GARANTIA BANCÁRIA
GARANTIA AUTÓNOMA
EMPREITADA
GARANTIA DE BOA EXECUÇÃO
PAGAMENTO
CAUSA JUSTIFICATIVA
FALTA
INCUMPRIMENTO
FUNDAMENTOS
ÓNUS DE PROVA
EXCEÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
ABUSO DO DIREITO
CADUCIDADE
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
BAIXA DO PROCESSO
TRIBUNAL RECORRIDO
Sumário


I. No caso das garantias autónomas on first demand, sendo desta categoria a garantia bancária em apreço, o obrigado não pode invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa com vista a obstar ao acionamento da garantia por parte do beneficiário.
II. O que não afasta a possibilidade de o ordenador da garantia recorrer a acção própria para demonstrar que cumpriu o contrato base e inerente falta de causa justificativa para o beneficiário accionar a garantia bancária.
III. Nesta acção não se discute a natureza da referida garantia bancária, nem as consequências que dela derivam relativamente à obrigação do pagamento da quantia garantida. O que está em causa, apenas tem que ver com as obrigações contratuais decorrentes do contrato-base (no caso, a empreitada referida nos autos), designadamente se existe causa justificativa para a ré ter accionado a garantia, se a autora, efectivamente, devia a quantia garantida.
IV. Consequentemente, importa que se apure se a autora incumpriu ou não e se sim, em que medida, o contrato de empreitada e qual o valor correspondente a esse alegado incumprimento ou cumprimento parcial, pois só assim e nessa medida gozará a ré de causa justificativa para ter accionado as garantias e fazer suas as quantias a elas respeitantes.
Bem como tal factualidade é, ainda, relevante e essencial, para aferir do invocado abuso de direito por parte da ré.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

NOVO MODELO EUROPA, S.A., titular do N.I.P.C. 503.335.231, com sede na Avenida de S. Tiago de Priscos, em Priscos, concelho de Braga, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra IMPERIAL - PRODUTOS ALIMENTARES S.A., com o N.I.P.C. 500.105.359, e sediada na Rua de Sant’Ana, em Azurara, concelho de Vila do Conde.

Pediu que, pela procedência da acção, seja a R. condenada a restituir à A. a quantia de que indevidamente se apropriou, por ter accionado garantia bancária sem fundamento para tanto, no montante de 82.931,03€, acrescido de juros de mora, à taxa comercial, desde 15/7/2021, data em que a garantia foi honrada, até integral pagamento, bem como condenada a solicitar ao Novo Banco a revogação do accionamento de uma segunda garantia bancária, no valor accionado de 24.801,97€, a abster-se de voltar a accionar a garantia bancária ainda existente quanto ao valor remanescente da boa execução da obra e ainda condenada no pagamento da quantia de 15.000,00€ para reparação dos danos morais causados pelo seu comportamento.

Para o efeito e em síntese apertada, alegou que, na sequência da celebração de dois contratos de empreitada entre as partes, tendo em vista as obras de ampliação de uma unidade industrial para a ré, situada na freguesia da Azurara, em Vila do Conde, pelos preços de €1.183.558,88 e de €451.558,11, a autora tratou de obter junto do Novo Banco duas garantias bancárias, on first demand, a favor da ré, representativas de depósito de garantia de 5% do valor de cada uma das empreitadas.

Posteriormente, quando já havia caducado o direito que poderia assistir ao abrigo desses contratos, a ré, sem que nada o fizesse prever, lançou mão das garantias bancárias, solicitando ao Novo Banco o pagamento do montante total de €82.931,03, relativamente à segunda garantia, e o montante parcial de €24.801,97, quanto à primeira garantia, esta ainda não honrada, o que fez sem qualquer motivo ou justificação, e sem informar à autora de ter procedido a quaisquer intervenções nos trabalhos, nem enviar para a autora qualquer factura que lhe permitisse acionar as garantias bancárias.

Mais, afirmou que a ré enriqueceu ilegitimamente naqueles valores e na exata medida do empobrecimento da autora e que se viu na obrigação de repor ou negociar a reposição desse montante ao Novo Banco.

Todavia, a ré não tinha o direito de o fazer, por ter considerado efetivamente reparadas pela autora todas as patologias por si denunciadas e ter impedido os trabalhadores da autora de concluir os trabalhos de reparação das restantes, para além de ter acompanhado, permanentemente, a execução dos trabalhos de empreitada, sem nunca fazer qualquer reparo, por ter recusado as propostas de reparação feitas pela autora nas caleiras, sem justificação, e por ter pretendido a substituição das tubagens de água gelada, sem que antes tivesse concedido à autora a possibilidade de proceder à sua reparação.

Em consequência, disse ter sofrido danos morais pela violação e prejuízo do seu direito de imagem e do bom nome que sempre gozou junto das entidades bancárias.

Devidamente citada, a R. ofereceu contestação, na qual, em resumo, afirmou que, na sequência da celebração do contrato de empreitada, foi assinado entre as partes, a 17/8/2016, o Auto de receção provisória, com a indicação dos trabalhos que à data ainda estavam por concluir e que a A. não corrigiu, sendo que, quanto aos trabalhos que corrigiu e reposicionou, e que não o foram na totalidade, realizou-os sempre após o prazo convencionado.

Mais, impugnou parte da matéria constante da petição inicial, salientou que na ata lavrada da reunião que ocorreu entre a Autora e a Ré, no dia 7 de junho de 2017, no ponto 2, já se mencionaram os atrasos sofridos e as consequências dos mesmos, tal como resulta do e-mail enviado à A. a 16 de agosto de 2018 e que, em maio de 2020, ainda bem dentro do prazo geral de garantia da construção, e após um levantamento mais sistemático dos defeitos de construção e estruturais, foi efetuada uma reclamação global à ora Autora, enquanto responsável pela empreitada.

Contudo, parte das anomalias denunciadas não foi solucionada e outra parte foi tardiamente, ou de forma deficiente, conforme foi detalhadamente explicado na carta enviada pela Ré à Autora no dia 18 de junho de 2020.

Por outro lado, para além de outras imperfeições, que especificou, e dos atrasos, ocorreu que quando os trabalhadores da A. foram confrontados sobre o tipo de tinta que estavam a aplicar, e porque as latas não tinham nenhum elemento identificativo, o que motivou a recolha de uma amostra para análise, por forma a garantir que o material era aquele que havia sido contratualizado, os dois trabalhadores da A., por livre e espontânea vontade, abandonaram as instalações da Ré.

Por fim, quanto às patologias da obra, n.º 7, referente às caleiras, o decorrer do tempo tornou visível que não estavam de acordo com o Caderno de Encargos, o que foi denunciado por carta enviada pela R. à A. no dia 5 de maio de 2020, sendo falso que resulte da falta de manutenção, e quanto à patologia n.º 9, relativa aos tubos com soldadura, já estava claramente identificada no Auto de Recepção Provisória e havia sido relembrada pela Ré, ficando acordado que a substituição seria feita no prazo de 5 anos, quando houvesse uma paragem de produção da parte da fábrica da Ré, sendo que parte da patologia foi resolvida, contudo, não na sua totalidade, e daí que a Ré se tenha visto forçada a executar as garantias.

A A. emitiu pronúncia sobre os documentos que acompanharam a contestação e respondeu às excepções deduzidas pela contraparte.

Findos os articulados, foi proferido despacho saneador, que procedeu, sem reclamações, à fixação do objecto do litígio e dos temas da prova.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu a ré dos pedidos.

Inconformada com a mesma, dela interpôs recurso a autora Novo Modelo Europa, SA, para a Relação do Porto, pedindo a revogação da sentença e a sua substituição por decisão que condenasse a ré a devolver à autora os quantitativos pecuniários que obteve pelo acionamento das garantias e ainda a pagar-lhe a quantia de 5.000,00 €, para compensação dos danos causados, na qual foi proferido o Acórdão que antecede, no qual, com voto de vencido, se negou provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida, ficando as custas a cargo da autora.

De novo, inconformada com o mesmo, a autora Novo Modelo Europa, SA, interpôs o presente recurso de revista, nos termos do disposto no artigo 671.º, n.os 1 e 3, do CPC, para o Supremo Tribunal de Justiça, visando a revogação do acórdão revidendo e a condenação da ré, como peticionado.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

PRIMEIRA: Por Acórdão de que se recorre, decidiu o Tribunal da Relação do Porto negar provimento ao recurso e confirmar a decisão a decisão recorrida, com voto de vencido da Mmª Juiz Desembargadora Ana Olívia Esteves Silva Oliveira.

SEGUNDA: Sempre com interesse para o presente recurso, assinala-se que a pretensão da recorrente de aditar o facto de “em 18 de junho de 2020, por email dirigido à autora, a ré informa que em agosto do corrente ano recorrerá ao ISQ”, para avaliação do estado da rede das tubagens de água gelada”, visa objetivamente, ver demonstrado que não assistiria à ré, por contraditório e por manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, de logo a seguir exigir da autora a imediata substituição das tubagens, sob pena de mandar executar os trabalhos a outra entidade.

TERCEIRA: O mencionado pela ré em 18 de junho de 2020 encontra respaldo naquilo que já em 07/06/2017 as partes haviam acordado relativamente à rede das tubagens de água gelada, motivo pelo que só após a avaliação a ser feita pelos ISQ é que, com base no relatório que daí adviesse, seria necessário, ou não, reparar as não conformidades nas soldaduras TIG.

QUARTA: E atente-se que o Tribunal de 1ª Instância levou à matéria dos factos provados nas alíneas i) e j) a não execução pela autora da reparação do tubo com soldaduras reprovadas pelo Instituto de Soldaduras de Portugal e não a obrigação da autora de proceder à substituição do sistema de refrigeração das águas geladas.

QUINTA: No que respeita à questão das caleiras, também não se alcança qualquer contradição na pretensão da recorrente porquanto se insurge contra o facto de não ter sido levada à matéria de facto que a ré recusou a solução de aplicação de tela líquida que a autora propôs e ainda de não ter sido levada à matéria de facto provada que, sem dar previamente a conhecer à autora, a ré, em vez de mandar substituir a caleira, decidiu aplicar uma caleira de zinco.

SEXTA: Atente-se, igualmente, que o Tribunal de 1ª Instância levou à matéria dos factos provados nas alíneas i) e j) a não execução pela autora da revisão da estanquicidade das caleiras e não a obrigação da autora de proceder à substituição das caleiras.

SÉTIMA: Entretanto, no que concerne à impugnação da matéria de facto, veio o Tribunal da Relação do Porto a considerar que nenhum interesse pode assumir para o desfecho da causa.

OITAVA: No entender da recorrente, o Tribunal da Relação decidiu mal ao ter concluído desta forma.

NONA: E decidiu mal porque, parece à recorrente, que o tribunal recorrido apreciou o objeto do recurso mais na ótica das características das garantias bancárias do que, como se impunha, na ótica do negócio base, do contrato principal celebrado entre a autora e ré.

DÉCIMA: Acresce que a questão de saber se a ré despendeu um montante pecuniário equivalente ao acionamento das garantias bancárias é objetivamente relevante e decisivo até para se aferir e ver demonstrada a falta de motivo idóneo para que as garantias tivessem sido acionadas, seja como pressuposto de incumprimento contratual, seja por enriquecimento sem causa, seja ainda no âmbito da figura do abuso do direito.

DÉCIMA PRIMEIRA: E a tal não pode obstar o argumento vertido no Acórdão de que se recorre de que "caso fosse isso exigível, a exigência teria por efeito subverter e mesmo anular a finalidade de cobertura de riscos a favor do beneficiário que preside ao acordo de garantia autónoma.”

DÉCIMA SEGUNDA: É que este argumento – único, aliás – levar-nos-ia a confundir a garantia autónoma com a cláusula penal, como assim assertivamente é mencionado no voto de vencido, por referência ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 03/04/2014, no processo n.º 5063/11.0TBER.L1-6.

DÉCIMA TERCEIRA: Acresce que a matéria factual que a recorrente pretendia levar à apreciação do tribunal recorrido, sob a forma de impugnação sobre a decisão proferida a respeito da matéria de facto, visava demonstrar, precisamente, a falta de causa justificativa que permitisse à ré ter acionado as garantias.

DÉCIMA QUARTA: Daí que se impusesse que o Tribunal da Relação do Porto tivesse apreciado, por relevante, a impugnação deduzida pela recorrente a respeito da decisão proferida sobre a matéria de facto pelo tribunal de 1.ª Instância.

DÉCIMA QUINTA: Tanto mais que relativamente a uma das garantias em questão, no caso, a garantia autónoma simples, é o próprio tribunal recorrido quem refere que, “sendo ela condicionada e não absoluta, compete ao beneficiário a prova do incumprimento por parte do ordenante/devedor”, o que assume particular relevância atendendo à decisão proferida e vertida na alínea K) dos Factos Provados, cuja decisão a apelante também impugnou.

DÉCIMA SEXTA: Como tal, sem prejuízo do que a seguir se dirá, e condicionado à decisão que V/ Exas, Juízes Desembargadores, proferirão, deverá ser revogado o acórdão recorrido, determinando-se a remessa dos autos ao Tribunal da Relação, a fim de se conhecer do recurso de apelação interposto pela autora, na parte relativa à impugnação da decisão da matéria de facto (bem como das suas eventuais implicações no julgamento jurídico da causa, mormente quanto à matéria tida por prejudicada pela não apreciação do recuso de facto).

DÉCIMA SÉTIMA: Com efeito, pode ler-se no Acórdão do tribunal da relação de Lisboa de 25-10-2022, proferido no Proc.1870/20.1T8LSB.L2-7, em que foi relatora a Exma Srª. Juiz Desembargadora Micaela Sousa, que “A prova da ausência de causa justificativa basta-se com a demonstração da inexistência da causa que motivou a deslocação patrimonial ou daquelas que, dento da específica situação concreta de enriquecimento, sejam tidas como causas típicas ou habituais.”

DÉCIMA OITAVA: No caso dos presentes autos, e em conformidade com o entendimento perfilhado na declaração de voto de vencido, competia igualmente à ré, nos termos em que a autora configura a causa de pedir, alegar e provar a correlatividade e proporcionalidade entre o montante pecuniário executado pela ré e as obrigações que a autora deveria ter cumprido e que, segundo ela, não cumpriu, o que, manifestamente, a ré não logrou demonstrar.

DÉCIMA NONA: Pese embora se verificar que estava na exclusiva disponibilidade da ré a demonstração da por si alegada proporcionalidade, designadamente através da junção aos autos dos comprovativos dos custos que, porventura, tivesse suportado com a contratação de terceiros para reparação dos defeitos.

VIGÉSIMA: E tendo a ré expressamente invocado a exceção de não cumprimento; fazendo-o de forma a procurar extinguir o direito invocado pela autora, haveremos, forçosamente, de concluir, pelas regras de repartição de ónus da prova. – sic. artº 342º, n.º 2, do Código Civil - que era sobre ela que recaía o ónus de provar ou comprovar o único argumento que apresentou para demonstrar ter existido causa justificativa de ter acionado as garantias bancárias.

VIGÉSIMA PRIMEIRA: Na verdade, tal como mencionado no Acórdão acima identificado de25/10/2022, “No caso de solicitação irregular do pagamento da garantia, o dador da ordem pode reaver toda ou parte da quantia liquidada em cumprimento da obrigação de reembolso.

VIGÉSIMA SEGUNDA: Vertendo ao caso dos autos, se é à autora que cumpre demonstrar a falta da causa justificativa para a apresentação e pagamento da garantia bancária, não tendo a ré demonstrado a proporcionalidade/correlatividade que invocou, nem tendo comprovado ter suportado qualquer custo com a reparação ou eliminação dos defeitos que, segundo ela, foi a causa que legitimou ter acionado as garantias bancárias; quando também ficou demostrado que a autora reparou todos os outros defeitos. – sic. alínea i) e j) dos factos provados -, e indemonstrado que a questão dos atrasos tivesse sido decisiva para que a ré tivesse acionado as garantias bancárias, entende a recorrente que logrou provar e demonstrar a falta da justificação para que a ré apresentasse as garantias bancárias prestadas a pagamento.

VIGÉSIMA TERCEIRA: Na verdade, atento a matéria factual dada como provada, resulta demonstrada a desproporcionalidade entre o montante das garantias bancárias acionadas e a obrigação que, no entender da ré, impendia sobre a autora, a qual sempre estaria relacionada com a vertente do custo inerente à execução, pela autora, dos trabalhos necessários à reparação dos defeitos em causa; e bem assim demonstrado o enriquecimento indevido ou ilícito que a ré obteve ao ter acionado as garantias bancárias.

VIGÉSIMA QUARTA: Acresce que é a própria ré quem o refere expressamente que a totalidade do valor necessário para a reparação do tubo com soldaduras reprovadas pelo Instituto de Soldaduras de Portugal – sistema de refrigeração das águas geladas – ronda os 15 mil euros. – sic. artigo 67º da contestação.

VIGÉSIMA QUINTA: E porque não seria de exigir à autora, por não ser razoável ou expectável, que tivesse de demonstrar a inexistência de uma qualquer causa de entre uma profusa panóplia que pudesse existir, tendo sido a ré quem veio apresentar como causa a invocada correlatividade ou proporcionalidade entre o montante pecuniário executado pela ré e as obrigações que a autora deveria ter cumprido e que, no seu entender, não cumpriu, afigura-se não só relevante a questão do custo inerente ou necessário à reparação dos defeitos, mas, para além disso, considera a recorrente ter demonstrado o inverso, isto é, a desproporcionalidade entre o custo dos alegados defeitos a serem reparados e o montante das garantias bancárias acionadas.

VIGÉSIMA SEXTA: E assim, com a prudência e razoabilidade sugerida no douto Acórdão que se vem mencionando, datado de 25-10-2022, considera a recorrente, no seu humilde entendimento, que conseguiu demonstrar a ausência de causa justificativa para a apresentação e pagamento das garantias bancárias, assistindo-lhe o direito a ser restituída pelo valor que despendeu para liquidar ao banco garante o quantitativo pago, acrescido do valor peticionado a título de danos morais causados,

VIGÉSIMA SÉTIMA: A ré ao ter acionado as garantias bancárias sem dar qualquer conhecimento à autora e sem causa justificativa, incorreu em situação de manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, e em clara violação dos deveres de cuidado, de previdência, de segurança e, como paradigma da eticidade que deve estar presente em qualquer negócio; em clara violação também do princípio da boa-fé, ao qual se associam o dos bons costumes ou o do fim social e económico do direito, como assinalado pelo Mm. Juiz Conselheiro Sebastião Póvoas.

VIGÉSIMA OITAVA: Assim, também por recurso à figura da má-fé e da violação do ditame da boa fé, assim como por recurso, em última instância, à figura de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, e a todos os demais e direitos e princípios mencionados e claramente violados pela ré, aliado à dificuldade que se reconhece em termos de ónus probatório neste tipo de ação, impõe-se, no modesto entendimento da recorrente, que a presente ação seja julgada procedente.

VIGÉSIMA NONA: A isso sempre haverá de acrescer que, como se alcança do douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16/05/2017, e assinalado na declaração de voto de vencido, “a existência de uma garantia bancária on first demand a garantir a boa execução da obra não dispensa o cumprimento do regime geral da empreitada, designadamente a denúncia dos defeitos e a instauração da respetiva ação se os defeitos não forem voluntariamente eliminados.”

TRIGÉSIMA:E tal leva-nos à exceção de caducidade alegada pela autora na petição inicial, sendo que: “A denúncia deve ser feita dentro do prazo de um ano e a indemnização e o direito à eliminação dos defeitos, previstos no artigo 1221.º devem ser pedidos no ano seguinte à denúncia (n.ºs 2 e 3).”

TRIGÉSIMA PRIMEIRA: No caso dos autos, a ré, depois de denunciar os defeitos, sem mais, acionou as garantias bancárias e não ficou demonstrado, como alegado pela ré, que a autora tivesse reconhecido perante a ré a sua responsabilidade pela eliminação dos defeitos respeitantes às caleiras e tubos de queda de águas pluviais.

TRIGÉSIMA SEGUNDA: Não tendo havido reconhecimento do direito da ré, a caducidade apenas poderia ser impedida pela instauração da ação.

TRIGÉSIMA TERCEIRA: E não tendo a ré interposto qualquer ação, impõe-se concluir pela caducidade do direito da ré, como invocado e alegado pela autora na petição inicial, com a consequente procedência da ação.

TERMOS EM QUE, POR VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 334º, 342, n.ºs 1 e 2, 473º, n.ºs 1 e 2, 762º, n.º 2, 798º, 1220, n.º 1, 1224º, 1225º, n.ºs 2 e 3, TODOS DO CÓDIGO CIVIL, ENTRE OUTROS QUE V/ EXAS, JUÍZES CONSELHEIROS, DOUTAMENTESUPRIRÃO, DEVERÁ SER REVOGADO O ACÓRDÃO RECORRIDO E SUBSTITUÍDO POR OUTRO, ALIÁS DOUTO, QUE JULGUE A PRESENTE AÇÃO TOTALMENTE PROCEDENTE, POR PROVADA.

ASSIM FAZENDO V/ EXAS, JUÍZES CONSELHEIROS A COSTUMADA JUSTIÇA!

Contra-alegando, a ré, Imperial Produtos Alimentares, SA, apresentou as seguintes conclusões:

I. O Acórdão recorrido encontra-se devidamente fundamentado, revelando uma análise exaustiva e rigorosa da matéria de facto e de direito, conforme impõe o princípio da legalidade e os requisitos de fundamentação exigidos pelo Código de Processo Civil.

II. A decisão recorrida está em conformidade com a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça, não carecendo de qualquer correção ou revisão, não se verificando erro ou omissão que justifique a intervenção do Tribunal de revista.

III. Nos termos dos artigos 682.º, n.º 2 e 674.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, cabe ao Supremo Tribunal de Justiça, enquanto Tribunal de revista, limitar-se a verificar se o Tribunal da Relação observou as regras processuais relativas à impugnação da matéria de facto e se procedeu a uma apreciação crítica da prova conforme o artigo 607.º, n.º 4 do CPC.

IV. Sendo que, a reapreciação livre da prova está vedada, pelo que a Recorrente não pode validamente pretender alterar o valor probatório das decisões anteriores, como vem tentando sem sucesso.

V. As garantias bancárias prestadas “à primeira solicitação” possuem natureza autónoma e abstrata, vinculando o garante ao pagamento imediato após simples interpelação do beneficiário, independentemente da verificação judicial ou extrajudicial do alegado incumprimento contratual.

VI. Esta autonomia e independência estão consagradas na jurisprudência recente do Tribunal da Relação do Porto (Acórdão de 08.01.2024, processo 14393/23.8T8PRT.P1) e do Supremo Tribunal de Justiça (Acórdão de 30.03.2023, processo 3088/20.4T8MAI-A.P1.S2), que reconhecem expressamente a impossibilidade de condicionamento do pagamento à demonstração prévia do incumprimento.

VII. O exercício do direito de ação pelo beneficiário da garantia deve respeitar os limites impostos pela boa-fé, conforme o artigo 762.º, n.º 2, e pelo princípio do abuso de direito, artigo 334.º do Código Civil.

VIII. Todavia, para que se reconheça o abuso de direito, exige-se uma ofensa grave e manifesta à ética jurídica, o que não se verifica no presente caso, conforme reiterado no Acórdão do STJ de 19.10.2017 (proc. 11403/15.6T8PRT.P1.S1).

IX. O enriquecimento sem causa um instituto subsidiário, aplicável apenas quando inexistir qualquer relação jurídica que justifique a transferência patrimonial (artigo 473.º do Código Civil).

X. A obrigação da Recorrida decorre da execução legítima de garantias bancárias “on first demand”, não se verificando, por isso, qualquer enriquecimento ilegítimo ou ausência de causa.

XI. Contrariamente à alegação da Recorrente, não subsiste qualquer obrigação da Recorrida em instaurar ação judicial para exigir a reparação dos defeitos antes de acionar as garantias bancárias.

XII. O pagamento por parte do garante nada tem que ver com o (in)cumprimento do contrato subjacente, sendo suficiente a interpelação pelo beneficiário para o efeito.

XIII. Nesta conformidade, tendo a Recorrida legitimamente acionado as garantias em conformidade com o contrato celebrado, estando provados os defeitos invocados e a ausência de qualquer conduta ilícita ou abusiva,

XIV. O Tribunal a quo bem andou ao manter a decisão de primeira instância, não havendo razão para modificar o Acórdão recorrido, que não violou qualquer norma legal e decidiu em estrita observância do direito aplicável.

XV. A Recorrente não demonstrou, de forma suficiente, qualquer erro jurídico ou factual, não podendo o recurso merecer provimento.

TERMOS EM QUE,

Deve ser negado provimento ao recurso interposto pela Recorrente, mantendo-se o Acórdão Recorrido sem qualquer reparo,

Assim se fazendo a acostumada, JUSTIÇA!

Obtidos os vistos, cumpre decidir.

Face ao teor das alegações apresentadas pela recorrente, são as seguintes as questões a decidir:

A. Se a factualidade que a autora pretendia fosse dada como provada, em consequência do recurso que interpôs para a Relação, a nível da impugnação da matéria de facto dada como provada na sentença, consubstancia a falta de causa justificativa para que a ré accionasse as garantias bancárias, carecendo, por isso, de relevância para o desfecho da acção, devendo ser conhecida pela Relação, o que a acarreta a remessa dos autos a esta, a fim de conhecer do recurso nessa parte;

B. A quem compete o ónus da prova da demonstração da falta de causa justificativa para accionamento das garantias bancárias e da excepção de não cumprimento do contrato;

C. Se a ré acionou as garantias bancárias, sem causa justificativa para o fazer, por a autora ter cumprido o contrato de empreitada celebrado entre as ora partes, sendo lícito á autora alegar o cumprimento do contrato com vista a demonstrar o acionamento indevido das garantias;

D. Se a ré incorreu em abuso de direito e;

E. Se a eventual caducidade do direito a que se arroga a ré, só poderia ser impedida pela instauração da competente acção.

São os seguintes os factos dados como provados:

a) Representantes da autora e da ré apuseram as suas assinaturas nos escritos datados de 23 de Dezembro de 2015, juntos aos como documento n.º 2 com a petição inicial (fls. 20 e ss), intitulados “Aditamento Contrato de Empreitada” e “Contrato de Empreitada”, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta nomeadamente que a autora se obriga a executar todos os trabalhos necessários às obras de ampliação de uma unidade industrial existente na Rua 1 na freguesia de Azurara, em Vila do Conde mediante o pagamento pela ré de €1.183.558,88; (alínea a) dos factos assentes)

b) Representantes da autora e da ré apuseram as suas assinaturas nos escritos datados de 28 e 23 de Dezembro de 2015, juntos aos como documento n.º 3 com a petição inicial (fls. 41, verso, e ss), intitulados “Aditamento Contrato de Empreitada” e “Contrato de Empreitada”, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta nomeadamente que a autora se obriga a executar todos os trabalhos necessários à 2.ª fase das obras de ampliação de uma unidade industrial existente na Rua 1 na freguesia de Azurara, em Vila do Conde mediante o pagamento pela ré de €451.558,11; (alínea b) dos factos assentes)

c) De ambos os escritos constava ainda nomeadamente, e de forma idêntica: “ARTº 4 – CAUÇÃO O empreiteiro presta caução, através de garantia bancária, incondicional e à primeira solicitação, com a outorga do presente Contrato, no valor de 5% do valor da empreitada, conforme cópia que se junta como Anexo 3, sendo esta libertada após recepção definitiva da obra pelo Dono da Obra. (…) ARTº 10 – FISCALIZAÇÃO DOS TRABALHOS 1. A direcção e fiscalização dos trabalhos serão exercidas pelo Dono da Obra, por intermédio dos delegados nomeados para esse efeito, os quais se designam por “Fiscalização”. (…) 3. Para além das atribuições e competências que lhe foram atribuídas nos demais artigos deste Contrato, a Fiscalização terá competência para: a) Suspender obras e serviços, total ou parcialmente, em qualquer tempo, sempre que essa medida necessária; b) Recusar qualquer serviço ou material que não atenda as especificações do contrato de empreitada e documentos anexos ao mesmo, ou, se aí não estiverem eventualmente especificados, cuja qualidade não apresente atributos compatíveis com a obra a que se destinam; (…) d) Aceitar ou recusar firmas e/ou profissionais contratados pelo Empreiteiro como subempreiteiros, fornecedores, tarefeiros e assalariados. 4. A acção da Fiscalização em nada diminui a responsabilidade do Empreiteiro, no que se refere à boa execução dos trabalhos, salvo naquilo que for expressamente determinado pela mesma Fiscalização e contrariamente ao parecer do Empreiteiro, determinação essa que, para o efeito, só poderá ser invocada quando tenha sido feita por escrito, o que o Empreiteiro poderá, em tal caso, exigir. (…) ARTº 23 – PAGAMENTOS AO EMPREITEIRO (…) 5. O desconto para garantia do contrato, de 5%, será feito em cada um dos pagamentos mensais a que o Empreiteiro tiver direito, podendo tal desconto ser substituído por garantia bancária, em termos semelhantes aos mencionados no anterior n.0 3 do art.0 40, após a recepção provisória, e desde que haja acordo do Dono da Obra. Tratando-se de pagamentos de trabalhos a mais, o desconto para garantia será de 10% do respectivo valor. (…) ARTº 26 - CAUÇÃO DE GARANTIA 1. A caução de garantia é constituída pela garantia bancária prevista no. 40, acrescida das retenções mensais efectuadas nos pagamentos devidos ao Empreiteiro, nos termos do presente Contrato (incluindo as retenções devidas pelos trabalhos a mais), sendo esta libertada aquando da recepção definitiva da obra. (…) ARTº 27 – MULTAS CONTRATUAIS (…) 2. Se o Empreiteiro não concluir obra no prazo contratualmente estabelecido, acrescido das prorrogações concedidas, ser-lhe-á aplicada até à data da recepção provisória ou à resolução do contrato, a seguinte multa contratual diária: a) 1960 (um por mil) do valor de adjudicação, no primeiro período correspondente a um décimo do referido prazo; b) Em cada período subsequente de igual duração, a multa sofrerá um aumento de (zero vírgula cinco por mil), até atingir o máximo de (cinco por mil), sem contudo e na sua globalidade, poder vir a exceder 20% (vinte por cento) do valor da adjudicação. (…) 4. No caso de incumprimento do prazo global da Empreitada, o Empreiteiro, para atém das multas, assume o encargo da Fiscalização, durante todo o período em que for excedido esse prazo. (…) ART. 29º RECEPÇÃO PROVISÓRIA 1. A recepção provisória da obra terá fugar assim que fiquem concluídos todos os trabalhos nela abrangidos, quer os inicialmente previstos, quer os que venham a ser realizados no decorrer da Empreitada, a realização de testes de bom funcionamento de todos os equipamentos e instalações, a entrega dos respectivos manuais técnicos, de todos os certificados legalmente exigidos para a obtenção do alvará de autorização de utilização e efectuada a limpeza total da obra. 2. A recepção provisória será efectuada por intermédio de vistoria, a pedido do Empreiteiro ou por iniciativa do Dono da Obra. A vistoria será levada a cabo por representante do Dono da Obra e pela Fiscalização na presença do Empreiteiro, lavrando-se o respectivo auto que será assinado por todos os presentes. 3. Após a vistoria, o Dono da Obra, pode, segundo o seu exclusivo critério: -Proceder à recepção provisória final, quando, pela vistoria realizada, se verificar estar a obra em condições de ser recebida; ou Proceder à recepção provisória condicionada, se for verificada qualquer deficiência. resultante da imperfeita ou deficiente execução dos trabalhos, ou da qualidade inferior dos materiais utilizados ou fornecimentos efectuados, caso em que será marcado um prazo, concertado com o Empreiteiro, para proceder às necessárias reparações, findo o qual se procederá a nova vistoria para efeitos de recepção provisória final da obra. Se, findo o prazo referido, as reparações não tiverem sido executadas ou não tiverem sido feitas por forma a sanar integralmente as deficjências encontradas, assistirá ao Dono da Obra o direito de as mandar efectuar, por conta de outro empreiteiro, accionando as garantias previstas no contrato ou deduzindo as respectivas quantias nos montantes em divida ao empreiteiro; ou - Determinar ao Empreiteiro que continue a execução da Empreitada, especificando os trabalhos que deve executar antes da emissão de qualquer dos autos referidos nos itens anteriores, caso conclua que a obra não está em condições de ser recebida. Neste caso, o Dono da Obra pode, se assim o entender, fazer a recepção provisória da parte dos trabalhos que estiver em condições de ser recebida desde que o Empreiteiro se obrigue a concluir as restantes partes em prazo pré-fixado, sendo para todos os efeitos contratuais este último tido como data final da recepção provisória. (…) ARTº 31 – - PRAZO DE GARANTIA / REPARAÇÕES 1. O prazo de garantia da Empreitada é de 5 (cinco) anos e será contado a partir da data de Recepção Provisória Final e Total da obra. 2. Durante o prazo de garantia constitui encargo do Empreiteiro a conservação dos trabalhos que realizou, cumprindo-lhe proceder por sua conta à imediata reparação de quaisquer deficiências, erros, omissões ou imperfeiçoes que sejam verificadas. O Empreiteiro é, igualmente, responsável pelos prejuízos que, porventura, resultem dessas deficiências, provenientes da má execução dos trabalhos ou a defeitos de qualidade nos materiais empregues (…). 6. Sem prejuízo de outras penalidades estabelecidas na lei ou no presente Contrato e cumulativamente com as mesmas, o Empreiteiro obriga-se a pagar uma multa diária de 45€ (quarenta e cinco euros), por cada dia de atraso na conclusão da reparação elou substituição mencionadas neste número. 7. Se o Empreiteiro não cumprir a obrigação mencionada no número anterior no prazo que lhe for fixado pelo Dono da Obra, poderá este executar os referidos trabalhos ou substituição de materiais e equipamentos, accionando a caução de garantia prestada nos termos do presente Contrato para obter os valores correspondentes ao custo total, real ou previsto, das reparações elou substituições que mandará executar por conta do Empreiteiro e para obter o pagamento das penalidades que eventualmente lhe forem devidas pelo Empreiteiro, sem perda da garantia total da Obra. (…) ARTº 33 – RECEPÇÃO DEFINITIVA 1. A recepção definitiva da empreitada terá lugar findo o prazo de garantia e por iniciativa do Dono da Obra ou a pedido do Empreiteiro. (…)”; (alíneas a) e b) dos factos assentes)

d) Em vista aos estipulado no supra transcrito art. 23.º, n.º 5, Novo Banco S.A. fez emitir, a pedido da autora, o documento n.º 8 junto com a petição inicial (fls. 67), intitulado “Garantia Bancária N...93”, datado de 21 de Junho de 2018, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta nomeadamente: “garantia bancária executável ao primeiro pedido da Beneficiária relativa ao de garantia de 5% (cinco por cento) do valor da "Empreitada Geral de Ampliação da UN2", até ao valor de Eur. 82.931,03 (oitenta e dois mil novecentos e trinta e um euros e três cêntimos), obrigando- -se o Banco, dentro da citada importância, a fazer a entrega à Beneficiaria, nos 3 (três) dias úteis da data de recepção do pedido, de quaisquer quantias que esta lhe venha a solicitar por e sem que esta tenha que justificar ou apresentar quaisquer razões para o efeito”; (alínea c) dos factos assentes)

e) Em vista aos estipulado no supra transcrito art. 23.º, n.º 5, Novo Banco S.A. fez emitir, a pedido da autora, o documento n.º 7 junto com a petição inicial (fls. 66, verso), intitulado “Garantia Bancária N00407575”, datado de 14 de Maio de 2018, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta nomeadamente: “presta, pelo presente documento, uma garantia bancária a favor de IMPERIAL - PRODUTOS ALIMENTARES, SA, (…) até ao montante de Eur. 85.197,77 (oitenta e cinco mil, cento e noventa e sete euros e setenta e sete cêntimos), representativa do depósito de garantia de 5% do valor da citada empreitada, como se o mesmo tivesse sido feito pela referida adjudicatária, responsabilizando-se pela sua realização, por parte desta, se, por falta de cumprimento do contato, esta incorrer em tal obrigação”; (alínea c) dos factos assentes)

f) A autora deu início aos trabalhos a que se reportam as alíneas a) a c) em 15 de Fevereiro de 2016; (alínea d) dos factos assentes)

g) Representantes da autora e ré apuseram as suas assinaturas no escrito junto como documento n.º 6 com a petição inicial (fls. 65), intitulado “Auto de Recepção Provisória”, datado de 17 de Agosto de 2016, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta nomeadamente: “A vistoria em causa foi pedida pelo empreiteiro para o efeito de recepção provisória e, tendo-se verificado estar a obra em condições de ser recebida, se aceitou e declarou poder a mesma passar a ser utilizada. Pelo Sr. Eng. AA, como representante da entidade fiscalizadora, foi declarado que nada haveria a opor e que a obra estava em condições de ser entregue para utilização, sob exceção das deficiências constantes na lista abaixo, as quais deverão estar corrigidas até à data descrita em frente a cada deficiência/patologia/correcção. Pelo Sr. BB, como representante do Empreiteiro Adjudicatário, foi declarado que aceitava e reconhecia as deficiências como inteiramente exacto o mencionado e na lista de patologias, podendo o Dono da Obra proceder à sua utilização. Pela Sr.ª Eng.ª CC, como representante do Dono da Obra, foi declarado que aceitava as conclusões e fazia a recepção provisória nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 217.2, 218.2 e 219.2 do Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março, e nos termos do Art.º 29 -- Recepção Provisória, Art.º 27 — Multas Contratuais e Art.º 30 — Resolução do Contrato dos Contratos de Empreitada. Os trabalhos em falta que carecem de correcção ou reposição são os seguintes com a respetiva data máxima de correção: (…) - Justificação porque uma das mangas têxteis da unidade existente, apresenta-se a maior parte das vezes congelada, incluindo a correcção da manga têxtil da mesma à saída do tubo rígido, até 9/dez/16; (…) - Acabar com os remates de serralharia ainda em falta, nomeadamente as pelúcias e remates de acabamento, revisão à estanquicidade das clarabóias e caleiras sendo o prazo máximo correcção até 16/dez/2016; (…) - Substituição e reposição a novo de acordo com o C.E. do tubo com soldaduras reprovadas pelo Instituto de Soldaduras de Portugal, em que fica pendente a sua substituição para altura de paragem de produção, sendo que a NME será informada, por correio electrónico, com o mínimo 15 dias corridos, de antecedência. E não havendo mais nada a tratar, foi efectuada a recepção provisória com as exclusões referidas e lavrado o presente auto que depois de lido em voz alta e julgado conforme, vai ser assinado pelos intervenientes, tendo sido também acordado que em caso de incumprimento por parte do Empreiteiro com as datas assinaladas, este assumia a total responsabilidade das custas inerentes à reposição dos mesmos.”; (alínea d) dos factos assentes e arts. 71.º da petição inicial, e 89.º, 111.º e 112.º da contestação)

h) A ré fez remeter à autora, que o recebeu em 8 de Maio de 2020, o escrito junto por cópia como documento n.º 9 com a petição inicial (fls. 67, verso), com menção de assunto “Patologias no Edifício UN 3 (fase 1 e fase 2)”, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta nomeadamente o seguinte: “Relativamente à referida empreitada, identificaram-se as patologias que se apresentam devidamente expressas no documento anexo. Como é do vosso conhecimento, a Imperial contratou o ISQ para avaliar a totalidade da rede das tubagens de água gelada, tendo sido identificadas não conformidades/irregularidades do trabalho da NME nas soldaduras a TIG, situação esta que a NME se comprometeu a reparar posteriormente para não atrasar, ainda mais, a conclusão da obra. (…) Desta forma, a NME deve proceder à substituição das tubagens de água gelada, tendo em conta as exigências técnicas do caderno de encargos. (…) sendo que para esse efeito têm o prazo de 30 dias a contar da receção desta carta. (…) Em face do acima descrito, vimos solicitar a correção dos defeitos supramencionados, pelo que aguardamos que informem das datas disponíveis para a execução dos respetivos trabalhos. (…) Na falta de resposta adequada dentro do prazo solicitado, a Imperial assumirá, de imediato, a execução da correção das referidas patologias e debitará os custos à Novo Modelo Europa SA. (…) Patologia 1: Passadiço da cobertura que deveria ser galvanizado com imersão a quente apresenta na sua totalidade diversos pontos de ferrugem, a própria grade do pavimento apresenta abatimentos (por incorreta colocação) e a pintura apresenta em diversas zonas ferrugens a aparecer. (…) Patologia 2: A estrutura metálica da Un3 (fase 1 e fase 2) apresentam em diversos locais, com predominância pelo exterior, pontos de ferrugem, bem como a tinta intumescente a lascar. (…) Patologia 3: Diversas zonas com indício de entrada de água com predominância nas zonas de meia cana, entre o pavimento e as paredes exteriores, bem como junto dos diversos vãos do edifício. (…) Patologia 4: Fissuras no pavimento, essencialmente, nas zonas circundantes dos pilares metálicos. (…) Patologia 5: Existem diversos escorrimentos que advêm das juntas das chapas da fachada, por aplicação incorreta ou por uso de parafusos de ferro, que fazem com que exista "babados" na fachada. (…) Patologia 6: Fissuras nas paredes exteriores, sendo esta patologia a de menor relevância sobre as demais, pois é, essencialmente, junto aos pilares metálicos e portão de acesso ao mezanino. (…) Patologia 7: É obrigatório a substituição integral das caleiras existentes, bem como uma revisão geral aos tubos de queda das águas pluviais. Este é o maior problema dado que sempre que chove entra água, ou por pontos de soldas da caleira (bem visível pela parte inferior da mesma que está a aparecer ferrugem) ou pela ligação entre a caleira e/ou tubo de queda. Esta água que entra está a cair em cima do quadro eléctrico e máquinas de produção o que está a colocar em perigo pessoas e máquinas. Para além do já anteriormente relatado, desde a sua aplicação, a forma como foi "construída" a caleira não deixa a água escoar na sua totalidade; existem também diversos pontos de ferrugem na própria chapa, bem visíveis inclusive pela parte inferior.”; (alínea e) dos factos assentes e arts. 68.º, 69.º e 81.º a 84.º da petição inicial)

i) À data da emissão dos documentos descritos em d) e e), a autora executara já os trabalhos carecidos de correcção assinalados no auto de recepção provisória descrito em g), com excepção da revisão da estanquicidade das caleiras e reparação do tubo com soldaduras reprovadas pelo Instituto de Soldaduras de Portugal; (arts. 16.º e 18.º da petição inicial, e 89.º, 111.º e 112.º da contestação)

j) Na sequência da comunicação descrita em h) a autora fez deslocar trabalhadores às instalações da ré que procederam à reparação das patologias aí assinaladas, com exceção dos problemas apontados nas caleiras e tubos de queda de águas pluviais e nas soldaduras do circuito de água gelada, que persistiam nos termos descritos em g) e h) após Agosto de 2020, data da última deslocação de trabalhadores da autora à obra; (arts. 20.º, 24.º, 58.º, 59.º, 63.º e 64.º da petição inicial, e 89.º, 111.º e 112.º da contestação)

k) A ré fez reparar o circuito de água gelada, nomeadamente com substituição de tubagens, e parte dessa reparação importou no pagamento de €24.801,97, titulado pela factura junta como documento n.º 20 com a petição inicial (fls. 99, verso), que a ré fez remeter a Novo Banco, S.A. para accionamento da garantia referida em e); (art. 44.º da petição inicial)

l) Em 1 de Agosto de 2020, no momento em que trabalhadores por conta da autora se preparavam para finalizar a reparação dos pontos de ferrugem na estrutura metálica, descritos na patologia 2 na alínea h) dos factos provados, a entidade encarregada pela ré de fiscalizar a execução da obra questionou a qualidade da tinta que estava a ser usada, recolheu uma amostra, e impediu o prosseguimento destes trabalhos que faltavam; (arts. 25.º a 27.º e 55.º da petição inicial)

m) Após trabalhos realizados pela autora em sequência da missiva descrita na alínea h), a ré fez remeter à autora o escrito junto como documento n.º 16 com a petição inicial (fls. 94, verso), datado de 5 de Agosto de 2020, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual declarou aceitar as reparações realizadas pela autora quanto às patologias 1 e 3 a 6, assinaladas na alínea h); (arts. 33.º a 35.º da petição inicial)

n) Em Junho de 2021, em referência à declaração descrita em d), a ré solicitou a Novo Banco, S.A., o pagamento de €82.931,03, tendo aquela sociedade bancária efectuado o pagamento de tal montante à ré em Julho de 2021; (arts. 40.º, 41.º e 49.º da petição inicial)

o) Em Junho de 2021, em referência à declaração descrita em e), a ré solicitou a Novo Banco, S.A., o pagamento de €24.801,97, remetendo para tanto a factura junta como documento n.º 20 com a petição inicial (fls. 99, verso), mas aquela sociedade bancária não realizou até agora qualquer pagamento a respeito; (art. 40.º da petição inicial)

p) Em consequência do pagamento descrito em n), e como a autora não provesse o seu saldo bancário com o valor correspondente até ao final do mês, o Novo Banco, S.A. comunicou a situação de incumprimento à central de risco, cujo registo perdurou cerca de três meses, enquanto a autora negociou o pagamento a Novo Banco, que implica um acréscimo de dificuldade na negociação de crédito junto da banca; (arts. 108.º, 112.º e 114.º da petição inicial)

q) A autora fez reparar as patologias assinaladas na alínea h), com excepção das respeitantes à soldadura do circuito de

Por outro lado, a primeira instância declarou não provados os factos seguintes:

1) Que as partes tenham formulado quaisquer declarações adicionais ao descrito em g) dos factos provados para além do aí constante (arts. 9.º a 11.º da petição inicial).

2) Que a ré nunca tenha informado a autora que fizera reparar e custear a reparação do circuito de água gelada e não tenha facturado tais custos à autora (arts. 45.º e 47.º da petição inicial).

3) Que em 2018 tenham ocorrido trabalhos em vista a reforçar as soldaduras da tubagem de água gelada (arts. 89.º, 92.º e 93.º da petição inicial).

4) Que após Junho de 2020 a autora não mais tenha sido informada sobre o estado e necessidade de reparação das tubagens de água gelada (arts. 97.º e 98.º da petição inicial).

5) Que a ré ou a entidade fiscalizadora da obra nunca tivessem feito qualquer reparo sobre a forma como foi construída a caleira (art. 70.º da petição inicial).

6) Que a ré não tivesse feito quaisquer reparos às caleiras aquando da recepção provisória da obra ou tivesse feito outras declarações de conformidade para além das descritas na alínea g) dos factos provados (arts. 71.º e 72.º da petição inicial).

7) Que os problemas respeitantes à estanquicidade das caleiras e tubos de quedas de água referidos em j) resultasse de deficiente manutenção por parte da ré (arts. 73.º, 74.º e 77.º da petição inicial).

8) Que a ré recusasse a proposta da autora em reparar os problemas de estanquicidade apontados nas caleiras através de aplicação de tela líquida, e que tal solução fosse eficaz para resolver tais problemas (art. 75.º da petição inicial).

9) Que a autora tivesse reconhecido perante a ré a sua responsabilidade pela eliminação dos defeitos respeitantes às caleiras e tubos de queda de águas pluviais (arts. 89.º, 111.º e 112.º da contestação).

A. Se a factualidade que a autora pretendia fosse dada como provada, em consequência do recurso que interpôs para a Relação, a nível da impugnação da matéria de facto dada como provada na sentença, consubstancia a falta de causa justificativa para que a ré accionasse as garantias bancárias, carecendo, por isso, de relevância para o desfecho da acção, devendo ser conhecida pela Relação, o que a acarreta a remessa dos autos a esta, a fim de conhecer do recurso nessa parte.

Quanto a tal, alega a recorrente que a matéria em causa releva para o desfecho da acção, porquanto o mesmo depende do cumprimento/incumprimento do contrato de empreitada que motivou a emissão das garantias bancárias, devendo ter-se em conta as regras que lhe são próprias e não as que regulam o contrato de garantia autónoma.

Como se refere no Acórdão recorrido é certo que no caso das garantias autónomas on first demand, sendo desta categoria a garantia bancária em apreço, o obrigado não pode invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa com vista a obstar ao acionamento da garantia por parte do beneficiário.

Como refere Galvão Telles in O Direito, 120, pág. 275 e seg.s:

“A garantia autónoma é a garantia pela qual o banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, no caso de alegada inexecução ou má execução de determinado contrato (o contrato-base), sem poder invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com esse mesmo contrato.

O garante paga ao credor sem discutir; depois o devedor tem de reembolsar o garante, também sem discutir.

E será, por último, entre o devedor e o credor que se estabelecerá a controvérsia, se a ela houver lugar, cabendo ao devedor o ónus de demandar judicialmente o credor para reaver o que houver desembolsado, caso a dívida não existisse e ele portanto não fosse, afinal, verdadeiro devedor”.

Ou, como se refere, no Acórdão do STJ, de 17 de Junho de 2012, Processo n.º 15932/16.6T8LSB-A.L1.S1, disponível no respectivo sítio da dgsi “… havendo controvérsia sobre os factos que o ordenante alega como demonstrando, o dolo, a má fé ou o abuso do direito, o garante deve pagar, devendo a questão ser discutida depois, entre as partes do contrato base”.

De resto, a possibilidade de o ordenador da garantia recorrer a acção própria para demonstrar que cumpriu o contrato base e inerente falta de causa justificativa para o beneficiário accionar a garantia bancária é pacificamente aceite na nossa jurisprudência, como se pode ver do Acórdão do STJ acima citado e dos de 19 de Outubro de 2017, Processo n.º 11403/15.6T8PRT.P1.S1, ao exigir a prova de causa para a transferência patrimonial a fim de se afastar o enriquecimento sem causa e o de 21 de Março de 2023, Processo n.º 5007/21.1T8FNC-A.L1.S1, que alude à possibilidade de demonstração do cumprimento do contrato-base; dos Acórdãos da Relação de Lisboa, de 25 de Outubro de 2022, Processo n.º 1870/22.1T8LSB.L2-7, de 30 de Junho de 2020, Processo n.º 484/12.4TYLSB-CK.L1-1 e de 3 de Abril de 2014, Processo n.º 5063/11.0TBOER.L1-6, todos disponíveis no mesmo sítio do anteriormente citado.

Ora, no caso em apreço, como resulta das alíneas n) e p), dos factos provados, na sequência de a ora ré ter accionado a garantia bancária, foi-lhe paga a quantia correspondente, que a autora já pagou ao banco.

Nesta acção não se discute a natureza da referida garantia bancária, nem as consequências que dela derivam relativamente à obrigação do pagamento da quantia garantida à ora ré enquanto sua beneficiária, designadamente ao nível da irrelevância das eventuais ligadas vicissitudes ligadas ao contrato-base.

Ao invés, o que está em causa, apenas tem que ver com as obrigações contratuais decorrentes do contrato-base (no caso, a empreitada referida nos autos), designadamente se existe causa justificativa para a ré ter accionado a garantia, se a autora, efectivamente, devia a quantia garantida.

Questão, esta, que tem de ser apreciada e decidida por reporte às normas que regulam o contrato de empreitada e não às que conformam o contrato de garantia autónoma.

Consequentemente, importa que se apure se a autora incumpriu ou não e se sim, em que medida, o contrato de empreitada e qual o valor correspondente a esse alegado incumprimento ou cumprimento parcial, pois só assim e nessa medida gozará a ré de causa justificativa para ter accionado as garantias e fazer suas as quantias a elas respeitantes.

Bem como tal factualidade é, ainda, relevante e essencial, para aferir do invocado abuso de direito por parte da ré.

Compulsando as alegações e conclusões do recurso de apelação (cf. conclusões 19.ª, 20.ª e 34.ª) verifica-se que a matéria de facto ali aludida, relaciona-se com a questão nuclear da acção: se a ré tem causa justificativa para accionar as garantias bancárias, pelo que deve ser apreciada.

Assim, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigo 682.º, n.º 3 e 683.º, ambos do CPC, declara-se que as regras aplicáveis ao caso são as que regem o contrato de empreitada, importando averiguar do respectivo cumprimento ou incumprimento por banda das partes contraentes, anulando-se o Acórdão recorrido a fim de a Relação apreciar o recurso para ali interposto, relativamente à impugnação da decisão da matéria de facto, pelos mesmos juízes que intervieram no primeiro julgamento, sendo tal possível, devendo, para isso, baixarem os autos ao Tribunal da Relação do Porto.

Na sequência do que, por ora, fica prejudicado o conhecimento das demais questões acima elencadas.

Nestes termos, se decide:

Anular, nos termos expostos, o acórdão recorrido, baixando os autos ao Tribunal da Relação a fim de ser apreciado o recurso de apelação, na vertente de impugnação da matéria de facto e ser proferido novo Acórdão em conformidade.

Custas, a fixar a final.

Lisboa, 29 de Outubro de 2025

Arlindo Oliveira (Relator)

Rui Machado e Moura

A. Barateiro Martins