaque para os antecedentes criminais] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto. O comportamento do agente adquire particular relevo para determinação da medida concreta da pena em vista da satisfação das exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização do agente, devendo evitar-se a dessocialização.
30. É verdade que o número de crimes é elevado (não obstante o recorrente não prescindir do que supra se referiu quanto ao número de crimes em que foi condenado), no entanto, esses crimes foram cometidos num curto período temporal, e circunscritos apenas a esse lapso de tempo, e reconduzem, no essencial, à violação dos mesmos bens jurídicos, mediante condutas idênticas e repetidas, o que parece corresponder a um determinado período de vida, a uma tendência manifestada nessa fase da vida, diminuindo, a esta distância temporal, as exigências de prevenção especial.
31. Na verdade, atenta a inexistência de considerações de prevenção especial que legitimem tal medida da pena, só a adoção de um prisma da prevenção geral que privilegie a feição intimidatória como sua característica crucial, torna compreensível a aplicação de uma pena de 9 anos de prisão efetiva. E, secundando a argumentação expendida, deve dizer-se que a prevenção especial desaconselha o tipo de pena aplicada, por se constatar a plena socialização do recorrente. Isto é, a espécie de pena eleita (prisão efetiva) é daquelas que frustrará inexoravelmente a ideia matriz da pena; com efeito, ao invés de contribuir para a interiorização da censurabilidade da conduta por banda do agente e emergir como fator da respetiva integração comunitária irrompe como inegável fator de dessocialização, uma vez que retira o recorrente do seu emprego e irá lançá-lo numa situação de desemprego após o fim do cumprimento da pena.
32. Estamos, de facto, na presença de uma pena que apenas servirá para deslocar o recorrente social, familiar e profissionalmente, castigando-o.
33. Na verdade, para dizer com FIGUEIREDO DIAS – Direito Penal, Tomo I, Parte Geral, 2ª Edição, pág. 81 – “fica por esta via esvaziada de conteúdo uma das questões mais vivamente discutidas na doutrina a propósito do papel da prevenção geral na doutrina dos fins das penas: a de saber se seria lícita uma qualquer elevação da pena em nome de exigências de prevenção geral negativa ou prevenção de intimidação da generalidade. A intimidação da generalidade, sendo sem dúvida um efeito a considerar – e seria hipocrisia desconhecê-lo ou ocultá-lo – dentro da moldura de prevenção geral positiva, não constitui todavia por si mesma uma finalidade autónoma da pena, somente podendo surgir como um efeito lateral (porventura, em certos ou muitos casos desejável) da necessidade de tutela dos bens jurídicos”. Isto é, a função preventiva determinante a nível geral é, de facto, a reiteração da validade do bem jurídico tutelado pela norma e já não qualquer espúria publicidade negativa associada à dureza plástica da rigorosa condenação. Tal condicionalismo e caracterização deixam, pois, em evidência o desfasamento da pena aplicada. Sentimento que se agudiza quando a duração da pena é passada pelo crivo da prevenção especial.
34. In casu, como é manifesto, a pena aplicada não satisfará qualquer finalidade preventiva – como dito, antes pelo contrário, emergirá como antítese dos fins das penas legalmente taxados. Segundo FIGUEIREDO DIAS – obra citada, pág. 82 – “A medida da necessidade de socialização do agente é no entanto, em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial, constituindo hoje o vector mais importante daquele pensamento. Ele só entra em jogo porém se o agente se revelar carente de socialização. Se uma tal carência se não verificar tudo se resumirá, em termos de prevenção especial, em conferir à pena uma função de suficiente advertência; o que permitirá que a medida da pena desça até perto do limite mínimo da «moldura de prevenção» ou mesmo que com ele coincida(«defesa do ordenamento jurídico»)”.
35. Por outro lado, finalmente, terá de se considerar a culpa do agente como limite e fundamento da pena. Ora, tal culpa, entendida como “proibição de excesso” tem de ser funcionalmente entendida como barreira máxima da pena, enquanto conciliável com a dimensão dignidade da pessoa e respetiva evolução num estado de direito.
36. Ora, evidente se torna que o recorrente agiu culposamente. Todavia, a dimensão dessa culpa – enquanto expressão de atitude interna juridicamente censurável e que impõe a necessidade de responder comunitariamente – atento o circunstancialismo concreto em que se moveu, não legitima a grandeza da punição. Na presente hipótese, tudo ponderado, afigura-se que a medida concreta da pena a aplicar ao recorrente deve fixar-se perto do limite mínimo da moldura abstrata aplicável ao facto em análise, e sempre em expressão numérica inferior a cinco anos, exatamente para possibilitar da suspensão da execução da pena. O douto acórdão recorrido ao aplicar a condenação da forma como o fez quanto ao número de crimes e quanto à falta de aplicação prática das atenuantes violou o princípio in dubio pro reo, no art. 32.º da CRP e a forma como a determinação da concreta medida da pena deve valorizar todas as circunstâncias (e não apenas as negativas) art. 71.º CP.
37. O Tribunal de cuja douta decisão agora se recorre, decidiu manter a condenação do recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 69º-B, nº 2, do Código Penal, na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período de dez anos; e ao abrigo do disposto no art. 69º-C, nº 2, do Código Penal, na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adopção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de dez anos.
38. Denota o recorrente que os tribunais superiores têm vindo a decidir pela inconstitucionalidade destes dispositivos legais e por esse motivo, decidem pela não aplicação de tal sanção acessória. Neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11.01.20024, relator Dra. Maria João Ferreira Lopes, in www.dgsi.pt, cujos extratos mais relevantes estão transcritos na motivação do presente recurso.
39. Ao aplicar as sanções da forma como aplicou, não só aplicou normas declaradamente inconstitucionais, como violou o acórdão condenatório o princípio da proporcionalidade consagrado no art. 18.º CRP.
40. O recorrente foi condenado a pagar a título de indemnização, por danos não patrimoniais à ofendida, o valor de €40 000,00, sendo que o Tribunal da Relação de Coimbra confirmou tal montante. Apesar do acórdão condenatório dar como provado que o agregado familiar do arguido aufere mensalmente €1670,00 brutos, deduzindo a este rendimento €550,00 para as despesas fixas mensais, que não existem outras formas de rendimento e que não se apurou de forma individualizada a situação económica do recorrente, ainda assim manteve o valor indemnizatório nos €40 000,00. Do agregado familiar referido pelo douto acórdão apenas o arguido é parte neste processo criminal, logo deveria ter havido uma distinção entre os rendimentos dos elementos desse agregado, porque apenas os rendimentos do arguido devem valorar para efeitos de indemnização. As indemnizações por danos não patrimoniais devem ter em conta os factos, as posses do responsável e os princípios de proporcionalidade e de equidade.
41. O Tribunal de que ora se recorre não teve nenhum desses critérios em conta, fez uso do seu poder de livre apreciação da prova e condenou o recorrente numa indemnização nunca antes vista.
42. Aliás, não se percebe, a partir do texto da decisão recorrida, como chegou o Tribunal a quo a tal montante, qual foi o critério utilizado para se definir como certo e correto aquela quantia? Depois de muita jurisprudência analisada de tribunais superiores, o recorrente verificou que a indemnização a que foi condenado é manifestamente exagerada. Atenta a natureza dos factos em apreciação e a idade da ofendida, assiste à mesma o estatuto de vítima particularmente vulnerável e o direito ao ressarcimento pelos danos sofridos. Com efeito, segundo o art. 82.º-A, n.º 1, do CPP, não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, o tribunal em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos, quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham.
43. Dispõe o art. 483º do Código Civil que «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação». Da leitura do disposto no art. 483º do Código Civil resulta que a obrigação de indemnizar imposta ao lesante assenta na verificação de vários pressupostos, a saber: a) o facto; b) a ilicitude; c) o vínculo de imputação do facto ao lesante; d) o dano; e) o nexo de causalidade entre o facto e o dano. No que respeita aos danos não patrimoniais, determina o art. 496º, nº 1 do Código Civil que, “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito”. Este preceito tem carácter geral, sendo aplicável quer se trate de danos não patrimoniais resultantes da lesão corporal, quer de outros, desde que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do Direito (vide, sobre o tema, Vaz Serra, R.L.J., 113º, pág. 96). O nº 3 do mesmo preceito regula o modo de fixação do montante da indemnização devida, impondo o recurso à equidade, mediante a ponderação das circunstâncias referidas no art. 494º do mesmo diploma legal. Os danos não patrimoniais são comummente definidos como prejuízos insuscetíveis de avaliação pecuniária.
44. A gravidade do dano, para justificar a concessão de uma indemnização, é apreciada em função de um padrão tanto quanto possível objetivo, ainda que se deva sempre atender às circunstâncias concretas que envolvem o caso. Por outro lado, o nº 1 do art. 496º do Código Civil tem alcance geral, sendo aplicável quer se trate de danos não patrimoniais resultantes de lesão corporal, quer de outros, desde que pela sua gravidade, mereçam a tutela do Direito (cfr. Vaz Serra, R.L.J. nº 113º, pág. 96). Para determinar o montante da indemnização por danos não patrimoniais, há que atender, entre outros fatores, à situação sócio-económica da vítima e agressor. Tudo ponderado, afigura-se-nos que o montante de €40 000,00, é manifestamente exagerado face ao que consta dos factos provados quanto à situação económica do infrator e aos danos que foram dados por provados.
45. Outra coisa a ter em conta, é que o recorrente só conseguirá pagar a indemnização a que for condenado se puder continuar a trabalhar, se for preso não tem como pagar o que quer que seja, uma vez que deixa de auferir qualquer rendimento. Ao condenar o recorrente na indemnização de €40.000,00, o Tribunal recorrido, violou o princípio da livre apreciação da prova e o princípio segundo o qual as indemnizações devem ser arbitradas respeitando os critérios de proporcionalidade, adequação e equidade.
46. O acórdão de que agora se recorre, está tão imbuído do espírito de castigo e punição, que se fundamenta a manutenção do quantum indemnizatório desta forma (pág. 66): “Apesar de não estarmos perante uma situação económica desafogada e de se perfilar no horizonte a ausência de rendimentos do trabalho do recorrente por força da sua futura reclusão em cumprimento da pena de prisão em que foi condenado, não se pode ignorar que aquele e a esposa são proprietários de uma moradia [cfr. ponto 34 da factualidade provada], de valor não apurado, desconhecendo-se, igualmente, se dela retiram proveitos, nomeadamente, a título de rendas. ”, ou seja, não interessa a falta de rendimentos, não interessa que não se tenha apurado se há rendas ou se o casal utiliza a casa, o que interessa é que há uma moradia, propriedade comum do casal, então decide-se punir não só o recorrente, arguido, mas também a sua esposa que nada tem a ver com a presente situação, forçando-os a uma venda da propriedade...
47. Face o exposto pretende-se que seja dado provimento à posição ora defendida pelo recorrente, e que seja proferido novo acórdão, que em cúmulo jurídico, fixe uma pena de prisão que não exceda os cinco anos, sendo de aplicar, assim, ao recorrente a suspensão da execução da pena de prisão, desde logo porque: atendendo à personalidade do arguido, às condições da sua vida, ao facto de estar socialmente bem integrado, ao facto de a ofendida já não residir com o arguido recorrente e nem se encontrar a viver no mesmo país, ao facto de não haver perigo de continuação de qualquer comportamento desviante, e dado os 6 anos que já passaram, somos de concluir que no presente caso, a simples censura do facto e ameaça da prisão realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Tanto mais, porque estamos perante um indivíduo que socialmente é tido como uma pessoa respeitadora do direito e das leis pelas quais se rege a sociedade. Inexistem quaisquer outros elementos para que se possa concluir em sentido contrário, do ora argumentado em sede de recurso.
48. Atento a pesadíssima pena em que foi condenado, caso lhe venha a ser reduzida a pena e suspensa na sua execução, resulta evidente que a simples censura do facto e a ameaça de ir para a prisão, por si só, realizam suficientemente e de forma adequada a finalidade da punição. Ademais, o recorrente tem bons hábitos laborais, a sua integração social é boa, e mantém boas relações com os seus pares. O recorrente tem uma imagem social positiva, junto daqueles que o conhecem, nomeadamente familiares, vizinhos e colegas de trabalho, mantendo comportamentos adequados no contacto social que estabelece. Dito isto, estamos convictos que é possível realizar um juízo favorável quanto ao futuro do arguido, ora recorrente.
49. O recorrente é de modesta condição social e económica, sem grande instrução escolar, encontra-se inserido socialmente e tem hábitos de trabalho, porquanto ponderadas as circunstâncias concretas da atuação do recorrente, as suas circunstâncias de vida e personalidade, justificar-se-ia sempre, no nosso humilde entendimento, a suspensão da pena ao ora recorrente, claro está, caso lhe venha a ser reduzida a pena em consequência do presente recurso, para uma pena não superior a cinco anos de prisão, tanto mais porque a simples censura do facto e ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
50. Sendo que, no caso em apreço a suspensão da execução da pena, não compromete as finalidades precípuas da pena, qual seja a proteção do bem jurídico. A simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, sobretudo o afastamento, no futuro, da prática de novos crimes, devendo, salvo melhor opinião, suspender-se a pena de prisão que for aplicada ao arguido (caso a mesma lhe venha a final a ser reduzida e em cúmulo jurídico não venha a exceder os cinco anos de prisão) condicionada a eventuais deveres, regras de conduta ou regime de prova, ou conjugação das mesmas.
51. Por outro lado, urge a necessidade de permitir ao recorrente, a faculdade de poder continuar a trabalhar, pois só assim poderá angariar o valor de €40.000,00 (ou naquele a que vier a ser condenado caso as suas considerações supra sobre o assunto tenham provimento) para proceder ao pagamento da indemnização a que foi condenado e que é manifestamente excessiva.
52. Entende-se, pois, que o Tribunal ultrapassou largamente a culpa do arguido e não teve em conta os princípios da adequação e proporcionalidade das penas parcelares e da pena única em cúmulo jurídico que lhe foram aplicadas, os princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo, violando-se expressamente o disposto nos artigos 18.º n.º 2, 29.º, 30º e 32.º n.º 1 da CRP, 40.º, 50.º, 70.º, 71.º, 40.º nº 1 e 2, 171.º e 172.º do CP e 127.º CPP, tanto mais que as exigências de prevenção geral e especial as não justificam.
53. Pelo que se pugna pela substituição do douto acórdão recorrido, por outro que, em cúmulo jurídico, fixe uma pena de prisão que não exceda os cinco anos, aplicando-se ao arguido a suspensão da execução da pena de prisão.
TERMOS EM QUE, deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o douto acórdão recorrido e proferindo-se decisão que altere a medida da pena aplicada por ser excessiva, revogando-se a decisão a quo nesta parte, aplicando-se uma pena em cúmulo jurídico que não exceda os cinco anos de prisão, procedendo-se, depois, à suspensão da execução da pena de prisão que venha a ser aplicada ao recorrente.
Deverá ainda, ser revogado a aplicação das penas acessórias ao recorrente.
Também a indemnização por danos não patrimoniais deverá ser substancialmente reduzida.
4. O Ministério Público, junto da Relação, respondeu ao recurso, extraindo as seguintes conclusões que se transcrevem:
1. O arguido AA vem recorrer de Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra que confirmou integralmente a condenação de 1ª instância como autor material e em concurso real, de 116 crimes de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, previstos e punidos pelo art.º 172.º n.º 1 alínea a), com referência ao artigo 171º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, nas penas de um ano e seis meses de prisão cada um; condenando-o em cúmulo jurídico, na pena única de nove anos de prisão; condenando-o ao abrigo do disposto no artigo 69º-B, nº 2, do Código Penal, na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período de dez anos; condenando-o, ao abrigo do disposto no artigo 69º-C, nº 2, do Código Penal, na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de dez anos; e condenando-o, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 16º, nº 2, da Lei nº 130/2015, de 04 de Setembro e 82.º-A do Código de Processo Penal, a pagar à vítima BB a quantia de 40.000,00 euros (quarenta mil euros), a título de indemnização, arbitrada oficiosamente.
2. O recurso do acórdão é admissível porquanto visa acórdão proferido, em recurso, pela relação, que confirmou decisão de 1ª instância, aplicando pena superior a 8 anos.
3. Porém, sendo admissível, o recurso não tem o alcance que o recorrente lhe deu. 4. Assim, e desde logo, nos termos do disposto no art.º 434º do C.P.P., o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame de matéria de direito.
5. Pretendendo o recorrente sindicar a decisão recorrida (do Tribunal da Relação) sobre matéria de facto – apelando a meios de prova valorados - tal matéria não é suscetível de conhecimento pelo STJ e deve determinar, nesses segmentos (conclusões 7 a 15 do recurso) a rejeição do recurso.
6. Por seu turno, no caso concreto, uma outra limitação na competência do STJ decorre da circunstância de estarmos perante uma situação de dupla conforme: a de não ser admissível recurso relativamente aos segmentos da decisão que aplicaram as penas parcelares, por serem inferiores a 8 anos de prisão, às questões conexas que as integram, substanciais ou processuais, ou aos segmentos da decisão que aplicaram as penas acessórias ou o arbitramento da reparação oficiosa.
7. Consequentemente, não sendo tais matérias suscetíveis de conhecimento, em recurso, pelo STJ, por estarem estabilizadas no âmbito de dupla conforme, tal deve determinar, nos segmentos a que se reportam as conclusões 37 a 51, a rejeição do recurso.
8. A única questão a conhecer no âmbito do presente recurso, será, pois, em nossa opinião, a da medida e escolha da pena única de 9 anos de prisão.
9. Analisando os fundamentos de recurso, nesta vertente da fixação da pena única, conclui-se que o recorrente está a empreender um segundo recurso da decisão de 1ª instância, com argumentos reciclados ou repisados, e não uma verdadeira impugnação da decisão proferida pelo Tribunal da Relação.
10. É manifesto que não colhem as suas críticas, pois o Tribunal da Relação efetuou circunstanciada análise do decidido, ponderando todas as variáveis do caso e fundamentando com assertividade a sua posição final.
11. Nada na imagem global do facto ou na imagem global do agente (retirada dos factos provados) possibilita aumentar o efeito de compressão da pena única, dentro da moldura aplicável – não sendo demais recordar que a pena concreta encontrada se situa próxima do primeiro terço inferior da moldura.
12. O arguido, mesmo em sede de recurso, mantém uma postura de vitimização em toda a situação, demarcando-se e desresponsabilizando-se dos factos praticados, bem como das consequências e marcas deixadas na pessoa da filha, que objetificou e desumanizou.
13. Sendo para nós patente que o recurso deve improceder na pretensão de fixação de pena em limite inferior.
14. Assim se prejudicando a ponderação de pena de substituição, por inadmissibilidade legal.
5. Neste Supremo Tribunal de Justiça (doravante STJ), o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de CPP), emitiu parecer em que conclui: caso se entenda que o recorrente não deve ser notificado para formular conclusões aperfeiçoadas, o recurso deve ser rejeitado quanto à discussão relativa ao concurso de crimes e suas penas (dupla conforme), sendo mantida a aplicação da pena única e das penas acessórias.
6. Tendo sido entendido não ser de proferir despacho de aperfeiçoamento das conclusões, foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta ao parecer.
Colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do CPP, que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido, constituindo entendimento constante e pacífico que o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso.
Atentas as conclusões apresentadas – a que se censura a extensão e natureza expositiva / repetitiva, que não se adequa à exigência de concisão inerente à formulação de conclusões -, as questões que o recorrente suscita são as seguintes:
1 – número de crimes por que foi condenado;
2 – medidas das penas principais;
3 – condenação em penas acessórias;
4 – redução da pena única resultante de cúmulo jurídico e suspensão da sua execução;
5 – redução do valor da reparação oficiosa.
2. Factos provados
2.1. Foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
1- O arguido AA casou com CC e desta união nasceu, no dia D de M de 2002, BB, relativamente a quem sempre exerceu as respectivas responsabilidades parentais.
2- Em 2014/2015, o arguido AA, CC e BB fixaram residência em ....
3- Durante o crescimento de BB, em especial quando esta ingressou no 8.º ano de escolaridade, o arguido AA procurava saber tudo o que a filha fazia, com quem se relacionava, verificando-lhe os contactos que mantinha via telemóvel, discutindo com esta, além do mais, quando se atrasava.
4- No Verão de 2019, quando BB tinha já 16 anos, acercou-se da mesma e começou a falar com ela sobre sexo, descrevendo relações sexuais que tinha mantido com a mãe e com outras pessoas e incitando-a a falar sobre tal tema, bem como questionando-a sobre a eventualidade de manter relações sexuais consigo.
5- Tal abordagem durou alguns meses, até que em Setembro/Outubro de 2019, começou também a acariciá-la no corpo, em especial nos seios e na vagina.
6- Em data não concretamente determinada, ainda antes de BB perfazer 17 anos (9 de Novembro de 2019), na sala da casa em que habitavam, em ..., o arguido começou a tocar no corpo daquela e insistiu para que mantivessem relações sexuais.
7- Como BB ofereceu resistência, fez-se valer da sua autoridade e do afecto que a menor nutria por si, enquanto seu pai, dizendo-lhe que se esta não se relacionasse sexualmente consigo, era porque não gostava dele.
8- Dessa forma, convenceu a filha, até então virgem, a manter relações sexuais consigo, introduzindo o seu pénis na vagina dela.
9- A partir de dia não concretamente apurado de Outubro de 2019, e sempre que estavam sozinhos em casa, o que acontecia duas vezes por semana, o arguido persuadia BB a manter relações sexuais consigo.
10- Essas relações aconteciam no sofá da sala ou no quarto deste, depois de jantar, sendo que para o efeito AA se despia e de seguida tirava a roupa da filha, introduzindo-lhe, de seguida, o pénis na vagina, na boca ou no ânus e movimentando-o de forma ritmada até ejacular.
11- O arguido apenas usava preservativo, quando penetrava a menor na vagina, mas já não quando praticavam sexo anal ou oral.
12- Em data não concretamente apurada de Abril de 2020, a BB e a mãe vieram morar para a ... e o arguido ficou em ....
13- O arguido veio para a ... em dia não concretamente apurado de Junho de 2020.
14- Em Setembro de 2020, o agregado familiar passou a residir na Rua 1, na ....
15- Também aí, com o intuito de satisfazer os seus interesses libidinosos e tirando partido dos laços familiares que os uniam e do temor que BB lhe tinha, mantinha relações sexuais com ela, as quais, como em ..., consistiam em introduzir o seu pénis na vagina e no ânus da menor ou em praticar sexo oral recíproco.
15- Tal acontecia quatro vezes por semana, após o jantar, quando a mãe da menor saía para trabalhar.
16- O arguido sabia que atentava contra o livre desenvolvimento da personalidade e sexualidade da filha, não se demovendo, contudo, de agir da forma descrita, apalpando-lhe os seios, a vagina, introduzindo o seu pénis na vagina, ânus e boca, para satisfazer os seus desejos libidinosos.
17- Para tanto, aproveitou-se dos laços familiares que o uniam à menor, bem sabendo que os actos acima descritos eram adequados a prejudicar, como prejudicaram, o livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade desta, na sua esfera sexual, aproveitando-se da sua imaturidade, ingenuidade e inexperiência e da sua incapacidade para lhe oferecer resistência, para dessa forma a convencer a manter consigo relações sexuais da mais diversa índole.
20- O arguido sabia igualmente a idade de BB e que a mesma era sua filha, cabendo-lhe o exercício das respectivas responsabilidades parentais, pelo que lhe devia particulares obrigações de respeito, em virtude de tais circunstâncias, as quais, ignorou, e das quais, se aproveitou.
21- O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas criminalmente.
22- Para além de se relacionar sexualmente com a filha BB em casa, o arguido AA pressionava-a para que, quando estivesse no trabalho, lhe remetesse fotografias e vídeos dela a exibir os órgãos sexuais e bem assim mensagens de cariz sexual.
21- Mesmo depois de BB atingir os 18 anos o arguido AA e BB continuaram a trocar mensagens de cariz sexual e respeitante ao relacionamento que mantiveram entre si até 17 de Fevereiro de 2022, assim:
21.1- no dia 04 de Junho de 2021:
BB: Vem dar beijinhos nela pai
AA: Ui vou vou
BB: Vem eu quero
AA :Eu também mas agora deves estar com o período
BB: Ainda não apareceu
AA: Mas achas que já está para aparecer
BB: Sim acho que sim pois a barriga está mais inchada e as vezes sinto mini dores na barriga do período. E ontem eu engoli. E gostei.
AA: Não pareceu parecia forçado
BB: Nada disso pai eu engoli logo e foi bom nem fiz caras estranhas nem nada. Eu gostei muito
AA: Sim mas falta o gostares e mostrares que gostas
BB: Eu gosto. E ontem sim eu amei engolir e estar contigo
AA: E eu contigo
BB: Quero que te sintas bem comigo. Amo te. És o meu homem.
21.2- no dia 10 de Junho de 2021:
BB: Queria que estivéssemos agora na cama a fazer brincadeiras. Ou na praia e eu mostra te as mamas. Quero por te mesmo ao rubro
AA: Amo te
BB: Quando o período acabar quero que me venhas lamber. E quero mandar líquido. O que achas disso?
AA: Adoro
BB: É adoras o sabor dela
AA :Sim bastante
21.3- no dia 16 de Junho de 2021:
BB: E eu gosto do teu e muito. Quero que me metas a gritar como ontem. E eu amo tomar banho contigo amor. Amo sentir te
AA: E eu a ti
BB: Adoro o teu cheiro. E o teu sabor.
AA: E eu o teu.
21.4- noutros dias posteriores do mesmo período:
BB: Ainda bem meu marido lindo
BB: És o único homem na minha vida e vais o ser para sempre
AA: Tu comigo nem te babas da cona já, antes eras as carradas agora nicles
AA: Fico eu e sempre a arder, com conversa com vir com tudo
BB: Sim mas não te esqueças que eu estive cinco ou seis dias a dar te prazer e a nível da conversa tenho da falar mais sim, mas a dar prazer eu dou te e com mais coisas diferentes
AA: Mas a conversa é brincadeira e muito importante para mim
BB: Eu sei fofo, é por isso que em casa já melhorei um pouco a parte do picar, agora na rua tenho se picar e falar eu tento falar mais
AA: Tenho de te lamber. O rabo. Gostava de te rebentar e ires a lua. Isso queria eu. Ainda não caíste para o lado.
BB: Quero te lamber esse pau
AA: Queres nadaq
BB: Quero esse branquinho
AA: Queres nada limpas sempre
BB: Uma vez que me excitou foi quando fizemos lá em ....
BB: E o que te excita mais amor?
AA: Já disse falar e fazer coisas diferentes principalmente no dia a dia e fora de casa também.
Mas já digo isto a anos não mudou nada, apenas mudou o facto de o fazeres para outros e não para mim que agora dizes que mudas e vais fazer mas na realidade bola
BB: E já tirei fotos com o teu telemóvel para ti, coisa que já disse te que querias que eu fizesse e fiz por mim, sem pedires
AA: Adoro a tua conchinha linda e cheirosa. Ontem estava bue bonita
21.5 – no dia 17 de Agosto de 2021:
BB: Não me vim quando? Ah em ... com a mãe lá. Dessa vez jesus.
22- O relacionamento sexual entre o arguido e BB apenas terminou quando esta fugiu de casa no dia 17 de Fevereiro de 2022.
22- Nessa altura, BB foi morar com o namorado DD, em casa de quem ficou cerca de seis meses.
23- Após, devido a desentendimento com aquele, BB foi para casa dos avós e da tia EE, na ..., Moita.
24- Desde que saiu de casa dos pais, BB nunca mais teve contacto com nenhum deles.
25- Entretanto, BB foi viver para Antuérpia, na Bélgica, mantendo contactos (por WhatsApp) com a tia EE.
26- O arguido AAfoi condenado no processo comum singular nº 15/17.0GAMTL, do Juízo Local Criminal de Beja, por sentença de 13.11.2018, transitada em julgado a 13.12.2018, pela prática de dois crimes de difamação, por factos ocorridos a 03.02.2017, na pena de 300 dias de multa à taxa diária de 6,00 euros; a 01.02.2019, tal multa foi substituída por 300 horas de trabalho a favor da comunidade que foi cumprida no núcleo museológico da autarquia de Mértola, sob supervisão da DGRSP; prestou 140 horas de trabalho a favor da comunidade, tendo efectuado o pagamento do remanescente da pena de multa 960,00 euros).
27- O arguido AA nasceu a D de M de 1983, na freguesia de Localização 2, Lisboa, sendo que os seus pais se divorciaram quando era “bastante novo” e não estabeleceu qualquer vínculo com o seu pai.
28- A nível escolar, o arguido AA tem o 9.º ano de escolaridade, que concluiu aos 15 anos, sem reprovações e embora tenha iniciado a frequência do 10.º ano em várias áreas formativas, desistiu do percurso escolar para trabalhar a tempo inteiro.
29- A mãe mora e trabalha na zona de Lisboa, cujo companheiro faleceu em 2022, por problemas de saúde decorrentes da ingestão abusiva de álcool.
30- O arguido identifica apenas como figura de referência uma tia materna, FF, com cerca de 58 anos, reformada por invalidez, residente em Monte Caparica, com quem mantém contacto telefónico regular e visitas pontuais.
31- O arguido AA trabalha desde os 17 anos, sobretudo em empresas de comércio de retalho como empregado de armazém, não tendo assinalado dificuldades de integração ou de desempenho ou períodos significativos de desemprego.
32- Nos últimos três anos, mantém actividade laboral como operador de logística, na empresa de bricolage “Leroy Merlin”, nas instalações da Figueira da Foz.
33- Os rendimentos do agregado são provenientes dos salários do arguido e da esposa, no montante bruto de 1670 euros, acrescidos dos subsídios de turno; aos rendimentos do agregado é deduzido o valor aproximado de 550 euros referente às despesas fixas mensais com água, electricidade, gás, telecomunicações e renda de casa.
34- O arguido AA e a esposa residem em ..., desde 2020, numa moradia arrendada, de tipologia T2, com adequadas condições de habitabilidade; a família possui uma moradia própria, de tipologia T1, em ..., uma aldeia inserida no concelho de ..., localidade onde viviam anteriormente.
35- Nos seus tempos livres, o arguido gosta de andar de bicicleta e de mota, não participa em actividades de lazer organizadas.
36- No meio sociocomunitário onde se insere não são referenciadas problemáticas sociais relevantes e o arguido não é conhecido pela autoridade policial.
37- O arguido AA não manifesta arrependimento.
38- O arguido AA, para além de uma personalidade com traços disfuncionais não apresenta uma doença mental no sentido estrito e rigoroso do conceito.
39- O arguido não apresenta, nem apresentava à data dos factos, qualquer sintomatologia que permita configurar um qualquer quadro psicopatológico que lhe comprometesse a capacidade de avaliar a licitude ou ilicitude dos seus actos e de se determinar de acordo com a avaliação efectuada.
*
3. Apreciando
3.1. Inadmissibilidade do recurso quanto aos crimes e penas parcelares, penas acessórias e valor da reparação oficiosa.
O recorrente coloca em causa a forma como se chegou à determinação do número de crimes por que foi condenado, para tanto revisitando a matéria de facto e provas em que a mesma se fundou e invocando a seu favor os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo.
Questiona as penas acessórias, que considera inconstitucionais, e bem assim o valor da reparação arbitrada a favor da ofendida.
3.1.1. Estabelece o artigo 400.º, n.º1, alíneas e) e f), do CPP:
«1 - Não é admissível recurso:
(…)
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância;
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;
(…).»
O segmento final da transcrita alínea e) resulta da redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21/12, que para o caso não importa.
Por sua vez, dispõe o artigo 432.º, do CPP, sob a epígrafe “Recursos para o Supremo Tribunal de Justiça”:
«1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:
a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;
b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;
c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;
d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.
2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º».
Finalmente, o artigo 434.º, sob a epígrafe “Poderes de cognição”, preceitua que «O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º», resultando o segmento final da redacção dada pela Lei n.º 94/2021.
Como tem sido pacificamente entendido pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nos casos das alíneas e) e f), do n.º 1, do artigo 400.º, do CPP, os poderes deste tribunal estão delimitados negativamente pela medida das penas aplicadas pelo Tribunal da Relação.
Da conjugação destas disposições resulta, numa formulação sintética, que só é admissível o recurso para o STJ de acórdãos das relações, proferidos em recurso, que apliquem:
- penas superiores a 5 anos de prisão, quando não se verifique dupla conforme;
- penas superiores a 8 anos de prisão, independentemente da existência de dupla conforme.
A confirmação da decisão pelo Tribunal da Relação pode não ser total, mas tratar-se de uma simples divergência quantitativa, denominada confirmação “in mellius”.
Tal significa só ser admissível recurso de decisão confirmatória da Relação no caso de a pena aplicada ser superior a 8 anos de prisão, quer estejam em causa penas parcelares ou singulares, quer penas conjuntas ou únicas resultantes de cúmulo jurídico (cf., entre muitos arestos que estão disponíveis para consulta, os acórdãos do STJ: de 11.03.2021, Proc. 809/19.1T9VFX.E1.S1; 02.12.2021, Proc. 923/09.1T3SNT.L1.S1; 12.01.2022, Proc. 89/14.5T9LOU.P1.S1; 20.10.2022, Proc. 1991/18.0GLSNT.L1.S1; 30.11.2022, Proc. 1052/15.4PWPRT.P1.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt, como outros que sejam citados sem diversa indicação).
No caso em apreço, as diversas penas parcelares impostas ao recorrente são todas não superiores a 5 anos de prisão.
Por sua vez, a pena única imposta pela Relação é de 9 anos de prisão.
É forçoso concluir ser inadmissível o recurso quanto às condenações nas diversas penas parcelares, irrecorribilidade que abrange toda a matéria que se prenda com as infrações penais em causa, ou seja, “todas as questões relativas à atividade decisória que subjaz e que conduziu à condenação, incluída a matéria de facto, nulidades, vícios lógicos da decisão, o princípio in dubio pro reo, a qualificação jurídica, a escolha das penas e a respetiva medida. Em suma, todas as questões subjacentes à decisão, submetidas a sindicância, sejam elas de constitucionalidade, substantivas ou processuais” (acórdão de 10.03.2021, deste STJ, proferido no Proc. n.º 330/19.8GBPVL.G1.S1, da 3.ª Secção).
Por outras palavras, estando o STJ, por razões de competência, impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, está também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão, tais como os vícios da decisão indicados no artigo 410.º do CPP, respetivas nulidades (artigo 379.º e 425.º, n.º 4) e aspetos relacionadas com o julgamento dos crimes que constituem o seu objeto, aqui se incluindo as questões relativas à apreciação da prova, à qualificação jurídica dos factos e à determinação da pena correspondente ao tipo de ilícito realizado pela prática desses factos (com penas de medida não superior a 5 ou 8 anos de prisão, consoante os casos das alíneas e) e f) do artigo 400.º do CPP), incluindo nesta determinação, por exemplo, a aplicação do regime de atenuação especial da pena previsto no artigo 72.º do Código Penal, bem como de questões de inconstitucionalidade que sejam suscitadas nesse âmbito (cf., entre outros, o acórdão do STJ, de 14.03.2018, Proc. 22/08.3JALRA.E1.S1).
Limitado o conhecimento do recurso, em matéria penal, à pena única imposta na Relação, que é superior a 8 anos, e por estar em causa, precisamente, um acórdão da Relação proferido em recurso [artigo 432.º, n.º 1, al. b), do CPP], não é admissível recurso para o STJ «com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º», isto é, com fundamento nos vícios da decisão recorrida e em nulidades não sanadas (aditamento do artigo 11.º da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro), diversamente do que ocorre com os recursos previstos nas alíneas a) e c), o que, todavia, não prejudica os poderes de conhecimento oficioso de vícios da decisão de facto quando constatada a sua presença e a mesma seja impeditiva de prolação da correta decisão de direito (entre muitos, o acórdão de 08.11.2023, Proc. n.º 808/21.3PCOER.L1.S1), desde já se assinalando que não se vislumbra a existência de qualquer desses vícios.
Este regime, como se tem assinalado, efetiva de forma adequada a garantia do duplo grau de jurisdição, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República, enquanto componente do direito de defesa em processo penal, reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam o Estado Português ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos [artigo 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP, ONU) e artigo 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (CEDH, Conselho da Europa) – entre muitos, veja-se o acórdão deste STJ, de 29.01.2025, processo n.º 271/19.9PFOER.L1.S1, e jurisprudência no mesmo citada].
Assim, e em síntese, o recurso terá de ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, em conformidade com as disposições conjugadas dos artigos 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), 414.º, n.º 2 e 3, 420.º, n.º 1, alínea b), e 432.º, n.º 1, alínea b), todos do CPP, no que concerne às diversas condenações em penas parcelares, estando arredada a possibilidade de sindicar a quantificação do número de crimes praticados.
3.1.2. Pelas mesmas razões, não é admissível o recurso relativo às penas acessórias que foram aplicadas pelo tribunal de 1.ª Instância e inteiramente confirmadas pelo Tribunal da Relação.
Com efeito, como se refere no acórdão deste do STJ de 09.04.2025, proferido no processo n.º 83/23.5GBOBR.P1.S1:
«A pena acessória, cuja autonomia se manifesta por (i) a sua aplicação depender da alegação e prova de pressupostos autónomos, relacionados com a prática do crime, (ii) a sua aplicação depender da valoração dos critérios gerais de determinação das penas, incluindo a culpa, e (iii) a pena ser graduada no âmbito de uma moldura autónoma fixada na lei, é também, a pena acessória, “a consequência jurídica do crime aplicável ao agente imputável em cumulação com uma pena principal”, isto é, acompanha ou pode acompanhar, cumulativamente, a pena principal.
Penas acessórias são as que só podem ser aplicadas como acompanhantes de uma pena principal (art.º 66º a 69º do CP).
São as que o juiz pode aplicar na sentença condenatória, conjuntamente com uma pena principal e destinadas a reforçar o efeito desta, dependem da aplicação de uma pena principal e devem ser aplicadas na sentença, tudo dependendo de a sua aplicação se revelar ou não, necessária face ao caso concreto.
(…)
E, sendo aplicada cumulativamente com a pena principal depende da aplicação desta.
Não sendo a pena acessória critério definidor de admissão ou não de recurso.
Na verdade, a este propósito refere a lei apenas a pena de prisão, penas não privativas da liberdade (onde inclui a suspensão de execução da pena), medidas de coação e de garantia patrimonial (art.º 400º), sem que se refira a pena acessória.
Como pode ler-se na Decisão Sumária de Reclamação, nos termos do art.º 405º do Código de Processo Penal, de 14.02.20257, …, face ao disposto nas mencionadas alíneas f) e e), o acórdão questionado é insuscetível de recurso, não assumindo, para este efeito, qualquer autonomia o acessório da condenação (de proibição do exercício de funções de administrador de insolvência pelo período de 2 anos e 6 meses), que o reclamante pretende igualmente impugnar em recurso ordinário em 2.º grau.
Com efeito, a pena acessória, que depende da pena principal e cuja aplicação está condicionada por uma pluralidade de fatores, não integra, enquanto tal, os critérios legais da recorribilidade dos acórdãos da Relação, proferidos em recurso.
Aqui tem aplicação o disposto no artigo 427.º, 2.ª parte, do CPP, ou seja, da decisão da 1.ª instância apenas cabia recurso para a Relação. Direito que o reclamante já exerceu.»
Este é também o nosso entendimento, o que exclui a recorribilidade, in casu, quanto às penas acessórias, aplicadas pela 1.ª instância e confirmadas pela Relação.
3.1.3. Finalmente, quanto ao valor da reparação oficiosamente arbitrada, a 1.ª instância fixou-o em 40.000,00€, o que foi confirmado pela Relação.
A «indemnização» foi fixada oficiosamente, em decisão confirmada sem alteração pelo Tribunal da Relação, nos termos do artigo 82.º-A do CPP, o qual, sob a epígrafe «Reparação da vítima em casos especiais», estabelece que, não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham (n.º 1), sendo a quantia arbitrada a título de reparação tida em conta em ação que venha a conhecer de pedido civil de indemnização (n.º 3).
Nos termos do artigo 16.º do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro, à vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão relativa a indemnização por parte do agente do crime (n.º 1), havendo sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do CPP em relação a vítimas especialmente vulneráveis (n.º 2), em que se incluem as vítimas de crimes contra a autodeterminação sexual (artigos 1.º, al. j), e 67.º-A, n.º 1, al. b), e 3, do CPP), exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.
Disse este STJ, em acórdão proferido em 29.01.2025 (processo n.º 271/19.9PFOER.L1.S1):
«Convocando a fundamentação do acórdão de 02.05.2018 (Proc. n.º 156/16.0PALSB.L1.S1, acessível em www.stj.pt), que dedicou detalhada atenção à natureza e regime da «reparação oficiosa» prevista no artigo 82.º-A do CPP (introduzido pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto), importa ter presente, de entre as suas características fundamentais, que o conteúdo desta «reparação», concebida como efeito penal da condenação, sem natureza «estritamente civil», remete para conceitos próprios da «indemnização civil», nomeadamente quanto aos pressupostos legais da responsabilidade civil extracontratual e do dever de indemnizar pelos danos causados pelo crime (artigo 129.º do Código Penal), que conferem ao «lesado» o direito de intervir no processo como parte civil, nos termos do artigo 71.º e seguintes do CPP, com subordinação aos princípio do pedido e de adesão, que conformam o respetivo regime processual, incluindo o regime do direito ao recurso.
22. Dispõe o artigo 400.º, n.º 2, do CPP que “Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada”. Acrescentando o n.º 3 do mesmo preceito, aditado pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, que “Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil”.
Há, pois, que averiguar e decidir, nos termos deste preceito, da admissibilidade do recurso do acórdão do Tribunal da Relação na parte em que confirmou a condenação na «reparação oficiosa», tendo em conta as exigências decorrentes do princípio da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição), prescindindo-se, como se impõe, do requisito do pedido de indemnização em matéria civil (seguindo-se, nesta parte, a fundamentação do acórdão de 21.12.2021, Proc. n.º 923/09.1T3SNT.L1.S1, em www.dgsi.pt).
23. Como se consignou no acórdão de 19.12.2018, no Proc. 10179/12.3TDLSB.L2.S1A (em www.dgsi.pt), a entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, muito em particular com a introdução do n.º 3 ao artigo 400.º do CPP, constituiu uma alteração profunda do regime de admissibilidade dos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões sobre os pedidos de indemnização cível enxertados em processo penal. Por força desta alteração legislativa, a recorribilidade do segmento decisório relativo à matéria cível deixou de estar dependente da admissibilidade de recurso da decisão quanto à parte criminal do acórdão recorrido, como até então sucedia, nomeadamente por força do entendimento sufragado no assento deste tribunal n.º 1/02, de 14 de março.3
Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 48/2007, a recorribilidade da decisão sobre matéria cível desprendeu-se do recurso em matéria penal; isto é, a admissibilidade de recurso para o STJ, restrito à matéria cível, passou a ser apreciada de acordo com os critérios próprios de recorribilidade do Código de Processo Civil (CPC). Como se tem entendido, ao estabelecer no n.º 3 do artigo 400.º do CPP que “mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil”, o legislador fez apelo, por força do estatuído no artigo 4.º do CPP, ao regime de admissibilidade dos recursos previsto para os processos de natureza exclusivamente civil.
O acesso ao Supremo Tribunal de Justiça passou, por conseguinte, a dever obediência ao regime jurídico do recurso de revista previsto no CPC, pois que, ao aditar o mencionado n.º 3 ao artigo 400.º do CPP, o legislador processual penal não definiu normas próprias de admissibilidade do recurso para a parte da sentença relativa ao pedido de indemnização civil, o que deve conduzir o julgador, perante esta lacuna, a socorrer-se dos pertinentes normativos do processo civil.4
24. É assim que, neste tribunal, se consolidou jurisprudência no sentido de que o regime de admissibilidade dos recursos previsto no CPC tem aplicação subsidiária aos pedidos de indemnização cível formulados em processo penal.5
Como decorre da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 109/X, que lhe deu origem, o aditamento do n.º 3 ao artigo 400.º do CPP pela Lei n.º 48/2007, foi justificado pela necessidade de garantir a igualdade entre todos os recorrentes em matéria cível, dentro e fora do processo penal.6 Pelo que, se, com esta alteração, introduzindo uma quebra ao princípio de adesão, se quis consagrar idênticas possibilidades de recurso quanto à indemnização civil no processo penal e no processo civil, nada se dizendo de diferente no Código de Processo Penal, a norma do artigo 671.º, n.º 3, do novo CPC, de conteúdo essencialmente idêntico ao da norma do n.º 3 do artigo 721.º do CPC de 1961, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, não pode deixar de se aplicar ao processo penal, sob pena de se criar uma situação de desigualdade que o legislador manifestamente não quis.
25. Neste quadro vem, pois, a jurisprudência das Secções Criminais do STJ entendendo, uniformemente, ser de aplicar o regime da denominada «dupla conforme» (artigo 671.º, n.º 3, do CPC ex vi artigo 4.º do CPP) aos recursos dos pedidos de indemnização civil enxertados no processo penal.
Também o Tribunal Constitucional, ainda que de forma indirecta, já se pronunciou julgando não inconstitucional a aplicação subsidiária do CPC ao pedido de indemnização civil enxertado no processo penal. Como se pode ver do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 442/2012, de 26 de setembro (DR, 2.ª Série, de 16.11.2012) que, “[n]ão julga inconstitucional a interpretação normativa extraída da conjugação entre os artigos 400.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, e 721.º, n.º 3, do Código de Processo Civil”.»
Concordando inteiramente com o enquadramento efetuado no acórdão que acabamos de citar, é na presença do referido quadro normativo que terá de ser apreciada a questão da admissibilidade do recurso quanto à parte da reparação civil.
A decisão condenatória do tribunal de 1.ª instância e o acórdão recorrido, do Tribunal da Relação de Lisboa, foram proferidos no âmbito de vigência do novo Código de Processo Civil (que passaremos a designar de CPC), sendo, por conseguinte, aplicável o disposto no artigo 671.º, n.º 3, deste diploma:
“Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.”
No caso presente, não ocorre qualquer uma das circunstâncias excecionais previstas no artigo 672.º ou no artigo 629.º, n.º 2, do CPC, em que é sempre admissível o recurso.
Pelo que há que apreciar se estão preenchidos os requisitos estabelecidos neste preceito da denominada dupla conforme impeditiva de admissão do recurso.
Para que se verifique dupla conforme entre as decisões das instâncias, impeditiva da admissibilidade do recurso de revista, são três os requisitos cumulativos: a ausência de votos de vencido; a conformidade essencial de fundamentação; a conformidade decisória.
O primeiro requisito consiste na exigência de unanimidade por parte do coletivo de juízes da Relação, que se traduz, na letra da lei, na ausência de votos de vencido.
O requisito da conformidade essencial de fundamentação exige uma identidade de fundamentos adotados por ambas as instâncias, mas que não precisa de ser total, pois basta uma identidade essencial.
Na delimitação do que é ou não essencialmente diferente, há que distinguir as figuras da fundamentação diversa e da fundamentação essencialmente diferente. Como se diz no acórdão de 19.02.2015, proc. 302913/11.6YIPRT.E1.S1, «não é, na verdade, qualquer alteração, inovação ou modificação dos fundamentos jurídicos do acórdão recorrido relativamente aos seguidos na sentença apelada, qualquer nuance na argumentação jurídica assumida pela Relação para manter a decisão já tomada em 1.ª instância, que justifica a quebra do efeito inibitório quanto à recorribilidade, decorrente do preenchimento da figura da dupla conforme».
Acrescenta-se:
«É necessário, na verdade, que estejamos confrontados com uma modificação qualificada ou essencial da fundamentação jurídica em que assenta, afinal, a manutenção do estrito segmento decisório – só aquela se revelando idónea e adequada para tornar admissível a revista normal.
Note-se que este regime normativo (que sucedeu ao inicialmente editado pelo DL 303/07, estabelecendo a absoluta irrelevância da fundamentação para aferir da existência ou inexistência de dupla conforme) destina-se a permitir ao STJ sindicar, em revista normal, o decidido pela Relação nos casos em que – sendo coincidentes os segmentos decisórios da sentença apelada e do acórdão proferido na apelação – a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância.»
Este o sentido da jurisprudência consolidada do STJ sobre o conceito de fundamentação essencialmente diferente, que não se basta com qualquer modificação ou alteração da fundamentação, sendo antes indispensável que o âmago fundamental do enquadramento jurídico seguido pela Relação seja completamente diverso daquele que foi seguido pela 1.ª instância. Ou seja, somente deixa de existir dupla conforme quando a solução jurídica prevalecente na Relação seja inovatória, esteja ancorada em preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a sentença apelada, «sendo irrelevantes discordâncias que não encerrem um enquadramento jurídico alternativo, ou, pura e simplesmente, sejam o reforço argumentativo aduzido pela Relação para sustentar a solução alcançada» (acórdãos de 17.11.2021, processo n.º 22990/16.1T8PRT-B.P1-A.S1; de 31.03.2022, processo n.º 14992/19.2T8LSB.L1.S1, contendo diversas referências jurisprudenciais; cf. caderno de jurisprudência temática sobre o tema da dupla conforme, incluindo o conceito de “fundamentação essencialmente diferente”, disponível na página do Supremo, de 2013 até março de 2022, no seguinte link: https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2022/05/dupla_conforme.pdf).
A inexistência de fundamentação essencialmente diferente não fica afastada pela mera modificação pela Relação da decisão de facto proferida na 1.ª instância, qualquer que seja o âmbito ou alcance dessa modificação, se a mesma não se projetar numa solução jurídica nuclearmente distinta da adotada na 1.ª instância, pela evidente divergência da construção jurídico-argumentativa que a Relação tenha desenvolvido, sufragando, a final, um enquadramento jurídico, institucional ou conceptual, claramente distanciado do que foi realizado na 1.ª instância (entre muitos, os acórdãos deste STJ, de 31.03.2022, processo n.º 15063/16.9T8LSB.L3.S1; de 29.09.2022, proc. n.º 19864/15.7T8LSB.L1-A.S1; de 30.11.2022, proc. n.º 12674/21.4T8SNT.L1.S1).
Finalmente, no que toca ao requisito da conformidade decisória, pressuposto sobre o qual incide a verdadeira ratio da dupla conforme, importa determinar quando se verifica a conformidade entre as decisões.
São dois os critérios que têm sido enunciados: (1) um critério mais amplo de conformidade racional entre as decisões em confronto (a decisão de 1.ª instância e a decisão do Tribunal da Relação resultante do recurso interposto daquela); (2) um critério mais restrito de conformidade formal entre as decisões.
O critério da conformidade formal impõe uma identidade completa e formal entre as decisões.
O critério da conformidade racional, diversamente, sustenta que integra o conceito de “dupla conforme” a situação em que a Relação profere uma decisão que, embora não seja quantitativamente coincidente com a da 1.ª instância, seja mais favorável à parte – isto é, quando o recorrente foi beneficiado com o acórdão da Relação comparativamente com a decisão da 1.ª instância, ou seja, entende existir dupla conforme impeditiva de um recurso de revista nas situações em que exista conformidade in melius.
Não se ignora que, na doutrina, há quem pugne pelo critério da conformidade formal.
Porém, a maioria da doutrina, tal como a jurisprudência largamente majoritária do STJ, nas secções cíveis e nas secções criminais, adotaram o critério da denominada dupla conforme «racional ou ponderada» ou «confirmação in melius» (critério da coincidência racional, por inclusão quantitativa), impeditiva da admissibilidade do recurso (acórdão de 04.06.2020, proc.8641/14.2RDLSB.C1.S1,https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:8641.14.2RDLSB.C1.S1#integral-text, com amplas citações).
Regressando ao caso concreto:
No que concerne ao requisito da unanimidade na votação por parte dos juízes do tribunal de recurso, resulta do texto do acórdão do Tribunal da Relação que este foi assinado pelos juízes desembargadores, sem voto de vencido quanto a esta ou a qualquer outra questão, encontrando-se, pois, preenchido este requisito.
Verifica-se também que o tribunal da Relação confirmou a decisão da 1.ª instância, na aceção do artigo 671.º, n.º 3, do CPC, existindo total coincidência do quantitativo da indemnização / reparação estabelecida no acórdão da Relação e na decisão do tribunal de 1.ª instância.
Importa, por último, apreciar o terceiro requisito da «dupla conforme», isto é, se o Tribunal da Relação confirmou a decisão proferida em 1.ª instância «sem fundamentação essencialmente diferente».
Como resulta do acórdão recorrido, existe uma identidade de fundamentação na condenação em ambas as instâncias, razão por que também este requisito está verificado.
Conclui-se, assim, que sem fundamentação essencialmente diversa e sem voto de vencido, o Tribunal da Relação confirmou a condenação da 1.ª instância, pelo que, tendo em conta o disposto no artigo 671.º, n.º 3, do CPC, se mostra verificada uma situação de «dupla conforme», que obsta à admissão do recurso na parte em questão [disposições conjugadas dos artigos 671.º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi artigo 4.º do CPP, e dos artigos 400.º, n.º 3, 420.º, n.º 1, al. b), e 432.º, do CPP].
3.1.4. Em função do exposto, tendo em conta que a decisão que admitiu o recurso não vincula o tribunal superior (n.º 3 do artigo 414.º do CPP), há que rejeitar o recurso quanto a todas as questões suscitadas, exceto quanto à determinação da pena única de prisão resultante do cúmulo jurídico.
3.2. Reconduzido o recurso ao seu objeto legalmente admissível – o da pena única imposta ao arguido / recorrente, vejamos o que disse a esse respeito a Relação.
Lê-se no acórdão recorrido:
«(…)
Assim, o processo de determinação da pena concreta a aplicar compreende, em regra, três fases distintas.
Num primeiro momento, há que apurar a moldura penal abstratamente aplicável ao crime em questão e aferir da existência de circunstâncias modificativas, agravantes ou atenuantes, suscetíveis de atuarem sobre a mesma.
Num segundo momento, há que proceder à escolha da pena a aplicar, na eventualidade de ao crime serem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, em consonância com o disposto no artigo 70.º do Código Penal.
Num terceiro momento, há que determinar a pena concreta dentro dessa moldura, atendendo ao vertido nos artigos 40º, n.º 2, e 71.º do Código Penal, ou seja, a medida concreta da pena é fixada em função das categorias da culpa e da prevenção (especial e geral), sendo nomeadamente as circunstâncias mencionadas no n.º 2 desse normativo importantes para a determinação quer da culpa, quer das exigências de prevenção.
Elaborando melhor, comecemos por atentar na primeira fase.
Como ensina Figueiredo Dias , «em princípio, a moldura penal aplicável resulta imediatamente do tipo legal de crime – fundamental, qualificado ou privilegiado – no qual se enquadra a conduta do agente. Uma tal moldura pode, porém, em muitos casos, vir a ser modificada ou substituída por outra por efeito das chamadas circunstâncias modificativas, agravantes ou atenuantes. Estas situações distinguem-se das […] consideradas de qualificação ou privilegiamento porque, enquanto nestas a modificação da moldura penal se opera por efeito de alterações ao nível do tipo ou dos elementos típicos – seja, como é geralmente, do tipo-de-ilícito, seja, menos frequentemente, do tipo-de-culpa, na situação de que agora tratamos ela verifica-se por força de circunstâncias modificativas. Circunstâncias são, nesta acepção, pressupostos ou conjuntos de pressupostos que, não dizendo directamente respeito nem ao tipo-de-ilícito (objectivo ou subjectivo) nem ao tipo-de-culpa, nem mesmo à punibilidade em sentido próprio, contendem com a maior ou menor gravidade do crime como um todo e contendem por isso directamente para a doutrina da determinação da pena. (…). Decisivo é só saber se o elemento releva logo ao nível do crime ou só ao nível da consequência jurídica. (…) verdadeiras circunstâncias são hoje pois, apenas, face ao Código Penal vigente, as circunstâncias modificativas.»
Tais circunstâncias modificativas dividem-se em agravantes e atenuantes, alterando a moldura penal, elevando-a no primeiro caso e baixando-a no segundo, só no seu limite máximo ou só no seu limite mínimo, ou nos limites máximo e mínimo em ambos os casos.
Podem revestir caráter comum ou geral, aplicando-se, portanto, a qualquer que seja o crime em causa, estando previstas na parte geral do Código Penal, ou caráter específico ou especial, valendo, neste caso, apenas para certo ou certos tipos legais de crimes, estando previstas na parte especial.
Na segunda fase, tratando-se de um crime punível, em alternativa, com pena de prisão ou pena de multa, importa, desde logo, proceder à escolha da sanção a aplicar, em obediência ao disposto no artigo 70.º do Código Penal, nos termos do qual “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
De acordo com o disposto no artigo 40º, n.º 1, do Código Penal, a aplicação de penas e de medidas de segurança tem como finalidade a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
As finalidades da aplicação de uma pena residem, assim, primordialmente na tutela de bens jurídicos e na reinserção do agente na comunidade, prevenindo-se a prática de futuros crimes.
A proteção de bens jurídicos consubstancia-se na denominada prevenção geral, enquanto a reintegração do agente na sociedade, ou seja, o seu regresso à comunidade lesada pela sua atuação, se reporta à denominada prevenção especial.
No âmbito dos fins das penas predomina, segundo Figueiredo Dias, «a ideia de que só finalidades relativas de prevenção geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reações específicas. Num contexto em que a prevenção geral assume o primeiro lugar, como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação, do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida, em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida» .
São, assim, as necessidades de prevenção – geral positiva [tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada] e especial de socialização – que relevam para a decisão de optar pela pena não privativa da liberdade – pena alternativa ou pena de substituição – como resulta dos critérios estabelecidos nos artigos 40º, n.º 1, e 70º do Código Penal, não se divisando qualquer finalidade de compensação da culpa, uma vez que esta, constituindo o limite da pena (cfr. art. 40º, n.º 2, do Código Penal), apenas funciona ao nível da determinação da sua medida concreta, o que nos remete para a próxima fase.
Nesta terceira fase, importa ter presente que a medida da pena «há de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, proteção que assume um significado prospetivo que se traduz na tutela das expetativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena» .
A pena não pode, porém, em caso algum ultrapassar a medida da culpa, conforme resulta do disposto no n.º 2 do citado artigo 40º.
A este propósito, salienta Figueiredo Dias que dentro do binómio culpa/prevenção há que ter em conta que a medida da pena não poderá ultrapassar a medida da culpa; a verdadeira função desta na teoria da medida da pena reside efetivamente numa incondicional proibição de excesso, pois a culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer questões preventivas, sejam de prevenção a nível geral positiva ou negativa, de integração ou intimidação, sejam de prevenção, neutralização ou pura defesa social.
A culpa não concorre, portanto, para a definição da medida da pena, mas indica o limite máximo desta. Segundo Anabela Rodrigues , este é «o único entendimento consentâneo com as finalidades de tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade. E não compensar ou retribuir a culpa – esta é, todavia, o pressuposto e limite daquela aplicação, diretamente imposta pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente».
Se as finalidades da aplicação de uma pena residem, primordialmente, na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então o processo de determinação da pena concreta a aplicar refletirá, de um modo geral, a seguinte lógica: «a partir da moldura penal abstrata procurar-se-á encontrar uma sub-moldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual ´já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem por irremediavelmente em causa a sua função tutelar´; será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão atuar os pontos de vista de reinserção social. Quanto à culpa, para além de suporte axiológico normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar» .
Daí que, quando o artigo 71º, n.º 1, do Código Penal estabelece que a “determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, não o podemos dissociar do preceituado no artigo 40º do mesmo diploma.
Em suma, as exigências de prevenção geral definirão o limite mínimo da pena e a culpa o limite máximo, criando, assim, a moldura dentro da qual se hão de fazer sentir as exigências de prevenção especial ou de ressocialização.
A culpa consiste num juízo de censura dirigido ao arguido em virtude de uma conduta desvaliosa, porquanto este, podendo e devendo agir conforme o direito, não o fez. Toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta do agente. O grau de consciência que o agente tem da desconformidade da sua atuação determina o grau de culpa que lhe é imputável, na medida da sua capacidade e vontade de atingir aquele fim proibido.
A prevenção geral, também denominada de integração, prende-se com as exigências comunitárias da contenção da criminalidade e da defesa da sociedade, decorrentes da necessidade de reafirmar as expectativas da comunidade na validade e vigência de uma norma, bem como da tutela do bem jurídico por ela defendido. Atende, fundamentalmente, ao sentimento que o crime causa na comunidade, tendo em conta diversos índices, designadamente a frequência e o espaço onde ocorre e o alarme que esteja a provocar na comunidade. Neste âmbito, importa determinar o mínimo da pena, aquele limite absoluto e intransponível que satisfará a consciência coletiva.
A prevenção especial ou de ressocialização, por seu lado, serve, essencialmente, o escopo de reintegração do agente na comunidade, tentando evitar a quebra da sua inserção nessa mesma comunidade, o que se traduz, em última análise, na ideia base da ressocialização. Na tarefa de determinação das exigências de prevenção especial, atende-se a diversas variáveis atinentes à conduta do agente, idade, vida familiar e profissional, entre outras.
Em consonância com o preceituado no n.º 2 do citado artigo 71º do Código Penal, na determinação da medida concreta da pena deverão considerar-se, ainda, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime – sob pena de ocorrer dupla valoração –, deponham a favor do agente ou contra ele, nomeadamente as ali elencadas de forma exemplificativa: o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente [alínea a)]; a intensidade do dolo ou da negligência [alínea b)]; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram [alínea c)]; as condições pessoais do agente e a sua situação económica [alínea d)]; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime [alínea e)]; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena [alínea f)].
Em resumo, os fatores descritos nas alíneas a), b), c) e e), parte final, referem-se à execução do facto, os referidos nas alíneas d) e f) à personalidade do agente e o referido na alínea e) à conduta anterior e posterior ao facto.
Note-se, porém, o cuidado «(…) com que têm de ser manipulados estes fatores, dada a particularíssima ambivalência de que são dotados: só em concreto se pode determinar o papel, agravante ou atenuante, que desempenham circunstâncias como as da condição económica e social do agente, a sua idade e sexo, a sua educação, inteligência, situação familiar e profissional, etc., quando conexionadas com o círculo de deveres especiais que ao agente incumbiam» .
Havendo crimes em concurso, acresce uma quarta fase – de determinação da pena única resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas por cada um desses crimes.
Efetivamente, estatui o artigo 77º, n.º 1, do Código Penal que “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa pena única. (…)”.
Esta pena única é «dogmaticamente justificável à luz da consideração – necessariamente unitária – da pessoa ou da personalidade do agente» e «politico-criminalmente aceitável à luz das exigências da culpa e da prevenção (sobretudo da prevenção especial) no processo de determinação e de aplicação de qualquer pena» .
E, nos termos da parte final do n.º 1 do artigo 77º, “na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.
Ou seja, à visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto, em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detetar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente .
Há, assim, que determinar a concreta medida da pena de concurso considerando “em conjunto, os factos e a personalidade do agente”, conforme prescreve o n.º 1 do artigo 77º, assumindo-se este como um critério especial, relativamente aos critérios gerais da medida da pena contidos no artigo 71º, n.º 1, do Código Penal. Porém, estes servem apenas de guia para a operação de fixação da pena conjunta, não podendo ser valorados novamente, sob pena de se infringir o princípio da proibição da dupla valoração, a menos que tais fatores tenham um alcance diferente enquanto referidos à totalidade de crimes .
Conforme ensina Figueiredo Dias, «[t]udo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização.»
Em suma, a pena única ou conjunta determina-se nos mesmos moldes da determinação das penas singulares, em função da culpa e prevenção, mas desta feita referidas à totalidade dos crimes em concurso (culpa pelos “factos em relação”, pelos quais se afere também a gravidade do ilícito global) e à personalidade unitária do agente, em termos de esta revelar uma tendência criminosa ou uma simples pluriocasionalidade.
Por isso, impõe-se sempre atender aos «princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso», imbuídos da sua dimensão constitucional, pois «[a] decisão que efetua o cúmulo jurídico de penas tem de demonstrar a relação de proporcionalidade que existe entre a pena conjunta a aplicar e a avaliação – conjunta – dos factos e da personalidade, importando, para tanto, saber – como já se aludiu – se os crimes praticados são resultado de uma tendência criminosa ou têm qualquer outro motivo na sua génese, por exemplo se foram fruto de impulso momentâneo ou atuação irrefletida, ou se de um plano previamente elaborado pelo arguido», sem esquecer, que «[a] medida da pena única, respondendo num segundo momento também a exigências de prevenção geral, não pode deixar de ser perspetivada nos efeitos que possa ter no comportamento futuro do agente: a razão de proporcionalidade entre finalidades deve estar presente para não eliminar, pela duração, as possibilidades de ressocialização (…)» .
Atentando novamente no caso dos autos, analisada a fundamentação do acórdão no segmento da determinação da medida concreta das penas parcelares, verifica-se que o tribunal a quo ponderou, em concreto, de forma assertiva, todos os fatores que relevam para o efeito, nomeadamente, o grau de ilicitude dos factos, o modo de execução dos crimes, a gravidade das suas consequências, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo, os sentimentos manifestados no cometimento do crime, fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais e situação económica do arguido, conduta anterior e posterior aos factos, na exata medida em que estes depõem a favor ou contra o ora recorrente, tudo sopesando tendo em conta o binómio culpa/necessidades de prevenção.
Revisitando a alegação do recorrente, verifica-se que, ao invés do invocado, foi considerada pelo tribunal a quo a circunstância de a ofendida já não morar, nem manter qualquer contacto, consigo, não tendo as restantes alegações respaldo na factualidade ou traduzindo meras conjeturas – nomeadamente, que não há qualquer indício nos autos de que tivesse condutas sexuais impróprias com outras menores e que não há perigo de continuação de qualquer atividade criminosa –, além de que nunca teriam o efeito atenuante pretendido.
Atenta a moldura abstrata de 1 ano a 8 anos de prisão, a gravidade da culpa do arguido e a intensidade das exigências de prevenção [geral e especial], a fixação de cada pena parcelar em 1 ano e 6 meses mostra-se claramente benevolente.
Efetuando o cúmulo jurídico das penas parcelares, o tribunal a quo também analisou os parâmetros pertinentes, em observância dos critérios legais que presidem a tal tarefa, sendo certo que o recorrente não afirma o contrário, apenas dissente da pena única alcançada – 9 anos de prisão –, por entender que a mesma é excessiva e desproporcionada.
Atenta a moldura do cúmulo jurídico das penas em equação – entre 1 ano e 6 meses e 25 anos [atento o limite máximo imposto pelo artigo 77º, n.º 2] – e a ponderação que o tribunal a quo efetuou, com acerto, da imagem global do ilícito, da avaliação da personalidade do recorrente e as exigências de prevenção especial, a pena única de 9 (nove) anos de prisão fixada mostra-se necessária, adequada e proporcionada, não havendo qualquer motivo para intervenção corretiva por parte deste tribunal ad quem.
Considerando que a pena de prisão excede os 5 anos, não se mostra preenchido o pressuposto formal basilar previsto no artigo 50º, n.º 1, do Código Penal, pelo que está liminarmente excluída a possibilidade de suspensão da execução da pena, cuja apreciação fica, assim, obviamente, prejudicada.
Improcede, assim, também esta questão.»
A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40.º do Código Penal que as finalidades das penas se reconduzem à proteção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).
Hoje não se aceita que o procedimento de determinação da pena seja atribuído à discricionariedade não vinculada do juiz ou à sua “arte de julgar”. No âmbito das molduras legais predeterminadas pelo legislador, cabe ao juiz encontrar a medida da pena de acordo com critérios legais, ou seja, de forma juridicamente vinculada, o que se traduz numa autêntica aplicação do direito (cf., com interesse, Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, pp. 194 e seguintes).
Tal não significa que, dentro dos parâmetros definidos pela culpa e pela forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, se chegue com precisão matemática à determinação de um quantum exato de pena.
Estabelece o artigo 71.º, n.º1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro da moldura legal, é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O n.º2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, relevantes para a medida concreta da pena, pela via da culpa e/ou pela da prevenção, dispondo o n.º3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjetiva no artigo 375.º, n.º1, do C.P.P., ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.
Em termos doutrinais tem-se defendido que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, tanto quanto possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstrata procurar-se-á encontrar uma submoldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida ótima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção atuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer (cf. Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 227 e ss.).
Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º2, Abril-Junho de 2002, pp. 181 e 182), apresenta três proposições, em jeito de conclusões, da seguinte forma sintética:
«Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.»
Estabelece o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal:
«Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.»
O direito português afastou o sistema da acumulação material de penas, optando por acolher um sistema de pena conjunta, obtida mediante um princípio de cúmulo jurídico (Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 283 e seguintes e Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2024, pp. 72-73).
A pena única referida no artigo 77.º, n.º1, corresponde, assim, a uma pena conjunta que tem por base as correspondentes aos crimes em concurso, segundo um princípio de cúmulo jurídico, seguindo-se o procedimento normal de determinação e escolha das penas parcelares, a partir das quais se obtém a moldura penal do concurso.
A pena aplicável aos crimes em concurso tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa, e, como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal). Sendo as penas aplicadas umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação deste critério (artigo 77.º, n.º 3), entendendo-se que penas de “diferente natureza”, para efeitos deste preceito, são somente as penas principais, de prisão e de multa.
Estando em causa, exclusivamente, a determinação da medida concreta da pena conjunta do concurso, aos critérios gerais contidos no artigo 71.º, n.º1, acresce um critério especial fixado no artigo 77.º, n.º1, 2.ª parte, do Código Penal: “serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.
Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso.
Refere Cristina Líbano Monteiro (A Pena «Unitária» do Concurso de Crimes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16, n.º 1, pp. 151-166) que o Código rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente, estando em causa a avaliação de uma «unidade relacional de ilícito», portadora de um significado global próprio, a censurar de uma vez só a um mesmo agente.
Como se diz no acórdão do STJ, de 31.03.2011, proferido no Proc. 169/09.9SYLSB.S1, a pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção - dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares – à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes.
Lê-se no referido acórdão:
«Por outro lado, na confeção da pena conjunta, há que ter presentes os princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso.
Cremos que nesta abordagem, há que ter em conta os critérios gerais da medida da pena contidos no artigo 71.º do Código Penal – exigências gerais de culpa e prevenção – em conjugação, a partir de 1-10-1995, com a proclamação de princípios ínsita no artigo 40.º, atenta a necessidade de tutela dos bens jurídicos ofendidos e das finalidades das penas, incluída a conjunta, aqui acrescendo o critério especial fornecido pelo artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal - o que significa que o específico dever de fundamentação de aplicação de uma pena conjunta, não pode estar dissociado da questão da adequação da pena à culpa concreta global, tendo em consideração por outra via, pontos de vista preventivos, passando pelo efectivo respeito pelo princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, tornando-se fundamental a necessidade de ponderação entre a gravidade do facto global e a gravidade da pena conjunta.
Neste sentido, podem ver-se aplicações concretas nos acórdãos de 21-11-2006, processo n.º 3126/06-3.ª, CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 228 (a decisão que efetue o cúmulo jurídico tem de demonstrar a relação de proporcionalidade entre a pena conjunta a aplicar e a avaliação dos factos e a personalidade do arguido); de 14-05-2009, no processo n.º 170/04.9PBVCT.S1-3.ª; de 10-09-2009, no processo n.º 26/05. 8SOLSB-A.S1-5.ª, seguido de perto pelo acórdão de 09-06-2010, no processo n.º 493/07.5PRLSB.S1-3.ª, ali se referindo que “Importa também referir que a preocupação de proporcionalidade a que importa atender, resulta ainda do limite intransponível absoluto, dos 25 anos de prisão, estabelecido no n.º 2 do art. 77.º do CP. É aqui que deve continuar a aflorar uma abordagem diferente da pequena e média criminalidade, para efeitos de determinação da pena conjunta, e que se traduzirá, na prática, no acrescentamento à parcelar mais grave de uma fracção menor das outras”; de 18-03-2010, no processo n.º 160/06. 7GBBCL.G2.S1- 5.ª, onde se afirma, para além da necessidade de uma especial fundamentação, que “no sistema de pena conjunta, a fundamentação deve passar pela avaliação da conexão e do tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifica e pela avaliação da personalidade unitária do agente. Particularizando este segundo juízo - e apara além dos aspectos habitualmente sublinhados, como a deteção de uma eventual tendência criminosa do agente ou de uma mera pluriocasionalidade que não radica em qualidades desvaliosas da personalidade - o tribunal deve atender a considerações de exigibilidade relativa e à análise da concreta necessidade de pena resultante da inter-relação dos vários ilícitos típicos”; de 15-04-2010, no processo n.º 134/05.5PBVLG.S1-3.ª; de 21-04-2010, no processo n.º 223/09.7TCLSB.L1.S1-3.ª; e do mesmo relator, de 28-04-2010, no processo n.º 4/06.0GACCH.E1.S1-3.ª.»
Explicita Figueiredo Dias (ob. cit., pp. 291-292):
«Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).»
Em suma, para a determinação da medida concreta da pena conjunta é decisivo que se obtenha uma visão de conjunto dos factos que tenha em vista a eventual conexão dos mesmos entre si e a relação com a personalidade de quem os cometeu.
As conexões ou ligações fundamentais, na avaliação da gravidade do ilícito global, são as que emergem do tipo e número de crimes; da maior ou menor autonomia e frequência da comissão dos delitos; da igualdade ou diversidade de bens jurídicos protegidos violados; da motivação subjacente; do modo de execução, homogéneo ou diferenciado; das suas consequências e da distância temporal entre os factos – tudo analisado na perspetiva da interconexão entre todos os factos praticados e a personalidade global de quem os cometeu, de modo a destrinçar se o mesmo tem propensão para o crime, ou se, na realidade, estamos perante um conjunto de eventos criminosos episódicos, devendo a pena conjunta refletir essas singularidades da personalidade do agente.
A revelação da personalidade global emerge essencialmente dos factos praticados, mas também importa ponderar as condições pessoais e económicas do agente e a sua recetividade à pena e suscetibilidade de ser por ela influenciado, elementos particularmente relevantes no apuramento das exigências de prevenção.
Para a determinação da pena única, seja no âmbito do mesmo processo, seja no conhecimento superveniente do concurso, a lei não estabelece quaisquer critérios aritméticos.
Não se ignora, porém, a existência de jurisprudência do STJ que, perante a amplitude da moldura penal do concurso, advoga que se adicione à parcelar mais elevada uma fração variável das restantes penas parcelares (sendo frequente ver somada, à pena mais grave, frações das demais penas que variam desde ½ até 1/5), tendo como referência diversos critérios jurisprudenciais e convocando um denominado «fator de compressão» que deve atuar entre o mínimo e o máximo da moldura penal prevista no artigo 77.º, n.º2, do Código Penal. Fala-se, a este propósito, da existência, por um lado, de um efeito “expansivo” das outras penas sobre a parcelar mais grave, e, por outro, de um efeito “repulsivo” a partir do limite da soma aritmética de todas as penas, que resulta de uma preocupação de proporcionalidade entre o peso relativo de cada parcelar, em relação ao conjunto de todas elas.
A determinação da pena única, a nosso ver, quer pela sua sujeição aos critérios gerais da prevenção e da culpa, quer pela necessidade de proceder à avaliação global dos factos na sua ligação com a personalidade, não é compatível com a utilização de critérios matemáticos de fixação da sua medida. A convocação desses critérios apenas poderá ser entendida, porventura, como coadjuvante, e não mais do que isso, quando existe uma grande margem de amplitude na pena a aplicar, tendo em vista as exigências dos princípios da proporcionalidade e proibição do excesso, mas sempre procurando a solução justa de cada caso concreto, apreciado na sua particular singularidade.
Revertendo ao caso, verificamos:
O arguido/recorrente foi condenado pela prática de 116 crimes de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, p. e p. pelo art.º 172.º n.º 1 alínea a), com referência ao artigo 171º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, nas penas de um ano e seis de prisão cada um.
Os factos ocorreram entre outubro de 2019 e março de 2020 (6 meses, em ...), julho e agosto de 2020 (...) e entre setembro de 2020 e a data em que BB completou 18 anos (D.M.2020).
A culpa do arguido, enquanto limite da pena reportada ao facto, é bastante acentuada, no quadro global da ação desvaliosa do concurso de crimes, empreendida com grande energia e reiteração, cuja ressonância ética e social implica um juízo de censurabilidade reforçado.
As necessidades de prevenção geral - como prevenção positiva ou de integração, tendo em vista a estabilização das expectativas na validade das normas violadas - são muito acentuadas, pela necessidade comunitariamente sentida de preservar com eficácia os bem jurídico tutelado pelos crimes em causa, em que são vítimas crianças (e, com 16 anos à data do início dos factos, a filha do arguido era legalmente uma criança) e que causam natural repulsa na comunidade, particularmente quando cometidos por progenitores das vítimas.
O modo de execução, a gravidade dos factos - e o seu número - pelos quais o ora recorrente foi condenado e a personalidade neles documentada postulam, diversamente do que se alega no recurso, elevadas exigências preventivas de socialização, sendo de assinalar a não assunção de responsabilidades – o arguido/recorrente não reconheceu em julgamento a prática dos factos, não manifestou arrependimento ou reflexão sobre a gravidade e a elevada reprovabilidade dos seus comportamentos, apresentando uma personalidade com traços disfuncionais.
O arguido foi condenado anteriormente pela prática de dois crimes de difamação, por factos ocorridos a 03.02.2017, na pena de 300 dias de multa à taxa diária de 6,00 euros; a 01.02.2019, tal multa foi substituída por 300 horas de trabalho a favor da comunidade que foi cumprida no núcleo museológico da autarquia de Mértola, sob supervisão da DGRSP; prestou 140 horas de trabalho a favor da comunidade, tendo efetuado o pagamento do remanescente da pena de multa.
A integração social, familiar e profissional do arguido, devendo ser ponderada, não o impediu, porém, da prática dos crimes em causa, sendo, aliás, bastante comum neste tipo de criminalidade.
A moldura penal é de 1 ano e 6 meses a 25 anos de prisão (atenta a limitação prevista no artigo 77.º, n.º 2 do Código Penal).
Dado o exposto, é por demais evidente que não há qualquer desproporcionalidade na fixação da medida da pena unitária encontrada, que os critérios utilizados foram claramente explicitados e encontraram a solução adequada e justa para o sancionamento do comportamento global do arguido tendo em conta a culpa, o grau de ilicitude e as dimensões preventivas.
Neste contexto, valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto todos os factos em presença, a sua relacionação com a personalidade do recorrente que neles se documenta e os fins das penas, e face à ausência de circunstâncias com especial significado atenuante, entendemos não ser excessiva a pena única conjunta de 9 (nove) anos de prisão que foi imposta pelo tribunal recorrido, razão por que não se justifica a pretendida redução dessa pena.
Conclui-se que o recurso, quanto à determinação da pena única, não merece provimento.
*
III - DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em:
A) Rejeitar o recurso, por inadmissibilidade legal, em conformidade com as disposições conjugadas dos artigos 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), 414.º, n.º 2 e 3, 420.º, n.º 1, alínea b), e 432.º, n.º 1, alínea b), todos do CPP, no que concerne às condenações pelos diversos crimes, respetivas penas parcelares e penas acessórias;
B) Rejeitar o recurso, por inadmissibilidade legal, em conformidade com as disposições conjugadas dos artigos 671.º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi artigo 4.º do CPP, e dos artigos 400.º, n.º 3, 420.º, n.º 1, al. b), e 432.º, do CPP, no que concerne ao valor da indemnização / reparação arbitrada;
C) No mais, quanto à determinação da pena única conjunta – única questão de que é admissível conhecer -, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custa pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC (cf. artigos 513.º do CPP e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26.02 e Tabela III anexa).
Dê de imediato conhecimento ao tribunal recorrido.
Supremo Tribunal de Justiça, 09.10.2025
(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)
Jorge Gonçalves (Relator)
Jorge Jacob (1.º Adjunto)
Ernesto Nascimento (2.º Adjunto)