DIREITO DE PREFERÊNCIA
TERRENO
PRÉDIO RÚSTICO
PRÉDIO CONFINANTE
UNIDADE DE CULTURA
EXPLORAÇÃO AGRÍCOLA
USO PARA FIM DIVERSO
EMPARCELAMENTO
CONSTRUÇÃO CIVIL
Sumário

I- Dispõe o art.º 1380.º n.º 1 do Código Civil que os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante.
II- Porém, de acordo, com o estabelecido no art.º 1381.º n.º 1 a): “Não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes: a) Quando algum dos terrenos (…) se destine a algum fim que não seja a cultura”
III- Estes preceitos atinentes ao regime jurídico do direito de preferência titulado pelos proprietários de prédios rústicos confinantes ancoram num propósito de emparcelamento de terrenos com área inferior à unidade de cultura, visando uma exploração agrícola tecnicamente rentável, evitando-se, assim, a proliferação do minifúndio, considerado incompatível com um aproveitamento fundiário eficiente.
IV- Assim, resultando dos factos provados que o Réu adquirente do terreno em causa nos autos, pretendeu com a aquisição transferir para o mesmo o seu “estaleiro” de construção civil e depósito de materiais para as suas obras, bem como de viaturas, mais tendo a intenção de construir um armazém para melhor os acondicionar, forçosamente se conclui que a destinação e afectação do prédio não coincide com aqueles fins de cultura, pelo que ocorre a situação impeditiva do direito de preferência decorrente da previsão normativa constante da alínea a) do art.º 1381.º do Código Civil.

Texto Integral

Processo n.º 4552/22.6T8ALM.L1.S1


Acordam na 7.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I-RELATÓRIO

CORTE VELHA – EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS, S.A., instaurou acção declarativa, com processo comum, contra:

1) AA e mulher, BB;

2) CC e mulher, DD;

3) EE;

4) FF;

5) GG e marido, HH;

6) II;

7) JJ e mulher, KK

8) LL;

9) MM e

10) NN, todos melhor identificados nos autos.

A Autora vem pedir que seja ordenada a substituição do adquirente pela A. no negócio de compra e venda do imóvel que identifica, com efeito retroactivo à data da escritura de compra e venda, mediante o pagamento do respectivo preço, que depositou, e, cumulativamente, que seja ordenado o cancelamento dos registos feitos a favor do 10.º Réu.

Para tanto, alegou, em síntese, que, em 31.05.2022, os 1.º a 9.º RR. venderam ao 10.º R. o prédio rústico de que eram proprietários (descrito na CRP de Alcochete sob o n.º ..24 e inscrito na matriz cadastral sob o art. 55.º da Secção AS), sem que tenham dado à A. a preferência a que a mesma tinha direito, por ser proprietária de terreno rústico contíguo (descrito na CRP de Alcochete sob o n.º ..54 e inscrito na matriz cadastral sob o art.º 17.º da Secção AS, com parte urbana inscrita na matriz predial urbana sob os arts. .42.º e .43.º).

*

O 10.º Réu contestou e deduziu reconvenção, que concluiu nos seguintes termos:

«- Deve ser julgada procedente a exceção dilatória deduzida, considerando inepta a petição inicial, abstendo-se o Tribunal de conhecer do pedido e absolvendo o Réu da instância, ou do pedido, conforme for entendimento do Tribunal; caso assim se não entenda,

- Devem ser julgadas procedentes, por verificadas e provadas, as exceções perentórias de caducidade e a vertida no art.1381º do CC deduzidas, absolvendo-se o Réu do pedido.

Quando assim se não entenda e conheça do mérito da causa,

- Deve a presente ação ser julgada improcedente, por não provada e considerado abusivo o exercício do direito reclamado e, em consequência:

- Ser o Réu absolvido do pedido, com as legais consequências.

Se, por mera hipótese a ação vier a ser considerada total ou parcialmente procedente,

- Deve, porém, ser julgado totalmente procedente e provado o pedido reconvencional deduzido e, por via do mesmo, ser a Reconvinda condenada a pagar ao Reconvinte, para além do preço constante no título de aquisição, o montante de €:13042,06 (treze mil e quarenta e dois euros e seis cêntimos), bem como em juros à taxa legal, até efetivo e integral pagamento, desde a notificação da reconvenção e

- Deve ser reconhecido a favor do aqui Réu, direito de retenção sobre o prédio dos autos, até se ver ressarcido do seu crédito».

*

Os 1.ºs, 2.ºs, 3.ª, 5.ºs, 6.ª, 7.ºs, 8.º e 9.ª RR. também contestaram, pugnando pela sua absolvição do pedido, alegando, essencialmente, que o prédio da A. não é usado para fins agrícolas ou conexos e a A. não o pretende utilizar para a agricultura, pelo que existe abuso de direito por parte da mesma, nos termos do art.º 334.º do CC, não lhe assistindo o direito de preferir.

*

A 4.ª Ré contestou, invocando a excepção dilatória da ineptidão da petição inicial e alegando que o prédio da A. não é confinante com o prédio relativamente ao qual pretende exercer a preferência e que a A. não alega que tipo de cultura(s) predomina(m) no seu prédio, o que é cultivado no mesmo e que destino pretende dar ao prédio vendido, constituindo a sua pretensão um caso manifesto de abuso de direito.

Termina, pedindo a condenação da A. no pagamento de multa e indemnização a favor dos RR., nos termos do n.º1 e 2 do art.º 542.º do CPC, por ter deduzido pretensão cuja falta de fundamento sabe existir.

*

A Autora replicou, pronunciando-se pela improcedência da reconvenção e das excepções invocadas.

*

A reconvenção foi admitida, mas logo julgada manifestamente improcedente, decisão que foi revogada por decisão da Relação de 07.06.2024 (apenso A), que entendeu que os autos deveriam prosseguir «com produção de prova, para se apurar das despesas apontadas pelo recorrente e das benfeitorias, respectiva natureza e custo, conforme alegado nos arts.º 75.º a 78.º da contestação/reconvenção».

*

Com dispensa da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, julgando-se improcedentes a ineptidão da petição inicial e a excepção da caducidade.

*

Decorridos todos os trâmites legais, realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

«(…) o Tribunal decide:

i) Julgar a acção improcedente, absolvendo os RR. do pedido.

ii) Mais se considera prejudicada a apreciação da reconvenção.

iii) Absolver a Autora como litigante de má fé.

iv) Custas da acção a cargo da Autora – art. 527º CPC.

v) Custas do incidente de litigância de má fé a cargo da Ré OO – art. 527º CPC.

Notifique e registe».

*

Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação que veio a julgar o recurso procedente, revogou a sentença recorrida e, consequentemente:

a)reconheceu o direito de preferência da A. na venda, realizada no dia 31.05.2022, do prédio prédio rústico sito em Passil, com área total de 9.750 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete com o n.º ...4 da freguesia de Alcochete e inscrito na matriz cadastral sob o artigo 55.º da secção "AS” da mesma freguesia, pelo preço de € 65.000,00 (sessenta e cinco mil euros);

b) substituiu e colocou a A. na posição do 10.º R. no referido contrato de compra e venda, com efeito retroactivo a 31.05.2022, atribuindo ao 10.º R. a quantia de € 65.000,00 depositada nos autos;

c) ordenou o cancelamento de todos os registos de aquisição e inscrições matriciais e cadastrais efectuadas a favor do 10.º R. com base na escritura referida no n.º 16 dos factos provados;

d)julgou a reconvenção totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, absolveu a A./reconvinda dos pedidos contra si formulados pelo 10.º R./reconvinte.

*

Inconformado com este acórdão, o Réu NN interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

1º- O douto acórdão recorrido ofendeu preceitos de direito substantivo, designadamente as disposições dos arts.1380º e 1381º do Cód. Civil e princípios jurídicos fundamentais, princípios gerais de Direito que orientam a aplicação das leis, pois

2º- Da conjugação da prova produzida com as normas vertidas nos artigos antes referidos resulta não assistir razão à Recorrida / Autora nos argumentos apresentados em sede de apelação, cujo tribunal a quo acolheu;

3º- Quem invoca um direito cabe-lhe fazer a prova dos factos constitutivos do mesmo (art.342º, n.º1 do Cód. Civil), pelo que à Autora / Recorrida cabia a prova dos factos por si alegados, com vista à eventual procedência da ação, o que não conseguiu alcançar;

4º- Quanto ao Réu / Recorrente e demais Réus, por sua vez, lograram demonstrar à saciedade a verificação da exceção vertida na alínea a) do artigo 1381º do Cód. Civil. Em ambas as vertentes e em relação a ambas as partes;

5.º-Tendo a primeira instância feito uma correta interpretação e aplicação da lei aos factos, não havendo, por conseguinte, qualquer incorreção na aplicação do direito ou violação de disposições legais, mormente das normas vertidas nos arts.1380º e 1381º do Cód. Civil, pois a decisão está de acordo com o seu legítimo entendimento e em perfeita consonância não só com a matéria alegada e/ou provada (ou não) nos autos, como dentro da abrangência da lei, à luz da doutrina e jurisprudência;

6º- Subsidiariamente, caso assim se não entendesse, sempre ocorreria a verificação da exceção perentória do abuso do direito, cujos pressupostos se manifestam na íntegra preenchidos nos autos com o propósito da Recorrida;

7º- O douto tribunal a quo, ao decidir no sentido em que decidiu, não efetuou uma correta análise e valoração da prova produzida nos autos, em conjugação com as normas aplicáveis, desta forma violando os preceitos vertidos nos arts.1380º e 1381º do Cód. Civil;

8º- O acórdão recorrido deve assim ser revogado e proferida nova decisão em consonância com a interpretação legal apresentada pelo Recorrente, considerando improcedente a ação;

9º- Está julgado em definitivo pela 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, através do Proc. n.º4552/22.6T8ALM-A.L1, e posteriormente na sentença, que o pedido reconvencional deve ser apreciado nesta ação, conforme o foi, por ser da responsabilidade do preferente, a ser reclamado por via reconvencional, o pagamento das despesas e benfeitorias, conforme alegado pela aqui Recorrente / Reconvinte nos arts.75.º a 78.º da contestação/reconvenção;

10º- Assim sendo, não pode a instância de que se recorre contradizer e reapreciar a legitimidade e pertinência do pedido reconvencional, uma vez que a decisão sobre tal matéria já transitou em julgado e ser insuscetível de nova reapreciação. Nem a Recorrida tomou tal iniciativa, havendo, por conseguinte, violação das leis do processo;

11ª- O Recorrente, caso venha a definitivamente decair no presente recurso, quanto à verificação da existência dos pressuposto e reconhecimento do direito de preferência à autora / Recorrida, tem direito a haver da mesma uma indemnização referente às despesas suportadas com a aquisição do imóvel dos autos, suficientemente provadas e reconhecidas pela Recorrida, pelo seu depósito;

12º- Tal indemnização deve ser mantida em €:4315,06 (quatro mil trezentos e quinze euros e seis cêntimos), não atacada por excessiva ou por se basear em elementos contrários à lei;

13º- Ao opinar sobre a matéria da reconvenção, o tribunal a quo violou os poderes que a lei lhe confere, bem como as leis do processo, designadamente o vertido nos arts.619º, 621º, 625º, 628º, 631º, 635º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil;

14º- A Recorrida deve ainda ser condenada nas custas das diversas instâncias, inclusive nas do presente recurso.

Pelo exposto,

Em particular pelo que será suprido por vós, deve ser concedida a revista, revogando-se o douto acórdão recorrido e, em consequência, ser proferida douta decisão que absolva o Recorrente e demais Réus do pedido, assim mantendo na integra a decisão da primeira instância.”

*

CORTE VELHA – EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS, S. A., apresentou contra-alegações, nas quais pugnou pela improcedência do recurso e consequente confirmação do acórdão recorrido.

II-OS FACTOS

Das instâncias vem dada como assente, a seguinte factualidade:

«1) A A. é legítima possuidora e proprietária do prédio rústico sito em Passil, com a área total de 28.500 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete com o nº ..54, da freguesia de Alcochete e inscrito na matriz cadastral sob o artigo 17.º da secção “AS”, com parte urbana inscrita na matriz predial urbana sob os artigos .42.º, .43.º e .46.º da mesma freguesia, conforme ap. n.º 2 de 1999/06/30.

2) Os 1.º a 9.º RR. eram, até 31 de Maio de 2022, legítimos possuidores e proprietários do prédio rústico sito em Passil, com área total de 9.750 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete com o n.º ...4 da freguesia de Alcochete e inscrito na matriz cadastral sob o artigo 55.º da secção "AS” da mesma freguesia, na qualidade de herdeiros de PP.

3. O prédio da A. confina a norte com o prédio anteriormente pertencente aos 1 .º a 9.º RR. e identificado em 2).

4. A Autora tem como objecto social, “compra, venda e administração de imóvel e revenda dos adquiridos para esse fim”.

5. O presidente do conselho de administração da A., QQ, foi contactado telefonicamente por RR, mediador imobiliário da sociedade Imoromão, Lda, o qual transmitiu ter para venda o terro identificado em 2) com o da A., pertencente aos 1.º a 9.º RR., pelo preço de cerca de € 70.000,00.

6. Posteriormente, e após ter a Autora informado verbalmente não ter interesse, e pelo menos 15 dias depois, ocorreram duas reuniões presenciais, na qual o ou os administradores da Autora, reuniram com o referido mediador imobiliário num pequeno contentor de promoção imobiliária.

7. Tendo este informado que havia outro interessado no terreno que teria feito proposta de compra pelo preço de € 65.000,00.

8. Perante esta proposta, os administradores da A. expressa e imediatamente disseram ao mediador imobiliário que, por esse preço, pretendiam preferir na compra.

9. Na segunda reunião presencial estando presente outro mediador imobiliário, SS, os legais administradores procuraram obter novas informações sobre o estado do negócio.

10. Nesse momento, foram informados da celebração de um contrato promessa de compra e venda do citado prédio, pelo preço de € 65.000,00.

11. Os administradores da A. voltaram a reiterar a sua vontade em adquirir o terreno pelo preço convencionado, e que queriam exercer a sua preferência.

12. Veio a ser contactado o Réu AA, o qual veio a declarar que já se tinha comprometido com o comprador, o Réu NN, e manteria a sua palavra.

13. Sem notícias, em 25 de maio de 2022, a administradora da A. remeteu e-mail à imobiliária, conforme documento de fls. 14 dos autos e cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos

14. Ao qual a imobiliária respondeu que iria fazer chegar uma cópia do referido e-mail aos vendedores, “de modo a mais uma vez reforçar a vossa intenção”.

15. Desde essa data, os administradores da A. nunca mais foram contactados, nem pela imobiliária, nem pelos 1.º a 9.º RR.

16. No dia 31 de maio de 2022, foi outorgada escritura pública de compra e venda do prédio pela qual os 1.º a 9.º RR. venderam ao 10.º R., pelo preço de € 65.000,00.

17. A Autor tomou conhecimento desta escritura em junho de 2022.

18. Os contactos para o acordo de mediação foram realizados pelo Réu AA.

19. Os RR FF e TT não tiveram qualquer intervenção no negócio de mediação ou nas condições acordadas, apenas assinando o contrato promessa e a escritura de compra e venda.

20. O prédio identificado em 2) foi no passado utilizado para efeitos agrícolas, designadamente para vinha, o que não sucede há largos anos.

21. A Autora e seus legais representantes não são conhecidos por exercerem qualquer actividade de exploração agrícola.

22. O legal representante da Autora, QQ, é conhecido no âmbito do comércio automóvel.

23. O prédio identificado em A) nunca foi pela Autora cultivado ou semeado, nem a mesma comercializou qualquer produto agrícola daí proveniente.

24. O prédio da Autora dispõe de construções, como seja um armazém e casas anexas.

25. A Autora manteve, no passado, o prédio como depósito ou parqueamento de viaturas, mormente pesadas e máquinas agrícolas.

26. Mais foi usado para depósito, mormente de cortiça, actividade explorada por terceira pessoa, o que se manteve durante período não aferido, mas por largos anos.

27. Manteve a Autora o prédio identificado em 1) com aspecto abandonado, sem cultivo e com ervas, silvas e mato.

28. O prédio da Autora manteve mormente à data da venda do prédio identificado em 2), uma placa com a identificação de uma agência imobiliária e com o contacto telefónico respectivo.

29. O Réu NN exerce desde novo a actividade de empreiteiro de construção civil, dedicando-se em exclusivo a tal actividade.

30. O Réu NN pretendia, com a aquisição do prédio identificado em 2) transferir o seu “estaleiro” e depósito de materiais para as suas obras, bem como as suas viaturas, mais tendo a intenção de construir um armazém para melhor os acondicionar.

31. Antes da aquisição o Réu NN dirigiu-se à Câmara Municipal de Alcochete, com RR, para tentar perceber o que poderia ser construído naquele prédio, tendo-lhe sido dito de forma informal que poderia ser autorizado a construir um armazém.

32. O Ré despendeu com a aquisição do prédio identificado em 2): i) € 545,06, referente à escritura pública de compra e venda; ii) € 3250,00, referente a IMT; iii) € 8727,00, referente a imposto de selo.

33. O Réu NN procedeu ainda à desmatação, limpeza e melhoramentos como colocação de manilhas na vala, maquinaria, preparação para saneamento e electricidade.

34. A CM de Alcochete veio remeter a informação que consta do email de 2.10.2024, fls. 262 e ss e cujo teor se dá por reproduzido».

A factualidade considerada “não provada” é a seguinte:

«i) Aquando do primeiro contacto telefónico da imobiliária, pelo legal representante da Autora foi dito estar interessado na aquisição do prédio identificado em 2).

ii) Quando o Réu AA declarou pretender manter a venda a favor do 10º R, NN, o vendedor aconselhou a cumprir os trâmites legais, atendendo à vontade expressa do exercício de preferência por parte da A.

iii) A Autora manteve o prédio identificado em 1) à venda na imobiliária ERA.

iv) A Autora pretendia revender o prédio identificado em 1).

v) O valor dos trabalhos realizados pelo Réu NN no prédio identificado em 2) após a sua aquisição ascendeu a € 8.764,00.

vi) Dentro do armazém edificado no prédio 1), encontram-se armazenadas alfaias agrícolas.

vii) A Autora sempre quis afectar o prédio identificado em 1) à actividade agrícola.

viii) A Autora deu início à cultura agrícola no prédio identificado em 1), a qual fora planeada, mas veio a atrasar-se devido às vicissitudes da pandemia bem como pela dificuldade em encontrar mão de obra.

ix) A Autora encontrava-se a colaborar com privados no âmbito de um projeto de financiamento europeu em parceria com a Universidade de Évora, de proteção da cultura arvense autóctone, para um projeto de transplantação de árvores.

x) Estando a ser estudado há algum tempo a utilização do terreno da Autora para esse fim».

III-O DIREITO

Tendo em conta as conclusões de recurso que delimitam o respectivo âmbito de cognição do Tribunal, (cfr. arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608.º, n.º 2, por remissão do art. 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são as seguintes:

(i)Saber se a Autora tem o direito de preferência, relativamente à venda de um prédio rústico adquirido pelo 10.º Réu;

(ii)Em cado afirmativo, saber se o Réu tem direito a receber da Autora os valores peticionados na reconvenção.

1-Quanto à primeira questão de saber se a Autora será titular do direito de preferência que invoca, cumpre antes de mais convocar os preceitos legais que regulam esta matéria:

Dispõe o artigo 1380.º do Código Civil1 , no que para o caso releva, o seguinte:

1. Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante. (…)

4. É aplicável ao direito de preferência conferido neste artigo o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º, com as necessárias adaptações.”

Por sua vez, estabelece o art.º 1381.º:

Não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes:

a) Quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura;

b) Quando a alienação abranja um conjunto de prédios que, embora dispersos, formem uma exploração agrícola de tipo familiar.”

Decorre, assim, dos mencionados normativos que a existência do direito de preferência depende da verificação, cumulativa, dos seguintes requisitos:

(i)Que o preferente seja dono do prédio confinante com o prédio alienado;

(ii)Que ambos os prédios tenham uma área inferior à unidade de cultura;

(iii)Que o adquirente não seja proprietário confinante:

(iv)Que os prédios se destinem ao desenvolvimento da actividade agrícola.

Da factualidade apurada, não há dúvida de que os prédios em causa são confinantes, como resulta do ponto 3 dos factos provados.

Quanto à relação dos mesmos prédios com a área de cultura, será aplicável a Portaria n.º 19/2019, de 15.01que no Anexo II define a unidade de cultura para o concelho de Alcochete e relativamente a terreno de regadio, terreno de sequeiro e terreno de floresta, respectivamente, 2,5; 48 e 48 hectares.

O prédio da Autora tem a área total de 28.500 m2, enquanto que o prédio vendido tem a área de 9,750 m2. Ou seja, um dos prédios confinantes tem uma área superior à área definida para a unidade de cultura, pelo menos com referência a terreno de regadio.

A este propósito, cabe referir a entrada em vigor da Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto, ocorrida em 27 de setembro de 2015 que estabelece o regime jurídico da estruturação fundiária e procede à revogação do D.L. 384/88, de 25 de outubro. Este diploma legal operou um alargamento do direito de preferência em relação aos pressupostos exigidos pelo artigo1380.º do Código Civil. Com a revogação do referido D.L. n.º 384/98, o direito de preferência readquiriu os contornos originais previstos no art.º 1380.º e assim, constituem condições legais para o exercício do direito de preferência:

“a existência de uma venda de um terreno;

Ser o preferente proprietário de um terreno confinante;

Serem os prédios confinantes, ambos,2 de área inferior à unidade de cultura.”3

Ora, o prédio da Autora apresenta uma área superior á área fixada para a unidade de cultura, considerando o terreno de regadio, já não a tendo caso o terreno seja de sequeiro ou terreno de floresta. Não está provado nos autos, de que tipo de prédio se trata, de acordo com esta classificação, pelo que, em rigor, não sabemos se o terreno da Autora integra ou não o referido requisito legal: ter uma área inferior à unidade de cultura.

O direito de preferência constitui um direito legal de aquisição que depende da verificação de diversos requisitos, cujo ónus da prova incumbe aos que se arrogam titulares do direito de preferência, por se tratar de factos constitutivos desse direito - art.º 342º, nº1, do Código Civil.4

Ora, a falta de prova dos elementos constitutivos do direito, por parte de quem ao mesmo se arroga, tem como consequência a improcedência da sua pretensão.

Cremos que tanto bastaria para fazer soçobrar a presente acção.

Mas não só.

Ainda que por hipótese de raciocínio se admitisse como verificado este requisito de que ambos os prédios têm uma área inferior à unidade de cultura, ainda assim, a pretensão da Autora não poderia proceder pela razão que a seguir se demonstrará:

De acordo com o estabelecido no art.º 1381.º n.º1 a), para o que por ora releva: “Não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes: a) Quando algum dos terrenos (…) se destine a algum fim que não seja a cultura.”

Decorre da análise deste regime legal que o mesmo “ancora num propósito propiciador do emparcelamento de terrenos com área inferior à unidade de cultura, visando uma exploração agrícola tecnicamente rentável, evitando-se, assim, a proliferação do minifúndio, considerado incompatível com um aproveitamento fundiário eficiente».5

Foi a dispersão/fragmentação da propriedade, a que se associam os elevados custos de produção e a baixa produtividade (relativa) dos terrenos a preocupação do Estado ao elaborar a Lei 2116, de 14 de Agosto de 1962 (Base VI, nº 1), objectivo que viria igualmente a concretizar-se no Código Civil de 1966 (artigo 1380º, nº 1). 6

Isto quer dizer que o artigo 1380º, nº 1, vincula o exercício do direito de preferência à efectiva exploração dos terrenos rústicos para fins de cultura florestal e/ou agrícola, não se bastando com o facto de serem aptos para cultura.7

Claro que, no caso de os terrenos não serem destinados a fins agrícolas, deixa de justificar-se o direito de preferência, cujo escopo é precisamente, propiciar o emparcelamento dos mesmos com vista à rentabilização das explorações agrícolas.8

A demonstração de que os pretensos preferentes não cultivam o prédio rústico com carácter de habitualidade e que ali não exercem a agricultura no desenvolvimento de uma actividade económica típica, tem sido considerada pela Jurisprudência, como impeditiva do exercício da preferência sobre prédio confinante.9

Também o Supremo Tribunal de Justiça, designadamente esta 7.ª secção, deliberou no sentido de que “ não existe o direito de preferência do proprietário de terreno confinante, fundado naquele normativo[art.º 1380.º do CC], quando o prédio rústico alienado está exclusivamente afectado, em termos administrativamente lícitos, a uma exploração agro-pecuária que envolve a implantação, em prédio misto contíguo, de um estabelecimento de exploração agro-pecuária,- destinando-se deste modo, o prédio alienado a fins de produção animal que extravasam manifestamente uma primacial função agrícola ou a exploração florestal ou silvo- pastorícia dos terrenos.”10

Vejamos o que no caso em apreço se provou com relevo para esta questão:

29. O Réu NN exerce desde novo a actividade de empreiteiro de construção civil, dedicando-se em exclusivo a tal actividade.

30. O Réu NN pretendia, com a aquisição do prédio identificado em 2) transferir o seu “estaleiro” e depósito de materiais para as suas obras, bem como as suas viaturas, mais tendo a intenção de construir um armazém para melhor os acondicionar.

31. Antes da aquisição o Réu NN dirigiu-se à Câmara Municipal de Alcochete, com RR, para tentar perceber o que poderia ser construído naquele prédio, tendo-lhe sido dito de forma informal que poderia ser autorizado a construir um armazém.

33. O Réu NN procedeu ainda à desmatação, limpeza e melhoramentos como colocação de manilhas na vala, maquinaria, preparação para saneamento e electricidade.

34. A CM de Alcochete veio remeter a informação que consta do email de 2.10.2024, fls. 262 e ss e cujo teor se dá por reproduzido”.

E este e-mail tem o seguinte teor:

Através do Aviso n.º 15747/2024/2 publicado em DR em 30-Jul-2024, foi efectuada a reclassificação de solo rústico em solo urbano com a categoria de espaço urbano de actividades económicas, destinado à instalação de actividades industriais,11 de armazenagem ou logística e serviços de apoio, ou a portos secos- procedimento simplificado de reclassificação de solos nos termos do art.º 72.º-A do Decreto-Lei n.º 80/2015 de 14 de maio com redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º10/2024 de 8 de janeiro.

Neste âmbito, a CM de Alcochete procedeu à alteração do plano director municipal nos termos do procedimento simplificado de reclassificação dos solos previsto no RJIGT, com o aditamento ao regulamento do PDM dos artigos 36.ºA e 36.ºB e delimitação na planta de Ordenamento das áreas UAE1 e UAE2.

Face ao exposto, informa-se que a parcela indicada insere-se no espaço UAE1, podendo ser consultado on line no site da CM de Alcochete. (…)”

Este e-mail constitui a resposta do Departamento de Urbanismo da Câmara Municipal de Alcochete ao pedido de informação feito da parte do Réu NN, relativamente ao prédio identificado em 2 dos factos provados, do seguinte teor:

Venho pelo presente solicitar a V.Exas esclarecimentos quanto à (1) reclassificação do solo rústico e (2) se o terreno é solo urbano com a categoria de Espaço de Atividades Económicas, destinado à Instalação de Atividades Industriais de Armazenagem ou Logística e Serviços de Apoio(…)

Segue em anexo planta de localização do terreno em questão, correspondendo ao artigo matricial 55, secção AS, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete sob o n.º ..24, da freguesia de Alcochete.”

Ora bem, a reclassificação do terreno adquirido pelo Réu NN, de rústico para urbano, ocorrida em 30 de julho de 2024, embora posterior à data da escritura de compra e venda outorgada em 31 de maio de 202212, vem reforçar a finalidade do Réu NN que “ pretendia, com a aquisição do prédio identificado em 2) transferir o seu “estaleiro” e depósito de materiais para as suas obras, bem como as suas viaturas, mais tendo a intenção de construir um armazém para melhor os acondicionar.”

Não poderia esta finalidade ser mais distinta das actividades de agricultura, silvicultura ou exploração florestal de terrenos que acessoriamente poderão compreender a pastorícia ou criação de animais,13 e que devem considerar-se integradas na previsão do art.º 1381.º alínea a), excluindo o direito de preferência nas situações em que algum dos terrenos “se destine a algum fim que não seja a cultura”.

No caso, como decorre da factualidade apurada, nenhum dos terrenos se destinava a fins de “cultura”, ou seja, a actividade agrícola, de exploração florestal ou silvo- pastorícia.

Também quanto ao terreno da Autora, tal como ficou provado14, o prédio identificado em A) nunca foi pela Autora cultivado ou semeado, nem a mesma comercializou qualquer produto agrícola daí proveniente. O prédio da Autora dispõe de construções, como seja um armazém e casas anexas. A Autora manteve, no passado, o prédio como depósito ou parqueamento de viaturas, mormente pesadas e máquinas agrícolas. Mais foi usado para depósito, mormente de cortiça, actividade explorada por terceira pessoa, o que se manteve durante período não aferido, mas por largos anos. A Autora manteve o prédio sem cultivo e com ervas, silvas e mato.

Perante este quadro factual importa, pois, questionar se ocorre a situação impeditiva do direito de preferência decorrente da previsão normativa constante da alínea a) do art.º 1381.º do Código Civil que exclui tal direito quando algum dos terrenos “se destine a algum fim que não seja a cultura”.

Como resulta do exposto, afigura-se que a resposta à questão não pode deixar de ser afirmativa.

Com efeito, à data em que se realizou a venda já se encontrava consolidada a afectação do prédio vendido aos fins de construção de “estaleiro” e depósito de materiais para obras de construção civil, bem como de viaturas, já que “ há largos anos” não era utilizado para fins agrícolas, culminando, de resto, na reclassificação do imóvel para terreno urbano.

Excluído o direito de preferência invocado pela Autora, procedem as conclusões de recurso, devendo conceder-se a revista.

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Em face da solução jurídica dada a esta primeira questão, fica prejudica a apreciação do pedido reconvencional.

IV-DECISÃO

Em consonância com o exposto, acordamos na 7.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça em conceder a revista e, por consequência, revogando o acórdão recorrido, repristinar a decisão da 1.ª instância.

Custas pela Recorrida.

Lisboa, 29 de outubro de 2025

Maria de Deus Correia (Relatora)

Nuno Pinto Oliveira

Fátima Gomes

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1. Serão do Código Civil todos os preceitos legais que vierem a ser citados sem indicação de proveniência.↩︎
2. Destacado nosso.↩︎
3. Vide Acórdão do STJ de 13-12-2022, Processo 769/17.3T8LRS.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt↩︎
4. Vide acórdão do STJ de 25-03-2010, Processo 186/1999.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt↩︎
5. Vide acórdão do STJ de 28-02-2008, Processo 08A075↩︎
6. Vide Acórdão do STJ de 19-04-2016, Processo 113/06.5TBORQ.E1.S2, disponível em www.dgsi.pt↩︎
7. Vide neste sentido, a título exemplificativo o acórdão do STJ de 14-01-2021, Processo 892/18.7T8BJA.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt↩︎
8. Vide Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III vol., 2ª ed., Coimbra, 1987, págs. 275- 276.↩︎
9. Vide Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 21-02-2022, Processo 1824/19.0T8AMT.P1. do Tribunal da Relação de Évora de 09-02-2023, Processo 1321/19.4T8OLH.E1; do Tribunal da Relação de Coimbra, 07-05-2013, Processo 402/08.4TBOFR.C1,↩︎
10. Vide acórdão do STJ de 24-05-2011, Processo 380/07.7TCSNT.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.↩︎
11. Destacado nosso.↩︎
12. Vide ponto 16 dos factos provados.↩︎
13. Vide acórdão do STJ de 24-05-2011, Processo 380/07.7TCSNT.L1.S1 já citado↩︎
Vide pontos 23.º a 27.º dos factos