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ARRENDAMENTO URBANO
DIREITOS DO ARRENDATÁRIO
OBRAS
INJUNÇÃO EM MATÉRIA DE ARRENDAMENTO
Sumário
(i) A impugnação da decisão de facto não se justifica a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo antes um carácter instrumental face a esta, pelo que o seu conhecimento deve ser rejeitado quando os factos objeto de impugnação não forem suscetíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual inútil. (ii) O procedimento de Injunção em Matéria de Arrendamento (IMA), previsto no Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), constitui o meio processual adequado para o arrendatário exigir ao senhorio a realização de obras de conservação e restauro essenciais para a remoção de obstáculos à fruição do locado. (iii) A retirada da mercadoria pelo arrendatário, motivada pela insalubridade e degradação do espaço comercial arrendado, constitui um ato prudente de mitigação de prejuízos, e não uma declaração tácita de abandono do contrato. Este comportamento não conduz, portanto, à paralisação do direito do arrendatário de exigir as obras necessárias à reposição da plena fruição do imóvel.
Texto Integral
I.
1). AA apresentou, no Balcão do Arrendatário e Senhorio, requerimento de injunção em matéria de arrendamento, em que pediu a notificação de BB para a realização das obras necessárias à fruição do r/c do prédio urbano, composto por r/c e três andares, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., que lhe foi dado em arrendamento pelo requerido, e para o pagamento da indemnização devida “por 18 meses de inatividade comercial e de obrigação de pagamento de rendas.” (sic)
Alegou, em síntese, que: o prédio apresenta, desde janeiro de 2023, deficiências graves de conservação, com humidade excessiva, bolor e deterioração de bens; a Câmara Municipal ..., após vistoria, determinou a realização de obras urgentes, que o senhorio não executou, apesar de notificado; em janeiro de 2024, ocorreu o colapso parcial do edifício, impedindo totalmente a fruição do locado; o senhorio continua a exigir o pagamento da renda, sem realizar qualquer intervenção; a requerente está impedida de exercer a sua atividade comercial desde janeiro de 2023, sofrendo prejuízos económicos significativos.
Apresentou a intimação, datada de 21 de março de 2024, que dirigiu ao Requerido para a realização das mencionadas obras e o relatório da vistoria realizada ao prédio pela Divisão de Procedimentos Urbanísticos do Município ....
Notificado, o Requerido apresentou oposição dizendo, também em síntese, que: o r/c está arrendado à requerente desde 1988, tendo esta ocupado indevidamente o hall de acesso aos andares superiores, que deveria estar livre, conforme cláusula contratual; em janeiro de 2023, o requerido informou a requerente da intenção de arrendar os pisos superiores e pediu-lhe que desocupasse o hall e mantivesse o espaço seguro; a requerente retirou todos os bens do imóvel em fevereiro de 2023, deixando-o vazio e encerrado, e propôs ao senhorio a resolução do contrato mediante o pagamento de € 15 000, proposta que foi recusada; os problemas de humidade surgiram após a desocupação do imóvel, nunca tendo existido durante os anos anteriores de ocupação; a requerente teve sempre acesso ao piso superior, e foi ela quem permitiu a entrada dos serviços da Câmara Municipal para vistoria, sem o conhecimento ou presença do senhorio; as infiltrações foram causadas pela retirada de elementos da cobertura, o que foi levado a cabo por outrem que não o Requerido; o colapso do teto, ocorrido em janeiro de 2024, não se deveu à falta de manutenção, mas sim a danos provocados por obras num prédio contíguo, conforme comunicado à requerente; o senhorio não pode ser responsabilizado por atos que não praticou, nem por danos causados por terceiros ou pela própria requerente; a requerente pretende, na verdade, resolver o contrato e obter uma compensação financeira.
Concluiu que a ação deve ser julgada improcedente e que deve ser absolvido do pedido.
Após a distribuição do requerimento em juízo, foi proferido despacho a: dispensar a realização da audiência prévia; afirmar, em termos tabulares, a verificação dos pressupostos processuais; fixar em € 30 000,01 o valor da causa; agendar a audiência final.
Na sequência, realizou-se a audiência final e foi proferida sentença que: julgou verificada a “exceção de uso indevido do procedimento relativamente ao pedido de condenação do Requerido no pagamento/devolução de 18 meses de renda à Requerente, absolvendo-o da instância” nessa parte; no mais, julgou “procedente o pedido de realização de obras necessárias à fruição do imóvel locado, (…) elencadas no relatório de vistoria de fls. 33-44, nomeadamente as identificadas a fls. 44 desse relatório, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais.”
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2). Inconformado, o Requerido (daqui em diante, Recorrente), interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):
“1. Com o presente recurso pretende-se, para além de ver apreciada a questão da aplicação do direito, impugnar a decisão sobre a matéria factual.
2. A Recorrente considera que alguma matéria fáctica foi indevidamente dada como provada e entende que o direito aplicado ofende os princípios essenciais da Justiça e da Legalidade.
3. Por isso, pelos fundamentos atrás expostos, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, a Recorrente entende que deve ser alterada a matéria fáctica julgada provada, nos seguintes itens. “4.º) A 21 de Março de 2023, e através do requerimento com o nº E/18515/2023ª, a requerente solicitou a realização de diligência de verificação de segurança e salubridade do prédio dado de arrendamento, pelos serviços competentes da Câmara Municipal .... 5.º) Efetuada a diligência, no dia 23/06/2023, a Câmara ... elaborou auto de vistoria que consta de fls. 4v-8 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, onde preconizou a necessidade de realização dos trabalhos seguintes: i. Verificação de pontos de infiltração e respetiva correção; xi. Substituição dos elementos afetados pela humidade (focos de iluminação, rodapés, pavimentos, tetos, armários, vãos e caixilharias interiores); xii. iii. Pintura do teto e paredes afetados; xiii. iv. Limpeza final da obra. 6.º)O prazo concedido para realização das obras preconizadas pelos Serviços Municipais foi de 120 dias. 7.º)Apesar de ter participado neste procedimento da Câmara Municipal, de ter sido devidamente notificado para os seus termos e para os termos da Decisão tomada, o senhorio não realizou qualquer tipo de obras, as apontadas pelos Serviços Camarários ou quaisquer outras obras de manutenção.”
4 - A verdade é que a 23 de junho de 2023, quando os técnicos da Câmara Municipal ... efetuaram uma vistoria ao local para verificação da segurança e salubridade do prédio.
5 - apontaram alguns trabalhos a realizar, nomeadamente a verificação de pontos de infiltração e respetiva correção, substituição dos elementos afetados pela humidade (focos de iluminação, rodapés pavimento, tetos, armários, vãos e caixilharias interiores), pintura de tetos e paredes afetados, limpeza final da obra.
6 - Nunca em momento algum é afirmado que estava em causa a segurança do prédio, ou que a Recorrida estava impedida da fruição do arrendado.
7 - Aliás, das declarações prestadas em sede de audiência e julgamento pela Testemunha da Recorrida CC, técnico da Câmara Municipal ... que realizou a vistoria e respetivo relatório resulta o contrário.
8 - Resultando claro que na data da vistoria realizada a 23/06/2023 o Arrendado, embora padecesse de alguns danos, estava em condições de ser utilizado.
9 - Ficando claro, que na data referida e até a ocorrência de janeiro de 2024 o locado podia ser utilizado.
10 - Pelo que, não estava a Recorrida impedida de o fazer.
11 - Em conformidade com o supra exposto devem os pontos 4.º. a 7.º. dos factos provados ser alterados para a seguinte redação: 4.º) A 21 de Março de 2023, e através do requerimento com o nº E/18515/2023ª, a requerente solicitou a realização de diligência de verificação de segurança e salubridade do prédio dado de arrendamento, pelos serviços competentes da Câmara Municipal ...; 5.º)Efetuada a diligência, no dia 23/06/2023, a Câmara ... elaborou auto de vistoria que consta de fls. 4v-8 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, onde resulta que os danos existentes não colocavam em risco a segurança do prédio, nem estava a requerente impedida de utilizar o locado. Tendo preconizado a realização dos trabalhos seguintes: i. Verificação de pontos de infiltração e respetiva correção; xiv. Substituição dos elementos afetados pela humidade (focos de iluminação, rodapés, pavimentos, tetos, armários, vãos e caixilharias interiores); xv. iii. Pintura do teto e paredes afetados; xvi. iv. Limpeza final da obra. / 6.º)O prazo concedido para realização das obras preconizadas pelos Serviços Municipais foi de 120 dias; / 7.º)Apesar de ter participado neste procedimento da Câmara Municipal, de ter sido devidamente notificado para os seus termos e para os termos da Decisão tomada, o senhorio não realizou qualquer tipo de obras, as apontadas pelos Serviços Camarários ou quaisquer outras obras de manutenção.”
12 - B - 10.º) Em janeiro de 2024, o interior do edifício colapsou e desabou, conforme Relatório de ocorrência da Proteção Civil ..., estando os elementos de construção caídos do pavimento superior para o ... do lado lateral direito; 11.º) O que impede a requerente de usar e fruir do imóvel locado.
13 - Resultou provado, nos factos 8.º e 9.º dos factos provados, que foram retirados elementos da cobertura do edifício onde se situa a fração locada, o que permitiu a entrada de água no edifício, bem como foram abertas portas e janelas dos pisos superiores, o que causou a entrada de água/infiltrações.
14 - Resultou provado que os danos só existiram porque alguém retirou elementos da cobertura e se deslocou ao imóvel para abrir portas e janelas.
15 - Os danos existentes no arrendado, deveram-se, não a uma degradação do mesmo, ou a qualquer falta de manutenção do imóvel, mas a atos intencionalmente provocados que levaram à infiltração de água da chuva no mesmo, o que provocou os danos existentes.
16 - Resultando claro do depoimento quer da testemunha DD, quer da Testemunha EE, que desde logo, que só após a Recorrida ter retirado todos os artigos que vendia e ter abandonado o arrendado é que se começaram a verificar problemas de infiltrações graves. 17 - Não foi refutado pela Recorrida, que foram determinado tipo de ações, que levaram ao degradar do locado
18 - Ações propositadas, com o intuito de provocarem danos avultados no locado.
19 - Até porque, e como resultou provado, em 8.º) dos factos provados, foram retirados elementos da cobertura.
20 – Tais elementos foram propositadamente retirados para permitir a entrada das águas das chuvas.
21 - O que provocou a degradação do prédio, visto o grosso dos elementos da sua construção serem materiais em madeira e tabique.
22 - Em conformidade com o supra exposto devem os pontos 10.º. e 11.º. dos factos provados ser alterados para a seguinte redação: 10.º) Em Janeiro de 2024, cerca de 11 meses após a Requerente ter abandonado o locado, o interior do edifício, por força da retirada de elementos da cobertura e pela abertura de portas e janelas, colapsou, e desabou, conforme Relatório de Ocorrência da Proteção Civil, estando os elementos de construção caídos do pavimento superior para o ... do lado lateral direito; 11.º) Em Janeiro de 2024 a Requerente, por sua vontade, já não utilizava nem fruía do imóvel há cerca de 11 meses.
23 - C - 14.º) Na pendência da ação foi realizada vistoria da Câmara Municipal ..., cujo auto consta de fls. 33 e ss., e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, o qual conclui pela necessidade de realização de obras no locado, e de impossibilidade de fruição do mesmo no estado atual.” este ponto, também, não será de manter e deverá a sua redação ser alterada.
24 - Isto porque, resulta claro, até do próprio relatório de fls. 33 e ss., que o Recorrente tem um processo de licenciamento de obras em curso na Câmara Municipal ....
25 - No próprio Relatório é referido que “Consultadas a plataforma do Município ... verificou-se que se encontra a decorrer um pedido de licenciamento de obras de edificação para o edifício em causa.” 26 - A testemunha DD em depoimento também refere que as obras só ainda não se iniciaram porque aguardam resposta ao processo de licenciamento. 27 - Em conformidade com o exposto deve o ponto 14.º. dos factos provados ser alterado para a seguinte redação: 14.º) Na pendência da ação foi realizada vistoria da Câmara Municipal ..., cujo auto consta de fls. 33 e ss., e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, o qual conclui pela necessidade de realização de obras no locado, obras essas que já são objeto de processo de licenciamento na Câmara Municipal ....
28 – Da matéria fáctica dada como não provada que deve ser alterada para provada:
29 - A) considerou como não provado o tribunal a quo nas alíneas a) e b) que: a) “A Requerente colocou, aquando do inicio do arrendamento uma divisória em madeira com portadas, que separavam o espaço do arrendado do hall de acesso aos andares superiores.”; b) “Como durante anos, os andares superiores estiveram desocupados, a Requerente foi paulatinamente ocupando o hall de acesso aos andares superiores.” 30 - Relativamente a estas alíneas, resulta claramente das fotografias juntas nos relatórios de vistoria juntos a fls. 4-8 e 33-44, a existência da estrutura que suportava as portadas de acesso ao arrendado.
31 - É notório pelas fotografias, que não estavam colocadas quaisquer portadas, pelo que ocupava também a requerente o hall de entrada do ....
32 - A testemunha EE, refere que no seu depoimento que o arrendado era aberto e que não existia qualquer divisória entre o arrendado e o hall de entrada.
33 - Do depoimento da testemunha EE, resulta claro que existia uma divisória entre o arrendado e o hall de entrada do ..., que tal divisória foi retirada o que permitiu que a Recorrida ocupasse o hall de acesso aos andares superiores.
34 - Assim, tendo e consideração o reporte fotográfico existente nos dois autos de vistoria, conjugados com o declarado pela Testemunha EE, dúvidas não restam que existia no arrendado, uma divisória em madeira com portadas que separava o arrendado do hall de entrada e que paulatinamente a Requerente foi ocupando o hall de entrada.
35 - Pelo que, estas alíneas terão que ser transferidas para os factos considerados provados.
36 - B) Na alínea c) dos factos não provados considerou o tribunal: “c) O requerido deu conhecimento à requerente de que estaria em vias de arrendar os pisos superiores, solicitando-lhe que desocupasse o hall de acesso aos andares superiores e alertando-a, que o potencial arrendatário iria realizar obras nos andares superiores, pelo que, deveria a mesma, quando não estivesse no arrendado, fechar as portadas por questões de segurança, uma vez que tinha peças de vestuário expostas.” 37 - Não pode o Recorrente conforma-se com tal.
38 - Pois que, tanto o Recorrente solicitou à Recorrida, bem como o próprio potencial arrendatário também solicitou.
39 - Resulta claro, das declarações prestadas pela testemunha EE, potencial arrendatária dos pisos superiores, que a própria solicitou à Recorrida que fechasse as portadas da divisória do arrendado para o hall de acesso aos pisos superiores, de modo a que os trabalhadores ao circularem não tivessem acesso ao espaço arrendado.
40 - Face ao exposto, também este facto deverá transitar para os factos dados como provados.
41 - C) Na alínea d) dos factos não provados considerou o tribunal: “d) No inicio de fevereiro de 2023, a Requerente retirou todas as mercadorias (peças de vestuário e mobiliário) que tinha no arrendado deixando-o totalmente vazio e fechado, não exercendo qualquer atividade no mesmo.” 42 - Ora não pode o Recorrente conforma-se com tal.
43 – As testemunhas EE e DD afirmam perentoriamente que a Recorrida já tinha abandonado e retirado todos os seus pertences do arrendado em data anterior a ter ocorrido a primeira situação de entrada de humidade.
44 – Sendo as declarações das testemunhas corroboradas, pelo próprio auto de vistoria junto a fls. 4-8, elaborado a 23/06/2023, é notório pela análise das fotografias tiradas que naquela data o arrendado encontrava-se totalmente vazio.
45 - Face ao exposto, também este facto deverá transitar para os factos dados como provados.
46 - D) Nas alínea e) e f) dos factos não provados considerou o tribunal: “e) A requerente em conversa com o Requerido apresentou a seguinte proposta: Entregava o arrendado, resolvendo o contrato de arrendamento, mediante o pagamento pelo Requerido da quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros).”;“f) Tendo o Requerido rejeitado tal proposta, desde logo porque não tinha interesse em resolver o contrato de arrendamento, depois porque o valor proposto era absolutamente irrealista.” 47 - Ora não pode o Recorrente conforma-se com tal.
48 - A verdade é que a proposta foi apresentada ao Recorrente pela Recorrida, quer pessoalmente como aliás se alegou, alegação que não foi contraditada, como através da testemunha EE.
49 - A Recorrida solicitou à Testemunha EE que apresentasse tal proposta ao Recorrente.
50 - Do depoimento da testemunha EE, resulta claro que a Recorrida lhe solicitou para apresentar ao Recorrido a proposta de entregar o arrendado mediante o pagamento da quantia de €15.000,00 (quinze mil euros).
51 - Face ao exposto, também este facto deverá transitar para os factos dados como provados.
52 - E) Na alínea g) dos factos não provados considerou o tribunal: “g) A Requerente ocupou o arrendado desde outubro de 1988 até fevereiro de 2023 e nunca, durante esse período, teve o arrendado qualquer problema de humidade ou infiltrações.” 53 - Tal facto resulta claro, desde logo pelas próprias peças processuais.
54 - A verdade é que nem a própria Recorrida afirma o contrário.
55 - Nunca, em momento algum é referido que já em datas anteriores tinha surgido qualquer problema relacionado com humidades.
56 - Pelo que, também este facto deverá transitar para os factos dados como provado.
57 - F) Nas alínea h), i) e j) dos factos não provados considerou o tribunal: “h) Foi a Requerente a retirar os elementos da cobertura do edifício.”; “i) A Requerente abriu as janelas e as portas dos pisos superiores, o que causou a entrada de água/infiltrações.”; “j) A requerente deixava a porta de entrada do edifício aberta.”
58 - Ora não pode o Recorrente conformar-se com tal.
59 - A Recorrida retirou todos os seus pertences do arrendado, e cerca de um mês antes de ter ocorrido o primeiro episódio de entrada de água.
60 - A Testemunha DD quando se desloca ao arrendado com o Recorrente e sobe aos pisos superiores depara-se com a retirada de elementos da cobertura.
61 - Tais elementos foram retirados por ação humana, não caíram.
62 -A testemunha refere que tinha de se deslocar ao imóvel recorrentemente para fechar portas e janelas e que após fechar as mesmas, passado poucas horas tinha de se deslocar novamente ao arrendado porque já alguém as tinha aberto novamente.
63 - A referida testemunha nunca se deparou com a porta de entrada arrombada.
64 - Pelo que, a mesma era aberta com chave.
65 - E as chaves da porta de entrada só a Recorrida e o Recorrente é que possuíam.
66 - Assim, e de acordo com as regras da experiência comum, se não era o Recorrente que abria as janelas, nem foi o recorrente que retirou os elementos da cobertura, a única pessoa que também possuía as chaves de acesso ao imóvel era a Recorrida.
67 - Pelo que, se não foi o Recorrente, só pode ter sido a Recorrida.
68 - Face ao supra explanado, também estes factos deverão transitar para os factos dados como provados.
69 - G) Na alínea k) dos factos não provados considerou o tribunal: “k) Os danos ocorridos em janeiro de 2024 foram provocados pelos trabalhadores de uma empresa de construção que estavam a fazer uma intervenção no prédio contiguo ao imóvel onde se situa o arrendado.” 70 - Não pode o Recorrente conformar-se com tal.
71 - Tal facto resulta claro, desde logo, das declarações da Testemunha DD Engenheiro Civil, que refere de forma inequívoca que o prédio ao lado sofreu uma intervenção, e a empresa que procedeu à mesma avançou para o lado do prédio do Recorrente o que colocou em causa a estabilidade da estrutura do mesmo. 72 - Pelas declarações da testemunha, ficou claro que quando no prédio contiguo fizeram a intervenção a mesma provocou danos no prédio do Recorrente.
73 - Face ao exposto, também este facto deverá transitar para os factos dados como provados.
74 - Assim, tendo presente tudo quanto exposto, deverá a decisão ser alterada para a seguinte: Atento tudo o exposto e nos termos das disposições legais supra citadas: - julgo a ação totalmente improcedente absolvendo o Requerido do pedido.”
Pediu que, na procedência do recurso, seja revogada a sentença recorrida.
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3). A Requerente (daqui em diante, Recorrida) não respondeu.
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4). O recurso foi admitido como apelação, com subida nos autos e efeito devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
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5). Realizou-se a conferência, previamente à qual foram colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
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II.
1). As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas (art. 608/2, parte final,ex vi do art. 663/2, parte final, do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Ressalvam-se, em qualquer caso, as questões do conhecimento oficioso, que devem ser apreciadas, ainda que sobre as mesmas não tenha recaído anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo Recorrente ou pelo Recorrido, quando o processo contenha os elementos necessários para esse efeito e desde que tenha sido previamente observado o contraditório, para que sejam evitadas decisões-surpresa (art. 3.º/3 do CPC).
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2). Tendo presente o que antecede, as questões que se colocam no presente recurso podem ser sintetizadas nos seguintes termos, seguindo a ordem lógica do seu conhecimento:
1.ª: Erro de julgamento quanto aos enunciados dos pontos 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 10.º, 11.º e 14.º do rol dos factos provados, que devem passar a ter a redação sugerida pelo Recorrente, e quanto aos enunciados que integram o rol dos factos considerados como não provados, os quais devem ser considerados como provados;
2.ª Repercussões da modificação da decisão da matéria de facto no aspeto jurídico da causa.
Como se constata, apesar do genericamente referido nas conclusões 1. e 2., o Recorrente não imputou, de forma autónoma, qualquer erro de direito à sentença recorrida, pelo que a reapreciação do aspeto jurídico da causa está dependente da prévia procedência da impugnação da decisão da matéria de facto, o que será feito, uma vez verificado o pressuposto de que depende, observando os seguintes vetores: existência de um impedimento à fruição do locado; responsabilidade do senhorio (Recorrente) pela realização das obras, enquanto meio de remoção desse impedimento.
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III.
1). Antes de avançarmos com a resposta às questões enunciadas, respigamos a fundamentação de facto da sentença recorrida.
Assim, foram ali considerados como factos provados os seguintes enunciados (transcrição):
“1.º) O Requerido BB é dono e legitimo proprietário do prédio urbano composto por ... e três andares, sito na Rua ..., freguesia ..., inscrito na Matriz predial urbana sob o artigo ...9.
2.º) Por contrato de arrendamento, celebrado a ../../1988, foi o ... do referido prédio dado em arrendamento à Requerente AA.
3.º) Consta do artigo 5.º do contrato de Arrendamento o seguinte: “Sendo a passagem para os andares superiores feita através do ... arrendado, não poderá a arrendatária impedir por qualquer modo esse acesso, podendo a mesma colocar, a expensas suas, uma vedação que torne essa passagem independente”.
4.º) A 21 de Março de 2023, e através do requerimento com o nº E/18515/2023ª, a requerente solicitou a realização de diligência de verificação de segurança e salubridade do prédio dado de arrendamento, pelos serviços competentes da Câmara Municipal ....
5.º) Efetuada a diligência, no dia 23/06/2023, a Câmara ... elaborou auto de vistoria que consta de fls. 4v-8 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, onde preconizou a necessidade de realização dos trabalhos seguintes: i. Verificação de pontos de infiltração e respetiva correção; ii. Substituição dos elementos afetados pela humidade (focos de iluminação, rodapés, pavimentos, tetos, armários, vãos e caixilharias interiores); iii. Pintura do teto e paredes afetados; iv. Limpeza final da obra.
6.º) O prazo concedido para realização das obras preconizadas pelos Serviços Municipais foi de 120 dias.
7.º) Apesar de ter participado neste procedimento da Câmara Municipal, de ter sido devidamente notificado para os seus termos e para os termos da Decisão tomada, o senhorio não realizou qualquer tipo de obras, as apontadas pelos Serviços Camarários ou quaisquer outras obras de manutenção.
8.º) Foram retirados elementos da cobertura do edifício onde se situa a fração locada, o que permitia a entrada de água no edifício.
9.º) Foram abertas janelas e as portas dos pisos superiores, o que causou a entrada de água/infiltrações.
10.º) Em janeiro de 2024, o interior do edifício colapsou e desabou, conforme Relatório de ocorrência da Proteção Civil ..., estando os elementos de construção caídos do pavimento superior para o ... do lado lateral direito.
11.º) O que impede a requerente de usar e fruir do imóvel locado.
12.º) Em meados de janeiro de 2023 surgiu a possibilidade ao Requerido de arrendar os pisos superiores a um interessado.
13.º) Em 21/03/2024, a requerente intimou o requerido para, além do mais, corrigir as deficiências do prédio que têm vindo a colocar a segurança das pessoas e bens do estabelecimento comercial.
14.º) Na pendência da ação foi realizada vistoria da Câmara Municipal ..., cujo auto consta de fls. 33 e ss., e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, o qual conclui pela necessidade de realização de obras no locado, e de impossibilidade de fruição do mesmo no estado atual.”
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2). Foram considerados como factos não provados os seguintes enunciados (transcrição):
“a) A Requerente colocou, aquando do início do arrendamento, uma divisória em madeira com umas portadas, que separavam o espaço do arrendado do hall de acesso aos andares superiores.
b) Como, durante anos, os andares superiores estiveram desocupados, a Requerente foi paulatinamente ocupando o hall de acesso aos andares superiores.
c) O requerido deu conhecimento à requerente de que estaria em vias de arrendar os pisos superiores, solicitando-lhe que desocupasse o hall de acesso aos andares superiores e alertando-a, que o potencial arrendatário iria realizar obras nos andares superiores, pelo que, deveria a mesma, quando não estivesse no arrendado, fechar as portadas por questões de segurança, uma vez que tinha peças de vestuários expostas.
d) No inicio de fevereiro de 2023, a Requerente retirou todas a mercadoria (peças de vestuário e mobiliário) que tinha no arrendado deixando-o totalmente vazio e fechado, não exercendo qualquer atividade no mesmo.
e) A requerente em conversa com o Requerido apresentou a seguinte proposta: Entregava o arrendado, resolvendo o contrato de arrendamento, mediante o pagamento pelo Requerido da quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros).
f) Tendo o Requerido rejeitado tal proposta, desde logo porque não tinha interesse em resolver o contrato de arrendamento, depois porque o valor proposto era absolutamente irrealista.
g) A Requerente ocupou o arrendado desde de outubro de 1988 até fevereiro de 2023 e nunca, durante esse período, teve o arrendado qualquer problema de humidade ou infiltrações.
h) Foi a requerente a retirar os elementos da cobertura do edifício.
i) A requerente abriu as janelas e as portas dos pisos superiores, o que causou a entrada de água/infiltrações.
j) A requerente deixava a porta de entrada do edifício aberta.
k) Os danos ocorridos em janeiro de 2024 foram provocados pelos trabalhadores de uma empresa de construção que estavam a fazer uma intervenção no prédio contiguo ao imóvel onde se situa o arrendado.”
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3). Finalmente, a decisão da matéria de facto foi fundamentada pelo Tribunal de 1.ª instância nos seguintes termos (transcrição):
“O Tribunal formou a sua convicção com base na valoração conjunta e crítica da prova produzida em sede de audiência de julgamento, nos documentos juntos aos autos e nas regras da experiência comum e da lógica.
Assim, foram ouvidas as seguintes testemunhas:
- CC, engenheiro civil, que realizou vistorias ao imóvel a pedido da Câmara Municipal ..., tendo elaborado os relatórios de fls. 4v-8 e 33-44;
- FF, coordenador técnico da Proteção Civil ..., que se deslocou ao locado no dia em que parte do edifício colapsou, elaborando o relatório junto a fls. 9-10.
- EE, doméstica, que pretendia arrendar os andares superiores do imóvel do requerido;
- DD, filho do requerido e engenheiro civil, com conhecimento direto dos factos e do local do arrendado.
Em face desta prova e dos documentos a seguir mencionados, o Tribunal não tem dúvidas sobre a prova dos pontos 1º, 2º e 3º, os quais não foram impugnados. O contrato de arrendamento consta de fls. 11.
No que concerne aos pontos 4º, 5º e 6º, foram relevantes as declarações da testemunha CC, engenheiro civil, que realizou a vistoria ao imóvel a pedido da Câmara Municipal ..., tendo elaborado o relatório de fls. 4v-8.
O requerido não impugnou o ponto 7º, sendo um ponto assente que as obras ainda não foram efetuadas.
No que concerne aos pontos 8º e 9º, ambas as partes aceitam que foram retirados elementos da cobertura do edifício onde se situa a fração locada, o que permitia a entrada água no edifício e abertas janelas e as portas dos pisos superiores, o que causou a entrada de água/infiltrações. O que divide as partes diz respeito a saber se foi ou não a requerente a praticar esses factos (cf. análise dos pontos h), i) e j) não provados).
O ponto 10º resulta da conjugação do depoimento da testemunha FF, coordenador técnico da Proteção Civil ..., que se deslocou ao locado no dia em que parte do edifício colapsou, com o “relatório de ocorrência” junto a fls. 9-10, que o próprio elaborou, onde é possível perceber que ocorreu o colapso de parte interior do edifício, o que é visível nas fotos anexas ao referido relatório.
O ponto 11º resulta da conjugação das declarações das testemunhas CC e FF, conjugados com o relatório de fls. 33-44 e o “relatório de ocorrência” junto a fls. 9-10, que concluem pela impossibilidade de utilização do imóvel, atenta a falta absoluta de condições de segurança.
O ponto 12º resulta do depoimento da testemunha EE, que confirmou ter tentado arrendar os pisos superiores, o que se gorou, pelo facto de parte do edifício ter colapsado.
O ponto 13º resulta do teor da carta junta aos autos a fls. 12v-14.
O ponto 14º resulta do teor do relatório de fls. 33-44, não impugnado.
Os factos não provados assim foram consideradas por, na minha convicção, a prova produzida e colhida nos autos não ter conduzido a diversa qualificação dos mesmos, nomeadamente por as testemunhas indicadas não terem revelado possuir conhecimentos concretos, objetivos e convincentes sobre a referida matéria controvertida e por os demais meios de prova produzidos não terem sido de molde a formar uma certeza jurídica quanto à verificação desses factos.
Com efeito, não foi produzida prova cabal quanto aos pontos a), b), c), d), e), f), g), h), i), j) e k). Apesar de alguns afloramentos nos depoimentos das testemunhas EE e do filho do requerente, DD, a verdade é que estes depoimentos, na ausência de qualquer outra prova que os corrobore, não foram de molde a convencer o Tribunal da sua verificação.
Quantos aos pontos a) e b) nenhuma prova foi produzida.
Também não ficou comprovado o ponto c). Nada nos autos nos indica que a requerente foi intimada a desocupar o hall de acesso aos andares superiores e alertada, que o potencial arrendatário iria realizar obras nos andares superiores. Aliás, nada nos indica que a requerente ocupou esse hall de acesso.
Também ficam dúvidas sobre se a requerida retirou a mercadoria do locado e fevereiro de 2023, apesar das declarações das citadas testemunhas (ponto d).
Relativamente aos pontos e) e f), apesar das declarações da testemunha EE, o Tribunal não ficou convencido de que tivesse ocorrido aquela conversa naqueles termos, não existindo qualquer documento que corrobore essa factualidade.
Nenhuma prova foi produzida quanto ao ponto g), sendo desconhecido se existiam ou não humidades antes de fevereiro de 2023.
Também não ficou de modo nenhum demonstrado que foi a requerida a retirar do locado elementos da cobertura e a deixar portas e janelas abertas (pontos h), i) e j). Apesar de o requerido alegar esse facto na contestação, a verdade é que não existe nenhum indício que nos leve a considerar que a requerente agiu do modo ali descrito.
Também não ficou demonstrado que danos ocorridos em janeiro de 2024 foram provocados pelos trabalhadores de uma empresa de construção que estavam a fazer uma intervenção no prédio contiguo ao imóvel onde se situa o arrendado (ponto k). Só o filho do requerido mencionou esse facto, o qual foi afastado pelas testemunhas CC e FF, que referiram não ter tido conhecimento da realização de obras nas imediações. Aliás, também não foi junto aos autos qualquer documento que corrobore a versão do requerido.”
***
IV.
1).1.1. Como vimos, está em causa a impugnação da decisão da matéria de facto em que se estribou a decisão de procedência da pretensão formulada pela Recorrida.
A este propósito, convém começar por lembrar que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto, consagrado no art. 662 do CPC, eleva o Tribunal da Relação à condição de verdadeiro tribunal de instância ao conferir-lhe competência alargada para reapreciar a decisão proferida na primeira instância, visando um rigoroso apuramento da verdade material e a uma subsequente decisão de mérito justa.
Conforme realçado em STJ 26.11.2024 (417/21.7T8AGH.L1.S1), Cristina Coelho, e em STJ 17.12.2024 (4810/20.4T8LSB.L1.S1), Ricardo Costa, a intervenção da Relação, neste âmbito, assume a natureza de um autêntico recurso de reponderação ou de reexame, sempre que todos os elementos probatórios, designadamente os depoimentos gravados, constem dos autos. O novo julgamento, caso modifique, altere ou adite a decisão recorrida, conduz a uma decisão de substituição. Assim, o Tribunal da Relação detém a mesma amplitude de competências de julgamento que a primeira instância, o que se depreende da remissão operada pelo art. 663/2 para o art. 607/4 e 5. Esta equiparação afasta qualquer subordinação da segunda instância à primeira, rejeitando a ideia de uma mera relação hierárquica. O controlo sobre o julgamento da matéria de facto deve ser exercido de forma autónoma, com uma convicção própria e fundamentada, independente da convicção da primeira instância. O art. 662 do CPC confere à Relação autonomia decisória na reapreciação e modificabilidade da matéria de facto, à luz da qual compete-lhe formar o seu próprio juízo probatório sobre cada facto impugnado, com base nas provas produzidas e nas que considere necessário renovar ou produzir, sob o critério da sua livre e prudente convicção. A Relação não se limita a verificar a existência de um erro manifesto, possuindo uma vasta competência para proferir uma decisão diversa.
Sem prejuízo, mantendo-se em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, o uso, pela Relação dos poderes de alteração da decisão da 1.ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efetuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1.ª Instância. “Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte” (Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto”, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, I, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 609). No sentido de que havendo dúvidas no controlo da matéria de facto pela Relação, deve valer o princípio in dubio pro iudicato, pode ver-se também RE 11.01.2024 (129/21.7T8SLV.E1), relatado por Tomé de Carvalho, com anotação favorável de Miguel Teixeira de Sousa (“Jurisprudência 2024 (13): Matéria de facto; recurso; controlo pela Relação”, disponível em https://blogippc.blogspot.com/), que adjetiva a orientação como pragmática e realista.
***
1).1.2. Assim definidos os termos de apreciação do recurso sobre a matéria de facto, tendo o Recorrente observado o disposto no art. 640/1 do CPC, vejamos a resposta a dar à questão, começando por dizer, em jeito de enquadramento, que os tribunais não lidam só com realidades inequívocas ou que não suscitam controvérsia. De ordinário, lidam com a dúvida e com realidades esbatidas e discutidas. E é aqui que intervêm a sensibilidade, a experiência e o bom senso do julgador.
Como, a propósito, se pode ler em RG 7.12.2023 (573/20.1T8VCH.G1), do presente Relator:
“Ademais, nas situações mais comuns, não existem testemunhas presenciais nem outros meios que permitam uma prova direta, minuciosa e irrefutável do facto; há, assim, que recorrer a prova indireta, através de outros factos (ditos secundários, instrumentais ou probatórios), estes suscetíveis de prova direta, que permitam sustentar juízos de inferência.
A este propósito, Michele Taruffo, La Prueba de los Hechos, Madrid: Trotta, 2005, p. 266, ensina que “[o] grau de apoio que a hipótese sobre o facto pode receber dessa prova depende, então, de dois tipos de fatores: o grau de aceitabilidade que a prova confere à afirmação da existência do facto secundário e o grau de aceitabilidade da inferência que se baseia na premissa constituída por aquela afirmação.” Sobre o primeiro fator, as questões que se colocam são as mesmas que surgem no âmbito da prova direta: a atendibilidade e credibilidade da prova sobre o facto secundário. Já o segundo depende essencialmente, no dizer de Michele Taruffo (idem), “da natureza da regra de inferência que se adote para derivar conclusões aptas a representar elementos de confirmação da hipótese sobre o facto principal a partir das afirmações do facto secundário. Assim, o grau de aceitabilidade da prova não equivale ao grau de confirmação daquela hipótese, nem o contrário; o problema principal é precisamente a fundamentação das inferências desde o facto provado ao facto afirmado na hipótese que se tenta confirmar.”
Por outro lado, sabemos que o nosso sistema processual é enformado pelo princípio da prova livre, nos termos do qual o tribunal aprecia livremente os meios de prova e é livre na atribuição do grau do valor probatório de cada um deles. Isto não significa o arbítrio, posto que a apreciação da prova está sempre vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório. Por outras palavras – as de Paulo Saragoça da Matta (“A Livre Apreciação da Prova”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos fundamentais, Coimbra: Almedina, 2004, p. 254) –, “a liberdade concedida ao julgador (…) não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, mas antes um poder que na sua essência, estrutura e exercício se terá de configurar como um dever, justificado e comunicacional.” Para que o exercício de tal poder seja justificado e comunicacional é pressuposto que todo o caminho da prova, desde a sua admissão ou decisão de recolha até à sua valoração, seja suscetível de autocontrolo por parte do julgador e de controlo por parte da comunidade, incluindo os próprios sujeitos prejudicados com a atividade probatória em questão.
É esta necessidade que explica o disposto no já citado art. 607/4 do CPC que, por imposição constitucional (art. 205/1 da CRP), diz que “[n]a fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.”
(…)
Perante o referido princípio da livre apreciação da prova, o tribunal tem liberdade para, em cada caso, considerar suficiente a prova produzida ou para considerar que a mesma é afinal insuficiente e exigir outro meio de prova de maior valor probatório no sentido de ficar convencido da verdade do facto em discussão.
Coloca-se então uma outra questão: a do standard ou padrão de prova, a qual, por sua vez, está relacionada com a questão do ónus da prova ou da determinação do conceito de dúvida relevante para operar a consequência desse ónus.
Sobre esta última, temos como assente que as regras sobre o ónus da prova são regras de decisão e não regras de distribuição propriamente ditas. Tanto assim é que o princípio da aquisição processual (art. 413 do CPC), associado ao princípio do inquisitório em matéria de prova (art. 411/3 do CPC), podem levar a que os factos essenciais constitutivos da causa de pedir ou de uma exceção resultem provados ainda que a parte onerada não consiga produzir prova apta para esse efeito. A propósito, Luís Filipe Pires de Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 15. Dito de outra forma, ter o ónus da prova significa, sobretudo, determinar qual é a parte que suporta a falta de prova de determinado facto e não tanto saber qual é a parte que está onerada com a prova desse mesmo facto. Sem prejuízo, sempre notamos que, conforme ensinam João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, I, Lisboa: AAFDL, 2022, pp. 487-488), tendencialmente há coincidência entre a parte que suporta o ónus da prova e aquela que tem a iniciativa da prova que, assim, tentará, naturalmente, afastar o risco da falta de prova. Na perspetiva inversa, a contraparte sentir-se-á legitimada a uma inação probatória até à prova do facto pela parte onerada. Assim, escrevem estes autores, “o ónus subjetivo implica o ónus objetivo, e vice-versa.”
Neste sentido, o art. 346 do Código Civil e o art. 414 do CPC estabelecem que, na dúvida, o juiz decida contra a parte onerada com a prova.
É aqui que surge a questão do standard da prova que, no dizer de Luís Filipe Pires de Sousa (Direito Probatório cit., pp. 55-56), “consiste numa regra que indica o nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa considerar-se provada, ou seja, possa ser aceite como verdadeira.” De acordo com Jordi Ferrer Beltrán (“La decisión probatória”, AAVV, Jordi Ferrer Beltrán (coord.), Manual de Razonamiento Probatorio, Ciudad de Mexico: Suprema Corte de Justicia de la Nación, 2022, pp. 397-458, disponível em https://bibliotecadigital.scjn.gob.mx/ [18.11.2023)), os standards de prova são regras que determinam o nível de suficiência probatória para que uma hipótese possa ser considerada provada (ou suficientemente corroborada) para fins de uma decisão sobre os factos. Ao realizarem essa determinação, cumprem três funções da máxima importância no marco do processo de decisão probatória: 1) aportam os critérios imprescindíveis para a justificação da própria decisão, no que diz respeito à suficiência probatória; 2) servem de garantia para as partes, pois permitem que tomem as suas próprias decisões sobre a estratégia probatória e controlem a correção da decisão sobre os factos; 3) distribuem o risco de erro entre as partes.
Não existe entre nós norma que se pronuncie diretamente sobre esta questão. Afastadas as teorias baseadas no cálculo matemático de probabilidades, mais concretamente no Teorema de Bayes, há quem entenda que, em processo civil, opera o standard da probabilidade prevalecente ou “mais provável que não.”
Este standard consubstancia-se, segundo Luís Pires de Sousa (Direito Probatório cit., p. 61), em duas regras fundamentais: “(i) Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais; (ii) Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa.”
Este critério, salienta o autor, não se reporta à probabilidade como frequência estatística, mas sim como grau de confirmação lógica que um enunciado obtém a partir das provas disponíveis. Por outro lado, leva a que, perante provas contraditórias de um mesmo facto (rectius, afirmação de facto), o julgador deva sopesar as probabilidades das diferentes versões para eleger o enunciado que pareça ser relativamente “mais provável”, tendo em conta os meios de prova disponíveis. Dito de outra forma, “deve escolher-se a hipótese que receba apoio relativamente maior dos elementos de prova conjuntamente disponíveis.”
O autor ressalva que “pode acontecer que todas as versões dos factos tenham um nível baixo de apoio probatório e, nesse contexto, escolher a relativamente mais provável pode não ser suficiente para considerar essa versão como verdadeira.” Assim, “para que um enunciado sobre os factos possa ser escolhido como a versão relativamente melhor, é necessário que, além de ser mais provável que as demais versões, tal enunciado em si mesmo seja mais provável que a sua negação. Ou seja, é necessário que a versão positiva de um facto seja em si mesma mais provável que a versão negativa simétrica.”
Michele Taruffo (La Prueba cit., pp. 266-267 e 277-278) propõe uma metodologia de confirmação do grau de probabilidade das hipóteses sobre o facto em que cada prova concreta é valorável numa escala de 0 a 1 (grau particular de confirmação). Por sua vez, a representação da valoração do conjunto da probabilidade da hipótese deve fazer-se numa escala de valores 0 → ∞, sem limite máximo (grau global de confirmação). As duas escalas combinam-se para determinar a probabilidade do facto. Os números são aqui uma forma de expressar relações lógicas e não supõem medidas quantitativas de nada. Um grau de confirmação da hipótese superior a 0,50 deve considerar-se como o limite mínimo abaixo do qual não é razoável aceitar a hipótese como aceitável. Uma só prova clara e segura pode ultrapassar esse limite mínimo, podendo igualmente ser racional aceitar a hipótese confirmada por várias provas ditas indiretas convergentes, por exemplo.
O mesmo autor nota (La Prueba cit., p. 302) que podem existir contextos em que é sensato aplicar a probabilidade lógica prevalecente no seu estado puro, o que equivale a dizer, sem que se exija que a hipótese dotada de grau de probabilidade comparativamente mais alto seja também aceitável segundo o critério que opera quando está em jogo uma só hipótese (≥ 0,51). A aplicação do critério no seu estado puro poderá ser pertinente em casos em que não se exija a demonstração da aceitabilidade plena da hipótese, bastando algum elemento de confirmação suscetível de atribuir um mínimo de credibilidade a tal hipótese.
Temos dúvidas que esta solução seja compatível com o ordenamento jurídico português, em especial com a regra do non liquet consagrada no art. 414 do CPC, como salienta Miguel Teixeira de Sousa (“Standard probatório. Probabilidade prevalecente. Jurisprudência 2019 (100)” e “Por que razão a “probabilidade prevalecente” não é uma medida da prova aceitável no ordenamento probatório português”, disponíveis no Blog do IPCC [19.11.2023). Com efeito, ficando o juiz com dúvida sobre a verdade de um facto, deve julgá-lo como não provado, ainda que entenda que a probabilidade de ele ser verdadeiro é superior a 0,50, o que não sucede se for aplicado o referido critério. De acordo com ele, a referida probabilidade terá como consequência a prova do facto, ainda que subsista um espaço não despiciendo de dúvida, o que equivale à anulação da referida regra do non liquet.
Ainda segundo Miguel Teixeira de Sousa, o referido critério é igualmente “incompatível com a contraprova, que é um meio de impugnação da prova que se destina a tornar o facto provado duvidoso (art. 346 do Código Civil); se o standard da prova começa em mais de 0,50, isso significa que pode verificar-se uma dúvida sobre a verdade do facto até 0,49; disto resulta necessariamente que: (i) Se a contraprova é suficiente para impugnar uma prova bastante, então não é coerente admitir uma medida da prova que deixa até 0,49 de dúvida sobre a verdade do facto; se a contraparte provar que há uma dúvida até 0,49 sobre a verdade do facto, a prova bastante fica impugnada, pelo que, ao contrário do que resulta da medida da probabilidade prevalecente, o facto não pode ser considerado provado; (ii) Se, em contrapartida, a medida da prova admite uma dúvida até 0,49, então a contraprova (que se destina precisamente, não a tornar o facto não provado, mas a apenas torná-lo duvidoso) não tem nenhuma possibilidade de aplicação.”
Finalmente, “é incoerente com o disposto no art. 368/ 1 do CPC; este preceito determina que, para o decretamento de uma providência cautelar, não é necessária a prova do direito acautelado, mas, em todo o caso, é necessária a prova da probabilidade séria desse direito; a aceitação do critério da probabilidade prevalecente teria como consequência absolutamente surpreendente que a medida da prova seria mais exigente na tutela cautelar ("probabilidade séria") do que na tutela definitiva (probabilidade prevalecente).”
No fundo, face ao disposto no art. 414 do CPC, podemos concluir que o legislador português é especialmente exigente quanto ao grau de convicção que é necessário alcançar para que uma afirmação de facto seja considerada como provada, assumindo que é preferível o erro do juiz dar como não provado o que é verdadeiro em detrimento do erro de dar como provado o que é falso, a que conduziria o standard da probabilidade prevalecente. A propósito, colocando esta opção ao nível da política-legislativa, cf. Marina Gascón Abellán, “Sobre la possibilidade de formular estândares de prueba objetivos”, Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho, n.º 28, nov. de 2005, pp. 127-139, disponível em https://doi.org/10.14198/DOXA2005.28 [20.11.2023].
Afigura-se-nos, assim, que o importante nesta sede é que a prova produzida tenha a medida bastante para criar no juiz a convicção de que o facto em discussão corresponde à verdade ontológica. Cabe depois ao juiz deixar transparecer na fundamentação as razões que o levaram a concluir dessa forma. Nesta medida, o standard serve essencialmente como uma orientação para o juiz na produção e na valoração da prova, designadamente na atribuição de um peso específico a cada um dos elementos que a compõem, tudo em ordem à formação da sua convicção. Não é mais que um critério de acordo com o qual deve construir, de forma completa, a justificação da sua decisão sobre a matéria de facto, baseada na solidez epistemológica das provas e dos juízos inferenciais que é necessário fazer para chegar delas até à hipótese de facto.
Como referido em RP 23.02.2023 (30/21.9T8PVZ.P1), relatado por Aristides Rodrigues de Almeida, esta é uma regra que “o julgador, com recurso ao bom senso e ao justo equilíbrio das coisas, há de definir e aplicar caso a caso, em função das exigências de justiça que o mesmo coloca, determinadas a partir de aspetos como o da acessibilidade dos meios de prova, da sua facilidade ou onerosidade, do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados, do relevo do facto na economia da ação.”
Como se salienta no aresto acabado de citar, “a circunstância de um facto ser verosímil ou possível não significa que o mesmo seja verdadeiro, mas o contrário também é correto. A vida diz-nos que por vezes ocorrem factos que eram pouco verosímeis ou não ocorrem factos que além de possíveis eram perfeitamente verosímeis. No entanto, o normal é haver verosimilhança no processo causal gerador de um facto, pelo que a maior verosimilhança do facto torna-o mais provável e a menor verosimilhança menos provável. São as regras da experiência que o determinam. Daí que se possa afirmar a seguinte regra probatória não escrita: quanto mais inverosímil e improvável o facto é, à luz da inteligência que rege os comportamentos humanos e das leis das ciências exatas, normalmente reconduzidas às regras da experiência, mais ou melhor prova deve ser exigida."
Nesta apreciação, há que considerar, quando estejam em causa ações humanas, “que as pessoas movem-se por interesses, motivações, objetivos, propósitos, emoções, impulsos. Estes são resultado do funcionamento do intelecto da pessoa enquanto animal dotado de razão, consciência, identidade pessoal. Nessa medida, perscrutar a realidade de um facto humano ou com intervenção humana é, antes de mais, averiguar a razão que subjaz a essa atuação, que lhe dá origem e a orienta, e, sobretudo, apurar se a mesma é compatível com o quadro de atuação de qualquer outra pessoa nas mesmas circunstâncias. Por isso, um dos elementos decisivos para a formação da convicção do julgador é a verosimilhança dos factos sobre os quais recai a controvérsia, ou seja, a pertinência lógica dos mesmos ao domínio dos acontecimentos humanos que por definição possuem motivações apreensíveis, são norteados pela inteligência humana (no sentido de serem comportamentos orientados para um fim compreensível e delineados por processos intelectualmente aptos, mesmo quando são comportamentos asnáticos) e estão de acordo com o que as regras da experiência nos ensinam ser expectável, corresponder ao devir normal.”
Finalmente, há que dizer, a propósito da prova pessoal, que o processo de formação das memórias é frequentemente condicionado por fatores que as deturpam, ainda que não intencionalmente, podendo levar a relatos não conformes à realidade ontológica. Como se escreve no aresto, “[e]sta circunstância obriga o tribunal a libertar-se da mera literalidade das afirmações e centrar mais a atenção na análise e interpretação da lógica dos acontecimentos relatados, colocados no seu contexto concreto.” A este propósito, Luís Pires de Sousa (Prova Testemunhal, Coimbra: Almedina, 2016, pp. 9-10) explica que “a memória, mais do que um processo de replicação, constitui um processo reconstrutivo. A evocação dos factos não constitui uma reprodução da realidade, mas sim uma reconstrução a partir de informação incompleta que guardamos do ocorrido. (…) A reconstrução é levada a cabo preenchendo as lacunas da memória mediante inferências que resultam do conhecimento geral e de outros eventos, vividos pela testemunha ou dela conhecidos, bem como com reativação e reorganização de diversas informações de modo a criar uma evocação. Neste sentido, a memória constitui uma combinação contínua de informação proveniente do que se viu, de pensamentos, da imaginação, conversações e outras fontes (…)”
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1).1.3. Isto posto, não havendo obstáculo ao conhecimento, vejamos se a impugnação da decisão da matéria de facto feita pelo Recorrente merece provimento, adiantando que, para esse efeito, analisámos toda a prova documental junta aos autos, com especial enfoque nos relatórios das duas vistorias realizadas ao prédio pelos Técnicos da Divisão de Procedimentos Urbanísticos do Município ... (a primeira, no dia 23 de junho de 2023 e, a segunda, no dia 29 de novembro de 2024) e no relatório de ocorrência da Proteção Civil ..., datado de 24 de janeiro de 2024, e procedemos à audição da prova testemunhal produzida na audiência final.
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a) Pontos 4, 5, 6 e 7 do rol dos factos provados
O Recorrente, apesar de impugnar estes quatro pontos, apenas propõe que se adite ao segundo deles o segmento “os danos existentes não colocam em risco a segurança do prédio, nem estava a Recorrida impedida de utilizar o locado.”
Para tanto sustenta que, aquando da vistoria realizada no dia 23 de junho de 2023, os técnicos da Divisão de Procedimentos Urbanísticos do Município ... não concluíram que a segurança do prédio estava comprometida nem que o seu estado obstava a que a Recorrida continuasse a desenvolver nele a sua atividade, o que decorre não apenas do relatório daquela testemunha, como também do testemunho prestado pelo respetivo autor, o técnico CC.
Não há muito a dizer sobre isto: se é certo que no relatório daquela vistoria não é dito que os danos então verificados comprometiam a segurança do prédio ou impediam o seu uso, não o é menos que dele também não resulta o contrário. O próprio relatório destaca que os técnicos que não tiveram acesso aos pisos superiores, o que os impediu de verificarem a causa das infiltrações de água.
Acresce que, como veremos, do depoimento da testemunha DD é possível concluir que, entre março e abril de 2023, houve uma inundação no interior do prédio, a qual teve como causa a entrada de águas pluviais pela cobertura, de onde tinham sido retiradas telhas, o que permite sustentar que já então estava em curso o processo de degradação do interior que veio a culminar com o desabamento ocorrido em janeiro de 2024.
b) Pontos 10 e 11 do rol dos factos provados
Nestes pontos, o Recorrente pretende que se adite, à redação do enunciado do ponto 10, a causa do desabamento (“por força da retirada de elementos da cobertura e pela abertura de portas e janelas”) e que se dê um sentido inteiramente novo ao enunciado do ponto 11 (“Em janeiro de 2024[,] a Requerente, por sua vontade, já não utilizava nem fruía do imóvel há cerca de 11 meses.”
Para tanto, sustenta que dos testemunhos de EE e de DD resulta, a um tempo, que o desabamento do interior do prédio não foi causado por falta de manutenção, mas pela retirada de elementos da cobertura e pela abertura de portas e janelas, e, a outro, que tal ocorreu depois de a Recorrida ter esvaziado o locado e deixado de exercer nele a sua atividade comercial.
Também não há muito a dizer sobre esta parte da impugnação.
Com efeito, o primeiro dos enunciados em questão mais não visa que retratar o estado do prédio em janeiro de 2024, tal como descrito no relatório da Proteção Civil ..., abstraindo da respetiva causa. Não se vê, por isso, razão para aditar à sua redação algo que extravasa a realidade que com ele o julgador quis descrever.
Esse acrescento sempre seria, quanto à causa objetiva da acumulação da água que provocou o desabamento, uma redundância face ao que já consta dos enunciados considerados como provados sob os pontos 8 e 9.
O segundo dos enunciados em questão limita-se a afirmar uma realidade que parece axiomática: se o interior do edifício desabou, ocupando o entulho parte do r/c, então este deixou (objetivamente) de poder ser utilizado para o exercício da atividade comercial que era a causa-função do contrato de arrendamento celebrado entre as partes. Não há, portanto, razão para o alterar.
Por outro lado, aquilo que o Recorrente pretende que o enunciado passe a reproduzir é uma realidade diversa – a de que, já antes dessa data (janeiro de 2024), a Recorrida “não utilizava nem fruía” do r/c do prédio.
Ora, esta realidade, alegada pela Recorrente, consta já do enunciado, considerado como não provado, da alínea d). Não sendo as duas realidades – a dada como provada sob o ponto 11 e a dada como não provada sob a alínea d) – incompatíveis, a impugnação apenas faz sentido quanto à última delas, pelo que será nessa sede apreciada.
c) ponto 14 do rol dos factos provados
A Recorrente, não questionando o acerto do enunciado, que mais não faz que reproduzir o relatório da vistoria realizada no dia 29 de novembro de 2024, pelos Técnicos da Divisão de Procedimentos Urbanísticos do Município ..., pretende, no entanto, que se acrescente que as obras ali preconizadas “já são objeto de processo de licenciamento na Câmara Municipal ....”
Aduz, em suporte, que no próprio relatório é mencionado que está em curso “um pedido de licenciamento de obras de edificação para o edifício em causa” e que a testemunha DD também mencionou esse facto.
Também pouco há a dizer sobre esta parte da impugnação.
Em 1.º lugar, não deixa de causar estranheza que o Recorrente se pretenda eximir à realização das obras pretendida pela Recorrida e, em simultâneo, apresente, junto dos serviços competentes do Município ..., um pedido de licenciamento para a sua realização.
Em 2.º lugar, conforme bem frisou o Tribunal a quo, não foi apresentada qualquer certidão do pedido de licenciamento de tais obras. Ainda que se pudesse suprir a falta de tal documento com recurso aos meios de prova de que o Recorrente se pretende fazer valer, sempre teríamos de dizer que a menção constante do relatório da vistoria não permite concluir se estão em causa obras de reparação dos danos sofridos pelo prédio se obras de reedificação, com uma natureza inovatória. O seu teor literal [“Consultadas as plataformas do Município ... verificou-se que se encontra a decorrer um pedido de licenciamento de obras de edificação para o edifício em causa”] aponta até no segundo sentido. E tão pouco o permite concluir o testemunho de DD que, neste particular, foi evasivo.
Finalmente, seria inútil suprir as apontadas aporias probatórias, posto que a pendência de um pedido de licenciamento das obras é um facto irrelevante para a decisão da causa: o que importa é, grosso modo, saber se o estado do prédio perturba o gozo do locado por parte do arrendatário, justificando a condenação do senhorio na realização de obras. Só a efetiva realização destas satisfaz o interesse prosseguido através da ação.
Nesta parte a impugnação é, portanto, também improcedente.
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d) alíneas a) e b) do rol dos factos não provados
Nestas alíneas está em causa saber se a Recorrida, aquando do início da execução do contrato, separou fisicamente o espaço que lhe foi cedido do hall de acesso aos andares superiores e se, subsequentemente, foi “paulatinamente” ocupando este hall.
Salvo o devido respeito, o Recorrente não explica qual é a utilidade destes enunciados para a decisão a tomar. Nem ela se alcança, sobretudo quando se considere que na ação está em causa apenas o estado do locado e não a eventual ocupação, por parte da inquilina, de uma área superior à que lhe foi cedida, ocupação essa da qual, de resto, o Recorrente não retira qualquer consequência.
Conforme se pode ler em RG 15.12.2016 (86/14.0T8AMR.G1), Maria João Pinto de Matos, a “impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B [do anterior C.P.C.], visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorretamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efetivo objetivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante” (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10…).”
Logo, acrescenta-se, “por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo nº 1024/12…).
Por outras palavra, se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.” (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10... No mesmo sentido, Ac. da RC, de 14.01.2014, Henrique Antunes, Processo nº 6628/10).
Esta orientação é constante na jurisprudência das Relações – inter alia, RC 6.11.2018 (228/17.4T8OHP.C1), Moreira do Carmo, RL 24.09.2020 (35708/19.8YIPRT.L1-2), Inês Moura, e RG 9.01.2025 (372/18.0T8FAF.G1), Maria Amália Santos – e encontra acolhimento na do STJ – inter alia, STJ 17.05.2017 (4111/13.4TBBRG.G1.S1), Fernanda Isabel Pereira, e 28.01.2020 (287.11.3TYVNG.G.P1.S1), Pinto de Almeida.
Nesta parte não haverá, portanto, conhecimento da impugnação.
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e) alínea c) do rol dos factos não provados
O mesmo raciocínio vale para o enunciado da alínea c) do rol dos factos não provados, no qual, na sequência dos dois anteriores, se alude ao facto de o Recorrente ter dado conhecimento à Recorrida da possibilidade de arrendar os pisos superiores do prédio (facto considerado como provado sob o ponto 12) e de a ter alertado para fechar as portadas por razões de segurança. Também este enunciado em nada releva para a decisão da causa, pelo que também em relação a ele não haverá conhecimento da impugnação.
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f) alínea d) rol dos factos não provados
Neste enunciado está em causa a afirmação de que a Recorrida, em fevereiro de 2023, retirou toda a mercadoria (peças de vestuário e mobiliário) que tinha no arrendado, deixando-o vazio e fechado.
Este enunciado tem interesse para a decisão da causa, na medida em que pode evidenciar um comportamento por parte da Recorrida contrário aos ditames da boa-fé e suscetível de levar à paralisação do direito que pretende valer através da ação, em especial quando conjugado com os que estão descritos nas alíneas e) a j) do rol dos factos considerados como não provados, o que justifica o conhecimento da impugnação, a que vamos proceder.
Assim, o Tribunal a quo justificou a não formação de uma convicção positiva escrevendo que os depoimentos das testemunhas que o referiram (EE e DD) não foram corroborados por qualquer outra prova, ficando “dúvidas sobre se a Requerida [rectius, Requerente, aqui Recorrida] retirou a mercadoria do locado em fevereiro de 2023.”
O Recorrente baseia a sua impugnação nos depoimentos das referidas testemunhas. Quid inde?
A testemunha EE, pessoa conhecida de Recorrente e Recorrida e que, inclusive, se apresentou como amiga desta última, afirmou ter ido ao prédio em dezembro de 2022, uma vez que pretendia arrendar o ... andar para a sua habitação. Nessa altura, não viu quaisquer sinais da entrada de água nem de humidade. Aconselhou a Recorrida a proteger as mercadorias que tinha no r/c, uma vez que tencionava fazer obras de melhoramento do ... andar. Passado “um tempo”, voltou ao prédio e constatou que já estava “tudo de vago, já não tinha lá nadinha.”
Quando lhe foi pedido que precisasse o momento em que voltou ao prédio, através da formulação da pergunta “[e]m que altura, mais ou menos? Em dezembro? Em janeiro?”, respondeu “[n]ão, não. Foi mais para a frente um bocado, mas pouco, aquilo foi tudo assim muito rápido, não posso precisar assim, foi muito rápido que ela tirou.”
Já a testemunha DD, filho do Recorrente, afirmou que foi à loja entre março e abril de 2023, alertado pelo pai para o facto de haver uma inundação. Constatou então que havia uma infiltração de água no teto do r/c e, deslocando-se ao piso de cima, que faltava uma parte da cobertura. A loja da Recorrida estava “completamente vazia.”
Estes dois testemunhos não foram contrariados por qualquer outro meio de prova. São coerentes entre si no que tange à afirmação de que o espaço arrendado à Recorrida foi esvaziado, algures entre dezembro de 2022 (primeira deslocação da testemunha EE ao prédio) e março / abril de 2023 (deslocação da testemunha DD ao prédio). E encontram arrimo no relatório da vistoria realizada pelos técnicos da Divisão de Procedimentos Urbanísticos no dia 20 de junho de 2023 e, bem assim, nas fotografias colhidas para o instruir, nas quais é possível constatar que no r/c do prédio não estavam expostas peças de vestuário, como é próprio de um estabelecimento comercial, nem existia mobiliário de apoio à atividade.
Neste conspecto, afigura-se-nos que a prova produzida permite, com segurança, formar uma convicção positiva quanto a parte do enunciado em questão, com ressalva do mês exato em que o facto relatado ocorreu, atenta a imprecisão notada em ambos os testemunhos quanto ao momento em que o constataram.
Assim, procedendo parcialmente a impugnação, será considerado como provado que “após o referido no facto do ponto 12 e março de 2023, a Requerente retirou toda a mercadoria (vestuário e peças de mobiliário) que tinha no espaço arrendado, deixando nele apenas algumas peças de mobiliário dispersas; desde então, não voltou a exercer ali a sua atividade comercial.”
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g) alíneas e) e f) do rol dos factos não provados
Nestas alíneas está em causa a apresentação, pela Recorrida, de uma proposta de revogação – e não resolução, como foi escrito – do contrato de arrendamento e a sua rejeição pelo Recorrente.
Para justificar a não formação de uma convicção positiva, o Tribunal a quo escreveu que, apesar do testemunho da já referida EE, “não ficou convencido de que tivesse ocorrido aquela conversa, naqueles termos, não existindo qualquer documento que corrobore essa factualidade.”
O Recorrente impugna esta decisão com fundamento no testemunho da referida EE.
Vejamos.
A identificada testemunha referiu que, quando se deslocou ao prédio, em dezembro de 2022, a Recorrida lhe pediu que transmitisse ao Recorrente uma proposta de revogação do contrato, mediante o pagamento de três mil contos. Acrescentou que fez essa diligência, tendo-lhe o Recorrente respondido que iria analisar a proposta. Dois a três dias depois, a Recorrida disse-lhe que já não queria três mil contos, mas cinco mil contos.
O contexto em que surgiu a conversa não foi minimamente descrito, dando-se quase a impressão de que a mesma surgiu do nada. Ademais, não se concebe, à luz das regras do id quod plerumque accidit, a razão pela qual a Recorrida optou por fazer a proposta ao Recorrente por intermédio de uma pessoa alheia à relação contratual, em lugar de o contactar diretamente. Como também não se concebe qualquer razão plausível para a Recorrida, sem obter uma resposta do Recorrente, aumentar as suas exigências.
Tudo isto ponderado, notando que não existe qualquer elemento de prova que confira arrimo a esta parte do depoimento da testemunha da identificada EE, deve prevalecer a leitura do Tribunal a quo, improcedendo, nesta parte, a impugnação.
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h) alínea g) do rol dos factos não provados
Nesta alínea afirma-se que não foram registados quaisquer problemas de humidade no prédio entre outubro de 1988, quando a Recorrida ocupou r/c do prédio, e fevereiro de 2023, quando retirou as mercadorias do seu comércio.
Estamos, mais uma vez, perante um enunciado que, em si mesmo, não tem qualquer interesse para a decisão da causa, pelo que valem as considerações feitas a propósito da impugnação das alíneas a) a c) do rol dos factos não provados.
Com efeito, o que releva é – e é apenas – o estado atual do prédio e não o seu estado pretérito. Dizendo de outra forma, aquilo que importa apurar é, a par da causa da patologia cuja correção a Recorrida pretende, o momento em que a mesma surgiu.
Neste particular, prevalece o que já está dado como adquirido nos enunciados dos pontos 4, 5 e 12 do rol dos factos provados – ou seja, que a Recorrida apenas se queixou das infiltrações de água em março de 2023, quando pediu que o Município ... verificasse as condições de segurança e salubridade do prédio, o que veio a suceder, pela primeira vez, no dia 23 de junho do mesmo ano, constatando-se então a existência de “pontos de infiltração”, e que, mais tarde, em janeiro de 2024, em consequência das águas que se infiltraram, o interior do edifício colapsou e desabou.
O enunciado em questão apresenta-se, assim, como meramente instrumental dos que constam dos pontos h) a j) do rol dos factos não provados, que vamos analisar a seguir.
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i) alíneas h) a j) do rol dos factos não provados
Nestes enunciados está em causa, grosso modo, a afirmação de que foi a Recorrida quem retirou os elementos da cobertura do edifício e quem passou a abrir as janelas e portas dos pisos superiores, supõe-se que de modo a provocar as infiltrações de água de que se veio a queixar.
O Tribunal a quo justificou a não formação de uma convicção positiva com base na ausência de qualquer indício do facto.
O Recorrente sustenta a sua tese no depoimento da testemunha DD.
Esta testemunha, filho do Recorrente e engenheiro civil de profissão, afirmou, com interesse para esta parte da impugnação, que foi por diversas vezes alertado, durante a noite, para o facto de, quer a porta de entrada, quer as janelas, do prédio estarem abertas, deslocando-se ali para as fechar. Em algumas dessas ocasiões, sucedeu que teve de lá voltar, pois, entretanto, alguém as havia aberto de novo. Acrescentou, como já vimos, que em março / abril de 2023 foi ao prédio, por causa de uma inundação, constatando então que tinham sido retiradas as telhas do lado direito da cobertura e que as águas pluviais estavam a entrar por esse local, infiltrando-se no interior do prédio, construído em tapume.
São evidentes as insuficiências deste testemunho para suportar a tese do Recorrente.
Em 1.º lugar, a testemunha não concretizou em que período temporal teve de se deslocar ao prédio para fechar portas e janelas.
Em 2.º lugar, deixando perceber que as infiltrações resultaram da retirada de telhas do lado direito da cobertura, facto considerado como provado sob o ponto 8, a testemunha não especificou se tal se deveu a uma ação humana ou se foi antes o resultado da degradação dos materiais (v. g., telhas partidas ou fissuradas) ou das condições climatéricas (v. g., telhas arrancadas pelo vento). Foi mesmo evasiva quando questionada sobre se tinham sido realizados trabalhos de manutenção do telhado, limitando-se a dizer, a propósito, que nunca antes tinham ocorrido quaisquer problemas de infiltrações no prédio.
Afirmar, com base neste depoimento, que foi a Recorrida quem retirou as telhas seria, portanto, no mínimo, temerário. Afirmar que foi a Recorrida quem abriu portas e janelas redundaria numa inutilidade, posto que a testemunha não estabeleceu qualquer nexo de causalidade entre o facto e as infiltrações de água que estiveram na génese do desabamento do interior do edifício.
Nesta parte, a impugnação é improcedente.
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j) alínea k) do rol dos factos não provados
Afirma-se nesta alínea que “[o]s danos ocorridos em janeiro de 2024 [o desabamento do interior do edifício] foram provocados pelos trabalhadores de uma empresa de construção que estavam a fazer uma intervenção no prédio contíguo.”
O Tribunal a quo fundou a não formação de uma convicção positiva nos depoimentos das testemunhas CC – que como vimos é o técnico da Divisão de Procedimentos Urbanísticos do Município ... que elaborou os relatórios das vistorias de 23 de junho de 2023 e de 29 de novembro de 2024 – e de FF, coordenador técnico da Proteção Civil ... que elaborou o relatório de ocorrência datado de 24 de janeiro de 2024.
O Recorrente sustenta a sua tese na parte do depoimento da testemunha DD em é afirmada a realização de uma intervenção num prédio “ao lado”, também propriedade do Recorrente, que provou “danos” e que, depois, houve uma outra intervenção, supõe-se que levada a cabo por terceiros, que “vieram para cá da parede meeira.”
Este segmento do depoimento da testemunha não identifica, porém, o prédio (ou prédios?) sobre que recaiu a dita intervenção nem a descreve minimamente.
Mesmo a admitir-se que a testemunha quis estabelecer um nexo entre ela e o desabamento do interior do prédio dos autos, contrariando assim a tese de que este foi provocado pela acumulação das águas pluviais que se infiltraram pela cobertura depois de retirada parte das telhas, o que não temos como certo, atenta a forma titubeante como depôs, sempre diremos que tal nexo não foi minimamente explicado. É, pelo exposto, demasiado pouco para permitir a formação de uma convicção positiva quanto a este enunciado, pelo que a decisão do Tribunal a quo não merece qualquer reparo.
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1).2. Concluída a resposta à 1.ª questão, ficamos com a seguinte fundamentação de facto, devidamente organizada, como se impõe, em conformidade com a realidade histórica que é suposto retratar[1], destacando (itálico) o enunciado aditado em consequência da procedência parcial da impugnação:
1 (1.º) O Requerido BB é dono e legitimo proprietário do prédio urbano composto por ... e três andares, sito na Rua ..., freguesia ..., inscrito na Matriz predial urbana sob o artigo ...9.
2 (2.º) Por contrato de arrendamento, celebrado a ../../1988, foi o ... do referido prédio dado em arrendamento à Requerente AA.
3 (3.º) Consta do artigo 5.º do contrato de Arrendamento o seguinte: “Sendo a passagem para os andares superiores feita através do ... arrendado, não poderá a arrendatária impedir por qualquer modo esse acesso, podendo a mesma colocar, a expensas suas, uma vedação que torne essa passagem independente”.
4 (8.º) Foram retirados elementos da cobertura do edifício onde se situa a fração locada, o que permitia a entrada de água no edifício.
5 (9.º) Foram abertas janelas e as portas dos pisos superiores, o que causou a entrada de água/infiltrações.
6 (12.º) Em meados de janeiro de 2023 surgiu a possibilidade ao Requerido de arrendar os pisos superiores a um interessado. 7 Após o referido no facto do ponto anterior (12.º) e março de 2023, a Requerente retirou toda a mercadoria (vestuário e peças de mobiliário) que tinha no espaço arrendado, deixando nele apenas algumas peças de mobiliário dispersas; desde então, não voltou a exercer ali a sua atividade comercial
8 (4.º) A 21 de Março de 2023, e através do requerimento com o nº E/18515/2023ª, a requerente solicitou a realização de diligência de verificação de segurança e salubridade do prédio dado de arrendamento, pelos serviços competentes da Câmara Municipal ....
9 (5.º) efetuada a diligência, no dia 23/06/2023, a Câmara ... elaborou auto de vistoria que consta de fls. 4v-8 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, onde preconizou a necessidade de realização dos trabalhos seguintes: i. Verificação de pontos de infiltração e respetiva correção; ii. Substituição dos elementos afetados pela humidade (focos de iluminação, rodapés, pavimentos, tetos, armários, vãos e caixilharias interiores); iii. Pintura do teto e paredes afetados; iv. Limpeza final da obra.
10 (6.º) O prazo concedido para realização das obras preconizadas pelos Serviços Municipais foi de 120 dias.
11 (7.º) Apesar de ter participado neste procedimento da Câmara Municipal, de ter sido devidamente notificado para os seus termos e para os termos da Decisão tomada, o senhorio não realizou qualquer tipo de obras, as apontadas pelos Serviços Camarários ou quaisquer outras obras de manutenção.
12 (10.º) Em janeiro de 2024, o interior do edifício colapsou e desabou, conforme Relatório de ocorrência da Proteção Civil ..., estando os elementos de construção caídos do pavimento superior para o ... do lado lateral direito.
13 (11.º) O que impede a requerente de usar e fruir do imóvel locado.
14 (13.º) Em 21/03/2024, a requerente intimou o requerido para, além do mais, corrigir as deficiências do prédio que têm vindo a colocar a segurança das pessoas e bens do estabelecimento comercial.
15 (14.º) Na pendência da ação foi realizada vistoria da Câmara Municipal ..., cujo auto consta de fls. 33 e ss., e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, o qual conclui pela necessidade de realização de obras no locado, e de impossibilidade de fruição do mesmo no estado atual.”
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2).1. Como resulta do Relatório, a Recorrida apresentou uma injunção em matéria de arrendamento (IMA) com o propósito de obter um título que lhe permita compelir, em sede executiva, o Recorrente à realização de obras no prédio cujo r/c lhe cedeu, mediante o pagamento de uma renda mensal, para a instalação de uma loja de pronto-a-vestir.
A IMA foi introduzida pelo DL n.º 34/2021, de 1.05, diploma que, ao aprovar o Regime dos Procedimentos Especiais em Matéria de Arrendamento (RPEMA), veio materializar e dar exequibilidade às figuras jurídicas introduzidas pelas Leis n.º 12/2019 e n.º 13/2019, ambas de 12.02, no seio do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU).
Mais concretamente, a Lei n.º 12/2019 (Assédio no Arrendamento) aditou o art. 13-B ao NRAU, o qual confere ao arrendatário o direito de intimar o senhorio a praticar ou omitir determinados atos. Esta intimação visa, essencialmente, a cessação de atos suscetíveis de causar prejuízo para a saúde do arrendatário ou de pessoas em economia comum, bem como a correção de situações que impeçam a fruição ou o acesso ao locado (alíneas a) a c) do n.º 1). Se o senhorio não demonstrar a adoção das medidas corretivas no prazo de 30 dias após a receção da intimação, ou se a situação se mantiver injustificadamente, abre-se a via para o requerimento de injunção (n.ºs 4 e 5, alínea a)).
A Lei n.º 13/2019 (Reforço dos Direitos do Arrendatário), por sua vez, aditou o art. 15 -T ao NRAU, o qual contém o catálogo completo e taxativo dos direitos que a IMA, enquanto meio processual, visa tutelar (alíneas a) a e) do n.º 1).
Assim, o âmbito de aplicação da IMA, conforme delimitado no NRAU, distribui-se por duas categorias distintas.
Em primeiro lugar, a execução de obras em substituição do senhorio (alíneas a) e b)). Neste domínio, a IMA constitui um meio para exigir o pagamento do valor em dívida por obras que o arrendatário se viu compelido a realizar em substituição do senhorio, com vista à correção de más condições de segurança, salubridade ou conservação (n.º 2 do art. 89 do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação – RJUE), e por obras para a restituição das características de desempenho e segurança funcional de edifícios ou frações, emitidas pela entidade gestora da reabilitação urbana (art. 55 do Regime Jurídico da Reabilitação Urbana – RJRU);
Em segundo lugar, as alíneas c) a e) remetem para os casos de execução das intimações dirigidas pelo arrendatário ao senhorio, nos termos das alíneas a) a c) do art. 13-B/1, com vista à: cessação da produção de ruído fora dos limites legalmente estabelecidos ou de outros atos, praticados pelo senhorio ou por interposta pessoa, suscetíveis de causar prejuízo para a saúde do arrendatário e a das pessoas que com este residam legitimamente no locado; correção de deficiências do locado ou das partes comuns do respetivo edifício que constituam risco grave para a saúde ou segurança de pessoas e bens; e correção de outras situações que impeçam a fruição do locado, o acesso ao mesmo ou a serviços essenciais, como as ligações às redes de água, eletricidade, gás ou esgoto.
A procedência destas injunções carece da junção da intimação e de auto emitido pela câmara municipal competente ou pela autoridade policial, que confirme a situação visada.
O RPEMA, que constitui o cerne do DL n.º 34/2021, estabelece as normas de tramitação, centralizando o procedimento no Serviço de Injunção em Matéria de Arrendamento (SIMA), entidade com competência em todo o território nacional.
Assim, o requerimento deve ser apresentado no SIMA, contendo a exposição dos factos, a formulação do pedido (nos termos do art. 15-T do NRAU) e o comprovativo do pagamento da taxa de justiça. O SIMA notifica o senhorio por carta registada com aviso de receção para, no prazo de quinze dias, (i) demonstrar a execução da intimação e restituir a taxa de justiça, ou (ii) deduzir oposição. A notificação alerta para o facto de a omissão destas condutas implicar a imediata constituição do título executivo.
Se o senhorio for notificado e não deduzir oposição no prazo de 15 dias, nem demonstrar a realização da obra, o requerimento de injunção obtém a fórmula executória.
Neste cenário, o título executivo pode dar origem a uma execução para prestação de facto positivo – a realização das obras – cujos termos são definidos pelo auto da câmara municipal previsto no n.º 3 do artigo 13.º-B do NRAU (art. 12/1 do RPEMA). Sem prejuízo, o título assim formado também habilita o arrendatário a proceder às obras no locado ou nas partes comuns do edifício, com o propósito de executar a intimação que não foi cumprida pelo senhorio (art. 12/2 do RPEMA). Significa isto que este mecanismo permite ao arrendatário avançar com a obra e, posteriormente, utilizar a via executiva para o pagamento do custo da intervenção.
Caso seja deduzida oposição, o procedimento transita para o tribunal judicial competente, assumindo a forma de ação declarativa, cuja tramitação é adaptada do regime aplicável ao Procedimento Especial de Despejo.
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2).2. Resulta do que antecede que a IMA pode ser usada para compelir o senhorio a realizar obras que se enquadrem nos seguintes cenários, após o arrendatário o ter previamente intimado:
Correção de deficiências causadoras de risco grave: visa a correção de falhas no imóvel (ou nas partes comuns) que ponham em risco grave a saúde ou a segurança de pessoas ou bens. Esta é focada na segurança física do arrendatário.
Correção de impedimento da fruição do locado: permite obrigar o senhorio a realizar as obras necessárias para garantir a normal utilização do imóvel, ainda que o problema não represente um risco grave. Aplica-se a avarias ou deficiências que comprometem o uso pleno do locado (v. g., problemas sérios e persistentes de infiltração que tornam um quarto inabitável).
Correção de Outras Situações: inclui a correção de situações que impeçam o acesso ao locado ou a serviços essenciais cuja manutenção caiba ao senhorio.
Foi neste enquadramento legal que a sentença recorrida, proferida na sequência da conversão do procedimento de injunção em ação declarativa, condenou o Recorrente a realizar as obras que considerou serem necessárias para remover o impedimento à fruição do locado por parte da Recorrida que resulta do facto de o interior do edifício ter desabado sobre o piso do r/c.
Sobre este ponto, convém lembrar que do art. 1031, b), do Código Civil resulta que ao senhorio cumpre assegurar ao arrendatário o gozo da coisa arrendada para os fins do contrato, o que não se resume ao pati fundamental de não perturbar o uso ou fruição do locatário (cf. art. 1037/1); desdobra-se ainda em prestações positivas pontuais ou específicas que têm de ser realizadas pelo senhorio para que o gozo da coisa pelo arrendatário se possa materializar nos termos contratuais, as quais emergem de uma responsabilidade que é essencialmente objetiva.
Entre essas prestações positivas inclui-se a de realizar as reparações que o arrendado venha a necessitar ao longo da execução do contrato, como decorre do art. 1036. A propósito, vide Pires de Lima / Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 366; Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, Coimbra: Almedina, 1996, pp. 375 – 376; e Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, III, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2005, p. 314.
O arrendatário deve, em princípio, pedir ao senhorio as reparações, já que, de harmonia com a alínea h) do art. 1038, é sua obrigação avisá-lo imediatamente sempre que tenha conhecimento de vícios da coisa ou saiba que a ameaça algum perigo.
Se o senhorio não fizer as obras a que está obrigado, o arrendatário pode exigir a sua realização, recorrendo mesmo à ação de cumprimento (art. 817). Em alguns casos pode realizá-las, substituindo-se ao senhorio, tendo direito ao reembolso. É o que sucede, desde logo, nas hipóteses previstas no art. 1036, onde se prevê um mecanismo de substituição do arrendatário ao senhorio nos casos de mora deste e desde que a realização das reparações se não compadeça com as delongas do procedimento judicial. Estamos aqui perante aquilo que Pinto Furtado (Manual…, p. 381) chama despesas de urgente reparação. Independentemente da mora do senhorio, o arrendatário pode fazer as reparações, também com direito a reembolso, se a urgência se não compadecer com qualquer dilação, contanto que avise o senhorio (art. 1036/2). A estas, Pinto Furtado (ibidem) chama despesas de urgentíssima reparação.
O preceito do art. 1036 não esclarece, todavia, quais as reparações que o senhorio está obrigado a realizar: limita-se a dizer que as reparações são da responsabilidade do senhorio e a estabelecer o condicionalismo em que o arrendatário pode efetuá-las, com direito a reembolso, substituindo-se ao senhorio.
O legislador deu mais precisão ao tema, primeiro, através da Lei n.º 46/85, de 20.09, e depois, sucessivamente, do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15.10, e do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27.02.
O RAU, cujo esquema em matéria de obras era, grosso modo, decalcado da Lei n.º 46/85, distinguia as obras de conservação das obras de beneficiação e, dentro das primeiras, subdistinguia as de conservação ordinária e as de conservação extraordinária (art. 11/1).
As obras de conservação ordinária estavam enumeradas no art. 11. Eram elas as seguintes: s reparação e limpeza geral do prédio e suas dependências; as impostas pela Administração Pública, nos termos da lei geral ou local aplicável, e que visassem conferir ao prédio as características apresentadas aquando da concessão da licença de utilização; em geral, as obras destinadas a manter o prédio nas condições requeridas pelo fim do contrato e existentes à data da sua celebração.
Estas obras estavam “a cargo do senhorio, sem prejuízo do disposto no art. 1043 do Código Civil e nos arts. 4.º e 120 do [mesmo] diploma”, conforme dispunha o art. 12. A propósito, Pires de Lima / Antunes Varela (Código…, p. 514) escreviam que é esta “a solução mais conforme com a obrigação básica referida na alínea b) do art. 1031 do Código Civil.”
Da ressalva dos arts. 4.º do RAU e 1043 do Código Civil resultava que não constituíam despesas a cargo do senhorio, mas do arrendatário, as necessárias à manutenção e restituição do prédio ao estado em que se encontrava aquando da sua entrega ao arrendatário, ressalvadas as “deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato” (art. 1043/1) e as pequenas deteriorações que se tornassem necessárias para assegurar o conforto ou comodidade e que o arrendatário estava obrigado a reparar antes da restituição do prédio, salvo convenção em contrário (art. 4.º do RAU).
As obras de conservação extraordinária eram as ocasionadas por defeito de construção do prédio ou por caso fortuito ou de força maior, e, em geral, as que não sendo imputáveis a ações ou omissões ilícitas do senhorio, ultrapassassem, no ano em que eram necessárias, dois terços do rendimento líquido do prédio (art. ...).
Finalmente, as obras de beneficiação eram todas as que não se enquadrassem no conceito de obras de conservação – ou seja, o conceito de obras de reparação era residual.
Tanto as obras de conservação extraordinária como as de beneficiação ficavam a cargo do senhorio, mas apenas quando, “nos termos das leis administrativas em vigor, a sua execução lhe [fosse] ordenada pela câmara municipal competente ou quando [houvesse] acordo escrito das partes no sentido da sua realização, com discriminação das obras a efetuar (art. 13/1 do RAU) (cf. Ac. da RP de 4.12.2000, 0051266). Na vigência do RAU, a doutrina entendia que nos arrendamentos para habitação não era possível acordar que as obras de conservação fossem suportadas pelos arrendatários. Em tais arrendamentos vigorava integralmente o art. 1030 do Código Civil, nos termos do qual os encargos com a coisa locada, não obstante estipulação em contrário, recaem sobre o locador, a não ser que a lei os imponha ao locatário. A expressão “sem embargo de estipulação em contrário” contida no texto legal era interpretada como sinónimo da expressão “mesmo que o contrário tenha sido acordado”. Esta interpretação era a mais consentânea com o teor do art. 12, mas também com os arts. 13 e 40 do RAU. Cf. Pires de Lima / Antunes Varela, Código…, pp. 514 e 556; António Sequeira Ribeiro, “Renda e Encargos no Contrato de Arrendamento Urbano”, AAVV, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, III, Almedina: Coimbra, 2002, p. 149.
O NRAU, cujo art. 60/1 revogou o RAU, introduziu nova redação ao art. 1074 do Código Civil, cujo n.º 1 passou a dizer que ao senhorio cabe executar todas as obras de conservação, ordinárias ou extraordinárias, requeridas pelas leis vigentes ou pelo fim do contrato, salvo estipulação em contrário. Assim, embora se preveja supletivamente que é sobre o senhorio que recai o dever de realizar obras, admite-se estipulação em contrário, o que se justifica, pois é natural que por contrato certas obras possam ficar a cargo do arrendatário. O valor da renda pode, inclusive, ser convencionado em função dessa obrigação, como acontece nos casos da cláusula de “arrendamento do imóvel no estado em que se encontra.”
A lei remeteu, porém, novamente para o art. 1036 do Código Civil o regime da exigência de realização de obras por parte do arrendatário no âmbito do arrendamento urbano. Por outro lado, a menos que haja estipulação em contrário, o arrendatário tem direito, no final do contrato, a compensação por obras licitamente feitas, nos termos aplicáveis ao possuidor de boa fé (art. 1074/5).
No caso de as obras estarem a cargo do senhorio, a sua não realização constitui fundamento de resolução do contrato pelo arrendatário (art. 1083/1).
A inovação do NRAU no que aos conceitos de obras de conservação ordinária e extraordinária concerne não é grande. O RAU já fazia corresponder o mesmo regime às obras de conservação extraordinária e às obras de beneficiação, inutilizando a distinção. Cremos assim que os conceitos de obras de conservação ordinária e extraordinária do atual art. 1074/1 do Código Civil podem ser preenchidos com auxílio ao que constava do art. 11 do RAU, fazendo-se a distinção entre eles à luz de um critério essencialmente estruturalista: serão obras de conservação ordinária as que não impliquem intervenção na estrutura do edifício; serão obras de conservação extraordinária as que revestem natureza estrutural de tal modo que a sua não realização compromete total e definitivamente a utilização do arrendado para os fins previstos no contrato.
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2).3. No caso, como resultou provado, foi retirada parte da cobertura do edifício, o que permitiu a infiltração das águas pluviais no interior. Ademais dos focos de humidade, ocorreu a deterioração dos materiais, que veio a provocar o desabamento do teto do r/c cedido à Recorrida, impedindo, assim, que esta pudesse continuar a desenvolver a sua atividade comercial.
O Recorrente, numa espécie de raciocínio “Sim, mas”, característico da defesa por exceção perentória, alegou três fundamentos de defesa: (1.º) que foi a Recorrida quem retirou a cobertura, de modo a provocar a infiltração de água e levá-lo a aceitar uma proposta de revogação do contrato mediante o pagamento de uma contrapartida monetária; (2-º) que o desabamento do interior do edifício foi causado por ato de terceiro; e (3.º) que a Recorrida retirou todas as mercadorias do espaço arrendado, deixando de exercer nele a sua atividade comercial.
Os factos que substanciam o primeiro fundamento da defesa do Recorrente, a provarem-se, permitiriam imputar os danos na esfera jurídica da Recorrida – que, a um tempo, teria violado, de forma dolosa, os deveres de custódia da coisa e de lealdade emergentes do contrato e, a outro, o direito de propriedade do senhorio, incorrendo na obrigação de indemnizar, seja com fundamento da responsabilidade civil contratual, seja com fundamento na responsabilidade civil por factos ilícitos. No limite, haveria um evidente venire contra factum proprium da sua parte, que teria como consequência a paralisação do direito que através do requerimento de injunção pretendeu exercer, cf. art. 334 do Código Civil.
Os que substanciam o segundo fundamento da defesa do Recorrente, a provarem-se, levariam à exoneração da responsabilidade se o ato imputado ao terceiro pudesse ser qualificado como imprevisível e inevitável. Estaríamos, nesse caso, perante um evento equiparável a um caso de força maior, devido à sua externalidade, imprevisibilidade e inevitabilidade, potencialmente enquadrável no regime da impossibilidade superveniente consagrado no art. 790 do Código Civil.
Simplesmente, como vimos, não foi adquirida uma convicção positiva quanto aos factos integradores destes dois fundamentos da defesa, o que não pode deixar de aproveitar à Recorrida, à luz da regra de distribuição do ónus da prova consagrada no n.º 2 do art. 342 do Código Civil.
Quando aos factos que substanciam o terceiro fundamento da defesa, afigura-se-nos que, com a sua alegação, o Recorrente tinha como objetivo demonstrar que a Recorrida, ao deixar de exercer a sua atividade comercial no espaço arrendado, abandonando-o, incorreu numa infração ao dever de uso efetivo da coisa para o fim contratado (cf. art. 1072/1 do Código Civil). Nesse pressuposto, a exigência de realização de obras seria um ato sem qualquer utilidade para ela. Também aqui a consequência seria a paralisação do correspondente direito por o seu exercício se revelar contrário aos ditames da boa-fé, à luz da cláusula geral da proibição do abuso do direito consagrada no art. 334 do Código Civil.
Simplesmente, o que os factos revelam é apenas que a Recorrida retirou os produtos do seu comércio do arrendado quando surgiram as infiltrações de água e, concomitantemente, reclamou a realização das obras. Neste contexto, o comportamento da Recorrida não revela a intenção de abandonar o arrendado, mas apenas a de mitigar os danos (cf. art. 570/2 do Código Civil) decorrente do obstáculo surgido ao uso da coisa – o que, diga-se, os acontecimentos de janeiro de 2024 demonstram ter sido avisado.
Tudo ponderado, temos de concluir que, não obstante a alteração introduzida na fundamentação de facto, a decisão do Tribunal a quo não merece qualquer censura.
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3). Na improcedência do recurso, o Recorrente deve suportar as custas respetivas: art. 527/1 e 2 do CPC.
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V.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em (i) julgar o presente recurso improcedente e (ii) confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Notifique.
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Guimarães, 25 de outubro de 2025
Os Juízes Desembargadores,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.º Adjunto: João Peres Coelho
2.º Adjunto: Fernando Manuel Barroso Cabanelas
[1] Inter alia, RG 10.07.2023 (4607/21.4T8VNF-A.G1), relatado pela Desembargadora Maria João Pinto de Matos. No dizer de António Abrantes Geraldes, “A sentença cível”, disponível em Publicações - Supremo Tribunal de Justiça (stj.pt), pp. 10-11, “na enunciação dos factos apurados o juiz deve observar uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da ação. Por isso, é inadmissível (…) que se opte pela enunciação desordenada de factos, uns extraídos da petição, outros da contestação ou da réplica, sem qualquer coerência interna.”