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EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO INDISPONÍVEL
REMUNERAÇÃO MENSAL MÍNIMA GARANTIDA
Sumário
1- As nulidades processuais não se confundem com causas determinativas de nulidade da sentença, acórdão ou despacho, nem com os erros de julgamento de facto e/ou de direito, na medida em que: as primeiras (error in procedendo) traduzem-se em quaisquer desvios ao formalismo processual seguido ao longo do iter processual, em relação ao prescrito na lei adjetiva civil (prática de ato proibido por lei; omissão de ato prescrito por lei; ou realização de ato imposto ou permitido por lei, mas sem observância do formalismo nela prescrito), que esta comine expressamente com nulidade (nulidades processuais principais, típicas ou nominadas), ou quando aqueles desvios são suscetíveis de influírem no exame ou na decisão da causa e a lei adjetiva não preveja para eles outra consequência jurídica, que não a nulidade (nulidades processuais secundárias, atípicas ou inominadas); as nulidades da sentença, acórdão ou despacho são vícios formais que os afetam de per se, contanto que se reconduzam a um dos tipos taxativamente enunciados no n.º 1 do art. 615º do CPC, os quais se reportam ao desrespeito pelo juiz das normas processuais que fixam o modo como os devia ter elaborado e/ou estruturado, ou as que delimitam o seu campo de cognição, em termos de fundamentos (causa de pedir e/ou exceções) ou pedido, ficando aquém ou indo além desses limites; enquanto os erros de julgamento (error in judicando) reconduzem-se à circunstância de o juiz na sentença, acórdão ou despacho ter errado em sede de julgamento de facto, por a prova produzida impor julgamento de facto diverso (erro de julgamento de facto), ou por ter errado na seleção das normas jurídicas que são aplicáveis à relação jurídica material controvertida delineada pelas partes, na interpretação que fez dessas normas jurídicas, ou quanto ao modo como as aplicou aos factos que julgou provados e não provados (erro de julgamento de direito), de modo que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa. 2- A circunstância de na sentença não ter sido julgada provada, nem não provada facticidade que foi alegada pelas partes, apesar de ter natureza essencial (por ser constitutiva da causa de pedir ou integrativa das exceções invocadas), não integra nulidade processual, nem causa determinativa de nulidade da sentença, nomeadamente, por omissão de pronúncia, mas reconduz-se a erro de julgamento de facto, na vertente de deficiência, que cumpre ao tribunal de recurso suprir a partir dos elementos de prova e da gravação, salvo quanto estes não lho permitam fazer com a necessária segurança, situação em que terá de anular a sentença e ordenar a baixa dos autos à 1ª Instância para que amplie o julgamento de facto quanto a essa facticidade. 3-O instituto da exoneração do passivo restante conjuga os interesses do insolvente, pessoa singular (interesse esse acautelado a título principal) com os interesses dos seus credores e os gerais da economia, ao permitir ao insolvente, quando a insolvência ocorra por circunstâncias que não lhe sejam imputáveis a título de culpa, ou para cujo agravamento não contribuiu culposamente, mediante o cumprimento, durante o período de cessão, de determinadas injunções (a obrigação principal de ceder ao fiduciário o rendimento disponível, e cumprindo os deveres acessórios que lhe são impostos para controlar o cumprimento por ele daquela obrigação principal), libertar-se das dívidas que permaneçam insatisfeitas decorrido o período de cessão, de modo que, no respeito pela sua dignidade enquanto pessoa humana, possa recomeçar de novo a sua vida económica e social, liberto delas e do estigma social que a condição de devedor lhe acarreta. 4- O «rendimento indisponível» deverá ser determinado por referências às condições específicas do caso concreto, nomeadamente, idade, estado de saúde, realidade profissional, rendimento do devedor e das pessoas que integram o seu agregado familiar, número de pessoas deste, etc., mas nunca poderá ser fixado abaixo do salário mínimo nacional, sob pena de, na própria perspetiva do legislador, se colocar em causa os limites constitucionais da preservação da dignidade da pessoa humana e os princípios de proibição do excesso, da adequação, necessidade, proporcionalidade e da igualdade, ao não se salvaguardar ao devedor, pessoa singular, declarado insolvente, e ao seu agregado familiar um rendimento estritamente necessário para que tenha, mais o seu agregado familiar, uma existência condigna. 5- Na fixação do «rendimento indisponível» o juiz tem de ter sempre presente as particularidades do caso concreto, sopesando, por um lado, os interesses do devedor e do seu agregado familiar e, por outro, os dos seus credores, tendo como princípios intransponíveis: o da preservação da dignidade do devedor e do seu agregado familiar, enquanto pessoas humanas, que lhe veda a fixação de montante insuficiente para que lhes seja garantida uma existência digna; por outro, os interesses dos credores, que lhe veda a possibilidade de fixar um rendimento indisponível em montante superior ao estritamente necessária a garantir ao devedor e ao seu agregado familiar uma existência digna; e, finalmente, o princípio da igualdade, que o obriga a ter em consideração os critérios jurisprudenciais seguidos em situações semelhantes.
Texto Integral
I- Relatório
AA e mulher, BB, residentes na Rua ..., ..., ... ..., apresentaram-se à insolvência em 26/02/2025, e requereram que lhes fosse concedida a exoneração do passivo restante.
Por sentença proferida em 28/02/2025, declarou-se a insolvência dos requerentes e, além do mais, nomeou-se administrador da insolvência e dispensou-se a realização da assembleia de credores para apreciação do relatório a que alude o art. 156º do CIRE.
Em 08/04/2025, o administrador da insolvência apresentou o relatório a que alude o art. 156º do CIRE, em que declarou nada ter a opor ao deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, e onde consignou: “O devedor AA foi sócio e gerente da sociedade comercial EMP01..., Unipessoal, Lda. NIPC ...63. Nesse exercício, o casal deu o seu aval a empréstimo bancário contraído por essa sociedade. Como a sociedade não cumpriu essa obrigação, passaram os devedores a serem demandados para cumprimento. Como auferem baixos rendimentos, não têm condições para solver as responsabilidades assumidas. (…). O insolvente AA não trabalha, está reformado por invalidez, auferindo mensalmente pensão no valor de 800,00 euros. A insolvente mulher trabalha por conta de outrem e aufere vencimento mensal de 870,70 euros. Reside em casa da filha. (…). O incumprimento dos devedores junto da EMP02... (credor originário Banco 1...) remonta a março de 2014. O incumprimento dos devedores junto da Segurança Social remonta a maio de 2023. Os devedores apresentaram-se à insolvência em fevereiro de 2025. Poderá entender-se que, perante a maturidade das dívidas, os insolventes eventualmente incumpriram no dever de apresentação à insolvência, conforme dispõe a al. d) do n.º 1 do art. 238º do CIRE. Mas daí resultou um prejuízo grave para os credores? Estamos em crer que não. Retirando o efeito dos juros de mora, que não podem, nem devem ser entendidos como prejuízos para os credores, mas sim um rendimento pela remuneração das dívidas (até à declaração de insolvência não faz suspender a contagem), não se vislumbram, nem foram alegados, outros prejuízos para os credores. Pelo exposto entende o administrador da insolvência que deve ser deferido o pedido da exoneração inicial do passivo. Face à situação patrimonial e pessoal dos devedores, é razoável fixar para sustento o valor de dois SMN (…)”.
Notificado o relatório que antecede aos credores e aos devedores, nada disseram.
Por sentença de 15/05/2015, determinou-se o encerramento do processo de insolvência, por insuficiência de massa insolvente; qualificou-se a insolvência como fortuita; admitiu-se liminarmente o pedido da exoneração do passivo restante; fixou-se o rendimento indisponível em dois salários mínimos nacionais para o casal dos devedores, tendo em conta o valor anual global líquido auferido, dividido por 12 meses; e, finalmente, nomeou-se como fiduciário o administrador da insolvência.
Inconformados com o segmento da sentença que fixou o rendimento indisponível, os devedores interpuseram recurso, em que formularam as seguintes conclusões:
I- Constituiu objeto do presente recurso a decisão que fixou o rendimento disponível dos insolventes em 2 SMN X 12 para o casal.
II- No artigo 1º da p.i., os insolventes alegaram nascer, respetivamente, a ../../1962 e ../../1959, e tal factualidade resulta demonstrada nas certidões de nascimento juntas à p.i. como documentos n.º 1 e 2.
III- Nos artigos 13º, 14º e 17º da p.i., os insolventes alegaram que, em 2011, o insolvente AA foi acometido de doença cardíaca muito grave, que determinou que fosse submetido a múltiplos internamentos e intervenções cirúrgicas, e que ditou a impossibilidade definitiva de trabalhar, e tal factualidade resulta demonstrada no relatório médico junto à p.i. como documento n.º 7.
IV- Nos artigos 24º e 25º, 28 e 29 da p.i., os insolventes alegaram que, em 2022, a insolvente BB foi diagnosticada com cancro da mama, e em consequência disso, foi sujeita a intervenção cirúrgica e a diversos tratamentos de radioterapia mantendo, à data de hoje, acompanhamento regular; que foi ainda diagnosticada com artrite reumatoide, uma doença autoimune que demanda muitos cuidados e que, inevitavelmente, irá acarretar um agravamento da incapacidade permanente global daquela; e que apresenta estados de dor intensa, provocados pela doença, que a incapacitam de fazer as atividades mais básicas da vida diária, o que resulta demonstrado no relatório médico junto à p.i. como documento n.º 9.
V- No artigo 26ºdap.i., os insolventes alegaram que, fruto da dita doença, a insolvente BB ficou com uma incapacidade permanente global de 60%; tal factualidade resulta demonstrada no atestado médico de incapacidade multiuso junto à p.i. como documento n.º 10.
VI- Nos artigos 34º a 43º da p.i., os insolventes alegaram que, em 2024, despenderam cerca de 1.185,00 Euros em medicação não comparticipada, conforme resulta demonstrado nos documentos n.º 11 e 12 juntos à p.i.,
VII- E que, a acrescer às despesas médicas e medicamentosas, os insolventes possuem outras, mensais, referentes ao seu quotidiano, como sejam despesas de deslocação [consultas, tratamentos e exames], de água, luz, gás, alimentação, vestuário e habitação; tal factualidade resulta demonstrada nos documentos n.º 13 e 14 juntos à p.i.
VIII- No artigo61º da p.i., os insolventes alegaram que, não têm qualquer património mobiliário ou imobiliário; e no artigo 68º da p.i., os insolventes alegaram que pretendem a pretendem a exoneração do passivo restante, declarando, nos termos do art. º 236º, n. º 3 do CIRE, que preenchem os requisitos e se dispõem a observar todas as condições exigidas nos artigos 238º e 239º, do mesmo código; tal factualidade resulta demonstrada no relatório a que alude o art.º 155º do CIRE elaborado pelo AI.
IX- Face à matéria de facto alegada e demostrada pelos insolventes através de prova por confissão e prova documental idónea [e, em alguns casos, através de documentação oficial/autêntica], cuja veracidade e autenticidade não foi impugnada seja por quem fosse, não poderia o tribunal aquo deixar de considerar a matéria de facto provada e, consequentemente, de a ter levado ao elenco dos factos provados.
X- Resulta da alínea c) do n.º 2 do art.º 662º do CPC que a Relação deve, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida na 1ª instância, quando repute deficiente a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.
XI- Incasu, s.m.o., devem ser considerados essenciais à questão a decidir, os seguintes factos: Osinsolventesnasceram,respetivamente,a../../1962 e ../../1959. Em2011,oinsolvente AA foiacometido dedoençacardíacamuito grave,quedeterminouquefossesubmetidoamúltiplosinternamentoseintervençõescirúrgicas,equeditouaimpossibilidadedefinitivadetrabalhar. Em2022,ainsolventeBBfoidiagnosticadacomcancrodamama,eemconsequênciadisso,foisujeitaaintervençãocirúrgicaeadiversostratamentosderadioterapiamantendo,àdatadehoje,acompanhamentoregular. AinsolventeBBfoiaindadiagnosticadacomartritereumatoide,umadoençaautoimunequedemandamuitoscuidadoseque,inevitavelmente,iráacarretarumagravamentodaincapacidadepermanenteglobaldaquela. AinsolventeBBapresentaestadosdedorintensa,provocadospeladoença,queaincapacitamdefazerasatividadesmaisbásicasdavidadiária. Frutodadoençadequepadece,ainsolventeBBficoucomumaincapacidadepermanenteglobalde60%. Em2024,osinsolventesdespenderamcercade1185,00Eurosemmedicaçãonãocomparticipada. Osinsolventessuportamdespesasdedeslocaçãoparaconsultas,tratamentoseexames. Osinsolventes nãotêmqualquerpatrimóniomobiliárioouimobiliário. Osinsolventesnãorequereramaexoneraçãodopassivorestantenosúltimos10anos.
XII- Pelo que, a sua “nãoresposta” pelo tribunal aquo à suprarreferida materialidade que se considera essencial para a prolação de decisão com o mérito da decisão em crise, constitui nulidade processual, que se invoca para todos os efeitos legais [cfr n.º 1 do art.º 195º e primeira parte da al. d), do n.º 1 do art.º 615º, ambos do CPC], que se invoca para todos os efeitos legais.
XIII- Consequentemente, impunha-se ao tribunal aquo, na fixação do rendimento indisponível dos insolventes, a ponderação das condições de vida e de saúde dos insolventes, mormente a ponderação das despesas daí decorrentes.
XIV- Ao não ponderar as condições de saúde dos insolventes e as despesas daí decorrentes, a decisão proferida revela-se contra o direito, por violação do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à proteção da saúde a que se referem os artigos 1º e 64º da Constituição da República Portuguesa.
XV- Face ao exposto, a sentença proferida enferma de erro de julgamento quanto à matéria de facto, por omissão de pronúncia, uma vez que, face à alegação dos insolventes e aos documentos juntos aos autos, cuja autenticidade não foi impugnada, viola flagrantemente as previstas nos art.º 362º, 363º, 369º, 370º e 371º todos do Código Civil, pelo que deve ser alterada para a MATÉRIA DE FACTO PROVADA.
XVI- Subsequentemente, atenta a idade, as condições de vida e de saúde dos insolventes, bem como a sua situação patrimonial, facilmente se constata que a decisão que fixou o rendimento disponível dos insolventes em 2 SMN X 12 para o casal não lhes permitirá sobreviver de forma digna e cuidar da sua saúde.
XVII- Na decisão que fixou o rendimento disponível dos insolventes, o tribunal aquo não demonstrou qualquer sensibilidade em relação às especiais necessidades decorrentes das doenças dos insolventes e das despesas daí resultantes.
XVIII- Ao não ponderar as condições de saúde dos insolventes e as despesas [não comparticipadas] daí decorrentes, a decisão proferida revela-se contra o direito, por violação do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à proteção da saúde a que se referem os artigos 1º e 64º da Constituição da República Portuguesa.
XIX- A decisão proferida é tanto mais inaceitável porquanto equipara o rendimento indisponível dos recorrentes – emidadedereformaedoentescrónicos – com o rendimento indisponível do insolvente comum, equiparando, assim, realidades distintas e, por conseguinte, desrespeita o princípio da igualdade consagrado no art.º 13º da CRP.
XX- Mais viola a decisão proferida a norma ínsita no art.º 239º, n.º 3, al. b), subalíneas i), ii) e iii) do CIRE, segundo o qual ao devedor deve ser garantido um montante que lhe permita ter uma vida minimamente digna, pelo que, deve ser alterada, para o que se apela.
XXI- Para a matéria em crise convoca-se os ensinamentos constantes do Ac. do TRP de 19/03/2024, proferido no processo 1336/23.8T8AMT-C.P1, e do Ac. do TRL de 29/04/2025, proferido nos autos n.º 1461/23.5T8BRR-F.L1-1, ambos disponíveis em dgsi.pt.
XXII- Viola, assim, o despacho de exoneração do passivo restante o preceituado no nos art.º 362º, 363º, 369º, 370º e 371º todos do Código Civil, o art.º 239° nº 3 alínea b), i), ii) e iii) do C.I.R.E, no art.º 607º, 615.° n.º 1 alínea b) do C.P.C. aplicável ex vi art.º 17.° do CIRE e no art.º 1, 13° e 64º da CRP, pelo que deve ser revogado nos termos expostos e substituído por outro que fixe o rendimento disponível em montante compatível e adequado, que por defeito, se quantifica em cerca de 2 SMN X 14/12, para o casal, o que se apela.
TERMOS EM QUE deverá o despacho em crise ser revogado e substituído por outro que fixe o rendimento disponível dos insolventes, aqui recorrentes, em montante compatível e adequado, que por defeito, se quantifica em 2 SMN X 14/12 para o casal, assim, se fazendo inteira e sã JUSTIÇA!”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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A 1ª Instância admitiu o recurso como sendo de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo, o que não foi alvo de modificação no tribunal ad quem.
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A Senhora Juiz Desembargadora de turno ordenou a baixa dos autos a fim de que fosse proferido despacho quanto à nulidade que os recorrentes assacaram à sentença recorrida.
Nessa sequência, a 1ª Instância pronunciou-se no sentido de não se verificar a nulidade suscitada, por considerar que a facticidade que os recorrentes pretendem ver aditada ao elenco dos factos julgados provados na sentença se mostrar irrelevante “para apurar se a exoneração devia ser liminarmente admitida (o que foi, assim em nada prejudicando os insolventes), nem para apurar o valor do rendimento indisponível. Neste particular, a existência de doença cardíaca em 2011 é irrelevante, dado que o tribunal teve em consideração que o insolvente está reformado por invalidez. E os factos relativos à insolvente são inócuos, dado o valor que esta aufere e a circunstância de os insolventes residirem gratuitamente em casa da filha. Não se verifica, pois, qualquer nulidade por omissão de pronúncia”.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Acresce que, o tribunal ad quem também não pode conhecer de questão nova, isto é, que não tenha sido, ou devesse ser, objeto da decisão sob sindicância, salvo se tratar de questão que seja do conhecimento oficioso, dado que, sendo os recursos os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, mediante o reexame de questões que tenham sido, ou devessem ser nelas apreciadas, visando obter a anulação da decisão recorrida (quando padeça de vício determinativo da sua nulidade) ou a sua revogação ou alteração (quando padeça de erro de julgamento, seja na vertente de erro de julgamento da matéria de facto e/ou na vertente de erro de julgamento da matéria de direito), nos recursos, salvo a já enunciada exceção, não podem ser versadas questões de natureza adjetivo-processual e/ou substantivo material sobre as quais não tenha recaído, ou devesse recair, a decisão recorrida[1].
No seguimento desta orientação cumpre ao tribunal ad quem apreciar as seguintes questões:
a- Se a sentença recorrida, no segmento em que conheceu do pedido de exoneração do passivo restante e fixou o rendimento indisponível aos recorrentes é nula, por omissão de pronúncia;
b- Se o julgamento de facto realizado na sentença naquele segmento padece do vício de insuficiência; e
c- Se a decisão de mérito nela proferida (ao fixar o rendimento indisponível em dois salários mínimos nacionais ao casal dos recorrentes, tendo em conta o valor anual global líquido auferido, dividido por 12 meses), padece de erro de direito e, se em consequência, se impõe a substituição, fixando o rendimento indisponível anual global líquido em dois salários mínimos nacionais, multiplicado por catorze meses, dividido por doze meses.
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III- DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A 1ª instância julgou provada a seguinte facticidade com relevância para a decisão de mérito a proferir no âmbito de (in)deferimento liminar do incidente de exoneração do passivo restante e fixação do rendimento indisponível:
A- Os insolventes são casados.
B- O insolvente está reformado por invalidez e aufere uma pensão de € 800/mês.
C- A mulher insolvente trabalha por conta de outrem e aufere um vencimento de €870,70.
D- Residem em casa da filha.
E- Têm dois credores e uma dívida total de € 30.832,00.
F- Os insolventes não têm antecedentes criminais.
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IV- DA FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
A- Nulidade da sentença, por omissão de pronúncia e nulidade processual
Os recorrentes assacam à sentença recorrida o vício de nulidade, por omissão de pronúncia no segmento em que se fixou o rendimento indisponível, advogando que a circunstância da 1ª Instância não se pronunciar quanto à facticidade que identificam (não a julgando provada, nem não provada), apesar de ter sido alegada na petição inicial, de não ter sido impugnada e se encontrar plenamente provada por documentos autênticos, cuja falsidade não foi invocada, e ser essencial para a prolação de decisão de mérito, “constitui nulidade processual, que se invoca para todos os efeitos legais [cfr. n.º 1 do art.º 195º e primeira parte da al. d), do n.º 1 do art.º 615º, ambos do CPC]”.
Antecipe-se desde já, sem razão, confundindo os recorrentes, por um lado, nulidades processuais com nulidades de sentença e, por outro, nulidade de sentença com erros de julgamento, mais concretamente, erros de julgamento de facto.
As nulidades processuais (error in procedendo) consubstanciam-se em quaisquer desvios ao formalismo processual seguido, em relação ao que se encontra prescrito na lei adjetiva civil, e a que esta, ainda que de modo não expresso, comine o referido desvio com nulidade. Os referidos desvios podem assumir um de três tipos: prática de ato proibido por lei; omissão de ato prescrito na lei; e, por último, realização de ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo nela prescrito.
As nulidades processuais são principais, típicas ou nominadas, quando o CPC (onde constam todas as disposições legais que se passam a enunciar, sem referência em contrário) comine o desvio cometido em determinado processo em relação ao prescrito com o vício de nulidade (v.g., nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial – art. 186º -; falta e nulidade de citação – arts. 188º a 191º -; erro na forma do processo quando não seja possível convolar o processo para a forma legalmente prescrita sem diminuição das garantias de defesa do réu – art. 193º, n.ºs 1 e 2 -; e falta de vista ou exame ao Ministério Público, quando a lei exija a sua intervenção como parte acessória e o processo corra à revelia da parte que devia por ele ser assistida – art. 194º), e são secundárias, inominadas ou atípicas quando o CPC não comine expressamente o desvio cometido com nulidade, mas aquele seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, salvo se o processo civil previr outra consequência legal para ele, que não a nulidade (art. 195º, n.º 1).
Por sua vez, as nulidades da sentença (extensíveis aos acórdãos, por via do n.º 1 do art. 666º, e aos despachos, por força do n.º 3 do art. 613º) são apenas as que se encontram enunciadas, de modo taxativo, no n.º 1 do art. 615º, e reconduzem-se a vícios formais que afetam formalmente a sentença (acórdão ou despacho) de per se, decorrentes de nela não terem sido observadas as normas processuais que regulam a sua elaboração e/ou estruturação (v.g., falta de assinatura do juiz, provocando a dúvida sobre a sua autenticidade - al. a) -; falta de fundamentação de facto e/ou de direito, o que determina a ininteligibilidade do discurso decisório nela enunciado, por ausência total de explicação das razões de facto e/ou de direito por que se decidiu de determinada maneira - al. b) -; contradição lógica entre o discurso fáctico-jurídico argumentativa que nela foi aportada para fundamentar a decisão e a própria decisão proferida no seu dispositivo final – al. c)), ou por se terem infringido os limites a que o tribunal via a sua atividade instrutória e decisória circunscrita em termos de fundamentos, isto é, de causa de pedir e exceções (omissão ou excesso de pronúncia – al. d)), ou de pedido (condenação ultra petitum – al. e), todos do n.º 1 do art. 615º)[2].
Em suma, a distinção entre nulidades processuais e nulidades da sentença (acórdão ou despacho) reconduz-se ao seguinte: enquanto as primeiras se identificam com quaisquer desvios ao formalismo processual prescrito no CPC (consistente na prática de ato por este proibido, na omissão de ato por ele prescrito, ou na realização de ato por ele imposto ou permitido, mas com inobservância do formalismo por ele determinado), que afetam a cadeia teleológica que liga os atos do processo, independentemente da bondade ou regularidade de cada um se desinseridos do iter processual, as nulidades da sentença situam-se no âmbito restrito da elaboração desta, desde que a violação cometida preencha um dos casos taxativamente contemplados no n.º 1 do art. 615º[3].
Diferentemente das nulidade de sentença, os erros de julgamento em que o julgador nela incorra (error in judicando) reconduzem-se à circunstância de, em sede de julgamento de facto e/ou de julgamento de direito, ter errado, por ter incorrido numa distorção da realidade factual que julgou provada e/ou não provada, em virtude da prova produzida impor julgamento de facto diverso do que realizou (error facti) e/ou por ter incorrido em erro na identificação das normas aplicáveis ao caso que lhe foi submetido pelas partes, na interpretação que fez dessas normas jurídicas, e/ou na aplicação que delas fez à facticidade que se julgou provada e não provada (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa.
Nos erros de julgamento assiste-se, assim, ou a uma deficiente análise crítica da prova produzida e/ou a uma deficiente enunciação, interpretação e/ou aplicação das normas jurídicas aplicáveis aos factos provados e não provados, sendo que esses erros, por já não respeitarem a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença, acórdão ou despacho em si mesmos considerados (vícios formais) ou aos limites à sombra dos quais são proferidos, não os inquinam de invalidade, mas sim de error in judicando[4].
Entre as causas de nulidade da sentença (acórdão ou despacho) taxativamente enunciadas no n.º 1 do art. 615º, contam-se o vício da nulidade da sentença por omissão ou excesso de pronúncia (al. d), do n.º 1 do art. 615º). Trata-se de nulidade que se relaciona com o preceituado no art. 608º, n.º 2 do CPC, que impõe ao juiz a obrigação de resolver na sentença todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e que lhe veda a possibilidade de conhecer questões não suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Com efeito, devendo o tribunal conhecer na sentença (acórdão ou despacho) que profere todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos pelas partes, com fundamento em todas as causas de pedir por elas invocadas para ancorar esses pedidos e de todas as exceções suscitadas com vista a impedir, modificar ou extinguir o direito invocado pela sua contraparte e, bem assim, de todas as exceções de que oficiosamente lhe caiba conhecer, o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção (desde que suscitadas/arguidas pelas partes) cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão, constitui nulidade por omissão de pronúncia, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica diferentes na sentença, que as partes hajam invocado, uma vez que o juiz não se encontra sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5º, n.º 3 do CPC)[5].Inversamente o conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção não arguidos pelas partes e que não era lícito ao tribunal conhecer oficiosamente configura nulidade por excesso de pronúncia.
Acresce precisar que, como já alertava Alberto dos Reis[6], impõe-se distinguir entre “questões” e “razões ou argumentos”. “(…) uma coisa é o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar, outra invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção (…). São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar as suas pretensões”. Apenas a não pronúncia pelo tribunal quanto a questões que lhe são submetidas pelas partes determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, mas já não a falta de discussão das “razões” ou “argumentos” invocados para concluir sobre as questões[7].E apenas o conhecimento pelo tribunal de questão que não tenha sido suscitada pelas partes e de que não possa conhecer oficiosamente determina a nulidade da sentença por excesso de pronúncia.
«Questões» são os núcleo fáctico-jurídico essenciais, centrais, nucleares, relevantes ou importantes submetidos pelas partes ao escrutínio do tribunal para dirimir a controvérsia entre elas existentes e cuja resolução lhe submetem, atentos os sujeitos, pedidos, causas de pedir e exceções por elas deduzidos ou que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, e não os simples argumentos, opiniões, motivos, razões, pareceres ou doutrinas expendidos no esgrimir das teses em confronto[8].Revertendo aos ensinamentos de Alberto dos Reis, “… assim como a ação se identifica pelos seus elementos essenciais (sujeitos, pedido e causa de pedir (…), também as questões suscitadas pelas partes só podem ser devidamente individualizadas quando se souber não só quem põe a questão (sujeitos), qual o objeto dela (pedido), mas também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado (causa de pedir)”[9].
Finalmente, a nulidade da sentença por omissão de pronúncia tem como pressuposto que nela o juiz deixe de apreciar totalmente a questão que lhe foi submetida pelas partes, e não que o faça de modo incompleto, sumário, deficiente ou erróneo. A incompletude da apreciação da questão que foi colocada à apreciação e decisão do julgador pode colocar em causa a força persuasiva da mesma, levando a que as partes não apreendam cabalmente os fundamentos de facto e/ou de direito que levaram a que a questão tivesse sido julgada improcedente ou procedente, mas naturalmente que não ocorre omissão de pronúncia: o tribunal apreciou a questão, simplesmente fê-lo de modo sumário e/ou incompleto. A decisão errónea da questão subsume-se a erro de julgamento, e não a causa determinativa de nulidade da sentença, designadamente por omissão de pronúncia.
Revertendo ao caso dos autos, a pretensa nulidade processual em que os recorrentes pretendem ter incorrido o tribunal a quo decorre da circunstância de não ter julgado na sentença como provada determinada facticidade que fora por eles alegada na petição inicial com que se apresentaram à insolvência e que não foi impugnada, encontrando-se, por isso, na sua perspetiva, confessada por admissão, parte da qual, inclusivamente, afirmam encontrar-se plenamente provada por documentos autênticos, cuja falsidade não foi invocada (certidões de nascimento juntas em anexo a petição inicial), apesar de, na sua perspetiva, tal matéria assumir natureza essencial para a determinação do rendimento indisponível a ser-lhes determinado no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante que formularam e que a 1ª instância deferiu liminarmente.
Acontece que, de acordo com a alegação dos próprios recorrentes, não se está perante qualquer error in procedendo, decorrente de, ao longo do iter processual que foi seguido pela 1ª Instância no presente processo de insolvência, que culminou com a prolação da sentença recorrida, em que o tribunal a quo determinou o arquivamento do processo de insolvência, por insuficiência da massa, e admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos recorrentes e, em consequência, fixou o rendimento indisponível, se ter incorrido num qualquer desvio ao formalismo processual prescrito no CIRE e/ou no CPC, mas em erro de julgamento, por o juiz não ter julgado como provada toda a facticidade que fora por eles alegada e que se encontra assente por confissão e por documentos autênticos (cuja falsidade não foi suscitada), apesar de assumir natureza essencial para se fixar o rendimento indisponível, incorrendo no vício da deficiência do julgamento da matéria de facto.
Daí que, salvo melhor opinião, contrariamente ao pretendido pelos recorrentes, não ocorre no caso qualquer nulidade processual, nomeadamente, secundária, do art. 195º, n.º 1.
Acresce que, apesar do julgamento de facto, na sequência da revisão ao CPC operada pela Lei n.º 41/2013, de 26/06, se conter atualmente na sentença, não há que confundir erros de julgamento, designadamente, com causas determinativas de nulidade da sentença, nomeadamente, por omissão de pronúncia.
As causas determinativas de nulidade da sentença, conforme antedito, reconduzem-se a vícios formais que afetam a sentença de per se, por nela o juiz ter desrespeitado as normas que regulam a forma como a devia ter elaborado e/ou estruturado e/ou por ter desrespeitado os limites a que se encontrava delimitado o seu campo de cognição em termos de fundamentos (causa de pedir e exceções) ou de pedido, enquanto os erros de julgamento prendem-se com a decisão proferida na sentença (o que nela se encontra decidido), em que o julgador incorreu em erro de julgamento de facto, por a prova produzida lhe impor julgamento de facto diverso do que realizou, e/ou em termos de julgamento de direito, por ter selecionado erradamente as normas jurídicas aplicáveis ao caso que lhe foi submetido pelas partes, atento o pedido, causa de pedir e as exceções invocadas, por ter interpretado erradamente essas normas jurídicas e/ou por ter aplicado indevidamente as mesmas aos factos que julgou provados e não provados.
Os erros de julgamento de facto, nomeadamente, o vício da deficiência, não se confundem, portanto, com as causas determinativas de nulidade da sentença (vícios formais), nomeadamente, com a nulidade por omissão de pronúncia, até porque os factos julgados provados ou não provados na sentença, ou a omissão daqueles, no sentido de não terem sido julgados provados e não provados, apesar de terem sido alegados e de assumirem natureza essencial, não consubstanciam “questões” que as partes tenham submetido à apreciação e decisão do tribunal (causas de pedir e exceções para suportar o pedido ou para levar à sua improcedência total ou parcial deste), mas antes traduzem as realidades ontológicas que, uma vez submetidas ao direito substantivo que lhes seja aplicável, levará à procedência ou improcedência das “questões”: no caso, a determinação do quantum concreto do rendimento indisponível a ser fixado aos recorrentes no âmbito do incidente de exoneração do passivo restantes por eles formulado e admitido liminarmente.
Decorre do exposto, improceder a arguição das nulidades processuais suscitadas pelos recorrentes e o vício de nulidade que assacam à sentença recorrida, por omissão de pronúncia. B- Do vício de deficiência do julgamento de facto
Advogam os recorrentes que deve ser levado ao elenco dos factos provados (com que assacam ao julgamento de facto realizado pela 1ª Instância o vício de deficiência), dado assumirem natureza essencial para a fixação do montante concreto do rendimento indisponível: a data de nascimento que alegaram no ponto 1º da p.i.; a doença cardíaca que afeta o recorrente que alegaram nos pontos 13º, 14º e 17º do mesmo articulado; a doença oncológica que afeta a recorrente e as consequências que dela decorrem para aquela, alegadas nos pontos 24º e 15º, 26º, 28º e 29º daquele articulado inicial; e os factos que alegaram nos pontos 34º a 44º e 61º do mesmo articulado.
Com efeito, das disposições conjugadas dos arts. 5º, n.ºs 1 e 2, al. b), 557º, n.º 1, al. d), 572º, al. c), 584º, n.º 1, 587º, 3º, n.º 3 e 607º, n.º 3 e 4, resulta que ao elenco da facticidade que julgue provada e não provada o juiz tem de levar todos os factos essenciais constitutivos da causa de pedir que tenham sido alegados na petição inicial e que sejam integrativos das exceções invocadas na contestação e que tenham sido alegados pelo réu na contestação e, bem assim, das contra exceções que tenham sido opostas pelo autor a essas exceções e que tenham sido por eles alegados na réplica, não sendo esta admissível, no início da audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início a audiência final, por esses factos individualizarem a causa de pedir ou as exceções invocadas; assim como todos os factos concretizadores ou complementares (dos essenciais) que tenham sido alegados pelas partes ou que, independentemente da sua alegação, a respetiva prova tenha resultado da instrução da causa e as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar quanto a eles.
Os factos instrumentais, dado assumirem uma natureza essencialmente probatória (ao indiciarem a prova ou não prova dos factos essenciais e/ou dos complementares) que tenham sido alegados pelas partes ou que, independentemente da sua alegação, a respetiva prova tenha resultado da instrução da causa, não devem ser levados ao elenco dos factos provados e não provados na sentença (no caso de terem sido alegados) ou ao elenco dos factos provados (quando não alegados, mas a respetiva prova resulte da instrução da causa), mas à motivação/fundamentação do julgamento da matéria de facto, servindo para fundamentar a prova ou não prova dos factos essenciais e/ou dos complementares.
Por conseguinte, a assistir razão aos recorrentes, a verificar-se que o tribunal a quo não julgou como provados, nem como não provados factos que foram alegados na petição inicial e que assumem natureza essencial, por, de acordo com as diversões solução plausíveis de direito se mostrarem relevante para a fixação do quantum concreto do rendimento indisponível a ser-lhes fixado, no âmbito do incidente de exoneração do passivo restantes que formularam e que foi liminarmente admitido na sentença recorrida, a 1ª Instância incorreu no vício de deficiência do julgamento da matéria de facto ao impedir o estabelecimento de uma plataforma de facto sólida para a integração jurídica do caso.
Trata-se de vício que, a verificar-se é, inclusivamente, de conhecimento oficioso do tribunal de recurso, a quem incumbe, no exercício dos seus poderes de substituição, nos termos do n.º 1 do art. 662º, supri-los a partir dos elementos de prova que constam do processo ou da gravação, exceto quando estes não lho permitam fazer com a necessária segurança; nessa eventualidade, deverá o tribunal de recurso, no uso dos poderes de cassação, nos termos da al. c) do n.º 2 do art. 662º, anular a sentença na parte por ele afetada (determinação do rendimento indisponível) e determinar a ampliação do julgamento de facto a essa facticidade em relação à qual se omitiu pronúncia, no sentido de não se ter julgado aquela como provada, nem como não provada[10].
Assentes nestas premissas, no caso de deferimento liminar do benefício de exoneração do passivo restante formulado pelos devedores, terá o juiz de, no despacho de admissão liminar, além do mais, fixar o denominado rendimento indisponível, o qual, nos termos do art. 239º, n.º 3, al. b), i) do CIRE, é composto, além de outras quantias, pelas que sejam razoavelmente necessárias para o sustento minimamente digno dos devedores e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional.
Decorre da previsão legal que se acaba de identificar que o legislador não fixou o montante concreto a que deve ascender o denominado “rendimento indisponível”, limitando-se a enunciar uma cláusula geral, nos termos da qual aquele deverá corresponder ao que “seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar” e, bem assim, a determinar um limite máximo para ele, o qual, por regra, não pode ser ultrapassado, salvo decisão fundamentada do juiz: o montante equivalente a três vezes o salário mínimo nacional. Por isso, cabe ao julgador determinar o montante concreto do denominado rendimento indisponível a fixar ao devedor no caso de requerer a concessão da exoneração do passivo restante e desse pedido ser liminarmente admitido, tendo em conta as particularidades do caso concreto.
No art. 1º da petição inicial, os requerentes alegaram terem nascido em ../../1962 e ../../1959, e juntaram em anexo a esse articulado certidões dos respetivos assentos de nascimento, as quais não foram impugnadas de falsas, pelo que, nos termos dos arts. 362º, 363º, n.ºs 1 e 2, 369º, 370º, 371º, n.º 1, ex vi, art. 372º, todos do CC, encontra-se plenamente provado que o recorrente marido nasceu em ../../1962 e a recorrente mulher em ../../1959.
Nos arts. 13º, 14º e 17º da petição inicial alegaram que o recorrente marido foi acometido de doença cardíaca grave, que se foi agravando de tal ordem que ficou impedido de trabalhar, e foi submetido a múltiplos internamentos e intervenções cirúrgicas, o que o ditou a sua impossibilidade definitiva para exercer atividade profissional, e juntaram em anexo a esse articulado inicial atestado médico que corrobora essa facticidade.
E nos arts. 24º, 25º, 28º e 29º da petição inicial alegaram que a requerente mulher, em 2022, foi diagnosticada com cancro na mama, em consequência do que foi sujeita a intervenção cirúrgica e a diversos tratamentos de radioterapia, mantendo, à data de hoje acompanhamento regular, fruto do que ficou com uma incapacidade permanente global de 65%. E que, entretanto, lhe foi diagnosticada artrite reumatoide, uma doença autoimune que demanda muitos cuidados e que, não raras vezes, lhe determinam dores intensas, que a incapacitam de poder fazer as capacidades mais básicas da vida diária. Juntaram documentos que atestam essa facticidade.
Finalmente, nos arts. 34º a 43 da petição inicial, alegaram que, em 2024, os requerentes despenderam cerca de 1.185,00 euros com medicação não comparticipada, a qual acresce às demais despesas médicas e medicamentosas e às suas despesas quotidianas, com deslocação (consultas, tratamentos e exames), água, luz, gás, alimentação, vestuário e habitação), passando a elencar o montante mensal dessas despesas.
A facticidade acaba de referir não foi impugnada pelos credores ou pelo administrador da insolvência, pelo que, nos termos do art. 574º, n.ºs 1 e 2 e 17º, este do CIRE, tem-se por provada, por admissão, sem prejuízo das datas de nascimento dos recorrentes, conforme antedito, se encontrarem plenamente provadas, através de documentos autênticos.
O sustento minimamente digno dos devedores (recorrentes) depende de múltiplos fatores, mas em que se destacam a sua idade e o seu estado de saúde, posto que, conforme resulta das regras da experiência da vida, a idade avançada e a doença acarretam necessidades específicas à pessoa, as quais demandam custos acrescidos para serem satisfeitas.
Destarte, contrariamente ao pretendido pela 1ª Instância, a referida materialidade fáctica acima identificada, que foi alegada pelos recorrentes na petição inicial e que se encontra plenamente provada por documentos autênticos, não arguidos de falso (as respetivas datas de nascimento) e, por admissão (quanto à restante facticidade, que não foi impugnada) assume efetivamente natureza essencial para o cálculo do rendimento indisponível a ser arbitrado aos recorrentes, pelo que, a não levá-la ao elenco dos factos julgados provados, incorreu no vício da deficiência, que cumpre ao tribunal ad quem suprir, ordenando que seja aditada ao elenco dos factos provados na sentença.
Não assim quanto à pretensão dos recorrentes para que se adite ao elenco dos factos provados na sentença a seguinte facticidade: “Os insolventes não requereram a exoneração do passivo restantes nos últimos dez anos”.
Com efeito, apesar de se tratar de facticidade que foi alegada pelos recorrentes na petição inicial e de assumir natureza essencial em sede de (in)deferimento do pedido de exoneração, a 1ª Instância já admitiu liminarmente esse pedido, por decisão transitada em julgado, pelo que, ultrapassado que está o deferimento liminar do pedido de exoneração, a matéria em causa nenhuma repercussão é suscetível de ter na fixação do montante concreto do rendimento indisponível a ser-lhes fixado, não se verificando, por isso, quanto a ela, o vício da deficiência do julgamento de facto para decidir o objeto de direito deste recurso.
Nesta conformidade, na parcial procedência do vício da deficiência do julgamento da matéria de facto que os recorrentes assacam à sentença sob sindicância, ordena-se o aditamento ao elenco dos factos nela julgados provados da seguinte facticidade, que se julga provada: G- Osinsolventesnasceram,respetivamente,a../../1962 e ../../1959. H- Em2011,oinsolvente AA foiacometido dedoençacardíacagrave,quedeterminouquefossesubmetido a múltiplosinternamentoseintervençõescirúrgicas,equeditouaimpossibilidadedefinitivadetrabalhar. I- Em2022,ainsolventeBBfoidiagnosticadacomcancrodamama,eemconsequênciadisso,foisujeitaaintervençãocirúrgicaeadiversostratamentosderadioterapiamantendo,àdatadehoje,acompanhamentoregular. J- AinsolventeBBfoiaindadiagnosticadacomartritereumatoide,umadoençaautoimunequedemandamuitoscuidadoseque,inevitavelmente,iráacarretarumagravamentodaincapacidadepermanenteglobaldaquela. K- AinsolventeBBapresentaestadosdedorintensa,provocadospeladoença,queaincapacitamdefazerasatividadesmaisbásicasdavidadiária. L- Fruto da doença de que padece, a insolvente BB ficou com uma incapacidade permanente globalde60%. M- Em 2024, os insolventes despenderam cerca de 1.185,00Euros em medicação não comparticipada. N- Os insolventes suportam despesas de deslocação para consultas,tratamentoseexames. O- Osinsolventes nãotêmqualquerpatrimóniomobiliárioouimobiliário. C- Do mérito C.1- Instituto de exoneração do passivo restante
A 1ª Instância admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo casal dos recorrentes (devedores) e fixou o rendimento indisponível que lhes é devido, para salvaguarda do estritamente necessário a uma existência minimamente condigna a quantia equivalente a dois salários mínimos nacionais, tendo em conta o valor anual global líquido por eles auferido/recebido, dividido por doze meses, com o que não se conformam os últimos, imputando ao decidido erro de direito, advogando que, na fixação daquele rendimento não foram ponderadas as particularidades das suas condições de vida, nomeadamente, a sua idade, condições de saúde e as despesas que daí lhes advêm, com o que, na sua perspetiva, se violou a sua dignidade enquanto pessoas humanas, o direito à proteção da saúde e o princípio da igualdade, salvaguardados pelos arts. 1º, 64º e 13º da Constituição da República Portuguesa, direitos e princípios esses que, a seu ver, demandam que o rendimento anual indisponível a lhes ser arbitrado deva ser fixado em quantia equivalente a dois salários mínimos nacionais líquidos, multiplicado por catorze meses, dividido por doze meses, englobando, portanto, o 13º mês (subsídio de natal) e o 14º mês (subsídio de férias).
Vejamos se assiste razão aos recorrentes para as críticas que assacam à decisão recorrida.
O instituto de exoneração do passivo restante permite aos insolventes, pessoas singulares, quando a insolvência ocorra em determinadas condições e mediante a observância de determinados requisitos e deveres, se libertarem das dívidas que os onerem e que permaneçam insatisfeitas após a liquidação da massa insolvente e no termo do denominado período de cessão recomecem de novo a sua vida económica delas liberto. O instituto assenta, por isso, no princípio do “start fresh”, em que, sem esquecer os interesses dos credores, promove-se fundamentalmente os interesses do devedor, pessoa singular, declarado insolvente, no respeito pela sua dignidade enquanto pessoa humana, ao permitir-se que não fique condenado, ad eternum (tendo presente que o prazo geral de prescrição das dívidas é de vinte anos, e a consequente possibilidade de propositura de ações executivas contra ele por credores cujos créditos não tivessem sido satisfeitos no âmbito do processo de insolvência), sob o peso de dívidas, que tornariam impossível o retomar de uma vida financeiramente equilibrada e os fatores de exclusão ou de marginalização social que para ele, e para o seu agregado familiar, daí adviriam.
Trata-se de uma inovação no sistema jurídico nacional, que visa conjugar os interesses do insolvente, pessoa singular, com os interesses dos respetivos credores e os gerais da economia[11].
No entanto, porque o instituto da exoneração do passivo restante consubstancia uma nova causa de extinção das obrigações, extraordinária e avulsa relativamente às que se encontram tipificadas no CC[12], visando salvaguardar os interesses do devedor insolvente, sem esquecer os dos credores e os gerais da economia, mormente ao estimular a concessão responsável do crédito por parte das entidades bancária e financeiras, assistindo-se nele ao confronto de interesses divergentes - os dos credores e da confiança do tráfego económico, em que norteia o princípio do pacta sunt servanda, de acordo com o qual, os contratos são, em princípio, para cumprir, e o do devedor/insolvente, com particular relevo pelo respeito pela sua dignidade humana, e a criação de circunstâncias que promovam a existência de indivíduos economicamente aptos na vida económica -, há que conjugar os diversos interesses em confronto, operando-se a concordância prática entre eles[13].
O instituto de exoneração não consubstancia, por isso, nem sequer pode consubstanciar, “um brinde ao incumpridor”[14], pelo que não pode ser concedido sem critérios mínimos de razoabilidade, sob pena de se banalizar o próprio instituto, ao qual todos recorreriam sem qualquer sentido de responsabilidade e sacrifício, pois que não foi manifesto propósito do legislador que tivesse como escopo a desresponsabilização do devedor, nem que o processo judicial possa ser uma porta aberta para atingir semelhante desiderato, tanto mais que, escusado será dizer que o regime da exoneração do passivo restante não deixa de ser particularmente gravoso para os credores, já que a recuperação deste é feita à custa do património dos seus credores.
Para que a exoneração do passivo restante possa ser concedido é necessário que antes do processo de insolvência, durante este e, bem assim, até ao termo do ano subsequente ao trânsito em julgado da decisão que lhe conceda a exoneração do passivo restante (art. 246º, n.º 2 do CIRE), o devedor, pessoa singular, tenha de justificar ser merecedor de uma segunda oportunidade, que lhe permita “começar de novo”, liberto das dívidas que permaneçam insatisfeitas perante os seus credores[15]. Para tanto é necessário que percorra um processo próprio, que tem natureza incidental em relação ao processo de insolvência, onde se destacam, como principais fases: o pedido de exoneração, o despacho liminar ou inicial e o despacho final.
O pedido de concessão do benefício de exoneração tem de ser deduzido pelo devedor, pessoa singular, no requerimento inicial com que se apresenta à insolvência, ou no prazo de dez dias subsequentes à citação quando não seja ele que instaure o processo de insolvência (art. 236º, n.º 1 do CIRE), e terá de ser rejeitado quando apresente um plano de pagamento, salvo quando declare pretender a exoneração do passivo restante na eventualidade do plano de pagamento que apresentou não vir a ser aprovado (art. 254º do CIRE).
Nesse requerimento, o devedor tem de declarar expressamente que preenche os requisitos para que lhe seja concedida a exoneração do passivo restante e se dispõe a observar todas as condições e obrigações decorrentes da sua concessão (n.º 3 do art. 236º).
Perante esse pedido, o juiz, ouvidos os credores e o administrador da insolvência (n.º 4 do art. 236º), profere despacho liminar, pronunciando-se sobre a admissibilidade do pedido e deferindo ou indeferindo liminarmente a pretendida exoneração do passivo restante e, no caso de deferimento liminar, fixando as condições a que a concessão daquele fica sujeito durante o período de cessão (art. 237º). Trata-se de um despacho liminar, reclamando apenas do juiz uma análise e ponderação sumárias acerca da existência ou não de condições de admissibilidade liminar ou de indeferimento liminar de exoneração do passivo restante legalmente especificadas: admitirá liminarmente o pedido quando nenhuma circunstância taxativamente enunciada no art. 238º, n.º 1, como obstáculo ao seu deferimento liminar ocorra; indeferi-lo-á liminarmente quando se verifique alguma circunstância apontadas nesse preceito como causa de indeferimento liminar[16].
As causas de indeferimento liminar do pedido de exoneração encontram-se taxativamente enunciadas no n.º 1 do art. 238º do CIRE e respeitam a quatro grupo diferentes de situações: 1º- apresentação do pedido de exoneração fora do prazo legal para a sua formulação (al. a)); 2º - comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuíram de algum modo ou a agravaram (als. b), d) e e)); 3º - situações ligadas ao passado do insolvente (als. c) e f)); e, finalmente condutas adotadas pelo devedor ao longo do processo de insolvência e que consubstanciam a violação de deveres que lhe são impostos no decurso desse processo (al. g), todos do n.º 1 do art. 238º), as quais, com exceção da primeira situação, são demonstrativas de que o mesmo não é merecedor que lhe seja concedido o benefício em causa, devendo, por isso, o pedido ser liminarmente indeferido.
Frise-se que, apesar das hesitações jurisprudenciais iniciais, é atualmente largamente maioritário o entendimento jurisprudencial de que os fundamentos de indeferimento liminar do n.º 1 do art. 238º, consubstanciam matéria de exceção ao direito do devedor, pessoa singular, que lhe seja concedido o benefício de exoneração, pelo que não é sobre ele que impende o ónus da alegação e da prova de que não se verificam nenhuma das situações de indeferimento liminar do n.º 1, mas antes é sobre os seus credores e o administrador da insolvência que recai o ónus de alegação e de prova de facticidade demonstrativa da verificação de um dos fundamentos de indeferimento liminar previstos numa das alíneas do n.º 1º[17].
O despacho inicial tem, portanto, como único objetivo a aferição da existência de condições mínimas, a ser emitido segundo um juízo de prognose e prova sumária, para a admissão liminar (ou não) do pedido de exoneração do passivo restante e a sujeição do devedor a uma espécie de período de prova (o denominado “período de cessão”) e, em caso de admissão liminar, fixar as obrigações a que, durante esse período, que tem uma duração de três anos a contar do encerramento do processo de insolvência, fica sujeito e em que terá de demonstrar ser merecedor – earns – desse benefício (arts. 239º, 244º e 245º do CIRE). O despacho inicial de deferimento liminar do pedido de exoneração “só promete conceder a exoneração efetiva se o devedor, ao longo de três anos, observar certo comportamento que lhe é imposto. A concessão efetiva da exoneração depende, pois, da verificação dessas condições (…) e é decidida no despacho regulado no art. 244º, se, entretanto, não tiver havido cessação antecipada do procedimento de exoneração, nos termos do art. 243º”[18].
C.2- Rendimento indisponível
Durante o período de cessão, o devedor, pessoa singular, cujo pedido de exoneração do passivo restante foi liminarmente deferido, fica obrigado a cumprir a obrigação principal de entregar o rendimento disponível ao fiduciário (n.º 2 do art. 239º do CIRE) e, bem assim, ao cumprimento de um conjunto de obrigações acessórias elencadas no n.º 4 desse art. 239º, as quais têm por escopo assegurar e controlar o cumprimento pelo fiduciário, pelos credores e pelo tribunal da referida obrigação principal que impende sobre o devedor/insolvente[19].
Ao fim de cada um dos três anos da fidúcia, o fiduciário tem de elaborar e enviar a cada credor e ao juiz um documento com a informação sucinta sobre o seu estado, onde reporte os valores dos rendimentos do devedor, o valor da cessão e o valor do rendimento indisponível, assim como o estado do cumprimento das obrigações fiduciárias pelo devedor (cfr. arts. 61º, n.º 1, 239º, n.º 2 e 240º, n.º 2). Trata-se de uma obrigação funcional do fiduciário, o qual, para que possa elaborar esse relatório, necessita que o devedor lhe faculte informação sobre os seus rendimentos e património, posto que, sem ela o fiduciário não poderá prosseguir os fins essenciais das suas funções, nem sequer elaborar o referido relatório anual. A recolha de tal informação pelo fiduciário destina-se a comprovar os rendimentos e património do devedor e a conformidade das entregas por ele realizadas ou, quando sejam inexistentes, a verificar dos motivos que justificam essa ausência de entregas, nomeadamente, se o devedor tem ou não cumprido com o dever acessório a que alude a al. b), do n.º 4 do art. 239º.
Dir-se-á que, o cumprimento de todos os deveres acessórios previstos no n.º 4 do art. 239º destina-se a fiscalizar escrupulosamente o cumprimento pelo devedor da obrigação principal de cessão do rendimento disponível à fidúcia durante o período de cessão. A falta injustificada pelo devedor de fornecimento dos documentos solicitados pelo fiduciário e/ou pelo tribunal quanto aos rendimentos e ao património daquele indicia ocultação e violação do dever principal que sobre ele impende de ceder o seu rendimento disponível ao fiduciário e, como tal, constitui causa de cessação antecipada do procedimento de exoneração, nos termos do art. 243º, n.ºs 1, al. a) e 3.
Durante o período de cessão a obrigação principal do devedor, conforme antedito, consiste em ceder ao fiduciário todo o rendimento disponível, para que este, com ele satisfaça os credores da insolvência cujos créditos permaneçam por liquidar na sequência da liquidação da massa insolvente. E para que o devedor cumpra com essa obrigação principal é-lhe imposto, conforme acabado de referir, a panóplia de obrigações acessórias enunciadas no n.º 4 do art. 239º, de onde resulta ser propósito do legislador que no processo de insolvência, durante o período de cessão, se tente obter o pagamento de créditos sobre a insolvência[20].
Especifique-se que, por «rendimento disponível» entende-se não apenas o rendimento em sentido técnico recebido pelo devedor, pessoa singular, durante o período de cessão, mas todos os rendimentos e património que lhe advenham durante esse período temporal, qualquer que seja a sua fonte e natureza e que sejam suscetíveis de serem penhorados e que não estejam excluídos pelas als. a) e b) do n.º 3 do art. 239º[21].
O rendimento disponível engloba, portanto, não só o rendimento em sentido técnico (como é o caso dos rendimentos do trabalho, incluindo-se aqui, para além do salário base, todos os complementos salariais, mas também subsídios de férias e de natal) e pensões de reforma e/ou por acidentes de trabalho, mas também indemnizações por acidente de viação, prémios de lotaria, dinheiro depositado e respetivos juros, proventos de títulos de crédito, rendas de casa, etc., e todo e qualquer património de que seja titular ou que lhe advenha, a título oneroso ou gratuito, durante o período de cessão, contanto que esses rendimentos e bens sejam suscetíveis de serem avaliados pecuniariamente e de serem penhorados.
Para além dos créditos previstos na al. a) do n.º 3, do art. 239º do CIRE, excluem-se do «rendimento disponível» do devedor, nos termos da al. b), do mesmo n.º 3, os rendimentos que sejam “razoavelmente necessários para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”, o qual não deve exceder três vezes o salário mínimo nacional, salvo decisão fundamentada do juiz (ponto i), al. b) do n.º 3 do art. 239º).
Essa exclusão, assim como a enunciada no ponto ii) da al. b) do mesmo n.º 3, que manda excluir do conceito de rendimento disponível o rendimento que seja razoavelmente necessário para que o devedor possa exercer a sua atividade profissional, conforme ponderam Carvalho Fernandes e João Labareda[22], decorre da chamada função interna do património, enquanto suporte da vida económica do seu titular, visando o legislador obstar que o devedor/insolvente seja privado dos rendimentos razoavelmente necessários para o seu sustento minimamente digno e do seu agregado familiar e, bem assim, dos necessários ao exercício da sua atividade profissional, sob pena de se colocar em crise a subsistência minimamente digna do devedor e do seu agregado familiar e de se impedir que possa continuar a exercer a sua atividade profissional.
Acontece que o CIRE não enuncia o que se entender como “sustento minimamente digno” do devedor e do seu agregado familiar, limitando-se a recorrer ao identificado conceito indeterminado, vago e aberto e, em sede de limite máximo, a fixar que o montante da exclusão não deve exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional.
Na sequência da jurisprudência do Tribunal Constitucional que faz assentar o limite mínimo do “sustento minimamente digno” do devedor e do seu agregado familiar no princípio da dignidade da pessoa humana e nos princípios constitucionais da igualdade e da proibição do excesso e da adequação, necessidade e proporcionalidade, previstos nos arts. 1º, 13º, n.º 1 e 63º, n.ºs 1 e 3 da CRP, e 25º da Declaração dos Direitos do Homem, de que é concretização o disposto no n.º 3 do art. 738º do CPC, que, em sede executiva, quando o executado não tenha outro rendimento, declara ser impenhorável a parte líquida de vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado que não excedam o montante equivalente a um salário mínimo nacional, é pacífico o entendimento jurisprudencial de que o referido limite mínimo a um sustento minimamente digno do devedor ascende ao salário mínimo nacional[23].
Na verdade, o salário mínimo nacional tem subjacente a condição económica do país, mas representa, segundo o próprio legislador, o estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador, pelo que, embora seja exigível ao devedor/insolvente, pessoa singular, requerente do benefício de exoneração do passivo restante que, durante o período de cessão, racionalize e comprima o seu estilo de vida, por forma a acautelar os interesses dos seus credores, aquele nunca poderá ser privado do rendimento correspondente ao salário mínimo nacional vigente, sob pena de, na perspetiva do próprio legislador, se colocar em crise os limites impostos pela dignidade da pessoa humana, ao privá-lo dos meios económicos necessários à satisfação das suas necessidades básicas, cuja satisfação poderá, inclusivamente, reclamar que, perante as circunstâncias específicas do caso concreto e numa apreciação objetiva e casuística, a fixação de quantia superior a esse valor, como será o caso de o devedor ter necessidades específicas acrescidas, decorrentes de problemas de saúde que o afetem, da sua idade avançada, de ter filhos ou mulher a cargo, etc., que demandem despesas acrescidas[24].
O rendimento equivalente ao salário mínimo nacional constitui assim o limite mínimo de referência abaixo do qual não pode ser fixado o rendimento indisponível devido ao devedor, pessoa singular, declarada insolvente, por ser necessário ao seu sustento minimamente condigno e do seu agregado familiar, mas esse limite mínimo tem de ser complementado com outros elementos específicos do caso concreto, incluindo o número de pessoas que compõem o seu agregado familiar, a idade dessas pessoas, estado de saúde, realidades profissional desses membros e os rendimentos por eles auferidos/recebidos[25].
Quanto aos subsídios de férias e de natal, trata-se de prestações legalmente consagradas, destinadas aos trabalhadores por conta de outrem (e aos beneficiários de pensões de reforma) que visam proporcionar aos seus titulares um acréscimo de rendimentos (equivalente ao valor da retribuição), duas vezes por ano – no período de ferias e no natal –, a fim de que usufruam de forma plena esses dois períodos festivos (de férias e de natal), pelo que, constituindo aqueles um complemento à retribuição ou à pensão normalmente devida/recebida, parte da jurisprudência postula não se vislumbrar como possam corresponder a quantia que deva ser qualificada como garantia dessa mínimo essencial à subsistência condigna, devendo, por isso, integrar o rendimento disponível a entregar ao fiduciário[26].
No entanto, uma outra corrente jurisprudencial defende que os subsídios de férias e de natal podem integrar o rendimento indisponível quando sejam necessários para garantir o sustento minimamente digno, no caso de trabalhadores (ou pensionistas) que aufiram salários (ou pensões) mais baixos, nomeadamente inferiores ao limite da retribuição mensal mínima garantido, “sendo nomeadamente afetos à satisfação de regulares despesas anuais (v.g., óculos graduados, aparelhos dentários, eletrodomésticos de primeira necessidade, tratamentos urgentes), ou mesmo para fazer face a curtos períodos de perda, parcial ou total, ou decréscimo, da habitual remuneração laboral (v.g., baixa médica, menor volume de trabalho – suplementar, extraordinário, noturno, ou noutro regime que justifique um valor hora mais elevado – o, vacatio entre a dispensa de um posto de trabalho e o encontrar outro). Nestes casos, e infelizmente para o trabalhador ou pensionista, os subsídios de férias e de natal não cumprem a função social subjacente à sua consagração e pagamento, antes asseguram (exatamente como os demais rendimentos laborais que aufira com caráter de habitualidade todos os meses) o pagamento das despesas inerentes ao seu sustento básico. Ora, não temos dúvidas de que, nestes casos, os ditos subsídios de férias e de natal deverão ser subtraídos ao rendimento a ceder pelo insolvente ao fiduciário (no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante). Tem-se, ainda, como conforme a maioria da jurisprudência sobre este tema, uma vez que, quando exclui o subsídio de férias e de natal do rendimento autorizado a reter pelo insolvente, o faz assente na ponderação de que, no caso concreto, não se revela imprescindível ao seu «sustento minimamente dignos»”[27].
Quanto a nós, procurando o legislador contrabalançar no instituto da exoneração os interesses em confronto do devedor, pessoa singular, declarada insolvente (libertando-o das dívidas que não obtiveram satisfação no processo de insolvência e no denominado período de cessação) e o dos seus credores de obterem a satisfação dos créditos que detém sobre a insolvência, esse equilíbrio passa por se garantir ao devedor e ao seu agregado familiar «o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno», o que, atento o princípio da dignidade da pessoa humana, erigido pelo legislador constitucional como pedra angular do ordenamento jurídico nacional (art. 1º da CRP) e, bem assim, os princípios constitucionais de proibição do excesso, da adequação, necessidade e proporcionalidade (art. 18, n.º 2 da CRP), exige que lhe seja salvaguardada a retribuição mínima nacional garantida. Esta constitui, tão-só, o limite mínimo de referência, abaixo do qual nunca por nunca poderá ser fixado o rendimento indisponível. O montante concreto do rendimento disponível tem de ser determinado por referência às particularidades do caso concreto, que poderá exigir que tenha de ser fixado em montante superior à retribuição mínima nacional garantida, englobando os subsídios de natal e de férias e/ou outros valores quando tal se mostre indispensável para garantir o sustento minimamente condigo do devedor e do seu agregado familiar.
Na fixação do montante concreto do rendimento indisponível o tribunal tem de sopesar sempre os interesses do devedor e dos credores e ter como princípios intransponíveis: por um lado, a preservação da dignidade do devedor enquanto pessoa humana, que lhe proíbe a fixação de um rendimento insuficiente para garantir o sustento minimamente digno daquele e do seu agregado familiar; por outro, que lhe veda a possibilidade de fixar um rendimento indisponível em montante superior ao estritamente necessário à existência digna do devedor e do seu agregado familiar; e, finalmente, o princípio da igualdade, que o obriga a ter em consideração os critérios jurisprudenciais seguidos em situações semelhantes.
Revertendo ao caso dos autos, apurou-se que os recorrentes nasceram em ../../1962 e ../../1959, e são casados (cfr. als. A e G da facticidade apurada), pelo que contavam, à data da prolação da sentença em que se admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e se fixou o rendimento indisponível, 62 anos e 66 anos de idade.
O recorrente marido, em 2011, foi acometido de doença cardíaca grave, que determinou que fosse submetido a múltiplos tratamentos e intervenções cirúrgicas, e que ditou a impossibilidade definitiva daquele de trabalhar, encontrando-se reformado por invalidez, recebendo uma pensão mensal de 800,00 euros (cfr. alíneas H e B dos factos apurados.
Por sua vez, em 2022, foi diagnosticado à recorrente mulher cancro na mama, em consequência do que foi submetida a intervenção cirúrgica e a diversos tratamentos de radioterapia, mantendo, à data de hoje, acompanhamento regular. E, entretanto, foi-lhe diagnosticada artrite reumatoide, que lhe demanda uma incapacidade permanente global de 60%, mas que se irá agravar com o decorrer do tempo, além de lhe determinar estados de dor intensa, que a incapacitam de fazer as atividades mais básicas da vida diária. A recorrente mulher trabalha por conta de outrem e aufere um vencimento de 870,70 euros mensais (cfr. alíneas I, J, K, L e C dos factos apurados.
Mais se apurou que, em 2024, os recorrentes despenderam cerca de 1.185,00 euros em medicação não comparticipada e suportam despesas com deslocações para consultas, tratamentos e exames (cfr. alíneas M e N dos factos apurados), a que acrescem naturalmente as restantes despesas quotidianas normais, como alimentação, vestuário, eletricidade, água, etc.
Finalmente, apurou-se que os recorrentes não têm qualquer património mobiliário ou imobiliário e residem em casa da filha (cfr. alíneas O e D dos factos apurados), sem que tivessem alegado pagarem qualquer contrapartida àquela a título de renda, como não deixariam de alegar e de juntar recebidos de renda, caso efetivamente pagassem renda à filha, o que tudo impõe que se conclua não pagarem renda de casa.
Ora, se é certo que os recorrentes suportam despesas acrescidas fruto da sua idade e, principalmente, devido às doenças que os afetam, designadamente, na aquisição de medicação não comparticipada e em deslocações para consultas, tratamentos e exames, essas despesas acrescidas ascendem a quantia inferior àquela que teriam de despender no pagamento de renda de casa, caso a pagassem (o que não é o caso) ou tivessem de pagar prestação mensal a instituição bancária pela amortização do empréstimo, e respetivos juros, por empréstimo contraído para aquisição de casa própria, como acontece com a generalidade dos portugueses, os quais, ou têm de pagar renda ao senhorio ou têm de pagar prestação mensal ao banco, tanto mais que, ao longo do ano de 2024, os recorrentes despenderam cerca de 1.185,00 euros em medicação não comparticipada, o que perfaz cerca de 98,75 euros mensais (1.185,00 euros : 12 meses).
No contexto fáctico acabado de referir, salvo o devido respeito por entendimento contrário, nada há a censurar à decisão recorrida que fixou o rendimento indisponível que lhes é devido em dois salários mínimos nacionais, tendo em consideração o valor anual global líquido por eles auferido/recebido, dividido por doze meses, que lhes foi fixado a título de rendimento indisponível, na medida em que esse rendimento assim fixado salvaguarda a cada um deles uma quantia mensal equivalente a uma retribuição mínima nacional garantida ao longo dos doze meses da cada ano civil, a qual se mostra suficiente para que lhes seja assegurado um sustento condigno, ainda que com as despesas acrescidas que resultam da sua idade e das doenças que os afetam, cujas despesas acrescidas, reafirma-se, são inferiores aos que resultariam do pagamento de renda de casa ao senhorio ou de prestação ao banco pelo empréstimo contraído para aquisição de casa própria.
Resulta do que se vem dizendo, nada haver a censurar à sentença recorrida, no segmento em que fixou ao casal dos recorrentes, a título de rendimento indisponível, quantia equivalente a dois salários mínimos nacionais, tendo em conta o valor anual global líquido por eles auferido/recebido, dividido por doze meses, pelo que, na improcedência dos erros de direito que assacam a essa decisão, sem prejuízo das alterações supra identificadas introduzidas ao julgamento de facto realizado pela 1ª Instância, impõe-se julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmar essa decisão. D- Das custas
Nos termos do disposto no art. 527º, n.ºs 1 e 2, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento, quem do recurso tirou proveito. Entende-se que dá causa às custas a parte vencida, na proporção em que o for.
No caso, apesar do recurso ter procedido parcialmente quanto ao julgamento de facto, o certo é que a decisão de mérito se manteve inalterada, pelo que as custas do recurso devem ficar a cargo do recorrente, dado terem acabado por ficar vencidos.
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V- Decisão
Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, sem prejuízo das alterações supra identificadas introduzidas ao julgamento de facto realizado na sentença, acordam em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a decisão de mérito constante da sentença recorrida, no segmento em que fixou ao casal dos recorrentes, a título de rendimento indisponível, a quantia equivalente a dois salários mínimos nacionais, tendo em conta o valor anual global líquido por eles auferido/recebido, dividido por doze meses.
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As custas do recurso ficam a cargo dos recorrentes, dado terem ficado vencidos.
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Notifique.
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Guimarães,
José Alberto Moreira Dias – Relator
Alexandra Maria Viana Parente Lopes – 1ª Adjunta
Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade – 2ª Adjunta
[1] Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, vol. II, 2015, Almedina, págs. 395 e 396. [2] Abílio Neto, “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro de 2014, Ediforum, pág. 734. [3] Acs. STJ., de 17/10/2007, AD, 554º, pág. 461; de 25/11/2008, Proc. 08A3501, in base de dados da DGSI, onde constam todos os acórdãos que se venham a citar sem referência em contrário. [4] Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277. [5] Neste sentido Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado, 5º vol., págs. 142 e 143, onde pondera: “Esta nulidade está em correspondência direta com o 1º período da 2ª alínea do art. 660º. Impõe-se aí ao juiz o dever de resolver todas as questões que as partes tiverem submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras” e onde aponta como exemplo de nulidade por omissão de pronúncia, o seguinte caso retirado da prática judiciária: “Deduzidos embargos a posse judicial com o fundamente de posse baseada em usufruto, se o embargado alegar que este não podia produzir efeitos em relação a ele por não estar registado à data em que adquiriu o prédio e a sentença ou acórdão deixar de conhecer desta questão, verifica-se a nulidade (…). O embargado baseara a sua defesa na falta de registo do usufruto; pusera, portanto, ao tribunal esta questão de direito: se a falta de registo do usufruto tinha como consequência a ineficácia, quanto a ele, da posse do usufrutuário, o tribunal estava obrigado, pelo art. 660º, a apreciar e decidir esta questão; desde que a não decidiu, a sentença era nula”.
Ac. RC. de 22/07/2010, Proc. 202/08.1TBACN-B.C1: “…O juiz deve, antes de tudo, tomar em consideração as conclusões expressas nos articulados, já que a função específica destes é a de fornecer a delimitação nítida da controvérsia. Mas não só; é necessário atender, também aos fundamentos em que essas conclusões assentam, ou, dito de outro modo, às razões e causas de pedir invocadas (…). Em última análise, questão será, pois, tudo o que respeite ao litígio existente entre as partes, no quadro, tanto do pedido e da causa de pedir, como no da defesa por exceção”. [6] Alberto dos Reis, in ob. cit., 5º vol., págs. 55 e 143. [7] No mesmo sentido Ferreira de Almeida, “Direito de Processo Civil”, vol. II, Almedina, 2015, pág. 371, em que reafirma que “questões” são todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas, integrando “esta causa de nulidade a omissão do conhecimento (total ou parcial) do pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão (não a fundamentação jurídica adrede invocada por qualquer das partes). Não confundir, porém, questões com razões, argumentos ou motivos invocados pelas partes para sustentarem e fazerem vingar as suas posições (jurídico processuais); só a omissão da abordagem de uma qualquer questão temática central integra vício invalidante da sentença, que não a falta de consideração de qualquer elemento de retórica argumentativa produzida pelas partes”. [8] Acs. STJ. 30/10/2003, Proc. 03B3024; 04/03/2004, Proc. 04B522; 31/05/2005, Proc. 05B1730; 11/10/2005, Proc. 05B2666; 15/12/2005, Proc. 05B3974. [9] Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, 5º vol., pág. 54. [10] Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., Almedina, págs. 293 a 294, em que postula que: “outras decisões podem revelar-se total ou parcialmente deficientes, obscuras ou contraditórias, resultantes da falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares, da sua natureza ininteligível, equívoca ou imprecisa ou reveladora de incongruências, de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso. Verificado algum dos referidos vícios, para além de serem sujeitos a apreciação oficiosa da Relação esta poderá supri-los a partir dos elementos que constam do processou ou da gravação. (…). Pode ainda revelar-se uma situação que exija a ampliação da matéria de facto, por ter sido omitida dos temas da prova matéria alegada pelas partes que se revele essencial para a resolução do litígio, na medida em que assegurem enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal a quo. Trata-se de uma faculdade que nem sequer está dependente da iniciativa do recorrente, bastando que a Relação se confronte com uma omissão objetiva de factos relevantes. (…). Por outro lado, tal como sucede com as anteriores situações, a anulação da decisão da 1ª instância apenas deve ser decretada se não constarem do processo todos os elementos probatórios relevantes. Ao invés, se estes estiverem acessíveis, a Relação deve proceder à sua apreciação e introduzir na decisão da matéria de facto as modificações que forem consideradas oportunas. Em qualquer dos casos, a anulação do julgamento deve ser sempre uma medida de último recurso, apenas legítima quando de outro modo não for possível superar a situação, por forma a fixar com segurança a matéria de facto provada e não provada, tendo em conta, além do mais, os efeitos negativos que isso determina nos vetores da celeridade e eficácia”. [11] Neste sentido lê-se no Preambulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18/03, que “O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa-fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante». O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não foram integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos (na sequência da nova redação introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11/01, ao art. 237º, al. b) do CIRE) posteriores ao encerramento deste. A efetiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de três anos – designado período da cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento. A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta reta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica”. Alexandre de Soveral Martins, “Um Curso de Direito da Insolvência”, vol. I, 4ª ed., pág. 605 a 607, onde, com total pertinência saliente que: “A declaração de insolvência de pessoas singulares não pode ser trada da mesma forma que a declaração da insolvência de pessoas coletivas ou de outras realidades. As pessoas singulares, por serem pessoas humanas, merecem um tratamento diferente do que é dado às pessoas «coletivas». Sobretudo quando as pessoas humanas não tiveram um comportamento ativo causados da situação de insolvência. O regime da exoneração do passivo restante, surgido entre nós com o CIRE, é apenas aplicável a pessoas singulares e permite, em certa medida, trazer para o processo de insolvência as preocupações referidas. Com efeito, a exoneração do passivo restante vai conduzir à extinção de créditos sobre a insolvência, nos termos do art. 245º, n.º 1, assim facultando ao devedor (e, muitas vezes, à sua família) a possibilidade de não viver o resto da sua existência (ou, pelo menos, até o decurso do prazo de prescrição) sob o peso de dívidas que tornariam impossível o retomar de uma vida financeiramente equilibrada”. Ainda, Marco Carvalho Gonçalves, “Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais”, Almedina, 2023, págs. 613 a 617. [12] Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, abril de 2018, pág. 561. [13] Ac. RG. de 17/12/2019, Proc. 3681/11.6TBBCL-M.G1. [14] Alexandre de Soveral, ob. cit., pág. 607. [15] Luís M. Martins, “Processo de Insolvência”, 2016, 4ª ed., Almedina, pág. 535; Ac. RP. de 06/04/2017, Proc. 1288/12.0TJPRT.P1. [16] Ac. RP. de 06/04/2017, Proc. 1288/12.0TJPRT.P1. [17] Acs. STJ., de 19/04(2012, Proc. 434/11.5TJCBR-D.C1.S1; de 06/07/2011, Proc. 7295/08.TBRG.G1.S1. [18] Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da recuperação de Empresas Anotado”, 3ª ed., Quid Juris, pág. 853. [19] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., págs. 859 e 860. [20] Alexandre de Soveral Martins, ob. cit., pág. 607. [21]Carvalho Fernandes e João Labareda, in ob. cit., págs. 858 e 859, nota 4, págs. 292 e 293, notas 4 e 5. Daí que, quanto aos bens e rendimentos que o devedor adquira na pendência do processo de insolvência e que sejam suscetíveis de serem penhorados, estes integram a massa insolvente (não o rendimento disponível) e, por isso, devem ser apreendidos pelo administrador da insolvência para a massa insolvente; apenas o rendimento e bens suscetíveis de avaliação pecuniária e de penhora que o devedor receba durante o período de cessão (que se inicia com o encerramento do processo de insolvência), período esse que tem a duração imperativa de três anos, integram o rendimento disponível, com exceção do excluído pelo n.º 3, do art. 239º. [22] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit. pág. 859. [23] Acs. RG., de 11/09/2025, Proc. 1139/25.5T8VNF-C.G1; de 08/01/2015, Proc. 1980/14.4TBGMR-E.G1; de 02/03/2023, Proc. 2148/22.1T8GMR.G1; de 14/06/2017, Proc. 1557/16.0T8VNF-D.G1; R.P., de 30/09/2025, Proc. 210/15.8T8STS.P1; RL.; de 18/01/2011, Proc. 1220/10.5YILSB-A.L1-7 e RC, de 04/05/2020, Proc. 2194/19.2T8ACB-B.C1; e de 18/12/2019, Proc. 1658/19.2T8LRA-B.C1. [24] Acs. RG., de 02/03/2023, Proc. 2148/22.1T8GMR.G1; de 02/03/2020, Proc. 4479/22.1T8FNC-C.L1-1, em que se ponderou que residindo o devedor no estrangeiro, o salário mínimo garantido a considerar na fixação do quantitativa necessário ao seu sustento minimamente digno é o salário mínimo garantido do país de residência; RC., de 12/03/2013, Proc. 1254/12.5TBLRA-F.C1; de 22/06/2020, Proc. 6137/18.2T8CBR-B.C1; R.P., de 21/02/2022, Proc. 2083/15.0T8VNG-G.P1; e RL. de 21/03/2023, Proc. 4479/22.1T8FNC-C.L1-1, em que se expende que: “Quando dos devedores casados entre si no regime da comunhão se apresentam conjuntamente à insolvência pedindo a exoneração do passivo restante, terá que ser fixado como rendimento indisponível, pelo menos o valor equivalente a uma retribuição mínima garantida por cada um”. [25] Ac. RG., de 02/03/2023, Proc. 2148/22.1T8GMR.G1, relatado pelo aqui relator. [26] Acs. R.G., de 17/05/2028, Proc. 4074/17.7T8GMR.G1, R.P., de 17/05/2018, Proc. 4074/17.7T8GMR.G1. [27] Acs. R.G., de 22/06/2023, Proc. 1375/22.6T8VNF.G1; de 07/10/2021, Proc. 4576/20.8T8GMR.G1.