I. A qualificação dos processos relativos à regulação do exercício das responsabilidades parentais como de jurisdição voluntária traz como consequência não caber recurso de revista das decisões tomadas segundo critérios de conveniência e oportunidade.
II. Esta limitação não implica a total exclusão da intervenção do Supremo Tribunal de Justiça nos recursos respeitantes a essa regulação; apenas a limita à apreciação das decisões recorridas enquanto aplicam a lei estrita.
III. Se foi recusado pela Relação um pedido de autorização de mudança da residência de um menor para um outro país, ponderando as circunstâncias concretas da sua vida familiar e optando pela solução que melhor permitisse prosseguir o seu superior interesse, não há recurso de revista da correspondente decisão.
IV. Sem prejuízo das limitações quanto à apreciação da prova, não sendo admissível o recurso de revista quanto à recusa de autorização, não é admissível a junção de documentos ou a determinação à Relação de que adite factos aos que deu como provados que só teriam utilidade se fosse possível que o Supremo Tribunal de Justiça controlasse os critérios de decisão do acórdão recorrido.
V. Não fica abrangida pela inadmissibilidade da revista a apreciação das regras relativas aos poderes da Relação no julgamento do recurso da matéria de facto, à formação da sua convicção e à análise crítica das provas, à disciplina dos requisitos formais desse recurso ou à aplicação de regras probatórias imperativas.
1. AA veio “requerer suprimento do consentimento do progenitor BB” para “alterar a residência do filho menor de ambos, CC”, e “que sejam reguladas as responsabilidades parentais” de acordo com tal autorização. Alegou que requer autorização para residir com o menor em França por ter sido convidada pela empresa onde trabalha a ir ocupar uma vaga nesse país, “ficando assim com um emprego mais estável e com uma remuneração muito superior aquele que oferece em Portugal”. Esclareceu, ainda, que, caso não obtivesse a autorização, permaneceria em Portugal.
Seguida a tramitação aplicável, foi proferida sentença que indeferiu “a mudança de residência do menino CC para França.”, por assim o exigir o superior interesse do menor.
Da fundamentação constante da sentença, que analisa o que se provou quanto às condições de vida do menor, em especial no que se refere às relações com os progenitores, que vivem separados, salienta-se o seguinte:
“O critério de decisão, em caso de desacordo e conflitualidade dos pais, o superior interesse da criança deve fazer apelo ao conceito de progenitor psicológico, expressão que apela à situação que preenche as necessidades psicológicas e físicas da criança. No caso dos autos, embora o menino CC resida com mãe, está referenciado a ambos os pais, tem com estes uma relação de afeto, e procura a interação destes quer na satisfação das necessidades básicas, como para brincar e procurar conforto (40.) está vinculado à sua mãe e pai (32.) pelo que, salvo o devido respeito por opinião contrário, entende-se que são ambos os progenitores psicológicos da criança, sendo do seu superior interesse conviver com ambos os pais. Assim, pese embora a separação dos pais, o superior interesse do filho CC demanda que, para o seu desenvolvimento saudável, o mesmo possa contar com o empenho e colaboração constante de ambos os progenitores.
Embora separados, pode-se afirmar que o menino CC tem duas figuras primárias de referência, ambos os pais.
Alega a requerente que o CC vivendo em França poderia fazer videochamadas com o pai três vezes por semana.
Com efeito, existe a possibilidade de manter os contactos regulares com o pai pelos meios tecnológicos, através dos meios de comunicação à distância, que comportam som e imagem, hoje facilmente acessíveis. No entanto, apurou-se que a mãe proibiu a creche de dar informações ao pai sobre o filho e visitá-lo no estabelecimento infantil (42.) o menino CC foi à Urgência Hospitalar e a progenitora recusou-se a informar o pai para qual hospital tinha transportado o filho (54.), não existe uma boa relação entre os pais, sendo a comunicação muitas vezes difícil (58.) pelo que não fica demonstrado que a mãe asseguraria todos os contactos do menor com o progenitor. Pelo contrário, não nos parece ousado formular um juízo de prognose que vivendo com a mãe em França o menino CC perderia todo o contato com o pai, avó e tias paternas.
Com efeito, deve atender-se ao motivo da mudança, se se trata de questões profissionais ou têm como intuito afastar o menor do outro progenitor.
Por outro lado, não se provou que a mãe do CC tenha de sair do país para, desse modo, lograr alcançar as condições mínimas para satisfazer as suas necessidades e as necessidades do seu filho. Com efeito, não temos demonstrado nestes autos que a requerente atravessa atualmente uma situação económica bastante deficitária, impondo-se a sua ida para França para lograr obter emprego ou melhores condições económicas. A requerente mostra-se inserida no mercado de trabalho do nosso País, com contrato de trabalho efetivo no LIDL, reside num T4 e paga a renda mensal de € 4,19, em França iria auferir um salário inferior ao salário mínimo nacional, segundo as suas declarações o arrendamento de um apartamento custaria entre € 900,00 e 1.300,00 mensais, pelo que, não temos como demonstrado que necessite de rendimentos mensais bastantes superiores para satisfazer os seus encargos e despesas mensais, designadamente as inerentes à satisfação das necessidades e cuidados básicos do menino CC.
Por último, decidindo-se pelo indeferimento da alteração da residência do CC para França, teria de se ponderar o dano que a criança poderia sofrer se a progenitora guardiã se sentisse compelida a mudar-se para França com os seus outros dois filhos DD e EE e assim concretizar o seu projeto de vida. Não é o caso, porquanto, apurou-se que caso não seja dada autorização judicial para o CC ir viver para França com a mãe, esta ficará a residir em Portugal (59.) pelo que, inexiste qualquer dano para a criança provocado pelo eventual afastamento de uma das duas figuras primárias de referência da sua vida.
Concluindo, a decisão não é contra a mãe nem a favor do pai mas a favor da criança, a vontade e interesse dos pais não sobreleva ao interesse do menor, só neste podendo assentar qualquer decisão a respeito do mesmo e, os elementos constantes dos autos, não nos permitem concluir que, a mudança do menino CC para França, seja benéfica para ele, proporcionando-lhe o desenvolvimento feliz e harmonioso a que tem direito. Efetivamente, nestas situações complexas não há soluções ideais, havendo que escolher a solução que única e exclusivamente tenha em consideração uma decisão que não comprometa a segurança, estabilidade e bem-estar da criança, respeitando o único critério e o limite último de qualquer decisão nesta matéria, o do superior interesse do menino CC.”
A requerente interpôs recurso de apelação. Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, não foi admitida a junção de documentos apresentados com a alegação e foi negado provimento ao recurso, apesar de a impugnação da matéria de facto ter sido parcialmente atendida (nos termos que adiante se indicam).
Porque interessa à admissibilidade do presente recurso de revista apurar qual foi o critério de decisão, dados os termos limitados com que é possível no âmbito da jurisdição voluntária (cfr. artigos 1.º, 3.º, c), 12.º e 34.º e segs. do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de Setembro, e 988.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), transcreve-se também parte do acórdão:
1. Como bem reconheceu o tribunal de primeira instância, a questão a decidir é muito complexa e especialmente sensível para a criança.
2. Estamos num caso de conflito de direitos e interesses.
3. Por um lado, devemos considerar o interesse da criança – qualquer decisão deverá ter em consideração e atender em primeiro lugar aos interesses daquela, ao estabelecimento e continuidade de relações de afeto relevantes e qualitativas.
4. Por outro lado, o interesse e direito, da progenitora de buscar melhores condições para si e para os seus filhos.
5. O superior interesse da criança está inscrito no artigo 7.º da Declaração dos Direitos da Criança, proclamada pela Resolução da Assembleia Geral da ONU, de 20/11/1959, nos artigos 9.º, n.º 1, e 18.º, n.º 1, da Convenção Sobre os Direitos da Criança, assinada em Nova Iorque, a 26/01/1990, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, de 12/09, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 49/90, de 12-09, e no artigo 6.º, alínea a), da Convenção Europeia Sobre o Exercício dos Direitos da Criança, adotada em Estrasburgo, a 25/01/1996, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 7/2014, de 13-12-2013 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 3/2014, de 27-01.
6. É também reconhecido no artigo 40.º, do RGPTC e aplicável neste caso (artigo 42.º, n.º 5 RGPTC).
7. “O superior interesse da criança traduz-se num conceito jurídico indeterminado que visa assegurar a solução mais adequada para a criança no sentido de promover o seu desenvolvimento harmonioso físico, psíquico, intelectual e moral, especialmente em meio familiar sendo por isso aferível em função das circunstâncias de cada caso” – cf. Ac. STJ, de 27/1/2022, Pr. 19384/16.2T8LSB-A.L1.S1.
8. Quanto à progenitora, temos por legítimo o seu desejo de buscar alcançar aquelas que pensa serem melhores condições de vida para si e para os seus filhos. Não cremos que se trate de um interesse puramente egoísta. Além disso, não ignoramos que apenas podem ser restringidos direitos liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos – artigos 18.º e 44.º da Constituição da República Portuguesa.
9. Será à luz das circunstâncias do caso concreto trazidas aos autos, que a solução deverá ser encontrada. Uma resposta que alcance o maior equilíbrio entre os interesses em conflito, ponderando as suas possíveis consequências, quer para as partes, quer para a criança.
10. Reconhecemos ser logicamente impossível comparar a atual realidade com uma hipotética realidade futura que não conhecemos. Nessa medida, o exercício a fazer deverá considerar a realidade atual, que conhecemos, e a ficção de um cenário que apenas podemos projetar a partir dos indícios que os factos nos fornecem.
11. Dito isto, quanto ao que temos por certo é que, em Portugal, a apelante está inserida de forma estável no mercado de trabalho. Embora aufira um salário baixo, está acima do mínimo nacional (considerando o número de horas de trabalho). Não ficou demonstrado que, aqui, necessite da ajuda de familiares, resultando que tem condições para viver com os filhos de forma independente. Na verdade, a apelante tem as seguintes despesas fixas: habitação de tipologia suficiente para a apelante viver de forma confortável com os três filhos (4,19€), luz (20/40€), água (15€), telecomunicações (70/80€), gás (70€), passe (30€), seguro saúde (61€), ATL DD (66€), leite CC (60€), produtos específicos EE (50/60€), Medicação DD (20€), Medicação CC (40€, 2 em 2 meses), Medicação pele atópica CC (50€, 2 em 2 meses), além de despesas de alimentação.
12. Já relativamente à sua ida para França, apenas podemos equacionar que, face ao custo de vida naquele país, ainda que tenha um salário razoavelmente superior, dificilmente vemos como possível que se consiga sustentar e aos três filhos de forma independente – isto é, sem o apoio de familiares.
13. Pelos motivos expostos, não temos por evidente, nem sequer por razoavelmente provável, à luz dos elementos que ficaram provados, que a apelante e os filhos terão melhores condições de vida em França, do que aquelas que atualmente têm, em Portugal.
14. Quanto à criança, resulta de forma muito clara que tem ambos os pais como figuras de referência, tendo mesmo tendência a estabelecer com o pai uma relação preferencial. Aliás, no processo que constitui o apenso B, foi proferida decisão, ainda que sob recurso, de guarda partilhada.
15. A criança está referenciada a ambos os pais, tem com estes uma relação de afeto, e procura a interação destes quer na satisfação das necessidades básicas, como para brincar e procurar conforto. A criança está integrada na creche em que se encontra.
16. A tutela do interesse da criança nesta decisão nunca poderá ser dissociada da realidade que analisámos e da incerteza quanto à melhoria das suas condições, caso vá para França.
17. De resto, nem sequer ficou demonstrada a necessidade premente da apelante de ir para França. A opção de ir para França é da sua iniciativa, que já teria essa ideia há algum tempo, mesmo antes do nascimento da criança. Porém, engravidou e adiou esse projeto, decisão que proporcionou ao pai o acompanhamento do filho nos primeiros anos da sua vida, cruciais para a formação e desenvolvimento intelectual deste, bem como dos seus valores e referências.
18. Não foi alegada ou demonstrada a superveniência de fatores que justifiquem a necessidade de ir para França, neste momento. Não foram indicados motivos, nem alteração de circunstâncias face à sua anterior decisão de afinal permanecer. É evidente, como já ficou dito, que a apelante não está impedida de ir para França em busca de condições de vida melhores. O que o tribunal tem de avaliar é se no contexto dos elementos recolhidos, essa solução é aquela que se revela melhor para o interesse da criança.
19. Como dissemos, o interesse da criança é tanto mais tutelado quanto a solução a adotar garantir a continuidade das relações de afeto relevantes e de qualidade.
20. À luz do que vimos, os elementos trazidos aos autos não permitem concluir que o enorme prejuízo que a criança sofrerá por deixar de contactar regularmente com o pai, com quem mantém relação afetiva relevante, será ultrapassado pelo benefício que advirá da melhoria (que não temos por certa) das condições da mãe.
21. Ou seja, os elementos trazidos aos autos não permitem ancorar o juízo de que será mais e melhor tutelado o superior interesse desta criança, caso vá viver para França com a mãe, perdendo o convívio pessoal regular com o pai. Não temos por certa a probabilidade razoável de esta se revelar a solução mais adequada para a criança, ou a solução que melhor promoverá o seu desenvolvimento físico, psíquico, intelectual e moral.
22. Finalmente, os autos traduzem ainda uma factualidade que não podemos desconsiderar, e que se traduz em intranquilidade quanto ao que seria o comportamento da mãe num cenário de residência com a criança no estrangeiro.
23. Atenta a relação conflituosa que indiscutivelmente os autos mostram que as partes já mantiveram, com comunicação entre ambos difícil e histórico de episódios marcados pelo desentendimento, não podemos ter por garantida que a mãe irá facilitar os contactos com o pai, fator que igualmente consideramos relevante nesta análise.
24. À luz das considerações feitas, entendemos, como o tribunal de primeira instância, que não se mostra preenchido o pressuposto de que exista a necessidade da apelante sair do País; ou que, saindo, terá melhores condições para o seu filho que justifiquem o prejuízo para este de ficar afastado do pai.
25. O equilíbrio que deve existir entre os interesses em jogo impõe que fique suficientemente demonstrado que o benefício para a criança em ausentar-se para o estrangeiro será superior ao prejuízo de deixar de partilhar os convívios com o pai. Isso, como vimos, não ficou demonstrado.
26. Finalmente, como diz o tribunal de primeira instância e resultou provado, a mãe não se ausentará caso a criança não a acompanhe. Daí que também não se tenha por prejudicial para a criança o risco de afastamento da mãe, já que não existe.
27. Em conclusão, consideramos que, atentos os elementos apurados nestes autos, o interesse superior da criança se sobrepõe ao interesse da mãe em procurar melhores condições de vida, ainda que legítimo.
28. Termos em que deve ser mantida a decisão recorrida.”
2. A requerente interpôs recurso de revista, por via normal e, subsidiariamente, por via excepcional. Juntou dois documentos, “ao abrigo do disposto nos arts. 425.º e 680º, n.º 1, ambos do CPCivil” (uma declaração e um acórdão).
Nas extensas conclusões das alegações que apresentou, colocou as seguintes questões, que delimitam o objecto do recurso (n.º 4 do artigo 635.º do Código de Processo Civil) – diz-se, desde já, que, nem se rejeita o recurso por falta de conclusões, nem se convida a recorrente a aperfeiçoá-las, como sugere o recorrido, pela urgência do processo: retiram-se as questões ali colocadas, que, apesar de tudo, se conseguem identificar:
– Violação do «disposto no art. 1906.º, n.º 5, do CCivil, à luz dos princípios e direitos consagrados no art. 67.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, no art. 4.º, als. a), e), g) e h) da LPCJP, no art. 5.º da Convenção sobre os Direitos da Criança, no art. 6.º da Declaração dos Direitos da Criança e, por último, o art. 1887.º-A do CCivil, ao não permitir que o CC passe a residir em França com a recorrente e com os seus meios-irmãos»;
– Violação de «várias normais processuais e normas de direito probatório material, nomeadamente os arts. 662.º, n.º 1, 607.º, n.º 4 e n.º 5, ex vi do art. 663.º, n.º2, 425.º, 651.º, n.º 1, todos do CPCivil e os arts. 352.º, 355.º, n.ºs 2 e 3, 356.º, n.º 1, 362.º, 358.º, n.º 1, 362.º, 364.º, n.º 1, 373.º, n.º 1, 374.º, n.º 1, 376.º, n.º 1, todos do CCivil»;
– Admissibilidade da presente revista, «por não estarem em causa no presente recurso meros critérios de conveniência e de oportunidade, não é aplicável o disposto no art. 988.º, n.º 2, do CPCivil, antes deve a presente revista ser admitida, à luz do disposto no art. 988.º, n.º 1º»;
– Não verificação do obstáculo da «dupla conforme», pois «a revista tem por objecto a alteração da matéria de facto, ao abrigo do disposto nos arts. 682.º, n.º 2, e 674.º, n.º 3, ambos do CPCivil, e se funda na violação pelo Tribunal da Relação de Lisboa do disposto nas normas contidas nos arts. 607.º, n.º 4 e n.º 5, 662.º, n.º 1, e 663.º, n.º 2, 425.º e 651.º, n.º 1, do CPCivil, e nos arts. 352.º, 355.º, n.ºs 2 e 3, 356.º, n.º 1, 362.º, 358.º, n.º 1, 362.º, 364.º, n.º 1, 373.º, n.º 1, 374.º, n.º 1, 376.º, n.º 1, todos do CCivil»:
– aditamento dos factos indicados em V das conclusões e alteração dos factos que indica;
– O superior interesse do menor e dos seus irmãos uterinos e a pretendida alteração da sua residência para França; a necessidade de ouvir os seus irmãos e o requerimento de baixa do processo para esse efeito;
- Nulidade do «despacho de 11/07/2025, na parte em que não se pronuncia sobre a junção de documentos ao recurso na segunda instância» e consequente nulidade do «acórdão recorrido na parte em que indeferiu a junção aos autos dos documentos apresentados no recurso apresentado na segunda instância»;
- admissão da «junção aos autos dos documentos anexos ao recurso apresentado na 2ª instância» e consequente alteração de matéria de facto.
A recorrente concluiu as alegações sustentando que a revista deve ser admitida, «sendo o acórdão recorrido revogado e substituído por outro que autorize a mudança de residência do CC para França com a mãe, aqui recorrente, e os dois meios-irmãos, com quem viveu e cresceu durante a sua, curta, vida, com o que se verá realizado e ensinado o bom DIREITO e a JUSTIÇA que ao caso cabe.».
O requerido BB respondeu às alegações, sustentando:
– que as conclusões das alegações não respeitam a função de síntese que lhes compete, devendo o tribunal, ou rejeitar o recurso (n.º 2, c) do artigo 641.º do Código de Processo Civil), ou convidar a recorrente a aperfeiçoá-las (n.º 3 do artigo 639.º do mesmo Código);
– que a revista, normal ou excepcional, não pode ser admitida;
– que, de qualquer forma, improcedem todos os fundamentos do recurso.
O Ministério Público também respondeu às alegações de recurso. Mantendo a posição que adoptou ao longo do processo, afirmou, quanto à questão de mérito, que deveria ser concedida a autorização solicitada pela requerente; mas que o recurso de revista não podia ser admitido, como resulta do n.º 2 do artigo 988.º do Código de Processo Civil, e que se não verificam os pressupostos da revista excepcional, que devia ser rejeitada liminarmente.
A Relação de Lisboa proferiu novo acórdão, desatendendo a arguição de nulidade do primeiro acórdão: «A invocada omissão de pronúncia não existe precisamente porque o tribunal se pronunciou sobre a requerida junção dos documentos em fase de recurso, não os admitindo. Como já referimos, não releva, para o efeito pretendido, que tenha sido em despacho autónomo ou no Acórdão”.
O recurso foi admitido, como revista, por despacho da relatora na Relação.
3. Vem provado o seguinte:
1. O menor CC, nasceu a ...2023 e é filho de BB e AA (Assento de nascimento n.° ..42 do ano de 2023 da Conservatória do Registo Civil de Lisboa).
2. Por decisão proferida em 10 de novembro de 2023, na Conservatória do Registo Civil de Lisboa (Proc. ...48/2023) regulou-se o regime das responsabilidades parentais do menino BB nos seguintes termos:
a. o menor fica confiado à guarda e cuidados da mãe e a residir com esta; b) as responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho serão exercidas em comum por ambos os progenitores; c) a título de pensão de alimentos a quantia mensal de 130,00 €, prevendo-se a sua atualização anual de acordo com os índices de inflação do INE; d) quanto às despesas de saúde, vestuário e educação, são da responsabilidade de ambos os progenitores; e) o menor passará os fins de semana alternadamente com cada um dos progenitores; f) nas épocas festivas, Páscoa, Natal e Fim de Ano o menor passará a véspera com um e o dia com o outro, alternadamente, sendo que no presente ano o menor almoçará com o pai e jantará com a mãe; g) no aniversário de cada um dos progenitores o menor jantará com o aniversariante, no aniversário do menor, este passará parte do dia com cada um dos progenitores almoçando com um e jantando com o outro alternadamente; h) fora destes períodos o pai poderá estar com o menor sempre que o desejar devendo para o efeito, comunicar à mãe, com antecedência mínima de 24 horas sem prejuízo dos superiores interesses do menor; por último, ficou consagrado que o menor poderá acompanhar qualquer um dos progenitores em viagens ao estrangeiro, fora do período escolar, mediante consentimento prestado por escrito do outro progenitor.
3. O menor DD nasceu no dia...de 2013 e é filho de FF e AA (Assento de nascimento n.° ..60 do ano de 2013 da Conservatória do Registo Civil da Amadora).
4. A menor EE nasceu no dia ...de 2010 e é filha de GG e AA (Assento de nascimento n.° ..26 do ano de 2010 do Consulado Geral de Portugal em Paris, França).
5. Regulado o exercício das responsabilidades parentais das crianças DD e EE, em 4 de novembro de 2020 e 12 de maio de 2014 respetivamente, ficaram confiadas e a residir com a mãe que exerce em exclusivo as responsabilidades parentais.
6. O casal em 2021 iniciou uma relação de namoro.
7. A gravidez de CC ocorre no ano de 2022, de forma não planeada, mas desejada.
8. AA teve complicações decorrentes da gravidez nomeadamente dores intensas na coluna que implicaram muito esforço e desconforto.
9. O menino CC nasceu saudável.
10. O pai visitava o filho CC diariamente durante os cinco primeiros meses até iniciar a frequência na Creche.
11. Os pais nunca viveram juntos e a rutura ocorreu em agosto de 2023.
12. CC inicia frequência em creche aos 5 meses, altura em que inicia também convívios autónomos com o pai, nomeadamente fins-de-semana quinzenais.
13. O agregado do pai é composto pelo próprio e pela sua mãe.
14. A habitação onde reside é própria, com todas as condições de organização, higiene e conforto, de tipologia T3, com um quarto para BB, um quarto para a avó, e um quarto que virá a ser adaptado para CC, uma sala (com um tapete onde CC tem os seus brinquedos disponíveis), duas casas- de-banho, cozinha e arrecadação.
15. CC dorme no quarto do pai, numa cama de grades.
16. O mesmo dispõe de um espaço de organização dos seus brinquedos, vestuário e produtos de higiene.
17. Do ponto de vista profissional, desempenha funções de Técnico de Contabilidade, na empresa “Europcar”, com horário de trabalho, de 2ª a 6ª feira, das 9h00 às 18h00, em regime híbrido.
18. Apresenta como rendimentos, o seu vencimento (964€+210€) relativos ao cartão refeição.
19. Como despesas apresenta o contributo para as despesas de casa (210€), telecomunicações (42/45C+ 20€), pagamento telemóvel (12,62€), seguro carro (23,50€), seguro comp. (3,99€), Netfílix(14€), alimentos CC (130€).
20. Como figuras de suporte tem a sua mãe e irmãs (que residem nas imediações).
21. O agregado materno é constituído pela mãe, e pelos seus filhos, DD, EE e CC, cada um deles filhos de pais diferentes.
22. A habitação apresenta todas as condições de higiene, organização e conforto.
23. Trata-se de uma habitação pertencente ao IHRU, de tipologia T4, com um quarto para a AA, um quarto para CC e DD, um quarto para EE, e outro para visitas, uma sala, uma cozinha, duas casas-de-banho, e uma marquise.
24. CC dispõe de espaços individualizados de descanso, e de organização dos seus pertences (higiene, vestuário e brinquedos).
25. Quanto à situação profissional, AA desempenha funções de vendedora do LIDL ..., de 2ª a 6ª feira, desde 2019, 25h semanais, entre as 9h e as 17h.
26. Apresenta como rendimentos, o vencimento base de 632,50 €; o abono (794€), alimentos DD (150€), alimentos CC (130€).
27. Conta com o apoio económico de familiares.
28. Como despesas apresenta a habitação (4,19€), luz (20/40€), água (15€), telecomunicações (70/80€), gás (70€), passe (30€), seguro saúde (61€), ATL DD (66€), leite CC (60€), produtos específicos EE (50/60€), Medicação DD (20€9, Medicação CC (40€, 2 em 2 meses), Medicação pele atópica CC (50€, 2 em 2 meses).
29. A mãe constitui-se como a principal cuidadora de CC, assumindo todas as responsabilidades relativas ao mesmo, quando o tem aos seus cuidados.
30. O pai é a pessoa quem cuida de CC quando este está consigo.
31. Na sua ausência, é a sua mãe quem assegura os cuidados do filho, é protetora e tem com CC uma relação positiva, de cuidado e afeto.
32. O menino CC apresenta-se com aspeto muito cuidado e um bom estado de saúde geral, ativo, simpático, meigo e comunicativo, percebe-se estar vinculado à sua mãe e pai, com quem se observou estabelecer relação preferencial.
33. Em ambos os espaços habitacionais, demonstra à vontade, apelando ao apoio dos pais para se deslocar, mostrando os seus brinquedos, sendo notória a estimulação e acompanhamento.
34. CC frequenta a Creche “1” desde o início do presente ano letivo, estando em fase de adaptação.
35. Beneficia de acompanhamento médico regular e tem o PNV atualizado (Declaração da Unidade de Saúde USF Águas Lives).
36. É seguido na consulta de Pediatria, no Hospital Lusíadas Reboleira, e na especialidade de Ortopedia, no Hospital Lusíadas Lisboa.
37. A avó materna reside em França, está reformada, trabalha em part-time num restaurante e a sua casa tem dois quartos.
38. A requerente tem uma proposta para trabalhar em França, da sua atual entidade empregadora, LIDL, para celebrar um contrato de trabalho de duração indeterminada a tempo parcial, 130,02 horas mensais, com início em 1-02-2025, com a remuneração mensal de € 1636,96.
39. O menino CC tem satisfeitas todas as suas necessidades básicas e de afeto junto da sua mãe.
40. Está referenciado a ambos os pais, tem com estes uma relação de afeto, e procura a interação destes quer na satisfação das necessidades básicas, como para brincar e procurar conforto.
41. Em 2023 o CC frequentava a Creche 2, permaneceu na creche pouco tempo, cerca de seis meses, a sua frequência era irregular, estava muitas vezes doente, alergias, borbulhas e o pai era presente.
42. A mãe proibiu a creche de dar informações ao pai sobre o filho e visitá-lo no estabelecimento infantil.
43. A Creche2 não cumpriu estas instruções da mãe.
44. A progenitora enviou ao progenitor uma mensagem com o seguinte teor “tu não tens nada que ligar para a creche a pedir informações (...) vou tirar a tua autorização para o ires buscar (...) já dei ordem para quando ligares não te passarem nenhuma informação (...)”.
45. A Secretária da Direção da Creche (Dª HH) enviou um email dirigido à requerida a 26.02.2023, com o seguinte teor “(...) Volvidos poucos dias após o início da frequência da nossa creche pelo seu filho CC, foi-nos por si, endereçada verbalmente, a proibição de comunicarmos ao pai do CC o Sr. BB, qualquer tipo de informação sobre o filho. Também manifestou todo repúdio em que o pai do CC o pudesse ver na creche (...)”.
46. A creche declinou tal exigência a qual apelidou de ‘Tentativa envolvimento da IPSS em ações de Alienação Parental”
47. Durante a semana, em dia e hora a combinar entre os pais, dois dias por semana em média, o pai está com o menor, indo buscá-lo a casa da mãe pelas 8:30 horas transportando-o para a creche onde tem que entrar até às 9:00 horas.
48. Nestes dias, a requerida desloca-se igualmente à creche sem qualquer necessidade e interfere na forma de entrega, tentando sobrepor-se ao pai.
49. A Creche ... enviou o seguinte email à progenitora (...) “interromper o procedimento de entrega do CC na creche por aquele que na medida em que a D. AA decide supervisionar e interferir nessa responsabilidade que primeiramente delegou no Sr. BB. Essas suas interrupções são desagradáveis, mas acima de tudo criam entropias no ato de receção (...).
50. Foi agendada pela Direção da Creche uma reunião para o dia 16 de fevereiro de 2024, onde estiveram presentes: o Presidente da Instituição, a diretora, a coordenadora e o tesoureiro e ambos os pais do CC, sendo a reunião gravada pela Instituição, com conhecimento e consentimento de todos os presentes.
51. Nesta reunião foram abordados, diversos temas, nomeadamente a constante intervenção da progenitora no regular funcionamento da creche e na sua gestão, exigindo a substituição de uma funcionária, os comportamentos inapropriados e abusivos e a tentativa de proibir o pai de ver o filho e de ter acesso à informação acerca do seu bem-estar e da sua evolução.
52. Durante esta reunião a progenitora voltou a afirmar que queria que o pai não tivesse acesso a qualquer informação acerca do seu filho e se possível até proibir de visitar o filho na creche, quando questionada sobre os fundamentos para tal pedido, justificou que era ela a encarregada de educação e, portanto, era com ela que tudo devia ser tratado.
53. A avó materna do CC padece de alguns problemas de saúde, nomeadamente, insuficiência renal crónica.
54. No dia 03-11-2023, o menino CC foi à Urgência do Hospital Amadora-Sintra e a progenitora recusou-se a informar o pai para qual hospital tinha transportado o filho.
55. No dia 17.06.2024, a AA comunicou ao BB que os contactos relativos ao CC passariam a ser feitos por e-mail “para registo de todo e qualquer assunto relativo ao nosso filho CC, uma vez que insistes e persiste[s] em distorcer factos, verdades, acontecimentos por outras vias como por exemplo por mensagem, chamada, comunicação pessoal e direta”.
56. Atualmente, nos fins de semana, alternadamente, o pai vai buscar o filho à sexta-feira à Creche “1” e entrega na segunda-feira no mesmo local.
57. No ano de 2010 a progenitora viveu com a filha EE em França.
58. Não existe uma boa relação entre os pais, sendo a comunicação muitas vezes difícil.
59. Caso não seja dada autorização judicial para o CC ir viver para França com a mãe, esta ficará a residir em Portugal.
A estes factos, a Relação aditou o seguinte (acrescenta-se a numeração):
60. Pelo menos em data anterior à gravidez, o requerido tomou conhecimento de que a requerente tinha a ideia de ir para França.
61. A casa da mãe e da irmã II, em França, distam cerca de 10/15 minutos de carro.
62. A irmã da recorrente, II, é doméstica, cuida dos seus três filhos e está disposta a ajudar a recorrente com os seus filhos.
63. O valor da renda de uma habitação para a recorrente e os filhos em França pode variar entre os 400,00 e os 1.300,00 Eur., dependendo da zona e da tipologia.
64. Até arrendar uma casa, a recorrente poderá viver em casa da mãe, que fica no departamento do 94, sendo que a II vive no 91, na zona ..., que integra Paris e a sua periferia.
Manteve-se como não provado:
“Nada mais se provou, nomeadamente, que a proposta de trabalho em França, possibilita à progenitora uma progressão na empresa; que já providenciou pela obtenção de casa em França para habitar com os seus três filhos; que a irmã também irá residir com a requerente; que a requerente manifeste disponibilidade para prestar toda a informação ao pai sobre a situação escolar e de saúde de CC quando estiver em França; a relação do BB com os filhos da AA, a EE e o DD, não era das melhores; no dia 27.10.2023, enquanto o BB tinha o CC no colo, gritou e falou com a AA de forma agressiva, fazendo com que, ao vê-lo aproximar-se, de forma instintiva, desse um passo para trás, pois teve medo; que o progenitor seja agressivo com a mãe do CC”.
4. Quer o requerido, quer o Ministério Público, consideram que não devia ser admitido o recurso de revista, por estar em causa uma “resolução proferida segundo critérios de conveniência e oportunidade” (n.º 2 do artigo 988.º do Código de Processo Civil, preceito incluído nas regras relativas aos processos de jurisdição voluntária, como é o caso, como atrás se recordou, citando o disposto nos artigos 1.º, 3.º, c), 12.º e 34.º e segs. do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de Setembro, e 988.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
O Supremo Tribunal de Justiça já por várias vezes interpretou e aplicou a restrição de recurso de revista prevista no n.º 2 do artigo 988.º do Código de Processo Civil; nomeadamente, a propósito de regulações do exercício das responsabilidades parentais e das decisões proferidas em aplicação do princípio da prossecução do superior interesse do menor.
Recorrendo ao que se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de 27 de Maio de 2009, www.dgsi.pt, proc. n.º 08B1203, com as adaptações que a evolução legislativa exige – mas que faz a história do regime que, no Código de Processo Civil de 2013, consta do n.º 2 do artigo 988.º (n.º 2 do artigo 1411.º do Código anterior), procurando explicar por que razão e como se aplicam as regras da jurisdição voluntária à regulação do exercício das responsabilidades parentais, nomeadamente quanto à possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Recorda-se que a qualificação destes processos, ou de outros relativos à defesa de menores, como processos de jurisdição voluntária (cfr. artigos 1.º, 3.º, c), 12.º e 34.º e segs. do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de Setembro e 100º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei nº 147/99, de 1 de Setembro) provoca a aplicação, aos recursos interpostos de decisões neles proferidas, do disposto no nº 2 do artigo 988.º do Código de Processo Civil (anterior n.º 2 do artigo 1411.º, repete-se), segundo o qual “das resoluções proferidas [nestes processos] segundo critérios de conveniência ou oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”.
A redacção do nº 2 do artigo 1411º do anterior Código de Processo Civil resultou da alteração nele introduzida pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, e visou alterar o regime decorrente da anterior versão do mesmo nº 2, com o sentido que lhe fora fixado pelo assento de 6 de Abril de 1965 (Diário do Governo, I Série, de 28 de Abril de1965 e Boletim do Ministério da Justiça nº 146, pág. 325 e segs., constando o Parecer do Ministério Público que o precedeu de fls. 316 e segs do mesmo Boletim).
Com efeito, da leitura conjunta do preceito do nº 2 do artigo 1411º do (anterior) Código de Processo Civil, segundo o qual “das resoluções não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”, e do assento de 6 de Abril de 1965, cujo texto era “Nos processos de jurisdição voluntária em que se faça a interpretação e aplicação de preceitos legais em relação a determinadas questões de direito, as respectivas decisões são recorríveis para o Tribunal Pleno, nos termos do artigo 764º do Código de Processo Civil”, resultava que o Supremo Tribunal de Justiça, de entre as interpretações divergentes então defendidas para o nº 2 do artigo 1411º, optou pela que entendia que, para o efeito de saber qual o âmbito da irrecorribilidade ali prevista, não havia que distinguir entre “decisões” – tomadas segundo a lei estrita – e “resoluções” – adoptadas, de acordo com o (então) artigo 1410º, actual artigo 987.º, segundo critérios de conveniência e oportunidade. Em caso algum, portanto, cabia revista ou agravo em 2ª instância; os processos terminariam, normalmente, na Relação, como já Alberto dos Reis explicava (cfr. Processos Especiais, vol. II, reimp., Coimbra, 1982, págs. 491-492).
Ao alterar o nº 2 do artigo 1411º no sentido já referido, o legislador veio acolher a posição sustentada por Lopes Cardoso no voto de vencido aposto ao acórdão que aprovou o assento, trazendo assim para o regime geral da recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça as decisões proferidas segundo critérios de legalidade nos processos de jurisdição voluntária, das quais passou a caber ou não recurso (de revista ou de agravo, conforme os casos) em função da alçada e, a partir de 1 de Outubro de 1985 (data da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 242/85, de 9 de Julho), também da sucumbência (artigo 678º, nº 1).
Tornou-se então necessário determinar, quando se pretende interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de um acórdão da Relação proferido no âmbito da jurisdição voluntária, se a decisão concreta a impugnar corresponde ao resultado de um processo de interpretação e aplicação da lei, ou de integração das suas lacunas, ou se, diferentemente, foi alcançada nos termos previstos no (então) artigo 1410º do Código de Processo Civil, actual artigo 987.º (ou seja, de acordo com o que, no caso, o tribunal considerar mais adequado à defesa do interesse que lhe incumbe prosseguir).
É, pois, exacto que o actual nº 2 do artigo 988.º, tal como o n.º 2 do artigo 1411º do anterior Código de Processo Civil, não exclui por completo a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça nos processos de jurisdição voluntária, como sucedia anteriormente. A mudança legislativa ocorrida em 1 de Janeiro de 1997 (data da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro) obriga sim a analisar o critério adoptado pela decisão concretamente recorrida.
É, aliás, facilmente apreensível a razão de ser da necessidade que a lei sentiu de regular as condições de admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça no domínio da jurisdição voluntária.
Como já se observou por diversas vezes, ao incluir na competência dos tribunais o julgamento dos chamados processos de jurisdição voluntária ou graciosa, cujas regras gerais se encontram nos actuais artigos 986.º a 988.º do Código de Processo Civil, o legislador pretendeu que a prossecução de determinados interesses, em si mesmos de natureza privada, mas cuja tutela é de interesse público, fosse fiscalizada por entidades cujas características são garantia de uma protecção adequada à natureza daqueles interesses.
Com essa finalidade, conferiu-lhes os poderes necessários para o efeito, afastando, quando conveniente, certos princípios, conformadores do processo civil português em geral, que disciplinam a sua intervenção enquanto órgãos incumbidos de resolver litígios que se desenrolam entre partes iguais, perante as quais têm de adoptar uma posição de rigorosa imparcialidade.
No domínio da jurisdição voluntária, os tribunais podem investigar livremente os factos que entendam necessários à decisão mais acertada (afastando as restrições hoje constantes do artigo 5.º, definidas consoante a função dos diversos factos), cfr. n.º 2 do artigo 986.º, recolher as informações e as provas que entendam pertinentes, rejeitando as demais (mesmo preceito), proferir decisões segundo critérios de conveniência e de oportunidade (artigo 987) e, na generalidade dos casos, adaptar a solução definida à eventual evolução da situação de facto (ver, em geral, o disposto no nº 1 do artigo 988º do Código de Processo Civil e, em especial quanto aos processos de regulação do exercício das responsabilidades parentais, o n.º 2 do artigo 42.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível).
Dotado destes meios, cabe ao tribunal assumir (neste sentido, parcialmente) a defesa do interesse que a lei lhe confia – nos processos de regulação do exercício das responsabilidades parentais, o interesse do menor –, ainda que essa defesa implique fazê-lo prevalecer sobre outros interesses que eventualmente estejam envolvidos, ou mesmo em oposição entre si.
Explica-se desta forma que não caiba nos poderes do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal especialmente encarregado de controlar a aplicação da lei, substantiva ou processual (cfr. nº 1 do artigo 674.º ou n.º 1 do artigo 682.º, ambos do Código de Processo Civil), nos recursos interpostos em processos de jurisdição voluntária, apreciar medidas tomadas segundo critérios de conveniência e oportunidade, nos termos previstos no artigo 987º do Código de Processo Civil.
Com efeito, a escolha das soluções mais convenientes está intimamente ligada à apreciação da situação de facto em que os interessados se encontram; não tendo o Supremo Tribunal de Justiça o poder de controlar a decisão sobre tal situação (cfr. artigos 674.º e 682.º citados), a lei restringe a admissibilidade de recurso até à Relação.
A verdade, todavia, é que esta limitação não implica a total exclusão da intervenção do Supremo Tribunal de Justiça nestes recursos, repete-se; apenas a limita à apreciação das decisões recorridas enquanto aplicam a lei estrita.
Note-se, no entanto, que se por um lado, quanto às medidas tomadas de acordo com critérios de conveniência e oportunidade, cabe às Relações proferir a última palavra, por outro permite-se que a decisão que assim tenha sido proferida possa ser modificada de acordo com a evolução da situação de facto, em afastamento da imutabilidade do caso julgado que, em regra, cabe às decisões judiciais transitadas que conheçam do mérito da causa (cfr. nº 1 do artigo 621º e nº 1 do artigo 988º do Código de Processo Civil). O objectivo, como facilmente se alcança, é o de possibilitar que, em cada momento, o interesse que a lei quer proteger seja prosseguido da forma mais adequada.
Em suma: nos processos de regulação do exercício das responsabilidades parentais, só são recorríveis para o Supremo Tribunal de Justiça as decisões proferidas em aplicação de lei estrita.
A afirmação, feita pela recorrente, de que foi violado o n.º 5 do artigo 1906.º do Código Civil, o artigo 1887.º-A também do Código Civil e os demais preceitos legais, constitucionais e convencionais que cita, não prescinde da interpretação do acórdão recorrido, com o objectivo de determinar se, ao pronunciar-se sobre o pedido de autorização para alteração da residência do menor para França, o tribunal ponderou as circunstâncias de facto que vêm provadas e decidiu em aplicação da interpretação ou integração de normas legais ou de acordo com a solução que considerou mais adequada ao caso concreto. Cfr., a título de exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Maio de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 5189/.7T8GMR.G1.S1 ou de 27 de Novembro de 2024, www.dgsi.pt, proc. n.º 1614/04.5TBESP-E.P1.S1 ou o acórdão de 18 de Junho de 2024, www.dgsi.pt, proc. n.º 21794/21.4T8LSB.L1.S1:”Ao Supremo Tribunal de Justiça cabe, em processos de jurisdição voluntária como o de regulação do exercício das responsabilidades parentais, fiscalizar o respeito, pelas instâncias, dos critérios normativos aplicáveis à matéria em questão, sem se imiscuir nas resoluções que essas instâncias, com respeito pelos referidos padrões normativos (máxime, o critério do superior interesse da criança), tenham proferido de acordo com critérios de conveniência e oportunidade, isto é, de acordo com um juízo de adequação da solução encontrada às circunstâncias e particularidades do caso concreto.”
Ora, do texto do acórdão recorrido acima transcrito decorre que foi seguida a segunda alternativa. Não cabe, assim, recurso de revista da decisão de recusar a alteração da residência do menor CC.
Conclui-se que não é admissível o recurso de revista no que toca à apreciação da recusa de autorização de mudança da residência do menor CC para França; e acrescenta-se que, tendo a admissibilidade sido afirmada pela recorrente nas alegações de revista, justamente por entender não aplicável o n.º 2 do artigo 988.º do Código de Processo Civil, não se justiça a sua notificação para se pronunciar nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 655.º do mesmo Código.
Não sendo admissível o recurso de revista por via normal, não é admissível o recurso de revista excepcional, como o Supremo Tribunal de Justiça tem decidido uniformemente. A revista excepcional é uma revista excepcionalmente admissível – cfr., apenas a título de exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Outubro de 2020, www.dgsi.pt, proc. n.º 824/17.0T8PTL-A.G1-A.S1.
Torna-se por este motivo inútil verificar se ocorreu ou não dupla conformidade entre as decisões das instâncias e se a alegação de violação de regras processuais ou de direito probatório, ou a pretensão de alteração da decisão de facto, descaracteriza ou não a dupla conforme, enquanto obstáculo à admissão do recurso de revista.
5. Não sendo admissível o recurso de revista quanto à recusa de autorização, não se admite a junção dos (dois) documentos juntos com as alegações, porque só teriam utilidade se fosse possível que o Supremo Tribunal de Justiça controlasse os critérios de decisão do acórdão recorrido quanto a essa questão. Acresce, aliás, que, não tendo os referidos documentos força probatória plena, não caberia no âmbito da revista a sua apreciação, não sendo admissível a respectiva junção, ainda que de documentos superveniente se tratasse e que não ocorresse o mencionado obstáculo – cfr. n.º 1 do artigo 680.º, n. º 3 do artigo 674.º e n.º 2 do artigo 682.º do Código de Processo Civil e, por exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Outubro de 2021, www.dgsi.pt, proc. n.º 11570/19.0TBPRT.P1.S1.
6. A recorrente arguiu a nulidade do «despacho de 11/07/2025» do Tribunal da Relação de Lisboa, «na parte em que não se pronuncia sobre a junção de documentos ao recurso na segunda instância», e consequente nulidade do «acórdão recorrido na parte em que indeferiu a junção aos autos dos documentos apresentados no recurso apresentado na segunda instância».
Tal como se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que apreciou estas mesmas nulidades, e muito embora caiba ao relator, efectivamente, competência para “autorizar ou recusar a junção de documentos (…)”, nos termos do disposto na al. e) do n.º 1 do artigo 652.º do Código de Processo Civil, a verdade é que seria contrário ao princípio da economia processual e da proibição da prática de actos inúteis (artigo 130.º do Código de Processo Civil) considerar nulo o despacho por omissão de pronúncia e ter como consequentemente nulo o acórdão que se lhe seguiu e que recusou a junção. Note-se que o acórdão foi proferido pelo colectivo que apreciaria uma eventual reclamação apresentada contra o despacho – não se entendendo a razão pela qual a recorrente invoca a possibilidade de reclamação e subsequente recurso como argumento para a nulidade do despacho ou do acórdão; aliás, a ter havido despacho e reclamação, do acórdão que julgasse a reclamação só caberia recurso no recurso da decisão final (artigo 673.º do Código de Processo Civil) – ou seja, no recurso de revista.
De qualquer modo, estando em causa uma decisão sobre a junção dos mesmos documentos, a aprovação do acórdão que a tomou sempre tornaria irrelevante uma hipotética omissão de pronúncia do despacho – hipotética porque, como a Relação observou, a não admissão da junção de documentos pela Relação não seria causa de nulidade, uma vez que houve decisão. Poderia ter sido uma decisão desconforme com a lei – mas, nesse caso, a via de reacção seria a da interposição de recurso, por errada aplicação da lei processual.
Indefere-se a arguição de nulidade do acórdão recorrido.
7. A recorrente aponta a violação de normas processuais e de direito probatório material,
– do n.º 1 do artigo 662.º,
– dos n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º,
– do artigo 640.º,
– do artigo 425.º,
– do n.º 1 do artigo 651.º, todos do Código de Processo Civil;
– dos artigos 362.º, 364.º, n.º 1, 374.º, n.º 1, e 376.º, n.º 1, todos do Código Civil.
8. Começando pelas normas de direito probatório material – constantes dos «arts. 352.º, 355.º, n.ºs 2 e 3, 356.º, n.º 1, 362.º, 358.º, n.º 1, 362.º, 364.º, n.º 1, 373.º, n.º 1, 374.º, n.º 1, 376.º, n.º 1, todos do CCivil» –, transcreve-se o ponto 86 das alegações de recurso (cfr. ponto V das conclusões):
«86. Ora, o Tribunal da Relação de Lisboa ignorou as confissões do recorrido:
primeiro, durante a audição técnica especializada ordenada nos autos, o recorrido reconheceu (informação junta em 24/10/2024, apenso A, ref.ª Citius ......63): sob “7. Competências para o Exercício da Parentalidade”: “O pai não apresenta preocupações relativas à mãe.”; “O pai descreve a mãe como “cuidadosa, preocupada. Providencia tudo para o CC”, (sic pai).” - cfr. pág. 5, 6º e 8º parágrafos;
segundo, nas alegações escritas de 20/01/2025, o recorrido admitiu (Apenso A, ref.ª Citius .......95): “70 - No presente momento (Janeiro de 2025) o CC já não frequenta a mesma creche, frequentando a Associação de Solidariedade 1 em ...”, “71 - Razão pela qual o relatado supra sobre as ditas atitudes e factos atinentes aos acontecimentos ocorridos na Creche anterior, já não se verificam”.
87. Ora, se o problema fosse da recorrente e não da antiga creche, as alegadas e falsas acusações de alienação parental e de negligência ter-se-iam mantido na nova e actual creche frequentada pelo CC desde Setembro de 2024, o que, como confirmado pelo próprio recorrido, não acontece.
88. Mostra-se violado o disposto nos arts. 352.º, 355.º,n.ºs2 e 3, 356.º, n.º 1, 362.º, 358.º, n.º 1, 373.º, n.º 1, 374.º, n.º 1, 376.º, n.º 1, todos do CCivil, pelo que requer a V. Exas. se dignem admitir a revista, aditando os seguintes factos, dando-os como provados (cfr. conclusões do recurso na segunda instância, sob 3.5, als. b), d) a g) e j) a m)):
a) O CC foi diagnosticado com uma alergia à proteína do leite de vaca em 15/12/2023, tendo a Médica Pediatra, Dra. JJ, receitado “Aptamil Pepti ou Nutriben Hidrolidaso” durante “2-3 semanas”, assim como um “óleo de banho e bálsamo emoliente” a “escolher” entre “Uriage - Xemose”, “Bioderma – Intensive Baume”, “Exomega” e “Lipicar - Baume AP”;
b) No dia 14/02/2024, uma auxiliar da Creche 2 deu uma papa regular, não adaptada, ao CC;
c) A mãe informou o pai do sucedido, via telefónica, e no 15/02/2024, comunicou ao pai: “BB quero deixar esclarecido que não voltarei a entrar em contacto contigo via chamada devido a situação ocorrida na manhã de hoje. Ontem aconteceu uma situação grave com o CC na creche (situação essa comunicada e falada contigo no dia de ontem) e como mãe estou a tentar resolvê-la o melhor que posso colocando, sempre o bem estar e segurança do CC em primeiro lugar. No entanto hoje ao ligar para ti e tentar chegar a um ponto contigo, sobre o episódio ocorrido na creche, as coisas ficaram descontroladas porque pareceu que não estavas tão preocupado com a situação nem querer resolve-la da maneira mais segura para o CC. (…) Enviar msg todos os dias de manhã e à noite a perguntar como o CC está e depois em situações mais delicadas não te envolveres sequer não demonstra real e verdadeira preocupação pelo CC.”;
d) A Médica Pediatra, Dra. JJ, emitiu o seguinte relatório médico em 23/02/2024: “Declara[-se] para os devidos efeitos que o CC, deve cumprir DIETA SEM PROTEÍNA DO LEITE DE VACA (apenas leite extensamente hidrolisado e papa Sinlac, bolachas sem proteína do leite de vaca), até aos 12 meses.”;
e) O CC deixou de frequentar a Creche 2 no dia 28/04/2024, tendo ficado aos cuidados da mãe até Setembro de 2024;
f) Os factos e acontecimentos ocorridos na Creche 2 não se verificam com a Creche “1”.»
Para além de alguns destes factos coincidirem com factos relativamente aos quais o acórdão recorrido não tomou conhecimento da pretendida reapreciação da decisão da 1.ª Instância, por considerar que não tinham relevância para a decisão final, a verdade é que não é suficiente para que o Supremo Tribunal de Justiça aprecie a alegação de violação das normas substantivas relativas à prova por confissão e à prova documental a mera indicação dos preceitos legais e do que, no entender da recorrente, devia ser aditado como factos provados.
Quer a prova por confissão, quer a prova documental – nomeadamente as modalidades de uma e de outra a que se referem os preceitos indicados – podem ter diferentes valores probatórios; esse valor, aliás, seja ou não de prova plena, pressupõe a delimitação precisa dos factos que nas declarações consideradas confessórias ou nos documentos que a recorrente refere estejam provados com força probatória que possibilite a sua apreciação num recurso de revista.
Não se pode conhecer, portanto, desta alegação de violação das regras de direito probatório que a recorrente indica: o tribunal não pode substituir-se à recorrente na identificação de hipotético erros de julgamento.
Deve ainda dizer-se que a determinação, ao Tribunal da Relação, de que adite factos relacionados com a decisão de autorizar ou recusar a autorização requerida, pressuporia que, no âmbito do recurso de revista, o Supremo Tribunal de Justiça teria competência para controlar a decisão que o acórdão recorrido tomou, confirmando a sentença – o que não sucede.
Não se confunde esta pretensão da recorrente com a possibilidade conferida ao Supremo Tribunal de Justiça de, no âmbito da revista, determinar a ampliação da matéria de facto (n.º 3 do artigo 682.º do Código de Processo Civil).
9. Relativamente à alegação de disposições processuais, cumpre recordar, sucintamente (por respeitarem a questões repetida e uniformemente decididas pelo Supremo Tribunal de Justiça, cfr., por todos, o acórdão de 17 de Abril de 2024, ww.dgi.pt, proc. n.º 1342/21.9T8FNC.L1.S1), o seguinte:
– que é exacto que o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que “a dupla conformidade de decisões da 1.ª Instância e da Relação, nos termos definidos pelo n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil, não constitui obstáculo à apreciação da aplicação feita pela Relação, seja dos requisitos exigidos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil para a impugnação da decisão de facto da 1ª Instância, seja dos poderes que são conferidos à 2ª Instância pelo artigo 662.º, no recurso de revista (“normal”, por oposição à “revista excepcional”, que tem requisitos específicos de admissibilidade – artigo 672.º do Código de Processo Civil – e pressupõe a ocorrência de dupla conformidade das decisões das instâncias). Observa-se frequentemente que, quanto a uns e a outros, não existem duas decisões, o que, por si só seria suficiente para excluir a eventualidade de dupla conforme” (excerto retirado de Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Julgamento de facto em 1.ª e 2:ª Instâncias, Jurismat, n.º 12, 2020, pág. 203 e segs., pág. 216.
No caso presente, todavia, não ocorrendo outros motivos que o impeçam, estes preceitos poderão ser apreciados no âmbito da revista por via normal, no que à alegação de violação de critérios de legalidade respeita, como resulta do que se disse já. Cfr. o recente acórdão de 3 de Julho de 2025, www.dgsi.pt, proc. n.º 50/21.3T8STR.E3.S1: “III. O Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que cabe no âmbito possível do recurso de revista verificar se, ao apreciar a impugnação da decisão de facto, a Relação cumpriu os requisitos definidos pelo artigo 662.º do Código de Processo Civil para o exercício dos poderes que lhe são atribuídos, e se o recorrente cumpriu as exigências descritas pelo artigo 640.º do mesmo Código para a definição do objecto e para a fundamentação dessa impugnação”;
– o mesmo se diga, no que respeita à apreciação das provas e à sua análise crítica pela 2.ª instância, quando igualmente conhece da impugnação da decisão de facto – n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º do Código de Processo Civil, aplicáveis à apelação por força do disposto no n.º do artigo 663.º do mesmo Código: cfr. acórdão de 16 de Dezembro de 2020, proc. n.º 4016/13.9TBVNG.P1.S3: “É hoje jurisprudência seguida por este Supremo que a reapreciação da decisão de facto impugnada, por parte do tribunal de 2.ª instância, não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, pelo tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa”.»; É inevitável reconhecer que, com o sistema assim introduzido, a lei fez prevalecer a garantia do segundo grau de jurisdição sobre as vantagens da imediação na apreciação da prova testemunhal; e que aceitou que, para a 2ª Instância, esta falta de imediação não prejudicava a efectividade do princípio da livre apreciação da prova.» (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Maio de 2009, www.dgsi, proc. nº 08B1466);
– e ainda quanto ao cumprimento, pelo recorrente que impugne a decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto, dos ónus de delimitação do objecto do recurso e da sua fundamentação, impostos pelo n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, na sequência da introdução deste recurso pelo Decreto-Lei n.º 39/95, de, 15 de Fevereiro, em cujo preâmbulo se pode ler “(…), ‘a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso. (…) Nesse sentido, impôs-se ao recorrente um ‘especial ónus de alegação’, no que respeita ‘à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação’, em decorrência ‘dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais (…). Daí que se estabeleça que o recorrente deve, sob pena de rejeição do recurso, além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, impunham diversa decisão sobre a matéria de facto”; recorde-se que o acórdão recorrido não apreciou a pretensão de eliminar a 2.ª parte do facto n.º 42 por não ter sido cumprido este ónus de fundamentação (decisão que a recorrente não questiona neste recurso);
– no que toca à extensão dos poderes de conhecimento do recurso de facto, pela Relação, e aos requisitos definidos para as diferentes hipóteses previstas no artigo 662.º do Código de Processo Civil (a análise do artigo 662.º, todo ele intitulado “Modificabilidade da decisão de facto”, revela a concessão à Relação de poderes de objecto e justificação diferentes), cumpre recordar, quanto ao respectivo n.º 1 (só este n.º 1 é que a recorrente alega ter sido desrespeitado pelo acórdão recorrido), que alterar a decisão de facto porque “os factos tidos como assentes” impõem “decisão diversa” é ainda uma alteração de direito, que nem se deve considerar abrangida pela inadmissibilidade de revista constante do n.º 4 do mesmo artigo 662.º. Com efeito, trata-se de factos considerados admitidos por acordo, por falta de impugnação eficaz, ou provados plenamente, por confissão ou documento (cfr. n.º 5 do artigo 607.º) e a interpretação e aplicação dos regimes legais da impugnação definida (artigo 574.º do Código de Processo Civil), da força probatória da confissão ou de documentos (Código Civil, artigo 358.º, n.º 1 do artigo 371.º, n.º 2 do artigo 376.º e artigo 377.º) podem ser apreciadas em revista. Já alterar a decisão de facto com fundamento em documentos supervenientes, mas sem força probatória plena, ou na prova produzida, com base em meios de prova com igual valor, implica a aplicação da irrecorribilidade prevista no n.º 4.
19. A recorrente alega ter sido violado o disposto nos artigos “662.º, n.º 1, e 607.º, n.º 4 e n.º 5, ex vi do art. 663.º, n.º 2, todos do CPCivil”, tendo em conta os “factos assentes, (d)os actos processuais e (d)os documentos juntos aos autos”.
Ora não ocorre a contradição apontada ao acórdão recorrido, nos pontos 90 e 91 das alegações de recurso: «90. Pode ler-se no acórdão recorrido, pág. 62: “71 Dito isto, quanto ao que temos por certo é que, em Portugal, a apelante está inserida de forma estável no mercado de trabalho. Embora aufira um salário baixo, está acima do mínimo nacional (considerando o número de horas de trabalho). Não ficou demonstrado que, aqui, necessite da ajuda de familiares, resultando que tem condições para viver com os filhos de forma independente. Na verdade, a apelante tem as seguintes despesas fixas: (...).”; e “72 Já relativamente à sua ida para França, apenas podemos equacionar que, face ao custo de vida naquele país, ainda que tenha um salário razoavelmente superior, dificilmente vemos como possível que se consiga sustentar e aos três filhos de forma independente – isto é, sem o apoio de familiares.”. 91. Ora, tal decisão surge em clara contradição com os factos definitivamente provados (não impugnados), sob “26. Apresenta como rendimentos, o vencimento base de 632,50 €; o abono (794€), alimentos DD (150€), alimentos CC (130€).” e sob “27. Conta com o apoio económico de familiares.” - cfr. acórdão recorrido, págs. 37 e 38.»
Nem tão pouco se podem considerar assentes ou plenamente provados os factos referidos no ponto 3.2 das alegações, sendo exacto que, como se diz no acórdão recorrido, “55 Das alegações da apelante não constam os meios de prova que levariam à redação pretendida e que se prende concretamente com as condições, particularmente, salariais do contrato de trabalho. Além disso, a apelante não fez qualquer análise crítica da prova, valendo o que já ficou dito acima a propósito de tal omissão.” (refere-se aqui o incumprimento dos ónus constantes do artigo 640.º do Código de Processo Civil, que se entende não terem sido efectivamente cumpridos).
20. Alega ainda a recorrente, que pretendia que o n.º 38 dos factos provados passasse a ter a seguinte redação: “A requerente tem uma proposta para trabalhar em França, na empresa Lidl, para celebrar um contrato de trabalho sem termo a tempo parcial, 130,02 horas mensais (33h na 1a semana, 32h na 2a, 27h na 3a e 28h na 4a), com uma remuneração mensal de 1.636,96 Eur., que passará para 1.694,17 Eur., a partir do 1° ano e 1.752,67 Eur. a partir do 2°.”
Não há qualquer censura a fazer ao não conhecimento da alteração pretendida: não foi cumprido o disposto no artigo 640.º do Código de Processo Civil.
Nem tão pouco ao que o acórdão recorrido afirmou no seu ponto 78:
“78 Não foi alegada ou demonstrada a superveniência de fatores que justifiquem a necessidade de ir para França, neste momento. Não foram indicados motivos, nem alteração de circunstâncias face à sua anterior decisão de afinal permanecer.” – cfr. artigos 425.º e 680.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Não se vê como a recorrente pode discordar destas afirmações, tendo em conta o que alega para o efeito, porque a justificação que apresenta não demostra qualquer erro:“94. (das alegações de recurso ): Não se percebe como o Tribunal a quo, e, com ele, o Tribunal da Relação de Lisboa deram como provado parte da cláusula contratual referente à remuneração em França, de 1.636,96 Eur., mas não deram como provado a segunda parte da cláusula que prevê que a remuneração passará para 1.694,17 Eur., a partir do 1º ano do contrato e 1.752,67 Eur. a partir do 2º ano, com uma uma média de 29 horas de trabalho semanais; o que demonstra uma evolução na remuneração da recorrente, quando, em Portugal, aufere um vencimento base de 632,50 Eur. para 25 horas de trabalho semanais (facto provado sob 26, pág. 37 do acórdão recorrido).”
O acórdão recorrido também não violou o n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil.
21. A recorrente pretende ainda que o Supremo Tribunal de Justiça determine a baixa do processo para que sejam ouvidos os irmãos do menor, tendo em conta a prossecução do superior interesse dos três, no que toca à pretendida deslocação para França. Diz nas conclusões IV, 4.9 e 4.10:
«4.9. E mais, mostra-se, nos termos do disposto nas als. a) e b) do n.º 1 do art. 672.º do CPCivil, da maior importância este Alto Tribunal determinar se, à luz do disposto no art. 11.º da Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da Criança devemos “estender o disposto” no art. 3.º do mesmo instrumento internacional, e, assim, ouvir e informar as outras crianças que não são visadas no processo tutelar cível, in casu os meios-irmãos que vivem com o menor desde o seu nascimento, por se tratar de “questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;” e porque estão “em causa interesses de particular relevância social;”, a saber, o superior interesse dos menores, não só a criança visada no processo, o CC, mas também o DD e a EE, não visados no processo.
4.10. Não tendo o Tribunal a quo admitido, nem recusado o depoimento dos menores (requerido em 08/07/2024, apenso A, ref.ª Citius ......26) em despacho fundamento, face à decisão do pai do DD de 11/07/2025, posterior à prolação da sentença e do recurso apresentado, mostra-se relevante, e, quiçá, necessária, a audição dos meios-irmãos do CC, para saber qual a sua opinião sobre o facto de não ser autorizada a mudança da família para França, de continuarem a viver na Amadora e o risco de o DD passar a viver com o pai nos Estados Unidos da América, requerendo-se, em conformidade, a V. Exas. se dignem anular o acórdão recorrido e determinar que o processo baixe a fim de os meios-irmãos do CC serem ouvidos nos presentes autos, ao abrigo do disposto no art. 21.º, n.º 1, al. a), do RGPTC.
Este pedido é, assim, formulado no âmbito da revista excepcional que a recorrente subsidiariamente interpôs, não devendo ser aqui apreciado – não só por este motivo, mas também porque não se admitiu o recurso de revista por via normal quanto à questão da autorização para a deslocação para França.
De qualquer forma, cumpre dizer que, não tendo sido autorizada a subida conjunta dos recursos de apelação interpostos nos apensos A e B (o presente apenso), pelo despacho de 11 de Julho de 2025 (“Acontece que os processos têm natureza diversa – este é urgente e o apenso A não. Além disso, não vemos fundamento legal para que a decisão de recurso seja tomada em conjunto, sendo certo, porém, que reconhecemos a importância de que na tomada da decisão exista em ambos os processos o conhecimento da pendência do outro recurso. Esta necessidade poderá ser cumprida com a comunicação realizada entre processos. Assim, comunique ao apenso A o teor deste despacho.”) não se pode considerar como justificação para a pretendida baixa do processo o que a recorrente alega – “Não tendo o Tribunal a quo admitido, nem recusado o depoimento dos menores (requerido em 08/07/2024, apenso A, ref.ª Citius ......26) em despacho fundamento, face à decisão do pai do DD de 11/07/2025, posterior à prolação da sentença e do recurso apresentado (…)”. Na verdade, não subindo os recursos em conjunto, repete-se, não se vê como o despacho de 11 de Julho de 2025 teria admitido ou recusado depoimentos requeridos num apenso distinto.
Nem se crê que seja motivo para ordenar a baixa do processo nos termos requeridos a comunicação do pai de outro dos filhos da recorrente, que foi junta às alegações da apelação. O que naturalmente não significa qualquer desconsideração do que é requerido, mas apenas que não justifica a baixa do processo – até porque a questão se colocou no apenso A., como a recorrente afirma).
22. Finalmente, a recorrente invoca a contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19 de Janeiro de 2023, www.dgsi.pt, proc. n.º 2396/16.3T8BRG-I.G1, cuja cópia junta (transcreve-se a conclusão III das alegações de recurso):
“III – O acórdão recorrido está em contradição com o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19/01/2023 relatado pelo Exmo. Senhor Juiz Desembargador José Carlos Pereira Duarte (Adjuntos: Exmos. Senhores Juízes Desembargadores José Fernando Cardoso Amaral e Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais), no Processo n.º 2396/16.3T8BRG-I.G1, disponível em www.dgsi.pt, que, numa situação semelhante onde estava em causa um pedido de autorização de mudança de residência de um menor para o estrangeiro com a mãe com quem sempre vivera desde que nascera, decidiu: “Assim e neste âmbito o critério de decisão primacial é o já acima analisado: integra o “interesse superior da criança” o direito da mesma de residir com a figura primária de referência, ou como decorre da alínea g) do art.º 4º da LPCJP, aplicável ex n.º 1 do art.º 4º da RGPTC, a confiança da criança deve respeitar o direito da mesma à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante.”.
Não alega que também interpõe o recurso de revista, ou, subsidiariamente, de revista excepcional, com fundamento em contradição de acórdãos. De qualquer forma, não sendo admissível a revista quanto ao ponto em que a recorrente aponta a contradição, nem uma, nem outra via de recurso seriam possíveis.
Aliás, também não se pode considerar aqui qualquer hipotética contradição – que não se crê existir, uma vez que cada acórdão toma como ponto de partida situações de facto diferentes em pontos relevantes para a avaliação do interesse superior dos menores a que respeitam, e decidem segundo critérios adequados a essas situações – porque não se refere às questões que constituem o objecto que pode ser apreciado no presente recurso.
23. Nestes termos, não se conhece parcialmente do recurso e, quanto ao mais, nega-se provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
Transitado, envie cópia do presente Acórdão ao apenso B.
Lisboa, 29 de Outubro de 2025
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)
Rui Machado e Moura
Fátima Gomes